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Léon Denis
Cristianismo
e
Espiritismo
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Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
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Nota da Editora
Diversas passagens interpretativas desta obra, nas quais
Léon Denis alude à autenticidade dos Evangelhos e à presen-
ça do Cristo na Terra, encerram opinião pessoal do Autor,
contagiado pelo espírito da época em que foram escritas e
que, de certa forma, ainda hoje são objeto de controvérsia.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
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Índice
Prefácio da Nova Edição Francesa ................................................. 5
Introdução .................................................................................... 13
1 – Origem dos Evangelhos ......................................................... 22
2 – Autenticidade dos Evangelhos ............................................... 27
3 – Sentido oculto dos Evangelhos............................................... 34
4 – A Doutrina Secreta................................................................. 42
5 – Relações com os Espíritos dos Mortos ................................... 52
6 – Alteração do Cristianismo – os Dogmas ................................ 70
7 – Os Dogmas – os Sacramentos, o Culto................................... 83
8 – Decadência do Cristianismo................................................. 112
9 – A Nova Revelação – o Espiritismo e a Ciência .................... 160
10 – A Nova Revelação – a Doutrina dos Espíritos.................... 222
11 – Renovação.......................................................................... 250
Conclusão .................................................................................. 275
Notas Complementares .............................................................. 279
Nota 1: Sobre a autoridade da Bíblia e as origens do
Antigo Testamento................................................... 279
Nota 2: Sobre a origem dos Evangelhos ............................... 286
Nota 3: Sobre a autenticidade dos Evangelhos ..................... 289
Nota 4: Sobre o sentido oculto dos Evangelhos .................... 290
Nota 5: Sobre a Reencarnação .............................................. 292
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
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Nota 6: Sobre as relações dos primeiros cristãos com os
Espíritos................................................................... 295
Nota 7: Os fenômenos espíritas na Bíblia ............................. 307
Nota 8: Sobre o sentido atribuído às expressões deuses e
demônios .................................................................. 315
Nota 9: Sobre o perispírito ou corpo sutil; opinião dos
padres da Igreja........................................................ 317
Nota 10: Galileu e a Congregação do Index ........................... 321
Nota 11: Pio X e o Modernismo ............................................. 324
Nota 12: Os fenômenos espíritas contemporâneos; provas
da identidade dos Espíritos ...................................... 327
Nota 13: Sobre a telepatia....................................................... 332
Nota 14: Sobre a sugestão ou a transmissão do pensamento... 334
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
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Prefácio da Nova Edição Francesa
Dez anos sucederam à publicação desta obra. A História des-
dobrou sua trama e consideráveis acontecimentos se realizaram em
nosso país. A Concordata foi denunciada. O Estado cortou o laço
que o prendia à Igreja Romana. Ressalvados alguns pontos, foi
com uma espécie de indiferença que a opinião pública recebeu as
medidas de rigor tomadas pelo poder civil contra as instituições
católicas.
De que procede esse estado de espírito, essa desafeição não
apenas local, mas quase generalizada, dos franceses pela Igreja? –
De não ter esta realizado esperança alguma das que havia suscita-
do. Nem soube compreender, nem desempenhar o seu papel e os
deveres de guia e educadora de almas, que assumira.
Há um século, vinha a Igreja Católica atravessando uma das
mais formidáveis crises que registra a sua história. Na França, a
Separação veio acentuar esse estado de coisas e agravá-lo ainda
mais.
Repudiada pela sociedade moderna, abandonada pelo escol in-
telectual do mundo, em perpétuo conflito com o direito novo, que
jamais aceitou; em contradição, portanto, quase em todos os pontos
essenciais, com as leis civis de todos os países, repelida e detestada
pelo povo e, principalmente, pelo operariado, já não resta à Igreja
mais que um punhado de adeptos entre as mulheres, os velhos e as
crianças. O futuro cessou de lhe pertencer, pois que a educação da
mocidade acaba de lhe ser arrebatada, não sem alguma violência,
pelas recentes leis da República francesa.
Aí está, no limiar do século XX, o balanço atual da Igreja ro-
mana. Desejaríamos, num estudo imparcial, mesmo respeito só,
investigar as causas profundas desse eclipse do poder eclesiástico,
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
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eclipse parcial ainda, mas que, em futuro não remoto, ameaça
converter-se em total e definitivo.
A Igreja é atualmente impopular. Ora, nós vivemos época em
que a popularidade, sagração dos novos tempos, é indispensável à
durabilidade das instituições. Quem lhe não possuir o cunho, arris-
ca-se a perecer em pouco tempo no insulamento e no olvido.
Como chegou a Igreja Católica a esse ponto? – Pela excessiva
negligência que a causa do povo mereceu de sua parte. A Igreja só
foi verdadeiramente popular e democrática em suas origens, duran-
te os tempos apostólicos, períodos de perseguição e de martírio; e é
o que então justificava a sua capacidade de proselitismo, a rapidez
de suas conquistas, o seu poder de persuasão e de irradiação. No
dia em que foi oficialmente reconhecida pelo Império, a partir da
conversão de Constantino, tornou-se a amiga dos Césares, a aliada
e, algumas vezes, a cúmplice dos grandes e dos poderosos. Entrou
na era infecunda das argúcias teológicas, das querelas bizantinas e,
desse momento em diante, tomou sempre ou quase sempre o parti-
do do mais forte. Feudal na Idade Média, essencialmente aristocrá-
tica no reinado de Luiz XIV, só fez à Revolução tardias e forçadas
concessões.
Todas as emancipações intelectuais e sociais se efetuaram con-
tra a sua vontade. Era lógico, fatal, que se voltassem contra ela: é o
que na hora atual se verifica.
Adstrita, na França, por muito tempo à Concordata, incessan-
temente se manteve em conflito sistemático e latente com o Estado.
Essa união forçada, que durava de um século para cá, devia neces-
sariamente terminar pelo divórcio. A lei da Separação acaba de o
pronunciar. O primeiro uso que de sua liberdade, ostensivamente
reconquistada, fez a Igreja foi lançar-se nos braços dos partidos
reacionários, com esse gesto provando que nada, há um século,
aprendeu nem esqueceu.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
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Empenhando solidariedade com os partidos políticos que já fi-
zeram seu tempo, a Igreja Católica, sobretudo a de França, por isso
mesmo se condena a morrer no mesmo dia, do mesmo gênero de
morte deles: a impopularidade. Um papa genial, Leão XIII, tentou
por momentos desligá-la de todo compromisso direto ou indireto
com o elemento reacionário; mas não foi escutado nem obedecido.
O novo pontífice, Pio X, reatando a tradição de Pio IX, seu an-
tecessor, nada julgou melhor fazer que aplicar as doutrinas do
Sílabo e da infalibilidade. Sob a vaga denominação de modernis-
mo, acaba ele de anatematizar a sociedade moderna e combater
qualquer tentativa de reconciliação,ou de conciliação com ela. A
guerra religiosa ameaça atear-se nos quatro ângulos do país. O
prestígio de grandeza que, a poder do gênio diplomático, Leão XIII
havia assegurado à Igreja, desvaneceu-se em poucos anos. O cato-
licismo, restringido ao domínio da consciência privada e individu-
al, nunca mais desfrutará a vida oficial e pública.
Qual é – inda uma vez o inquiriremos – a causa profunda desse
enfraquecimento da instituição mais poderosa do mundo? Em
nossa opinião, há unicamente uma causa profunda capaz de expli-
car esse fenômeno. Acreditarão os políticos, filósofos e os sábios
encontrá-la nas circunstâncias exteriores, em razão de ordem socio-
lógica. Por nossa parte, iremos procurá-la no próprio coração da
Igreja. De um mal orgânico é que ela deperece, atingida como nela
se acha a sede vital.
A vida da Igreja era animada pelo espírito de Jesus. O sopro do
Cristo, esse divino sopro de fé, caridade e fraternidade universal
era, de fato, o motor desse vasto organismo, a peça motriz de suas
funções vitais. Ora, há muito tempo o espírito de Jesus parece ter
abandonado a Igreja. Não é mais a chama do Pentecostes que irra-
dia nela e em torno dela; essa generosa labareda se extinguiu e
nenhum Cristo há que a reacenda.
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Grande e bela, entretanto, senão benéfica, foi outrora a Igreja
de França, asilo dos mais elevados espíritos, das mais nobres inte-
ligências. Nos tempos bárbaros, era ao mesmo tempo a ciência e a
filosofia, a arte e a beleza, a oração e a fé. Os grandes mosteiros, as
abadias célebres tornaram-se os refúgios do pensamento. Ali se
conservaram os tesouros intelectuais, as relíquias do gênio antigo.
No século XIII ela inspirou uma bela parte do que o espírito huma-
no produziu de mais brilhante. Subjugava todos aqueles indivíduos
rudes, aqueles bárbaros mal polidos, e com um gesto os prosterna-
va na atitude da oração.
E agora já não vive, já não brilha senão do reflexo de sua pas-
sada grandeza. Onde estão hoje, na Igreja, os pensadores e os
artistas, os verdadeiros sacerdotes e os santos? Os pesquisadores de
verdades divinas, os grandes místicos adoradores do belo, os so-
nhadores do infinito cederam lugar aos políticos combativos e
negocistas.
A casa do Senhor se transformou em casa bancária e em tribu-
na. A Igreja tem um reino que é deste mundo e nada mais que deste
mundo. Já não é o sonho divino o que alimenta, não mais que
ambições terrestres e uma arrogante pretensão de tudo dominar e
dirigir.
As encíclicas e os cânones substituíram o sermão da montanha
e os filhos do povo, as gerações que se sucedem, apenas têm por
guia um catecismo esdrúxulo, recheado de noções incompreensí-
veis, em que se fala de hipóstase, de transubstanciação; um cate-
cismo incapaz de valer por eficaz socorro nos momentos angustio-
sos da existência. Disso procede à irreligião do maior número. O
culto de uma determinada “Nossa Senhora” chegou a render até
dois milhões por ano, mas não há uma única edição popular do
Evangelho entre os católicos.
Todas as tentativas de fazer penetrar na Igreja um pouco de ar
e luz e um sopro dos novos tempos têm sido sufocadas, reprimidas.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
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Lamennais, H. Loyson, Didon, foram obrigados a se retratar ou
abandonar o “grêmio”. O abade Loisy foi expulso de sua cátedra.
Curvada, há séculos, ao jugo de Roma, a Igreja perdeu toda i-
niciativa, toda a energia viril, toda veleidade de independência. É
tal a organização do Catolicismo que nenhuma decisão pode ser
tomada, nenhum ato consumado, sem o consentimento e o sinal do
poder romano. E Roma está petrificada em sua hierática atitude
qual estátua do passado.
O cardeal Meignan, falando do Sacro Colégio, dizia um dia a
um seu amigo: “Lá estão eles, os setenta anciãos, vergados ao peso,
não dos anos, mas das responsabilidades, vigilantes para que nem
um til seja tirado, nem um til acrescentado ao depósito sagrado.”
Em tais condições a Igreja Católica já não é moralmente uma insti-
tuição viva, não é mais um corpo em que circule a vida, senão um
túmulo em que jaz, como amortalhado, o pensamento humano.
Há longos séculos, não era a Igreja mais que um poder políti-
co, admiravelmente organizado, hierarquizado; enchia a História
com o fragor de suas lutas ruidosas, em companhia dos reis e impe-
radores, com os quais partilhava a hegemonia do mundo. Havia
concebido um gigantesco plano: a cristandade, isto é, o conjunto
dos povos católicos arregimentados, unidos como um exército
formidável em torno do papa romano, soberano senhor e ponto
culminante da feudalidade. Era grandioso, mas puramente humano.
Ao Império Romano, solapado pelos bárbaros, tinha a Igreja
substituído o império do Ocidente, vasta e poderosa instituição em
torno da qual toda a Idade Média gravitou. Nessa confederação
política e religiosa tudo desaparecia e dela unicamente duas cabe-
ças emergiam: o papa e o imperador, “essas duas metades de
Deus”.
Jesus não havia fundado a religião do Calvário para dominar
os povos e os reis, mas para libertar as almas do jugo da matéria e
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pregar, pela palavra e pelo exemplo, o único dogma de redenção: o
Amor.
Silenciemos sobre os despotismos solidários dos reis e da Igre-
ja; esqueçamos a Inquisição e suas vítimas e voltemos aos tempos
atuais.
Um dos maiores erros da Igreja, no século dezenove, foi à de-
finição do dogma da infalibilidade pessoal do pontífice romano.
Semelhante dogma, imposto como artigo de fé, foi um desafio
lançado à sociedade moderna e ao espírito humano.
Proclamar, no século vinte, em face de uma geração febricitan-
te, atormentada da ânsia de infinito, perante homens e povos que
aspiram à verdade sem a poder atingir, que procuram a justiça, a
liberdade, como o veado sequioso procura e aspira à água da fonte,
o manancial do rio, proclamar – dizemos – num mundo assim, em
adiantada gestação, que um único homem na Terra possui toda a
verdade, toda a luz, toda a ciência, não será – repetimos – lançar
um desafio a toda a Humanidade, a essa Humanidade condenada,
na Terra, ao suplício de Tântalo, às dilacerações de Prometeu?
Dificilmente se reabilitará dessa gravíssima falta a Igreja Cató-
lica. No dia em que divinizou um homem, tornou-se ela merecedo-
ra da encrespação de idolatria, que Montalembert lhe dirigiu quan-
do, ao lhe ser comunicada, no leito de morte, a definição da infali-
bilidade pontifícia, exclamou: “Nunca hei de adorar o ídolo do
Vaticano!” Será exagerado o termo “ídolo”? – Como os Césares
romanos, a quem era oferecido um culto, o papa faz questão de ser
chamado pontífice e rei. Que é ele senão o sucessor dos imperado-
res de Roma e de Bizâncio? Seu próprio vestuário, seus gestos e
atitudes, o obsoleto cerimonial e o fausto da sua cúria, tudo recorda
as pompas cesarianas dos piores dias, e foi o eloqüente orador
espanhol, o religioso Emílio Castelar, que exclamou um dia, vendo
Pio IX carregado na seda, em forma de procissão, a caminho de S.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
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Pedro: “Aquele não é o pescador da Galiléia, é um sátrapa do
Oriente!”
A causa íntima da decadência e impopularidade da Igreja Ro-
mana reside em ter colocado o papa no lugar de Deus. O espírito
do Cristo retirou-se dela! Perdendo a virtude do Alto, que a susten-
tava, a Igreja caiu nas mãos da política humana. Já não é uma
instituição de ordem divina; o pensamento de Jesus não mais a
inspira e os maravilhosos dons que o Espírito de Pentecostes lhe
comunicava desapareceram.
Ainda mais: atacada de cegueira, como os padres da antiga Si-
nagoga, ao advento de Jesus, a Igreja esqueceu o sentido profundo
da sua liturgia e dos seus mistérios. Os padres já não conhecem a
oculta significaçãodas coisas; perderam o segredo da iniciação.
Seus gestos se tornaram estéreis, suas bênçãos não mais abençoam,
seus anátemas já não amaldiçoam. Foram apeados até ao nível
comum e o povo, compreendendo que é nulo o seu poder e ilusório
o seu mistério, encaminhou-se a outras influências e foi a outros
deuses que passou a incensar.
Na Igreja a teologia aniquilou o Evangelho, como na velha Si-
nagoga o Talmude havia desnaturado a Lei. E são os cultores da
letra que atualmente a dirigem. Uma coletividade de fanáticos
mesquinhos e violentos acabará por tirar à Igreja os últimos vestí-
gios da sua grandeza e consumar-lhe a impopularidade. Assistire-
mos provavelmente à ruína progressiva dessa instituição que foi
durante vinte séculos a educadora do mundo, mas que parece haver
falido à sua verdadeira vocação.
Daí se deve concluir que o futuro religioso da Humanidade es-
teja comprometido irrevogavelmente e que o mundo inteiro deva
soçobrar no materialismo como num oceano de lama? Longe disso.
O reinado da letra acaba, o do espírito começa. A chama de Pente-
costes, que abandona o candelabro de ouro da Igreja, vem acender
outros archotes. A verdadeira revelação se inaugura no mundo pela
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virtude do invisível. Quando em um ponto o fogo sagrado se extin-
gue, é para se atear noutro lugar. Jamais a noite envolve completa-
mente em treva o mundo. Sempre no firmamento cintila alguma
estrela.
A alma humana, mediante suas profundas ramificações, mer-
gulha no infinito. O homem não é um átomo isolado no imenso
turbilhão vital. Seu espírito sempre está, por algum lado, em comu-
nhão com a Causa eterna; seu destino faz parte integrante das
harmonias divinas e da vida universal. Pela força das coisas há de o
homem se aproximar de Deus. A morte das Igrejas, a decadência
das religiões formalistas, não constituem sintoma de crepúsculo,
mas, ao contrário, a aurora inicial de um astro que desponta. Nesta
hora de perturbação em que nos encontramos, grande combate se
trava entre a luz e as caligens, como sucede quando uma tempesta-
de se forma sobre o vale; mas as culminâncias do pensamento
continuam sempre imersas no azul e na serenidade.
Sursum corda! E de fato a vida eterna ante nós se descerra ili-
mitada e radiosa! Assim como no infinito milhares de mundos são
arrebatados por seus sóis, rumo do incomensurável, num giro
harmonioso, ritmado qual dança antiga e nem astro nem terra al-
guma torna a passar jamais pelo mesmo ponto, as almas, por seu
turno, arrastadas pela atração magnética do seu invisível centro,
prosseguem evolvendo no espaço, atraídas incessantemente por um
Deus, de quem sempre se aproximam sem jamais o alcançar.
Força é reconhecer que esta doutrina é bem mais ampla que os
dogmas exclusivos das Igrejas agonizantes e que, se o futuro per-
tence a alguém ou alguma coisa, há de o ser indubitavelmente ao
espiritualismo universal, a esse Evangelho da eternidade e do
infinito!
Fevereiro, 1910.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
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Introdução
Não foi um sentimento de hostilidade ou de malevolência que
ditou estas páginas. Malevolência não a tem por nenhuma idéia,
por pessoa alguma. Quaisquer que sejam os erros ou as faltas dos
que se acobertam com o nome de Jesus e sua doutrina, o pensa-
mento do Cristo em nós não desperta senão um sentimento de
profundo respeito e de sincera admiração. Educado na religião
cristã, conhecemos tudo o que ela encerra de poesia e de grandeza.
Se abandonamos o domínio da fé católica pelo da filosofia espírita,
não esquecemos por isso as recordações da nossa infância, o altar
ornado de flores diante do qual se inclinava a nossa fronte juvenil,
a grande harmonia dos órgãos, sucedendo aos cantos graves e
profundos, e a luz coada através dos vitrais coloridos, a brincar no
ladrilhado solo, entre os fiéis prosternados. Não esquecemos que a
austera cruz estende os seus braços por sobre o túmulo dos que
mais amamos neste mundo. Se há para nós uma imagem sagrada,
entre as veneráveis, é a do supliciado do Calvário, do mártir prega-
do ao madeiro infamante, ferido, coroado de espinhos e que, ao
expirar, perdoa aos seus algozes.
Ainda hoje é com viva emoção que escutamos os longínquos
convites dos sinos, a voz de bronze, que vão acordar os sonoros
ecos dos bosques e dos vales. E, nas horas de tristeza, praz-nos
meditar na igreja silenciosa e solitária, sob a penetrante influência
que nela acumularam as preces, as aspirações, as lágrimas de tantas
gerações.
Uma questão, porém, se impõe, questão que muitos resolveram
mediante o estudo e a reflexão. Todo esse aparato que impressiona
os sentidos e move o coração, todas essas manifestações artísticas,
pompa do ritual romano e o esplendor das cerimônias não são
como um brilhante véu que oculta a pobreza da idéia e a insufici-
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
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ência do ensino? Não foi a convicção da sua impotência para satis-
fazer as elevadas faculdades da alma, a inteligência, o discernimen-
to e a razão, o que impeliu a Igreja para o caminho das manifesta-
ções exteriores e materiais?
O protestantismo, ao menos, é mais sóbrio. Se desdenha as
formas, a decoração, é para melhor fazer sobressair a grandeza da
idéia. Estabelece a autoridade exclusiva da consciência e o culto do
pensamento, e de degrau em grau, de conseqüência em conseqüên-
cia, conduz logicamente ao livre exame, isto é, à filosofia.
Conhecemos tudo o que a doutrina do Cristo encerra de subli-
me; sabemos que ela é por excelência a doutrina do amor, a religi-
ão da piedade, da misericórdia, da fraternidade entre os homens.
Mas a doutrina de Jesus é a que ensina a Igreja Romana? A palavra
do Nazareno nos foi transmitida pura e sem mescla, e a interpreta-
ção que dela nos dá a Igreja é isenta de todo elemento estranho ou
parasita?
Não há questão mais grave, mais digna da meditação dos pen-
sadores, como da atenção de todos os que amam e procuram a
verdade. É o que nos propomos examinar na primeira parte desta
obra, com o auxílio e a inspiração dos nossos guias do espaço,
afastando tudo o que poderia perturbar as consciências, excitar as
más paixões, fomentar a divisão entre os homens.
É verdade que esse trabalho foi, antes de nós, empreendido por
outros. Mas o objetivo destes, seus meios de investigação e de
crítica eram diferentes dos nossos. Procuram menos edificar que
destruir, ao passo que, antes de tudo, quisemos fazer obra de re-
constituição e de síntese. Consagramo-nos à tarefa de destacar da
sombra das idades, da confusão dos textos e dos fatos, o pensamen-
to básico, pensamento de vida, que é a fonte pura, o foco intenso e
radioso do Cristianismo, e, ao mesmo tempo, explicar os estranhos
fenômenos que caracterizam as suas origens, fenômenos renová-
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
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veis sempre, que efetivamente se renovam todos os dias sob os
nossos olhos e podem ser explicados mediante leis naturais. Nesse
pensamento oculto, nesses fenômenos até agora inexplicados, mas
que uma nova ciência observa e registra, encontramos a solução
desses problemas que há tantos séculos pairam sobre a razão hu-
mana: o conhecimento da nossa verdadeira natureza e a lei dos
nossos destinos progressivos.
Uma das mais sérias objeções lançadas ao Cristianismo pela
crítica moderna é que a sua moral e a sua doutrina da imortalidade
repousam sobre um conjunto de fatos ditos “miraculosos”, que o
homem esclarecido relativamente à ação das leis da natureza não
poderia hoje admitir.
Se milagres, acrescentam, puderam ser outrora necessários pa-
ra fundar a crença na outra vida, sê-lo-ão menos em nossa época de
dúvida e de incredulidade? E, além disso, a que causa atribuir esses
milagres? Não é, como alguns o pretenderam, à naturezadivina do
Cristo, porquanto seus discípulos igualmente os obtinham.
A questão, porém, ficará esclarecida por uma luz intensa, e as
afirmações do Cristianismo relativamente à imortalidade adquirirão
mais força e autoridade, se for possível estabelecer que esses fatos,
ditos “miraculosos”, se produziram em todos os tempos, particu-
larmente em nossos dias; que eles são o resultado de causas livres,
invisíveis, que perpetuamente atuam, submetidas, porém, a imutá-
veis leis, se neles, em uma palavra, já não vemos milagres, mas
fenômenos naturais, uma forma da evolução e da sobrevivência do
ser.
É precisamente esta uma das conseqüências do Espiritismo.
Por um aprofundado estudo das manifestações do além-túmulo, ele
demonstra que esses fatos ocorreram em todas as épocas, quando
as perseguições não lhes opunham obstáculos; que quase todos os
grandes missionários, os fundadores de seitas e de religiões foram
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
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médiuns inspirados; que uma perpétua comunhão une duas huma-
nidades, ligando aos do mundo terrestre os habitantes do espaço.
Esses fatos se reproduzem em torno de nós com renovada in-
tensidade. Desde há cinqüenta anos aparecem formas, fazem-se
ouvir vozes, chegam-nos comunicações por via tipológica ou de
incorporação, assim como pela escrita automática. Provas de iden-
tidade, em profusão, vêm revelar-nos a presença de nossos paren-
tes, dos que na terra amamos, que foram a nossa carne e o nosso
sangue, e dos quais nos havia momentaneamente a morte separado.
Em suas práticas, em seus ensinos, aprendemos a conhecer esse
Além misterioso, objeto de tantos sonhos, debates e contradições.
Em nosso entendimento se acentuam e definem as condições da
vida ulterior, dissipa-se a obscuridade que reinava sobre tais ques-
tões. O passado e o futuro se esclarecem até o mais íntimo de suas
profundezas.
Assim o Espiritismo nos oferece as provas naturais, tangíveis,
da imortalidade e por esse meio nos conduz às puras doutrinas
cristãs, ao próprio âmago do Evangelho, que a obra do Catolicismo
e a lenta edificação dos dogmas mal cobriram de tantos elementos
incongruentes e estranhos. Graças ao seu estudo escrupuloso do
corpo fluídico, ou perispírito, ele torna mais compreensíveis, mais
aceitáveis, os fenômenos de aparições e materializações, sobre as
quais o Cristianismo repousa integralmente.
Estas considerações melhor farão sobressair a importância dos
problemas suscitados no curso desta obra e cuja solução oferece-
mos, apoiando-nos ao mesmo tempo nos testemunhos de sábios
imparciais e esclarecidos e nos resultados de experiências pessoais,
realizadas consecutivamente há mais de trinta anos.
Sob esse ponto de vista, a oportunidade do presente trabalho a
ninguém decerto escapará. Nunca a necessidade de esclarecimento
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
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das questões vitais, a que se acha indissoluvelmente ligada à sorte
das sociedades, se fez sentir de modo mais imperioso.
Cansado de dogmas obscuros, de interesseiras teorias, de afir-
mações sem provas, o pensamento humano há muito se deixou
empolgar pela dúvida. Uma crítica inexorável joeirou rigorosamen-
te todos os sistemas. A fé se extinguiu em sua própria fonte; o ideal
religioso desapareceu. Concomitantemente com os dogmas, perde-
ram o seu prestígio as elevadas doutrinas filosóficas. O homem
esqueceu ao mesmo tempo o caminho dos templos e dos pórticos
da sabedoria.
Para quem quer que observe atentamente as coisas, os tempos
que vivemos estão carregados de ameaças. Parece brilhante a nossa
civilização e, todavia, quantas manchas lhe obscurecem o esplen-
dor! O bem-estar e a riqueza se têm espalhado, mas é acaso por
suas riquezas que uma sociedade se engrandece? O objetivo do
homem na terra é, porventura, levar uma vida faustosa e sensual?
Não! Um povo não é grande, um povo não se eleva senão pelo
trabalho, pelo culto da justiça e da verdade.
Em que se tornaram as civilizações do passado, aquelas em
que o indivíduo não se preocupava senão com o corpo, com as suas
necessidades e as suas fantasias? Acham-se em ruínas; estão mor-
tas.
Voltamos a encontrar, precisamente em nossa época, as mes-
mas tendências perigosas que as perderam: são as que consistem
em tornar tudo adstrito à vida material, em constituir objeto e fim
da existência a conquista dos prazeres físicos. A crítica e a consci-
ência materialistas restringiram os horizontes da vida. Às tristezas
da hora presente acrescentaram a negação sistemática, a acabru-
nhadora idéia do nada. E por esse modo agravaram todas as misé-
rias humanas; arrebataram ao homem, com as mais seguras armas
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
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morais de que dispunha, o sentimento de suas responsabilidades;
abalaram até às suas profundezas o próprio foro íntimo do eu.
Assim, gradualmente, os caracteres se vão abatendo, a venali-
dade cresce, a imoralidade se alastra como imensa chaga. O que era
sofrimento se converteu em desespero. Os casos de suicídio se têm
multiplicado em proporções até aqui desconhecidas – coisa mons-
truosa e que em nenhuma outra época se viu: este flagelo do século
até as próprias crianças tem contaminado.
Contra essas doutrinas de negação e morte falam hoje os fatos.
Uma experimentação metódica, prolongada, nos conduz a esta
certeza: o ser humano sobrevive à morte e o seu destino é obra sua.
Fatos inúmeros se têm multiplicado, oferecendo novos subsí-
dios acerca da natureza, da vida e da ininterrupta evolução dos
seres. Esses fatos foram pela ciência devidamente autenticados.
Importa agora interpretá-los, pô-los em evidência e, sobretudo,
deduzir-lhes a lei, as conseqüências e tudo o que deles pode resul-
tar para a existência individual e social.
Esses fatos vão despertar no íntimo das consciências as verda-
des aí adormecidas. Eles restituirão ao homem a esperança, com o
elevado ideal que esclarece e fortifica. Provando que não morre-
mos inteiramente, encaminharão os pensamentos e os corações
para essas vidas ulteriores em que a justiça encontra a sua aplica-
ção.
Todos, por esse meio, compreenderão que a vida tem um obje-
tivo, que a lei moral tem uma realidade e uma sanção; que não há
sofrimentos inúteis, trabalho sem proveito, nem provas sem com-
pensação; que tudo é pesado na balança do divino Justiceiro.
Em lugar desse campo cerrado da vida em que os fracos su-
cumbem fatalmente, em lugar dessa gigantesca e cega máquina do
mundo que tritura as existências e de que nos falam as filosofias
negativas, o Novo Espiritualismo fará surgir, aos olhos dos que
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
19
pesquisam e dos que sofrem, a portentosa visão de um mundo de
eqüidade, de amor e de justiça, onde tudo é regulado com ordem e
sabedoria, harmonicamente.
E dessa forma será atenuado o sofrimento, assegurado o pro-
gresso do homem, santificado o seu trabalho; a vida se revestirá de
maior dignidade e enobrecimento. Porque o homem tem tanta
necessidade de uma crença como de uma pátria, como de um lar. É
o que explica que formas religiosas, envelhecidas e caducas, con-
servem ainda os seus adeptos. Há no coração humano tendências e
necessidades que nenhum sistema negativo poderá jamais satisfa-
zer. Mau grado à dúvida que a oprime, desde que a alma sofre,
instintivamente se volta para o céu. Faça o que fizer, o homem
torna a encontrar o pensamento de Deus nas cantilenas que no
berço o embalaram, nos sonhos da sua infância, como nas silencio-
sas meditações da idade adulta.
Há certas horas, não pode o céptico mais endurecido contem-
plar o infinito constelado, o curso dos milhões de sóis que na imen-
sidade se efetua, nem passar diante da morte, sem perturbação e
sem respeito.
Sobranceira às vãs polêmicas, às discussões estéreis, há umacoisa que escapa a todas as críticas: é essa aspiração da alma hu-
mana a um ideal eterno, que a sustenta em suas lutas, consola nas
provações, e nas horas das grandes resoluções é a sua inspiradora;
é essa intuição do que, por trás da cena em que se desenrolam os
dramas da vida e o grandioso espetáculo da natureza, oculta-se um
poder, uma causa suprema, que lhes regulou as fases sucessivas e
traçou as linhas de sua evolução.
Onde, porém, encontrará o homem a segura rota que o conduza
a Deus? Onde haurir a inabalável convicção que, de estádio em
estádio, o guiará através dos tempos e do espaço, para o supremo
fim das existências? Qual será, numa palavra, a crença do futuro?
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
20
As formas materiais e transitórias da religião passam, mas a
vida religiosa, a crença pura, desembaraçada de todas as formas
inferiores é, em sua essência, indestrutível. O ideal religioso evol-
verá, como todas as manifestações do pensamento. Ele não poderia
escapar à lei do progresso que rege os seres e as coisas.
A futura fé que já emerge dentre as sombras não será nem ca-
tólica nem protestante; será a crença universal das almas, a que
reina em todas as sociedades adiantadas do espaço, e mediante a
qual cessará o antagonismo que separa a ciência atual da religião.
Porque, com ela, a ciência tornar-se-á religiosa, e a religião se há
de tornar científica.
Ela se apoiará na observação, na experiência imparcial, nos fa-
tos milhares de vezes repetidos.
Mostrando-nos as realidades objetivas do mundo dos espíritos,
dissipará todas as dúvidas, destruirá as incertezas; a todos franque-
ará infinitas perspectivas do futuro.
Em certas épocas da História, passam sobre o mundo correntes
de idéias que vêm arrancar a Humanidade ao seu torpor. Sopros
vindos do alto encrespam a imensa vaga humana e, graças a eles,
brotam da sombra as verdades esquecidas na caligem dos séculos.
Elas surgem das mudas profundezas em que dormem os tesouros
das forças ocultas, onde se combinam os elementos renovadores,
onde se elabora a obra misteriosa e divina. Manifestam-se, então,
sob inesperadas formas; reaparecem e revivem.
Em começo repudiadas, escarnecidas pela multidão, prosse-
guem, todavia, impassíveis, serenas, o seu caminho. E chega um
dia em que se é forçado a reconhecer que essas verdades repelidas
vinham oferecer o pão da vida, o cálice da esperança, a todas as
almas sofredoras e dilaceradas; que nos traziam nova base de ensi-
namento e, porventura também, um meio de reabilitação moral. Tal
a situação do moderno Espiritualismo, em que renascem tantas
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
21
verdades há séculos ocultas. Em seu contexto ele resume as crenças
dos sábios e dos antigos celtas, nossos pais; ressurge sob mais
imponentes formas, para encaminhar a um novo ciclo ascensional a
Humanidade em marcha.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
22
1
Origem dos Evangelhos
Há cerca de um século, consideráveis trabalhos empreendidos
nos diversos países cristãos, por homens de elevada posição nas
igrejas e nas universidades, permitiram reconstituir as verdadeiras
origens e as fases sucessivas da tradição evangélica.
Foi, sobretudo, nos centros de religião protestante que se ela-
boraram esses trabalhos, notabilíssimos por sua erudição e seu
caráter minucioso, e que tão vivas claridades projetaram sobre os
primeiros tempos do Cristianismo, sobre o fundo, a forma, o alcan-
ce social das doutrinas do Evangelho.
São os resultados desses trabalhos o que exporemos resumi-
damente aqui, sob uma forma que esforçaremos por tornar mais
simples que a dos exegetas protestantes.
O Cristo nada escreveu. Suas palavras, disseminadas ao longo
dos caminhos, foram transmitidas de boca em boca e, posterior-
mente, transcritas em diferentes épocas, muito tempo depois da sua
morte. Uma tradição religiosa popular formou-se pouco a pouco,
tradição que sofreu constante evolução até o século IV.
Durante esse período de trezentos anos, a tradição cristã jamais
permaneceu estacionária, nem a si mesma semelhante. Afastando-
se do seu ponto de partida, através dos tempos e lugares, ela se
enriqueceu e diversificou. Efetuou-se poderoso trabalho de imagi-
nação; e, acompanhando as formas que revestiram as diversas
narrativas evangélicas, segundo a sua origem, hebraica ou grega,
foi possível determinar com segurança a ordem em que essa tradi-
ção se desenvolveu e fixar a data e o valor dos documentos que a
representam.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
23
Durante perto de meio século depois da morte de Jesus, a tra-
dição cristã, oral e viva, é qual água corrente em que qualquer se
pode saciar. Sua propaganda se fez por meio da prédica, pelo ensi-
no dos apóstolos, homens simples, iletrados1, mas iluminados pelo
pensamento do Mestre.
Não é senão do ano 60 ao 80 que aparecem as primeiras narra-
ções escritas, a de Marcos a princípio, que é a mais antiga, depois
as primeiras narrativas atribuídas a Mateus e Lucas, todas, escritos
fragmentários e que se vão acrescentar de sucessivas adições, como
todas as obras populares2.
Foi somente no fim do século I, de 80 a 98, que surgiu o evan-
gelho de Lucas, assim como o de Mateus, o primitivo, atualmente
perdido; finalmente, de 98 a 110, apareceu, em Éfeso, o evangelho
de João.
Ao lado desses evangelhos, únicos depois reconhecidos pela
Igreja, grande número de outros vinha à luz. Desses, são conheci-
dos atualmente uns vinte; mas, no século III, Orígenes os citava em
maior número. Lucas faz alusão a isso no primeiro versículo da
obra que traz o seu nome.
Por que razão foram esses numerosos documentos declarados
apócrifos e rejeitados? Muito provavelmente porque se haviam
constituído num embaraço aos que, nos séculos II e III, imprimi-
ram ao Cristianismo uma direção que o devia afastar, cada vez
mais, das suas formas primitivas e, depois de haver repelido mil
sistemas religiosos, qualificados de heresias, devia ter como resul-
1 Excetuado Paulo, versado nas letras.
2 Sabatier, diretor da seção dos Estudos superiores, na Sorbona, "Os
Evangelhos Canônicos", pág. 5. A Igreja sentiu a dificuldade em en-
contrar novamente os verdadeiros autores dos Evangelhos. Daí a fór-
mula por ela adotada: vanfelho segundo...
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
24
tado a criação de três grandes religiões, nas quais o pensamento do
Cristo jaz oculto, sepultado sob os dogmas e práticas devocionistas
como em um túmulo3.
Os primeiros apóstolos limitavam-se a ensinar a paternidade de
Deus e a fraternidade humana. Demonstravam a necessidade da
penitência, isto é, da reparação das nossas faltas. Essa purificação
era simbolizada no batismo, prática adotada pelos essênios, dos
quais os apóstolos assimilavam ainda a crença na imortalidade e na
ressurreição, isto é, na volta da alma à vida espiritual, à vida do
espaço.
Daí a moral e o ensino que atraíam numerosos prosélitos em
torno dos discípulos do Cristo, porque nada continham que se não
pudesse aliar a certas doutrinas pregadas no Templo e nas sinago-
gas.
Com Paulo e depois dele, novas correntes se formam e surgem
doutrinas confusas no seio das comunidades cristãs. Sucessivamen-
te, a predestinação e a graça, a divindade do Cristo, a queda e a
redenção, a crença em Satanás e no inferno, serão lançados nos
espíritos e virão alterar a pureza e a simplicidade ao ensinamento
do filho de Maria.
Esse estado de coisas vai continuar e se agravar, ao mesmo
tempo em que convulsões políticas e sociais hão de agitar a infân-
cia do mundo cristão.
Os primeiros Evangelhos nos transportam à época perturbada
em que a Judéia, sublevada contra os romanos, assiste à ruína deJerusalém e à dispersão do povo judeu (ano 70). Foi no meio do
sangue e das lágrimas que eles foram escritos, e as esperanças que
traduzem parecem irromper de um abismo de dores, enquanto nas
almas contristadas desperta o ideal novo, a aspiração de um mundo
3 Ver notas complementares nºs 2, 3 e 4, no fim do volume.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
25
melhor, denominado “reino dos céus”, em que serão reparadas
todas as injustiças do presente.
Nessa época, todos os apóstolos haviam morrido, com exceção
de João e Filipe; o vínculo que unia os cristãos era bem fraco ain-
da. Formavam grupos isolados entre si e que tomavam o nome de
igrejas (ecclesia, assembléia), cada qual dirigido por um bispo ou
vigilante escolhido eletivamente.
Cada igreja estava entregue às próprias inspirações; apenas ti-
nha para se dirigir uma tradição incerta, fixada em alguns manus-
critos, que resumiam mais ou menos fielmente os atos e as palavras
de Jesus e que cada bispo interpretava a seu talante.
Acrescentemos a estas tão grandes dificuldades as que provi-
nham da fragilidade dos pergaminhos, numa época em que a im-
prensa era desconhecida; a falta de inteligência de certos copistas,
todos os males que podem fazer nascer à ausência de direção e de
crítica, e facilmente compreenderemos que a unidade de crença e
de doutrina não tenha podido manter-se em tempos assim tormen-
tosos.
Os três Evangelhos sinóticos4 acham-se fortemente impregna-
dos do pensamento judeu-cristão, dos apóstolos, mas já o evange-
lho de João se inspira em influência diferente. Nele se encontra um
reflexo da filosofia grega, rejuvenescida pelas doutrinas da escola
de Alexandria.
Em fins do século 1, os discípulos dos grandes filósofos gregos
tinham aberto escolas em todas as cidades importantes do Oriente.
Os cristãos estavam em contato com eles e freqüentes discussões se
travavam entre os partidários das diversas doutrinas. Os cristãos,
arrebanhados nas classes inferiores da população, pouco letrados
em sua maior parte, estavam mal preparados para essas lutas do
4 São assim designados os de Marcos, Lucas e Mateus.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
26
pensamento. Por outro lado, os teoristas gregos sentiram-se im-
pressionados pela grandeza e elevação moral do Cristianismo. Daí
uma aproximação, uma penetração das doutrinas, que se produziu
em certos pontos. O Cristianismo nascente sofria pouco a pouco as
influências gregas, que o levava a fazer do Cristo o verbo, o Logos
de Platão.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
27
2
Autenticidade dos Evangelhos
Nos tempos afastados, muito antes da vinda de Jesus, a palavra
dos profetas, qual raio velado da verdade, preparava os homens
para os ensinos mais profundos do Evangelho.
Mas, já desvirtuado pela versão dos Setenta, o Antigo Testa-
mento não refletia, nos últimos séculos antes do Cristo, mais que
uma intuição das verdades superiores5.
“As eternas verdades, que são os pensamentos de Deus – diz
eminente individualidade do espaço – foram comunicadas ao mun-
do em todas as épocas, levadas a todos os meios, postas ao alcance
das inteligências, com paternal bondade. O homem, porém, as tem
desconhecido muitas vezes. Desdenhoso dos princípios ensinados,
arrastado por suas paixões, em todos os tempos passou ele ao pé de
grandes coisas sem as ver. Essa negligência do belo moral, causa
de decadência e corrupção, impeliria as nações à própria perda, se
o guante da adversidade e as grandes comoções da História, aba-
lando profundamente as almas, não as reconduzissem a essas ver-
dades.”
Veio Jesus, espírito poderoso, divino missionário, médium
inspirado. Veio, encarnando-se entre os humildes, a fim de dar a
todos o exemplo de uma vida simples e, entretanto, cheia de gran-
deza – vida de abnegação e sacrifício, que devia deixar na Terra
impagáveis traços.
A grande figura de Jesus ultrapassa todas as concepções do
pensamento. Eis por que não a pode ter sido criada pela imagina-
ção. Nessa alma, de uma serenidade celeste, não se nota mácula
5 Ver nota complementar nº 1, no fim do volume.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
28
nenhuma, nenhuma sombra. Todas as perfeições nela se fundem,
com uma harmonia tão perfeita que se nos afigura o ideal realiza-
do.
Sua doutrina, toda luz e amor, dirige-se sobretudo aos humil-
des e aos pobres, a essas mulheres, a esses homens do povo curva-
dos sobre a terra, a essas inteligências esmagadas ao peso da maté-
ria e que aguardam, na provação e no sofrimento, a palavra de vida
que as deve reanimar e consolar.
E essa palavra lhes é prodigalizada com tão penetrante doçura,
exprime uma fé tão comunicativa, que lhes dissipa todas as dúvidas
e os arrasta a seguir as pegadas do Cristo.
O que Jesus chamava pregar aos simples “o evangelho do rei-
no dos céus”, era pôr ao alcance de todos o conhecimento da imor-
talidade e do Pai comum, do Pai cuja voz se faz ouvir na serenida-
de da consciência e na paz do coração.
Pouco a pouco essa doutrina, transmitida verbalmente nos pri-
meiros tempos do Cristianismo, se altera e complica sob a influên-
cia das correntes opostas, que agitam a sociedade cristã.
Os apóstolos, escolhidos por Jesus para lhe continuarem a mis-
são, muito bem o tinham sabido compreender; haviam recebido o
impulso da sua vontade e da sua fé. Mas os seus conhecimentos
eram restritos e eles não puderam senão conservar piedosamente,
pela memória do coração, as tradições, os pensamentos morais e o
desejo de regeneração que lhes havia ele depositado no íntimo.
Em sua jornada pelo mundo os apóstolos se limitam, pois, a
formar, de cidade em cidade, grupos de cristãos, aos quais revelam
os princípios essenciais; depois, vão intrepidamente levar a “boa
nova” a outras regiões.
Os Evangelhos, escritos em meio das convulsões que assina-
lam a agonia do mundo judaico, depois sob a influência das discus-
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
29
sões que caracterizam os primeiros tempos do Cristianismo, se
ressentem das paixões, dos preconceitos da época e da perturbação
dos espíritos. Cada grupo de fiéis, cada comunidade, tem seus
evangelhos, que diferem mais ou menos dos outros6. Grandes
querelas dogmáticas agitam o mundo cristão e provocam sanguino-
lentas perturbações no Império, até que Teodósio, conferindo a
supremacia ao papado, impõe a opinião do bispo de Roma à cris-
tandade. A partir daí, o pensamento, criador demasiado fecundo de
sistemas diferentes, há de ser reprimido.
A fim de pôr termo a essas divergências de opinião, no próprio
momento em que vários concílios acabam de discutir acerca da
natureza de Jesus, uns admitindo, outros rejeitando a sua divinda-
de, o papa Damaso confia a São Jerônimo, em 384, a missão de
redigir uma tradução latina do Antigo e do Novo Testamento. Essa
tradução deverá ser, daí por diante, a única reputada ortodoxa e
tornar-se-á a norma das doutrinas da Igreja: foi o que se denominou
a “Vulgata”.
Esse trabalho oferecia enormes dificuldades. São Jerônimo a-
chava-se, como ele próprio o disse, em presença de tantos exem-
plares quantas cópias. Essa variedade infinita dos textos o obrigava
a uma escolha e a retoques profundos. É o que, assustado com as
responsabilidades incorridas, ele expõe nos prefácios da sua obra,
prefácios reunidos em um livro célebre. Eis aqui, por exemplo, o
que ele dirigiu ao papa Damaso, encabeçando a sua tradução latina
dos Evangelhos:
“De velha obra me obrigais a fazer obra nova. Quereis que, de
alguma sorte, me coloque como árbitro entre os exemplares das
Escrituras que estão dispersos por todo o mundo e, como diferementre si, que eu distinga os que estão de acordo com o verdadeiro
6 Ver nota complementar n° 3.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
30
texto grego. É um piedoso trabalho, mas é também um perigoso
arrojo, da parte de quem deve ser por todos julgado, julgar ele
mesmo os outros, querer mudar a língua de um velho e conduzir à
infância o mundo já envelhecido.
“Qual, de fato, o sábio e mesmo o ignorante que, desde que ti-
ver nas mãos um exemplar (novo), depois de o haver percorrido
apenas uma vez, vendo que se acha em desacordo com o que está
habituado a ler, não se ponha imediatamente a clamar que eu sou
um sacrílego, um falsário, porque terei tido a audácia de acrescen-
tar, substituir, corrigir alguma coisa nos antigos livros? Meclami-
tans esse sacrilegum qui audeam aliquid in veteribus libris addere,
mutare, corrigere.7
“Um duplo motivo me consola desta acusação. O primeiro é
que vós, que sois o soberano pontífice, me ordenais que o faça; o
segundo é que a verdade não poderia existir em coisas que diver-
gem, mesmo quando tivessem elas por si a aprovação dos maus.”
São Jerônimo assim termina:
“Este curto prefácio tão-somente se aplica aos quatro Evange-
lhos, cuja ordem é a seguinte: Mateus, Marcos, Lucas e João. De-
pois de haver comparado certo número de exemplares gregos, mas
dos antigos, que se não afastam muito da versão itálica, combina-
mo-los de tal modo (ita calamo temperavimus) que, corrigindo
unicamente o que nos parecia alterar o sentido, conservamos o
resto tal qual estava.” (Obras de São Jerônimo, edição dos Benedi-
tinos, 1693, t. I, col. 1425.)
Assim, é conforme uma primeira tradução do hebraico para o
grego, por cópias com os nomes de Marcos e Mateus; é, num ponto
7 A obra de S. Jerônimo foi, efetivamente, mesmo em sua vida, objeto
das mais vivas críticas; polêmicas injuriosas se travaram entre ele e
seus detratores.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
31
de vista mais geral, conforme numerosos textos, cada um dos quais
difere dos outros (tot sunt enim exemplaria quot codices) que se
constitui a Vulgata, tradução corrigida, aumentada, modificada,
como o confessa o autor, de antigos manuscritos.
Essa tradução oficial, que devia ser definitiva segundo o pen-
samento de quem ordenara a sua execução, foi, entretanto, retocada
em diferentes épocas, por ordem dos pontífices romanos. O que
havia parecido bom, do ano 386 ao de 1586, o que fora aprovado
em 1546 pelo concílio ecumênico de Trento, foi declarado insufici-
ente e errôneo por Sixto V, em 1590. Fez-se nova revisão por sua
ordem; mas a própria edição que daí resultou, e que trazia o seu
nome, foi modificada por Clemente VIII em uma nova edição, que
é a que hoje está em uso e pela qual têm sido feitas as traduções
francesas dos livros canônicos, submetidos a tantas retificações
através dos séculos.
Entretanto, a despeito de todas essas vicissitudes, não hesita-
mos em admitir a autenticidade dos Evangelhos em seus primitivos
textos. A palavra do Cristo aí se ostenta poderosa; toda dúvida se
desvanece à fulguração da sua personalidade sublime. Sob o senti-
do adulterado, ou oculto, sente-se palpitar a força da primitiva
idéia. Aí se revela a mão do grande semeador. Na profundeza
desses ensinos, unidos à beleza moral e ao amor, sente-se a obra de
um enviado celeste.
Ao lado, porém, dessa potente destra, a frágil mão do homem
se introduziu nessas páginas, nelas enxertando débeis concepções,
ligadas bem mal aos primeiros pensamentos e que, a par dos arrou-
bos da alma, provocam a incredulidade.
Se os Evangelhos são aceitáveis em muitos pontos, é, todavia,
necessário submeter o seu conjunto à inspeção do raciocínio. Todas
as palavras, todos os fatos que neles estão consignados não poderi-
am ser atribuídos ao Cristo.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
32
Através dos tempos que separam a morte de Jesus da redação
definitiva dos Evangelhos, muitos pensamentos sublimes foram
esquecidos, muitos fatos contestáveis aceitos como reais, muitos
preceitos, mal interpretados, desnaturaram o ensino primitivo. Para
servir às conveniências de uma causa, foram decotados os mais
belos, os mais opulentos ramos dessa árvore de vida. Sufocaram,
antes do seu desabrochar, os fortalecedores princípios que teriam
conduzido os povos à verdadeira crença, à que eles hoje em dia
inda procuram.
O pensamento do Cristo subsiste no ensino da Igreja e nos sa-
grados textos, mesclado, porém, de vários elementos, de opiniões
ulteriores, introduzidos pelos papas e concílios, cujo intuito era
assegurar, fortalecer, tornar inabalável a autoridade da Igreja. Tal
foi o objetivo colimado através dos séculos, o pensamento que
inspirou todos os retoques feitos nos primitivos documentos. A
despeito de tudo o que na Igreja resta de espírito evangélico, ver-
dadeiramente cristão, foi o suficiente para produzir admiráveis
obras, obras de caridade que fizeram a glória das igrejas cristãs e
que protestam contra o fato de se acharem associadas a tantos
ambiciosos empreendimentos, inspirados no apego ao domínio e
aos bens materiais.
Seria preciso grande trabalho para destacar o verdadeiro pen-
samento do Cristo do conjunto dos Evangelhos, trabalho possível,
posto que árduo para os inspirados, dirigidos por segura, mas labor
impossível para os que só por suas próprias faculdades se dirigem
nesse Dédalo em que com as realidades se misturam as ficções,
com o sagrado o profano, com a verdade o erro.
Em todos os séculos, impelidos por uma força superior, certos
homens se aplicaram a essa tarefa, procurando desembaraçar o
supremo pensamento das sombras em torno dele acumuladas.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
33
Amparados, esclarecidos por essa divina centelha que para os
homens apenas brilha de um modo intermitente, mas cujo foco
jamais se extingue, eles afrontaram todas as acusações, todos os
suplícios, para afirmar o que acreditavam ser a verdade. Tais foram
os apóstolos da Reforma.
Eles foram, em sua tarefa, interrompidos pela morte; mas do
seio do espaço ainda sustentam e inspiram os que se batem por essa
grande causa. Graças aos seus esforços, a noite que pesa sobre as
almas começa a dissipar-se; raiou a aurora de uma revelação muito
mais vasta.
É com o auxílio dos esclarecimentos trazidos por essa nova re-
velação, científica e, ao mesmo tempo, filosófica, já espalhada em
todo o mundo sob o nome de Espiritismo, ou moderno Espiritua-
lismo, que procuraremos escoimar a doutrina de Jesus das obscuri-
dades em que o trabalho dos séculos a envolveu. Chegaremos,
assim, à conclusão de que essa doutrina é simplesmente à volta ao
Cristianismo primitivo, sob mais precisas formas, com um impo-
nente cortejo de provas experimentais, que tornará impossível todo
monopólio, toda reincidência nas causas que desnaturaram o pen-
samento de Jesus.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
34
3
Sentido oculto dos Evangelhos
Uma certa escola atribui ao Cristianismo em geral, e aos Evan-
gelhos em particular, um sentido oculto e alegórico. Alguns pensa-
dores e filósofos chegaram mesmo a negar a existência de Jesus,
vendo nele, nas suas palavras, nos fatos da sua vida, uma idéia
filosófica, uma abstração a que foi dado um corpo, para satisfazer a
tradição que ao povo judeu anunciava um salvador, um Messias.
Na sua opinião, não passaria a história de Jesus de um drama
poético, representando o nascimento, a morte e a ressurreição da
idéia libertadora no seio do povo hebreu escravizado, ou ainda uma
série de figuras imaginadas para tornar perceptível às massas o
lado prático e social do Cristianismo, a associação dos tipos divino
e humano emum modelo de perfeição, oferecido à admiração dos
homens.
Aceita semelhante tese, os Evangelhos deveriam ser conside-
rados fábulas, invenções. O poderoso movimento do Cristianismo
teria tido como ponto de partida uma impostura. Há nisso uma
evidente exageração. Se a vida de Jesus não é mais que uma ficção,
como pôde ser acolhida por seus contemporâneos, a princípio, e
depois por uma longa série de gerações?
Quais seriam, pois, os verdadeiros fundadores do Cristianis-
mo? Os apóstolos? Eram incapazes de tais concepções. Com exce-
ção de Paulo, que encontrou uma doutrina já constituída, a incapa-
cidade deles é evidente. A personalidade eminente de Jesus se
destaca, vigorosamente, do fundo de mediocridade dos seus discí-
pulos. A menor comparação faz sobressair a impossibilidade de
semelhante hipótese.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
35
Não foi difícil, nos Evangelhos, distinguir as adições dos cris-
tão-judeus, as quais denunciam claramente a sua origem, e formam
contraste flagrante com as palavras e a doutrina de Jesus.8 Daí
resulta um fato evidente, o de que autores imbuídos, a esse respei-
to, de idéias supersticiosas e acanhadas eram incapazes de inventar
uma personalidade, uma doutrina, uma vida, uma morte como as de
Jesus.
Nesse mundo judaico, sombrio e exclusivista, em que reina-
vam o ódio e o egoísmo, a doutrina do amor e da fraternidade só
podia emanar de uma inteligência sobre-humana.
Se as Escrituras fossem, em seu conjunto, não mais que um
amontoado de alegorias, uma obra de imaginação, a doutrina de
Jesus não teria podido manter-se através dos séculos, em meio das
correntes opostas que agitaram a sociedade cristã. Construção sem
alicerce, ter-se-ia desagregado, desmoronado, batida pelo furacão
dos tempos. Entretanto, ela ficou de pé e domina os séculos, a
despeito das alterações sofridas, a despeito de tudo o que os ho-
mens fizeram para desfigurá-la, para submergi-la nas vagas de uma
interpretação errônea.
A crença num mito não teria sido suficiente para inspirar aos
primeiros cristãos o espírito de sacrifício, o heroísmo em face da
morte; não lhes teria proporcionado os meios de fundar uma religi-
ão que dura há vinte séculos. Só a verdade pode desafiar a ação do
tempo e conservar a sua força, a sua moral, a sua grandeza, não
obstante os esforços de sapa que procuram arruiná-la. Jesus é,
positivamente, a pedra angular do Cristianismo, a alma da nova
revelação. Ele constitui toda a sua originalidade.
Além disso, não faltam testemunhos históricos da existência de
Jesus, posto que em reduzido número.
8 Ver notas complementares nºs 2 e 3.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
36
Suetônio, na história dos primeiros Césares, fala do suplício de
“Christus”. Tácito e ele mencionam a existência da seita cristã
entre os judeus, antes da tomada de Jerusalém por Tito.
O Talmude fala da morte de Jesus na cruz e todos os rabinos
israelitas reconhecem o alto valor desse testemunho9.
Em caso de necessidade, o próprio Evangelho, só por si, basta-
ria para fornecer a prova moral da existência e da elevada missão
do Cristo. Se numerosos fatos apócrifos nele foram mais tarde
introduzidos, se as superstições judaicas ali se encontram sob a
forma de narrativas fantasistas e obsoletas teorias, duas coisas nele
subsistem, que não poderiam ser inventadas e apresentam um
caráter de autenticidade que se impõe: – o drama sublime do Cal-
vário e a doce e profunda doutrina de Jesus.
Essa doutrina era simples e clara em seus princípios essenciais;
dirigia-se à multidão, sobretudo aos deserdados e aos humildes.
Tudo nela era feito para mover os corações, para arrebatar as almas
até ao entusiasmo, iluminando, fortalecendo as consciências. To-
davia, ela manifesta os sinais de um ensino oculto. Jesus fala mui-
tas vezes por parábolas. Seu pensamento, de ordinário tão lumino-
so, mergulha por vezes em meia obscuridade. Não se percebem,
então, mais que os vagos contornos de uma grande idéia dissimula-
da sob o símbolo.
É o que ele próprio explica por estas palavras, quando, citando
Isaías (cap. VI, 9), acrescenta:
“Eu lhes falo por parábolas, porque a vós outros vos é dado
conhecer os mistérios do reino dos céus, mas a eles não lhes é
concedido.” (Mateus, XIII, 10 e 11.)
9 Ver "Os deicidas", por Cahen, membro do Consistório israelita.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
37
Evidente que havia duas doutrinas no Cristianismo primitivo: a
destinada ao vulgo, apresentada sob formas acessíveis a todos, e
outra oculta, reservada aos discípulos e iniciados. É o que, de resto,
existia em todas as filosofias e religiões da antiguidade.10
A prova da existência desse ensino secreto se encontra nas pa-
lavras já citadas e nas que mencionamos a seguir. Logo depois da
parábola do semeador, que se acha nos três evangelhos sinóticos,
os discípulos perguntam a Jesus o sentido dessa parábola e ele lhes
responde:
“A vós outros é concedido saber o mistério do reino de Deus;
mas, aos que são de fora, tudo se lhes propõe em parábolas;
“Para que, vendo, vejam e não vejam e ouvindo, ouçam e não
entendam.” (Marcos, IV, 11 e 12; Lucas, VIII, 10.).
São Paulo o confirma em sua primeira Epístola aos Coríntios,
capítulo III, quando distingue a linguagem a usar com homens
carnais ou com homens espirituais, isto é, com profanos ou com
iniciados.
A iniciação era indubitavelmente gradual. Os que a recebiam
eram ungidos e, depois de haverem recebido a unção, entravam na
comunhão dos santos. É o que torna compreensíveis estas palavras
de João:
“Vós outros tendes a unção do Santo e sabeis todas as coisas.
Eu não vos escrevi como se ignorásseis a verdade, mas como a
quem a conhece.” (1ª Epístola de João, cap. II, 20, 21 e 27.).11
Ao tempo de sua controvérsia com Celso, Orígenes defendeu
energicamente o Cristianismo. Em sua vigorosa apologia, fala
muitas vezes dos ensinos secretos da nova religião. Tendo-a Celso
10 Ver minha obra "Depois da Morte", págs. 9 a 100.
11 Ver também nota complementar nº 7.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
38
argüido de possuir um cunho misterioso, refuta Orígenes essas
críticas, provando que, se em certos assuntos especiais só os inicia-
dos recebiam um ensino completo, a doutrina cristã, por outro lado,
em seu sentido geral era acessível a todos. E a prova – disse ele – é
que o mundo inteiro (ou pouco falta) está mais familiarizado com
essa doutrina que com as opiniões prediletas dos filósofos.
Esse duplo método de ensino – prossegue ele, em síntese – é,
ao demais, adotado em todas as escolas. Por que fazer por isso uma
censura unicamente à doutrina cristã? Os numerosos mistérios, por
toda parte celebrados na Grécia e noutros países, não são por todos
geralmente admitidos?
O fundador do Cristianismo não separava a idéia religiosa da
sua aplicação social. O “reino dos céus” era, para ele, essa perfeita
sociedade dos espíritos, cuja imagem desejaria realizar na Terra.
Mas ele devia ir de encontro aos interesses estabelecidos e suscitar
em torno de si mil obstáculos, mil perigos. Daí, um novo motivo
para ocultar no mito, no milagre, na parábola, o que em sua doutri-
na ia ferir as idéias dominantes e ameaçar as instituições políticas
ou religiosas.
As obscuridades do Evangelho são, pois, calculadas, intencio-
nais. As verdades superiores nele se ocultam sob véus simbólicos.
Aí se ensina ao homem o que lhe é necessário para se conduzir
moralmente na prática da vida; mas o sentido profundo, o sentido
filosófico da doutrina, esse é reservado à minoria.
Nisso consistia a “comunhão dos santos”, a comunhão dos
pensamentoselevados, das altas e puras aspirações. Essa comu-
nhão pouco durou. As paixões terrenas, as ambições, o egoísmo,
bem cedo a destruíram. A política se introduziu no sacerdócio. Os
bispos, de humildes adeptos, de modestos “vigilantes” que eram a
princípio, tornaram-se poderosos e autoritários. Constituiu-se a
teocracia; a esta, pareceu de interesse colocar a luz debaixo do
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
39
alqueire e a luz se extinguiu. O pensamento profundo desapareceu.
Só ficaram os símbolos materiais. Essa obscuridade tornava mais
fácil governar as multidões. Preferiram deixar as massas mergulha-
das na ignorância, a elevá-las às eminências intelectuais. Os misté-
rios cristãos cessaram de ser explicados aos membros da Igreja.
Foram mesmo perseguidos como hereges os pensadores, os inves-
tigadores sinceros, que se esforçavam por adquirir novamente as
verdades perdidas. Fez-se a noite cada vez mais espessa sobre o
mundo, depois da dissolução do Império Romano. A crença em
Satanás e no inferno adquiriu lugar preponderante na fé cristã. Em
vez da religião de amor pregada por Jesus, o que prevaleceu foi à
religião do terror.
A invasão dos bárbaros havia poderosamente contribuído para
fazer surgir esse estado de coisas. Ele fez voltar a sociedade ao
estado de infância, porque os bárbaros invasores, no ponto de vista
da razão, não passavam de crianças. Do seio das vastas estepes e
das extensas florestas, o mundo bárbaro se arremessava sobre a
Civilização. Todas essas multidões, ignorantes e grosseiras, que o
Cristianismo aliciou, produziram no mundo pagão em decadência e
no meio novo, em que penetravam, uma depressão intelectual.
O Cristianismo conseguiu dominá-las, submetê-las, mas em
seu próprio detrimento. Velou-se o ideal divino; o culto se tornou
material. Para impressionar a imaginação das multidões, voltou-se
às práticas idólatras, próprias das primeiras épocas da Humanidade.
A fim de dominar essas almas e as dirigir pelo temor ou pela espe-
rança, estranhos dogmas foram combinados. Não se tratou mais de
realizar no mundo o reino de Deus e de sua justiça, que fora o ideal
dos primeiros cristãos. Depois, a profecia do fim do mundo e do
juízo final, tomada ao pé da letra, as preocupações da salvação
individual, exploradas pelos padres, mil causas em suma, desvia-
ram o Cristianismo da sua verdadeira rota e submergiram o pensa-
mento de Jesus numa torrente de superstições.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
40
Ao lado, todavia, desses males, é justo recordar os serviços
prestados pela Igreja à causa da Humanidade. Sem a sua hierarquia
e sólida organização, sem o papado, que opôs o poder da idéia,
posto que obscurecida e deturpada, ao poderio do gládio, tem-se o
direito de perguntar o que se teria tornado a vida moral, a consci-
ência da Humanidade. No meio desses séculos de violência e tre-
vas, a fé cristã animou de novo ardor os povos bárbaros, ardor que
os impeliu a obras gigantescas como as Cruzadas, à fundação da
Cavalaria, à criação das artes na Idade Média. No silêncio e na
obscuridade dos claustros o pensamento encontrou um refúgio. A
vida moral, graças às instituições cristãs, não se extinguiu, a des-
peito dos costumes brutais da época. Aí estão serviços que é preci-
so agradecer à Igreja, não obstante os meios de que ela se utilizou
para a si mesma assegurar o domínio das almas.
Em resumo, a doutrina do grande crucificado, em suas formas
populares, queria a obtenção da vida eterna mediante o sacrifício
do presente. Religião de salvação, de elevação da alma pela subju-
gação da matéria, o Cristianismo constituía uma reação necessária
contra o politeísmo grego e romano, cheio de vida, de poesia e de
luz, mas não passando de foco de sensualismo e corrupção. O
Cristianismo tornava-se um estágio indispensável na marcha da
Humanidade, cujo destino é elevar-se incessantemente de crença
em crença, de concepção em concepção, a sínteses sempre e cada
vez mais amplas e fecundas.
O Cristianismo, com os seus doze séculos de dores e trevas,
não foi uma era de felicidade para a raça humana; mas o fim da
vida terrestre não é a felicidade, é a elevação pelo trabalho, pelo
estudo e pelo sofrimento; é, numa palavra, a educação da alma; e a
via dolorosa conduz com muito mais segurança à perfeição, que a
dos prazeres.
O Cristianismo representa, pois, uma fase da história da Hu-
manidade, a qual lhe foi incontestavelmente proveitosa; ela, a
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
41
Humanidade, não teria sido capaz de realizar as obras sociais que
asseguram o seu futuro se não se tivesse impregnado do pensamen-
to e da moral evangélicos.
A Igreja, entretanto, delinqüiu, trabalhando por prolongar inde-
finidamente o estado de ignorância da sociedade. Depois de haver
nutrido e amparado à criança, tem querido mantê-la em estado de
submissão e servilismo intelectual. Não libertou a consciência
senão para melhor a oprimir.
A Igreja de Roma não soube conservar o farol divino de que
era portadora e, por um castigo do céu, ou antes, por uma justa
retroação das coisas, a noite que ela queria para os outros fez-se
nela própria. Não cessou de opor obstáculos ao desenvolvimento
das ciências e da filosofia, a ponto de proscrever, do alto da cadeira
de São Pedro, “o progresso – essa lei eterna – o liberalismo e a
civilização moderna” (artigo 80 do Sílabus).
Foi, por isso, fora dela e mesmo contra ela, a partir de um certo
momento da História, que se operou todo o movimento, toda a
evolução do espírito humano. Foram necessários séculos de esfor-
ços para dissipar a obscuridade que pesava sobre o mundo, ao sair
da Idade Média. Fizeram-se precisas a Renascença das letras, a
Reforma religiosa do século XVI, a filosofia, todas as conquistas
da Ciência, para preparar o terreno destinado à nova revelação, a
essas vozes de além-túmulo que vêm aos milhares e em todas as
regiões da Terra, atrair os homens aos puros ensinamentos do
Cristo, restabelecer sua doutrina, tornar compreensíveis, a todos, as
verdades superiores amortalhadas na sombra das idades.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
42
4
A Doutrina Secreta
Qual a verdadeira doutrina do Cristo? Os seus princípios es-
senciais acham-se claramente enunciados no Evangelho. É a pater-
nidade universal de Deus e a fraternidade dos homens, com as
conseqüências morais que daí resultam; é a vida imortal a todos
franqueada e que a cada um permite em si próprio realizar “o reino
de Deus”, isto é, a perfeição, pelo desprendimento dos bens materi-
ais, pelo perdão das injúrias e o amor ao próximo.
Para Jesus, numa só palavra, toda a religião, toda a filosofia
consiste no amor:
“Amai os vossos inimigos; fazei o bem aos que vos odeiam e
orai pelos que vos perseguem e caluniam; para serdes filhos de
vosso Pai que está nos céus, o qual faz erguer-se o seu sol sobre
bons e maus, e faz chover sobre justos e injustos. Porque, se não
amais senão os que vos amam, que recompensa deveis ter por
isso?” (Mateus, V, 44 e seguintes.).
Desse amor o próprio Deus nos dá o exemplo, porque seus
braços estão sempre abertos para o pecador:
“Assim, vosso Pai que está nos céus não quer que pereça um
só desses pequeninos.”
O sermão da montanha resume, em traços indeléveis, o ensino
popular de Jesus. Nele é expressa a lei moral sob uma forma que
jamais foi igualada.
Os homens aí aprendem que não há mais seguros meios de e-
levação que as virtudes humildes e escondidas.
“Bem-aventurados os pobres de espírito (isto é, os espíritos
simples e retos), porque deles é o reino dos céus. – Bem-
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
43
aventurados os que choram, porque serão consolados. – Bem-
aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão sacia-
dos.– Bem-aventurados os que são misericordiosos, porque alcan-
çarão misericórdia. – Bem-aventurados os limpos de coração,
porque esses verão a Deus.” (Mateus, V, 1 a 12; Lucas, VI, 20 a
25.)
O que Jesus quer não é um culto faustoso, não é umas religiões
sacerdotais, opulentas de cerimônias e práticas que sufocam o
pensamento, não; é um culto simples e puro, todo de sentimento,
consistindo na relação direta, sem intermediário, da consciência
humana com Deus, que é seu Pai:
“É chegado o tempo em que os verdadeiros adoradores hão de
adorar o Pai em espírito e verdade, porque tal quer, também, sejam
os que o adorem. Deus é espírito, e em espírito e verdade é que
devem adorar os que o adoram.”
O ascetismo é coisa vã. Jesus limita-se a orar e a meditar, nos
sítios solitários, nos templos naturais que têm por colunas as mon-
tanhas, por cúpula a abóbada dos céus, e de onde o pensamento
mais livremente se eleva ao Criador.
Aos que imaginam salvar-se por meio do jejum e da abstinên-
cia, diz:
“Não é o que entra pela boca o que macula o homem, mas o
que por ela sai.”
Aos rezadores de longas orações:
“Vosso Pai sabe do que careceis, antes de lho pedirdes.”
Ele não exige senão a caridade, a bondade, a simplicidade:
“Não julgueis e não sereis julgados. Perdoai e sereis perdoados.
Sede misericordiosos como vosso Pai celeste é misericordioso. Dar
é mais doce do que receber”.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
44
“Aquele que se humilha será exaltado; o que se exalta será
humilhado”.
“Que a tua mão esquerda ignore o que faz a direita, a fim de
que tua esmola fique em segredo; e então teu Pai que vê no segre-
do, te retribuirá.”
E tudo se resume nestas palavras de eloqüente concisão:
“Amai o vosso próximo como a vós mesmos e sede perfeitos
como vosso Pai celeste é perfeito. Nisso se encerram toda a lei e os
profetas.”
Sob a suave e meiga palavra de Jesus, toda impregnada do sen-
timento da natureza, essa doutrina se reveste de um encanto
irresistível, penetrante. Ela é saturada de terna solicitude pelos
fracos e pelos deserdados. É a glorificação, a exaltação da pobreza
e da simplicidade. Os bens materiais nos tornam escravos; agrilho-
am o homem à Terra. A riqueza é um estorvo; impede os velos da
alma e a retém longe do “reino de Deus”. A renúncia, a humildade,
desatam esses laços e facilitam a ascensão para a luz.
Por isso é que a doutrina evangélica permaneceu através dos
séculos como a expressão máxima do espiritualismo, o supremo
remédio aos males terrestres, a consolação das almas aflitas nesta
travessia da vida, semeada de tantas lágrimas e angústias. É ainda
ela que faz, a despeito dos elementos estranhos que lhe vieram
misturar, toda a grandeza, todo o poder moral do Cristianismo.
*
A doutrina secreta ia mais longe. Sob o véu das parábolas e
das ficções, ocultava concepções profundas. No que se refere a
essa imortalidade prometida a todos, definia-lhe as formas afir-
mando a sucessão das existências terrestres, nas quais a alma,
reencarnada em novos corpos, sofreria as conseqüências de suas
vidas anteriores e prepararia as condições do seu destino futuro.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
45
Ensinava a pluralidade dos mundos habitados, as alternações de
vida de cada ser: no mundo terrestre, em que ele reaparece pelo
nascimento, no mundo espiritual, ao qual regressa pela morte,
colhendo em um e outro desses meios os frutos bons ou maus do
seu passado. Ensinava a íntima ligação e a solidariedade desses
dois mundos e, por conseguinte, a comunicação possível do ho-
mem com os espíritos dos mortos que povoam o espaço ilimitado.
Daí o amor ativo, não somente pelos que sofrem na esfera da
existência terrestre, mas também pelas almas que em torno de nós
vagueiam atormentadas por dolorosas recordações. Daí a dedicação
que se devem as duas humanidades, visível e invisível, a lei de
fraternidade na vida e na morte e a celebração do que chamavam
“os mistérios”, a comunhão pelo pensamento e pelo coração com
os que, Espíritos bons ou medíocres, inferiores ou elevados, com-
põem esse mundo invisível que nos rodeia, e sobre o qual se abrem
esses dois pórticos por onde todos os seres alternativamente pas-
sam: o berço e o túmulo.
A lei da reencarnação acha-se indicada em muitas passagens
do Evangelho e deve ser considerada sob dois aspectos diferentes:
à volta à carne, para os Espíritos em via de aperfeiçoamento; a
reencarnação dos Espíritos enviados em missão à Terra.
Em sua conversação com Nicodemos, Jesus assim se exprime:
“Em verdade te digo que, se alguém não renascer de novo, não
poderá ver o reino de Deus.” Objeta-lhe Nicodemos: “Como pode
um homem nascer, sendo já velho?” Jesus responde: “Em verdade
te digo que, se um homem não renasce da água e do espírito, não
pode entrar no reino de Deus. O que é nascido da carne é carne, e o
que é nascido do espírito é espírito. Não te maravilhes de te dizer:
importa-vos nascer outra vez. O vento sopra onde quer e tu ouves a
sua voz, mas não sabes de onde vem nem para onde vai. Assim é
todo aquele que é nascido do espírito.” (João, III, 3 a 8.)
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
46
Jesus acrescenta estas palavras significativas: “Tu és mestre
em Israel e não sabes estas coisas?”
O que demonstra que não se tratava do batismo, que era co-
nhecido pelos judeus e por Nicodemos, mas precisamente da reen-
carnação já ensinada no “Zohar”, livro sagrado dos hebreus.12
Esse vento, ou esse espírito que sopra onde lhe apraz, é a alma
que escolhe novo corpo, nova morada, sem que os homens saibam
de onde vem, nem para onde vai. É a única explicação satisfatória.
Na Cabala hebraica, a água era a matéria primordial, o elemen-
to frutificado. Quanto à expressão Espírito Santo, que se acha no
texto e que o torna incompreensível, é preciso notar que a palavra
santo nele não se encontra em sua origem e que foi aí introduzida
muito tempo depois, como se deu em vários outros casos.13 É
preciso, por conseguinte, ler: renascer da matéria e do espírito.
Noutra ocasião, a propósito de um cego de nascença, encontra-
do de passagem, os discípulos perguntam a Jesus:
“Mestre, quem foi que pecou? Foi este homem, ou seu pai, ou
sua mãe, para que ele tenha nascido cego?” (João, IX, 1 e 2).
A pergunta indica, antes de tudo, que os discípulos atribuíam a
enfermidade do cego a uma expiação. Em seu pensamento, a falta
precedera a punição; tinha sido a sua causa primordial. É a lei da
conseqüência dos atos, fixando as condições do destino. Trata-se aí
de um cego de nascença; a falta não se pode explicar senão por
uma existência anterior.
Daí essa idéia da penitência, que reaparece a cada momento
nas Escrituras: “Fazei penitência”, dizem elas constantemente, isto
é, praticai a reparação, que é o fim da vossa nova existência; retifi-
12 Ver nota complementar nº 5.
13 Ver Bellemare, "Espírita e Cristão", págs. 351 e seguintes.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
47
cai vosso passado, espiritualizai-vos, porque não saireis do domí-
nio terrestre, do círculo das provações, senão depois de “haverdes
pagado até o último ceitil.” (Mateus, V, 26).
Em vão têm procurado os teólogos explicar doutro modo, que
não pela reencarnação, essa passagem do Evangelho. Chegaram a
raciocínios, pelo menos, estranhos. Assim foi que o sínodo de
Amsterdã não pôde sair-se da dificuldade senão com esta declara-
ção: “o cego de nascença havia pecado no seio de sua mãe”.14
Era também opinião corrente, nessa época, que Espíritos emi-
nentes vinham, em novas encarnações, continuar, concluir missões
interrompidas pela morte. Elias, por exemplo, voltara à Terra na
pessoa de João Batista. Jesus o afirma nestes termos, dirigindo-seà
multidão:
“Que saíste a ver? Um profeta? Sim, eu vo-lo declaro, e mais
que um profeta. E, se o quereis compreender, ele é o próprio Elias
que devia vir. – O que tem ouvidos para ouvir, ouça.” (Mateus, XI,
9, 14 e 15)
Mais tarde, depois da decapitação de João Batista, ele o repete
aos discípulos:
“E seus discípulos o interrogam, dizendo: Porque, pois, dizem
os escribas que importa vir primeiramente Elias? – Ele, responden-
do, lhes disse:”
“Elias, certamente, devia vir e restabelecer todas as coisas.
Mas eu vo-lo digo: Elias já veio e eles não o conheceram, antes lhe
fizeram quanto quiseram. – Então, conheceram seus discípulos que
de João Batista é que ele lhes falara.” (Mateus, XVII, 10, 11, 12 e
15).
14 Ver nota complementar n° 5.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
48
Assim, para Jesus, como para os discípulos, Elias e João Batis-
ta eram a mesma e única individualidade. Ora, tendo essa individu-
alidade revestido sucessivamente dois corpos, semelhante fato não
se pode explicar senão pela lei da reencarnação.
Numa circunstância memorável, Jesus pergunta a seus discípu-
los: “Que dizem do filho do homem?”
E eles lhe respondem:
“Uns dizem: é João Batista; outros, Elias; outros, Jeremias ou
um dos profetas.” (Mateus, XVI, 13, 14; Marcos, VIII, 28)
Jesus não protesta contra essa opinião como doutrina, do mes-
mo modo que não protestara no caso do cego de nascença. Ao
demais, a idéia da pluralidade das vidas, dos sucessivos graus a
percorrer para se elevar à perfeição, não se acha implicitamente
contida nestas palavras memoráveis: “Sede perfeitos como vosso
Pai celeste é perfeito.” Como poderia a alma humana alcançar esse
estado de perfeição em uma única existência?
De novo encontramos a doutrina secreta, dissimulada sob véus
mais ou menos transparentes, nas obras dos apóstolos e dos padres
da Igreja dos primeiros séculos. Não podiam estes dela falar aber-
tamente. Daí as obscuridades da sua linguagem.
Aos primeiros fiéis escrevia Barnabé:
“Tanto quanto pude, acredito ter-me explicado com simplici-
dade e nada haver omitido do que pode contribuir para vossa ins-
trução e salvação, no que se refere às coisas presentes, porque, se
vos escrevesse relativamente às coisas futuras, não compreenderí-
eis, porque elas se acham expostas em parábolas.” (Epístola católi-
ca de São Barnabé, XVII, l, 5).
Em observância a esta regra é que um discípulo de São Paulo,
Hermas, descreve a lei das reencarnações sob a figura de “pedras
brancas, quadradas e lapidadas”, tiradas da água para servirem na
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
49
construção de um edifício espiritual. (Livro do Pastor, III, XVI, 3,
5).
“Porque foram essas pedras tiradas de um lugar profundo e em
seguida empregadas na estrutura dessa torre, pois que já estavam
animadas pelo espírito? – Era necessário, diz-me o senhor, que,
antes de serem admitidas no edifício, fossem trabalhadas por meio
da água. Não poderiam entrar no reino de Deus por outro modo que
não fosse despojando-se da imperfeição da sua primeira vida.”
Evidentemente essas pedras são as almas dos homens; as á-
guas15 são as regiões obscuras, inferiores, as vidas materiais, vidas
de dor e provação, durante as quais as almas são lapidadas, polidas,
lentamente preparadas, a fim de tomarem lugar um dia no edifício
da vida superior, da vida celeste. Há nisso um símbolo perfeito da
reencarnação, cuja idéia era ainda admitida no século III e divulga-
da entre os cristãos.
Dentre os padres da Igreja, Orígenes é um dos que mais elo-
qüentemente se pronunciaram a favor da pluralidade das existên-
cias. Respeitável a sua autoridade. São Jerônimo o considera,
“depois dos apóstolos, o grande mestre da Igreja, verdade – diz ele
– que só a ignorância poderia negar”. S. Jerônimo vota tal admira-
ção a Orígenes que assumiria, escreve, todas as calúnias de que ele
foi alvo, uma vez que, por esse preço, ele, Jerônimo, pudesse ter a
sua profunda ciência das Escrituras.
Em seu livro célebre, “Dos Princípios”, Orígenes desenvolve
os mais vigorosos argumentos que mostram, na preexistência e
sobrevivência das almas noutros corpos, em uma palavra, na suces-
são das vidas, o corretivo necessário à aparente desigualdade das
15 Essa parábola adquire maior relevo pelo fato de ser a água, para os
judeus cabalista, a representação da matéria, o elemento primitivo, o
que chamaríamos hoje o éter cósmico.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
50
condições humanas, uma compensação ao mal físico, como ao
sofrimento moral que parece reinarem no mundo, se não se admite
mais que uma única existência terrestre para cada alma. Orígenes
erra, todavia, num ponto. É quando supõe que a união do espírito
ao corpo é sempre uma punição. Ele perde de vista a necessidade
da educação das almas e a laboriosa realização do progresso.
Errônea opinião se introduziu em muitos centros, a respeito
das doutrinas de Orígenes, em geral, e da pluralidade das existên-
cias em particular, que pretendem ter sido condenadas, primeiro
pelo concílio de Calcedônia e mais tarde pelo quinto concílio de
Constantinopla. Ora, se remontamos às fontes,16 reconhecemos que
esses concílios repeliram, não a crença na pluralidade das existên-
cias, mas simplesmente a preexistência da alma, tal como a ensina-
va Orígenes, sob esta feição particular: que os homens eram anjos
decaídos e que o ponto de partida tinha sido para todos a natureza
angélica.
Na realidade, a questão da pluralidade das existências da alma
jamais foi resolvida pelos concílios. Permaneceu aberta às resolu-
ções da Igreja no futuro e é esse um ponto que se faz preciso esta-
belecer.
Como a lei dos renascimentos, a pluralidade dos mundos acha-
se indicada no Evangelho, em forma de parábola:
“Há muitas moradas na casa de meu Pai. Eu vou a preparar-
vos o lugar e, depois que tiver ido e vos tiver preparado o lugar,
voltarei e vos levarei comigo, a fim de que onde eu estiver, vós
estejais também.” (João, XIV, 2 e 3)
A casa do Pai é o infinito céu; as moradas prometidas são os
mundos que percorrem o espaço, esferas de luz ao pé das quais a
nossa pobre Terra não é mais que mesquinho e obscuro planeta. É
16 Ver Pezzani, "A pluralidade das existências", páginas 187 e 190.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
51
para esses mundos que Jesus guiará as almas que se ligarem a ele e
à sua doutrina, mundos que lhe são familiares e onde nos saberá
preparar um lugar, conforme os nossos méritos.
Orígenes comenta essas palavras em termos positivos:
“O Senhor faz alusão às diferentes estações que devem as al-
mas ocupar, depois que se houverem despojado dos seus corpos
atuais e se tiverem revestido de outros novos.”
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
52
5
Relações com os Espíritos dos Mortos
Os primeiros cristãos comunicavam-se com os Espíritos dos
mortos e deles recebiam ensinamentos. Nenhuma dúvida é possível
sobre esse ponto, porque são abundantes os testemunhos. Resultam
dos próprios textos dos livros canônicos, textos que conseguiram
escapar às vicissitudes dos tempos e cuja autenticidade é indubitá-
vel.17
O Cristianismo repousa inteiramente em fatos de aparição e
manifestação dos mortos e fornece inúmeras provas da existência
do mundo invisível e das almas que o povoam.
Essas provas são igualmente abundantes no Antigo e Novo
Testamento. Num como noutro, encontram-se aparições de anjos18
dos Espíritos dos justos, avisos e revelações feitos pelas almas dos
mortos, o dom de profecias19 e o dom de curar.20 Em o Novo Tes-
tamento são referidas as aparições do próprio Jesus, depoisdo seu
suplício e sepultura.
A existência do Cristo havia sido uma constante comunhão
com o mundo invisível. O filho de Maria era dotado de faculdades
que lhe permitiam conversar com os Espíritos. Estes, muitas vezes,
17 Ver nota complementar nº 6.
18 Em hebraico, o verdadeiro sentido da palavra anjo, melach, é mensa-
geiro.
19 O dom de profecia não consistia simplesmente em predizer o futuro,
mas, de um modo mais extenso, em falar e transmitir ensinos sob a
influência dos Espíritos.
20 Ver, quanto ao conjunto desses fenômenos, a nota complementar n° 7,
sobre "Os fatos espíritas na Bíblia".
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
53
tornavam-se visíveis ao seu lado. Seus discípulos o viram, assom-
brados, conversar um dia no Tabor com Elias e Moisés.21
Nos momentos críticos, quando uma questão o embaraça, co-
mo no caso da mulher adúltera, ele evoca as almas superiores e
com o dedo traça na areia a resposta a dar, do mesmo modo que em
nossos dias o médium, movido por força estranha, traça caracteres
na ardósia.
Esses fatos são conhecidos, relatados, mas outros muitos, rela-
cionados com essa permuta assídua com o invisível, permaneceram
ignorados dos homens, mesmo daqueles que o cercavam.
As relações do Cristo com o mundo dos Espíritos se afirmam
pelo constante amparo que do Além recebia o divino mensageiro.
Por vezes, apesar da sua coragem, da abnegação que inspira
todos os seus atos, perturbado pela grandeza da tarefa, ele eleva a
alma a Deus; ora, implora novas forças e é atendido. Grandioso
sopro lhe bafeja a mente. Sob um impulso irresistível, ele reproduz
os pensamentos sugeridos; sente-se reconfortado, socorrido.
Nas horas solitárias, seus olhos distinguem letras de fogo que
exprimem as vontades do céu;22 soam vozes aos seus ouvidos,
trazendo-lhe resposta às suas ardentes preces. É a transmissão
direta dos ensinos que deve divulgar, são preceitos regeneradores
para cuja propagação baixara à Terra. As vibrações do supremo
pensamento que anima o Universo lhe são perceptíveis e lhe incu-
tem esses eternos princípios que espalhará e que jamais se hão de
21 Jesus tinha escolhido discípulos, não entre homens instruídos, mas
entre sensitivos e videntes, dotados de faculdades mediúnicas.
22 Estes pormenores, que talvez surpreendam o leitor, não são um produ-
to de nossa imaginação. Foram-nos comunicados por alto Espírito, cu-
ja vida esteve envolvida com a do Cristo. O mesmo se dá em muitas
passagens deste livro.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
54
apagar da memória dos homens. Ele percebe celestes melodias e
seus lábios repetem as palavras escutadas, sublimes revelações,
mistério ainda para muitos seres humanos, mas para ele confirma-
ção absoluta dessa constante proteção e das intuições que lhe pro-
vêm dos mundos superiores.
E quando essa grande vida terminou, quando se consumou o
sacrifício, depois que Jesus foi pregado à cruz e baixou ao túmulo,
seu Espírito continuou a afirmar-se por novas manifestações. Essa
alma poderosa, que em nenhum túmulo poderia ser aprisionada,
aparece aos que na Terra havia deixado tristes, desanimados e
abatidos. Vem dizer-lhes que a morte nada é. Com a sua presença
lhes restitui a energia, a força moral necessária para cumprirem a
missão que lhes fora confiada.
As aparições do Cristo são conhecidas e tiveram numerosos
testemunhos. Apresentam flagrantes analogias com as que em
nossos dias são observadas em diversos graus, desde a forma eté-
rea, sem consistência, com que aparece a Maria Madalena e que
não suportaria o mínimo contacto, até a completa materialização,
tal como a pôde verificar Tomé, que tocou com a própria mão as
chagas do Cristo.23 Daí esse contraste nas palavras de Jesus: “Não
me toques” – diz ele à Madalena – ao passo que convida Tomé a
pôr o dedo nos sinais dos cravos: “Chega também a tua mão e
mete-a no meu lado”.
Jesus aparece e desaparece instantaneamente. Penetra numa
casa a portas fechadas. Em Emaús conversa com dois dos discípu-
los, que o não reconhecem, e desaparece repentinamente. Acha-se
de posse desse corpo fluídico, etéreo, que há em todos nós, corpo
sutil que é o invólucro inseparável de toda alma e que um alto
Espírito como o seu sabe dirigir, modificar, condensar, rarefazer à
23 João, XX, 15-17 e 24-28.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
55
vontade.24 E a tal ponto o condensa, que se torna visível e tangível
aos assistentes.
As aparições de Jesus depois da morte são mesmo a base, o
ponto capital da doutrina cristã e foi por isso que São Paulo disse:
“Se o Cristo não ressuscitou, é vã a vossa fé.” No Cristianismo não
é uma esperança, é um fato natural, um fato apoiado no testemunho
dos sentidos. Os apóstolos não acreditavam somente na ressurrei-
ção; estavam dela convencidos.
E é por essa razão que a sua prédica adquiria aqueles tons ve-
ementes e penetrantes, que incutia uma convicção robusta. Com o
suplício de Jesus o Cristianismo era ferido em pleno coração. Os
discípulos, consternados, estavam prestes a se dispersarem.
O Cristo, porém, lhes apareceu e a sua fé se tornou tão profun-
da que, para a confessar, arrostaram todos os suplícios. As apari-
ções do Cristo depois da morte asseguraram a persistência da idéia
cristã, oferecendo-lhe como base todo um conjunto de fatos.
Verdade é que os homens lançaram a confusão sobre esses fe-
nômenos, atribuindo-lhes um caráter miraculoso. O milagre é uma
postergação das leis eternas fixadas por Deus, obras que são da sua
vontade, e seria pouco digno da suprema Potência exorbitar da sua
própria natureza e variar em seus decretos.
Jesus, conforme a Igreja, teria ressuscitado com o seu corpo
carnal. Isso é contrário ao primitivo texto do Evangelho. Aparições
repentinas, com mudanças de forma, que se produzem em lugares
fechados, não podem ser senão manifestações espíritas, fluídicas e
naturais. Jesus ressuscitou, como ressuscitaremos todos, quando
nosso espírito abandonar a prisão de carne.
24 Ver nota complementar nº 9, sobre "O perispírito ou corpo fluídico".
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
56
Em Marcos e Mateus, e na descrição de Paulo (l Coríntios,
XV), essas aparições são narradas do modo mais conciso. Segundo
Paulo, o corpo do Cristo é incorruptível; não tem carne nem san-
gue. Essa opinião procede da mais antiga tradição. A materialidade
só veio mais tarde, com Lucas. A narrativa se complica então e é
enfeitada com particularidades maravilhosas, no intuito evidente de
impressionar o leitor.25
Esse modo de ver, como em geral toda teoria do milagre, resul-
ta de uma falsa interpretação das leis do Universo. O mesmo suce-
de com a idéia do sobrenatural, que corresponde a uma concepção
deficiente da ordem do mundo e das normas da vida. Na realidade,
nada existe fora da Natureza, que é a obra divina em sua majesto-
síssima expansão. O erro do homem provém da acanhada idéia que
ele faz da Natureza e das formas da vida, limitadas para ele à esfera
traçada pelos seus sentidos. Ora, nossos sentidos apenas abrangem
porção muitíssimo restrita do domínio das coisas. Além desses
limites que eles nos impõem, a vida se desdobra sob aspectos ricos
e variados, sob formas sutis, quintessenciadas, que se graduam, se
multiplicam e renovam até ao infinito.
A esse domínio do invisível pertence o mundo fluídico, povo-
ado pelos Espíritos dos homens que viveram na Terra e se despoja-
ram do seu grosseiro invólucro. Subsistem eles sob essa forma sutil
de que acabamos de falar, forma ainda material posto que etérea,
porque a matéria afeta muitos estados quenão nos são familiares.
Essa forma é a imagem, ou antes, o esboço dos corpos carnais que
esses Espíritos animaram em suas vidas sucessivas. Passam eles,
25 Clemente de Alexandria refere uma tradição que circulava ainda no
seu tempo, segundo a qual João enterrara a mão no corpo de Jesus e o
atravessara sem encontrar resistência. ("Jesus de Nazareth", por Al-
bert Réville, 2°- vol., nota à pág. 470).
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
57
mas a forma permanece, como a alma, de que é o organismo indes-
trutível.
Os Espíritos ocupam diferentes posições em harmonia com a
sua elevação moral. Sua irradiação, brilho, poder, são tanto maiores
quanto mais alto houverem subido na escala das virtudes, das
perfeições, e quanto maior tiver sido a sua dedicação em servir à
causa do bem e da Humanidade. São esses seres, ou Espíritos, que
se manifestam em todas as épocas da História e em todos os meios,
tendo como intermediários sensitivos especialmente dotados e que,
conforme os tempos, se denominam adivinhos, sibilas, profetas ou
médiuns.
As aparições que assinalam os primeiros tempos do Cristia-
nismo, como as bíblicas épocas mais longínquas, não são fenôme-
nos isolados, mas a manifestação de uma lei universal, eterna, que
sempre presidiu às relações entre os habitantes dos dois mundos, o
mundo da matéria grosseira, a que pertencemos, e o mundo fluídi-
co invisível, povoado pelos Espíritos dos que denominamos, tão
impropriamente, os mortos.26
Apenas em época recente foi que essa ordem de manifestações
pôde ser estudada pela Ciência. Graças às observações de numero-
sos sábios, a existência do mundo dos Espíritos foi positivamente
estabelecida e as leis que o regem foram determinadas com certa
precisão.
Conseguiu-se reconhecer a presença, em cada ser humano, de
um duplo fluídico que sobrevive à morte, no qual foi reconhecido o
envoltório imperecível do Espírito. Esse duplo, que já se desprende
durante o êxtase e o sono, que se transporta e opera à distância
durante a vida, torna-se, depois da separação definitiva do corpo
26 Ver minhas outras obras, especialmente "Depois da Morte" e "No
Invisível" - "Espiritismo e Mediunidade".
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
58
carnal, e de um modo mais completo, o instrumento fiel e o centro
das energias ativas do Espírito.
Mediante esse invólucro fluídico é que o Espírito preside a tais
manifestações de além-túmulo, que já não são segredo para nin-
guém, desde que comissões científicas lhe estudaram os múltiplos
aspectos, chegando a pesar e fotografar os Espíritos, como o fize-
ram W Crookes com o Espírito de Katie King, Russell Wallace e
Aksakof com os de Abdullah e John King.27
É provável que o dom das línguas, conferido aos apóstolos, o-
ferecesse analogias com o fenômeno que, sob o nome de xenoglos-
sia, atualmente conhecemos. A luz ódica de Reichenbach e a maté-
ria radiante explicam a auréola dos santos; as chamas ou “línguas
de fogo”, que apareceram no dia de Pentecostes, reproduzem-se
hoje em dia nos fatos comunicados ao Congresso Espiritualista de
1900 pelo Doutor Bayol, senador pelo Distrito das Bocas do Ró-
damo,28 e finalmente as visões dos mártires são fenômenos da
mesma ordem que os em nosso tempo observados no momento da
morte de certas pessoas.29 Assim, também, o desaparecimento do
corpo de Jesus do sepulcro em que fora depositado, pode explicar-
se pela desagregação da matéria, observada há alguns anos em
sessões de experimentação psíquica.30
27 W Crookes - "Pesquisas sobre os fenômenos espíritas"; Russell Wal-
lace - "O moderno espiritualismo"; Aksakof - "Animismo e Espiritis-
mo". Relativamente a uma série de fenômenos análogos e mais recen-
tes, ver também Léon Denis - "No Invisível" - "Espiritismo e Mediu-
nidade", cap. XX.
28 Ver "No Invisível"-"Espiritismo e Mediunidade", pág. 332.
29 Ver a morte de Estevão: Atos, VII, 55 e 56.
30 Ver "No Invisível", pág. 346.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
59
Durante muito tempo não viram nisso os homens senão fatos
miraculosos, provocados pelo próprio Deus ou por seus anjos,
opinião cuidadosamente alimentada pelos padres, a fim de impres-
sionar a imaginação das massas e torná-las mais submissas ao seu
poder.
Nas Escrituras encontramos freqüentes exemplos dos erros de
que foram objeto esses fenômenos. Em Patmos, João vê aparecer
um gênio que, a princípio, ele quer adorar, mas que lhe afirma ser o
Espírito de um dos profetas seu irmão.31 Nesse caso, foi dissipado
o erro; o Espírito deu a conhecer a sua personalidade; em quantos
outros casos, porém, não foi ele mantido? É o mesmo que se dá
com a intervenção, tão freqüente, dos anjos da Bíblia. É preciso
nos pôr em guarda contra as tendências dos judeus e dos cristãos
no sentido de atribuir a Deus e aos seus anjos fenômenos produzi-
dos pelos Espíritos dos mortos, e a cujo respeito competia à nossa
época fazer a luz, restabelecendo-os em sua verdadeira categoria.
Na época de Jesus, a crença na imortalidade estava enfraqueci-
da. Os judeus achavam-se divididos a respeito da vida futura. Os
cépticos saduceus aumentavam em número e influência. Vem
Jesus. Torna mais amplas as vias de comunicação entre o mundo
terrestre e o mundo espiritual. Aproxima a tal ponto os invisíveis
dos humanos, que eles se podem novamente corresponder. Com
mão possante levanta o véu da morte e surgem visões do âmago da
sombra; no meio do silêncio fazem-se ouvir vozes; e essas visões e
essas vozes vêm afirmar ao homem a imortalidade da vida.
O Cristianismo primitivo afeta, pois, esse caráter particular de
ter aproximado as duas humanidades, terrestre e celeste; tornou
mais intensas as relações entre o mundo visível e o mundo invisí-
vel. Efetivamente, em cada grupo espírita, as pessoas se entrega-
31 Apocalipse, XIX, 10.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
60
vam a evocações; havia médiuns falantes, inspirados, de efeitos
físicos, como está escrito no capítulo XII da primeira epístola de
Paulo aos Coríntios. Então, como hoje, certos sensitivos possuíam
o dom da profecia, o dom de curar, o de expelir os maus Espíri-
tos.32
Na Epístola citada, S. Paulo fala também do corpo espiritual,
imponderável, incorruptível:
“O homem é colocado na terra como um corpo animal, e res-
suscitará como um corpo espiritual; do mesmo modo que há um
corpo animal, há um corpo espiritual.” (I Coríntios, XV, 44)
Fora um fenômeno espírita, a aparição de Jesus no caminho de
Damasco, o que havia feito de S. Paulo um cristão;33 Paulo não
conhecera o Cristo e, no momento dessa visão, que decidiu do seu
destino, bem longe estava de achar-se preparado para a sua ulterior
tarefa. “Respirando sempre ameaças de morte contra os discípulos
do Senhor”, munido contra eles de ordens de prisão, seguira para
Damasco a fim de os perseguir. Nesse caso, não cabe invocar,
como a respeito dos apóstolos se poderia fazer, um fenômeno de
alucinação, provocado pela constante recordação do Mestre. Essa
visão, ao demais, não foi isolada; em todo o subseqüente curso de
sua vida, Paulo entreteve assíduas relações com o invisível, parti-
cularmente com o Cristo, de quem recebia as instruções indispen-
sáveis à sua missão. Ele mesmo declara que haure inspirações nos
colóquios secretos com o filho de Maria.
S. Paulo não foi apenas assistido por Espíritos de luz, de que
se fazia o porta-voz e o intérprete.34 Espíritos inferiores por vezes o
32 Apocalipse, XIX, 10.
33 Idem.
34 Idem.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
61
atormentavam,e era-lhe necessário resistir à sua influência.35 É
assim que, em todos os meios, para educação do homem e desen-
volvimento da sua razão, a luz e a sombra, a verdade e o erro se
misturam. O mesmo se dá no domínio do moderno Espiritualismo,
em que se encontram todas as ordens de manifestações, desde as
comunicações do mais elevado caráter até os grosseiros fenômenos
produzidos por Espíritos atrasados. Mas esses também têm a sua
utilidade, do ponto de vista dos elementos de observação e dos
casos de identidade que fornecem à Ciência.
S. Paulo conhecia estas coisas. Lecionado pela experiência, ele
advertia os profetas,36 seus irmãos, a fim de se conservarem em
guarda contra tais ciladas. E acrescentava em conseqüência:
“Os espíritos dos profetas estão sujeitos aos profetas” (1 Co-
ríntios, XIV, 32), isto é, é preciso não aceitar cegamente as instru-
ções dos Espíritos, mas submetê-las ao exame da razão.
No mesmo sentido, dizia S. João:
“Caríssimos, não creiais a todo espírito, mas provai se os espí-
ritos são de Deus.” (I Epístola, IV, 1)
Os “Atos dos Apóstolos” fornecem numerosas indicações a-
cerca das relações dos discípulos de Jesus com o mundo invisível.
Aí se vê como, observando as instruções dos Espíritos,37 os apósto-
los adquirem maior amplitude de visão das coisas; chegaram a não
fazer mais distinções entre as carnes, a suprimir a barreira que
35 Apocalipse, XIX, 10.
36 Denominavam-se então os médiuns profetas.
37 Na versão grega dos Evangelhos e dos Atos, a palavra espírito está
muitas vezes isolada. S. Jerônimo acrescenta-lhe a de santo; e foram
os tradutores franceses da Vulgata que daí fizeram o Espírito-Santo,
(Ver Bellemare - "Espírita e Cristão", págs. 270 e segs.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
62
separava dos gentios os judeus, a substituir a circuncisão pelo
batismo.38
As comunicações dos cristãos com os Espíritos dos mortos e-
ram tão freqüentes nos primeiros séculos, que instruções positivas
circulavam entre eles a esse respeito.
Hermas, discípulo dos apóstolos, o mesmo que São Paulo
manda saudar de sua parte em sua Epístola aos Romanos (XVI,
14), indica, em seu “Livro do Pastor”,39 os meios de distinguir os
bons dos maus Espíritos.
Nas linhas seguintes, escritas há mil e oitocentos anos, julgar-
se-ia ter a descrição fiel das sessões de evocações, tais como, em
muitos centros, se praticam em nossos dias:
“O espírito que vem da parte de Deus é pacífico e humilde; a-
fasta-se de toda malícia e de todo vão desejo deste mundo e paira
acima de todos os homens. Não responde a todos os que o interro-
gam, nem às pessoas em particular, porque o espírito que vem de
Deus não fala ao homem quando o homem quer, mas quando Deus
o permite. Quando, pois, um homem que tem um espírito de Deus
vem à assembléia dos fiéis, desde que se fez à prece, o espírito
toma lugar nesse homem, que fala na assembléia como Deus o
quer.” (É o médium falante.)
38 Atos dos Apóstolos, X, 10-16, 28, 29, 44-48; XVI, 6-10; XXI, 4; Ep.
Romanos - XIV, 14,1 Cor. - XII e XIV. - Ver também nota comple-
mentar nº 6.
39 Esse "Livro do Pastor" era lido nas igrejas, como o são atualmente os
Evangelhos e as Epístolas, até o século V. São Clemente de Alexan-
dria e Orígenes a ele se referem com respeito. Figura no mais antigo
catálogo dos livros canônicos recebidos pela Igreja Romana e foi pu-
blicado por Caio em 220.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
63
“Reconhece-se, ao contrário, os espíritos terrestres, frívolos,
sem sabedoria e sem força, no que se agita, se levanta e toma o
primeiro lugar. É importuno, tagarela e não profetiza sem remune-
ração. Um profeta de Deus não procede assim.”
Os Espíritos manifestavam, então, sua presença de mil modos,
quer tornando-se visíveis,40 ou produzindo a desagregação da
matéria, como o fizeram para libertar Pedro das cadeias que o
prendiam e retirá-lo da prisão,41 quer ainda provocando casos de
levitação.42 Esses fenômenos eram, às vezes, tão impressionastes
que até mágicos sentiam-se abalados, a ponto de se converterem.43
Penetrados desse espírito de caridade e abnegação, que lhes
transfundia o Cristo, os primeiros cristãos viviam na mais íntima
solidariedade. “Tudo possuíam em comum” e “eram queridos de
todo o povo”.44
A revelação dos Espíritos continua muito tempo além do perí-
odo apostólico. Durante os séculos II e III, os cristãos se dirigiam
diretamente às almas dos mortos para decidir pontos de doutrina.
S. Gregório, o taumaturgo, bispo de Neo-Cesareia, declara “ter
recebido de João Evangelista, em uma visão, o símbolo da fé pre-
gado por ele na sua igreja”.45
40 Atos, XII, 55, 56; IX, 10, 12; XVI, 9 etc.
41 Atos, XII, 7-10. Ver também v. 19 e XVI, 26.
42 Ibid., VIII, 39, 40.
43 Atos, VIII. 9-13.
44 Ibid., II, 44-47; IV, 32-36.
45 Resumo da história eclesiástica, pelo abade Racine. São Gregório de
Nissa, em sua Vida de São Gregório, o taumaturgo, refere essa visão.
Ver Obras de São Gregório de Nissa, edição de 1638, t. III, págs. 545
e 546.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
64
Orígenes, esse sábio que S. Jerônimo considerava o grande
mestre da Igreja, depois dos apóstolos, fala muitas vezes, em suas
obras, da manifestação dos mortos.
Em sua controvérsia com Celso, diz ele:
“Não duvido de que Celso escarneça de mim; as zombarias,
porém, não me impedirão de dizer que muitas pessoas têm abraça-
do o Cristianismo a seu pesar, tendo sido de tal modo seu coração
repentinamente transformado por algum espírito, quer numa apari-
ção, quer em sonho, que, em lugar da aversão que nutriam pela
nossa fé, adotaram-na com amor até a ponto de morrer por ela.
Tomo Deus por testemunha da verdade do que digo; Ele sabe que
eu não pretendo recomendar a doutrina de Jesus-Cristo por meio de
histórias fabulosas, mas com a verdade de fatos incontestáveis”.46
O imperador Constantino era pessoalmente dotado de faculda-
des mediúnicas e sujeito à influência dos Espíritos. Os principais
sucessos de sua vida – sua conversão ao Cristianismo, a fundação
de Bizâncio, etc. – assinalam-se por intervenções ocultas, do que se
pode ter a prova nos seguintes fatos que vamos buscar à narrativa
do Sr. Alberto de Broglie, imparcial e severo historiador, pouco
inclinado ao misticismo:47
“Quando planejava apoderar-se de Roma, um impulso interior
o induziu a se recomendar a algum poder sobrenatural e invocar a
proteção divina, com apoio das forças humanas. Grande era, po-
rém, o embaraço para um piedoso romano dessa época... A si
mesmo ansiosamente perguntava de que Deus iria implorar a assis-
tência. Caiu, então, em absorta meditação das vicissitudes políticas
de que fora testemunha.”
46 Orígenes, edição beneditina de 1733, t. I, págs. 361 e 362.
47 Alb. de Broglie, A Igreja e o Império romano no século quarto, t. I,
págs. 214 e seguintes.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
65
Reconhece que depositar confiança na multidão dos deuses
traz infelicidade, ao passo que seu pai Constancio, secreto adorador
do Deus único, terminara seus dias em paz.
“Constantino decidiu-se a suplicar ao Deus de seu pai que
prestasse mão forte à sua empresa”.
“A resposta a essa prece foi umas visões maravilhosas, que ele
próprio referia, muitos anos depois, ao historiador Eusébio, afir-
mando-a sob juramento e com as seguintes particularidades: Uma
tarde, marchando à frente das tropas, divisou no céu, acima do sol
que já declinava para o ocaso, uma cruz luminosa com esta inscri-
ção: Com este sinal vencerás. Todo o seu exército e muitos espec-
tadores que o rodeavam viramcomo ele, estupefato, esse prodígio.
Ficou intrigado com o que poderia significar essa aparição. A noite
o surpreendeu ainda na mesma perplexidade. Durante o sono,
porém, o próprio Cristo lhe apareceu com a cruz com que fora visto
no céu e lhe ordenou que mandasse fazer, por aquele modelo, um
estandarte de guerra que lhe serviria de proteção nos combates. Ao
alvorecer, Constantino levantou-se e transmitiu aos confidentes a
revelação. Logo foram chamados ourives e o Imperador lhes deu
instruções para que a cruz misteriosa fosse reproduzida em ouro e
pedras preciosas.”
Mais adiante, acerca da escolha de Bizâncio para capital do
Império, refere o mesmo autor: Quando os olhos de Constantino se
detiveram em Bizâncio, não a apresentava mais que os destroços de
uma grande cidade. Na escolha que fez, acreditava ele não estar
desamparado da intervenção divina. Dizia-se que, por uma confi-
dência miraculosa, fora informado de que em Roma não estaria em
segurança o Império. Relativamente a essa escolha, falava-se tam-
bém de um sonho, etc. Filostórgio refere que:
... na ocasião em que ele (Constantino) traçava com a espada
em punho o novo recinto da cidade, os que o acompanhavam vendo
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
66
que ele se adiantava sempre, de modo a abranger uma área imensa,
perguntaram-lhe respeitosamente até onde pretendia ir. – Até o
lugar em que pare quem vai adiante de mim – respondeu.48
E provável que, sem o saber, padecesse Constantino a influên-
cia dos invisíveis, em tudo o que devia favorecer o estabelecimento
da nova religião, em detrimento muitas vezes do bem do Estado e
de seus próprios interesses. Seu caráter, sua vida íntima, não sofre-
ram com isso modificação alguma. Constantino se manteve sempre
cruel e astucioso, refratário à moral evangélica, o que demonstra
ter sido, em tudo mais, um instrumento nas mãos das eminentes
Entidades cuja missão era fazer triunfar o Cristianismo.
Sobre a questão que nos ocupa, o célebre bispo de Hipona,
Santo Agostinho, não é menos afirmativo. Em suas “Confissões”49,
alude aos infrutíferos esforços empenhados por deixar a desregrada
vida que levava. Um dia em que rogava com fervor a Deus que o
iluminasse, ouviu subitamente uma voz que repetidas vezes lhe
dizia: Tolle, lege (toma, lê). Tendo-se certificado de que essas
palavras não provinham de um ser vivo, ficou convencido de ser
uma ordem divina, que lhe determinava abrisse as santas Escrituras
e lesse a primeira passagem que sob os olhos lhe caísse. Foram
exortações de S. Paulo sobre a pureza dos costumes, o que leu.
Em suas cartas menciona o mesmo autor “aparições de mor-
tos”, indo e vindo em sua morada habitual – fazendo predições que
os acontecimentos vêm mais tarde confirmar.50
48 Filostórgio, II, 9. Ver A Igreja e o Império Romano no século quarto,
por Alb de Broglie, t. II, pá.g. 153.
49 Confissões, livro. VIII, cap. XII.
50 Carta a Evodius. Ep. CLIX. edição dos Beneditinos, t. 11, col. 562, e
De cura pro mortuis, t. VI, col. 523.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
67
Seu tratado De cura pro mortuis, fala das manifestações dos
mortos, nestes termos:
“Os espíritos dos mortos podem ser enviados aos vivos, podem
desvendar-lhes o futuro, cujo conhecimento adquiriram, quer por
outros espíritos, quer pelos anjos, quer por uma revelação divi-
na.”51
Em sua Cidade de Deus, a propósito do corpo lúcido, etéreo,
aromal, que é o perispírito dos espíritas, trata das operações teúrgi-
cas, que o tornam apropriado a comunicar com os Espíritos e os
anjos e obter visões.
S. Clemente de Alexandria, S. Gregório de Nissa em seu Dis-
curso catequético, o próprio S. Jerônimo em sua famosa controvér-
sia com Vigilantius, o gaulês, pronunciam-se no mesmo sentido.
S. Tomás de Aquino, o anjo da escola, no-lo diz o abade Pous-
sin, professor no Seminário de Nice, em sua obra O Espiritismo
perante a Igreja (1866), “comunicava-se com os habitantes do
outro mundo, com mortos que o informavam do estado das almas
pelas quais se interessava ele, com santos que o confortavam e lhe
patenteavam os tesouros da ciência divina”.52
A Igreja, pelo órgão dos concílios, entendeu dever condenar as
práticas espíritas, quando, de democrática e popular que era em sua
origem, se tornou despótica e autoritária. Quis ser a única a possuir
o privilégio das comunicações ocultas e o direito de as interpretar.
Todos os leigos, provado que mantinham relações com os mortos,
foram perseguidos como feiticeiros e queimados.
51 De cura pro mortuis, edição beneditina, t. VI, col. 527.
52 Lê-se na Suma (1, qu. 89, 8 2.m): “o espírito (anima separata) pode
aparecer aos vivos”.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
68
Mas esse monopólio das relações com o mundo invisível, ape-
sar dos seus julgamentos e condenações, apesar das execuções em
massa, a Igreja nunca o pôde obter. Ao contrário, a partir desse
momento, as mais brilhantes manifestações se produzem fora dela.
A fonte das superiores inspirações, fechada para os eclesiásticos,
permanece aberta para os hereges. A História o atesta. Aí estão as
vozes de Joana d'Arc, os gênios familiares de Tasso e de Jerônimo
Cardan, os fenômenos macabros da Idade Média, produzidos por
Espíritos de categoria inferior; os convulsionários de S. Medard,
depois os pequenos profetas inspirados de Cavennes, Swedenborg
e sua escola. Mil outros fatos ainda formam uma ininterrupta ca-
deia, que, desde as manifestações da mais remota antiguidade, nos
conduz ao moderno Espiritualismo.
Entretanto, numa época recente, no seio da Igreja, alguns raros
pensadores investigavam ainda o problema do invisível. Sob o
título Da distinção dos Espíritos, o cardeal Bona, esse Fenelon da
Itália, consagrava uma obra ao estudo das diversas categorias de
Espíritos que podem manifestar-se aos homens.
“Motivo de estranheza – diz ele – é que se pudessem encontrar
homens de bom senso que tenham ousado negar em absoluto as
aparições e comunicações das almas com os vivos, ou atribuí-las a
extravio da imaginação, ou ainda a artifício dos demônios.”
Esse cardeal não previa os anátemas dos padres católicos con-
tra o Espiritismo.53
Forçoso é, portanto, reconhecê-lo: os dignitários da Igreja que,
do alto de sua cátedra, têm anatematizado as práticas espíritas,
desnortearam completamente. Não compreendem que as manifes-
tações das almas são uma das bases do Cristianismo, que o movi-
mento espírita é a reprodução do movimento cristão em sua ori-
53 Ver nota complementar no 6.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
69
gem. Não se lembram de que negar a comunicação com os mortos,
ou mesmo atribuí-la à intervenção dos demônios, é por em contra-
dição com os padres da Igreja e com os próprios apóstolos. Já os
sacerdotes de Jerusalém acusavam Jesus de agir sob a influência de
Belzebu. A teoria do demônio fez sua época; agora já não é admis-
sível.
A verdade é que o Espiritismo se encontra hoje por toda parte,
não como superstição, mas como lei fundamental da Natureza.
Sempre existiram relações entre homens e Espíritos, com mai-
or ou menor intensidade. Por esse meio, contínua revelação se
propagou no mundo. Flui, através dos tempos, uma grande corrente
de energia espiritual cuja fonte é o mundo invisível. Por vezes, essa
corrente se oculta na penumbra; vai-se encontrar dissimulada sob a
abóbada dos templos da Índia e do Egito, nos misteriosos santuá-
rios da Gália e da Grécia; só dos iniciados e dos sábios é conheci-
da. Mas, também às vezes, em épocas determinadas pela vontade
de Deus, surge dos lugares ocultos, reaparece em pleno dia, à vista
de todos; vem oferecerà Humanidade esses tesouros, essas magni-
ficências esquecidas, que a vêm embelezar, enriquecer, regenerar.
É assim que as verdades superiores se revelam através dos sé-
culos, para facilitar, estimular a evolução dos seres. Com o concur-
so de poderosos médiuns, se patenteiam entre nós, pela intervenção
dos Espíritos geniais, que viveram na Terra e que nela sofreram
pela Justiça e pelo Bem. Esses Espíritos de escol foram restituídos
à vida do espaço, mas não cessaram de velar pela Humanidade e
com ela corresponder-se.
Em certos momentos da História, um sopro do Alto perpassa
pelo mundo; as brumas que envolviam o pensamento humano se
dissipam; as superstições, as dúvidas, as quimeras se desvanecem;
as grandes leis do destino se revelam e a verdade reaparece.
Felizes, então, os que a sabem reconhecer e agasalhar!
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
70
6
Alteração do Cristianismo – os Dogmas
Como palhetas de ouro nas ondas turvas de um rio, a Igreja
mescla, em seu ensino, a pura moral evangélica à vacuidade das
próprias concepções.
Acabamos de ver que, depois da morte do Mestre, os primeiros
cristãos possuíam, em sua correspondência com o mundo invisível,
abundante fonte de inspirações. Utilizavam-na abertamente. Mas as
instruções dos Espíritos nem sempre estavam em harmonia com as
opiniões do sacerdócio nascente, que, se nessas relações achava um
amparo, nelas muitas vezes encontrava também uma crítica severa
e, às vezes, mesmo uma condenação.
Pode-se ver no livro do padre de Longueval,54 como, à medida
que se constitui a obra dogmática da Igreja, nos primeiros séculos,
os Espíritos afastam-se pouco a pouco dos cristãos ortodoxos, para
inspirar os que eram então designados sob o nome de heresiarcas.
Montanus, diz também o abade Fleury,55 tinha duas profetisas,
duas senhoras nobres e ricas, chamadas Priscila e Maximiza. Ca-
rente também obtinha revelações.56 Apolônio de Tainá contava-se
entre esses homens favorecidos pelo céu, que são assistidos por um
“espírito sobrenatural”.57 Quase todos os mestres da escola de
Alexandria eram inspirados por gênios superiores.
54 História da Igreja galicana, t. 1, pág. 84.
55 Hist. ecies., liv. N, 6.
56 Ibidem, liv. 11, 3.
57 Ibidem, liv. I, 9.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
71
Todos esses Espíritos, apoiando-se na opinião de S. Paulo: “o
que por ora possuímos em conhecimento e profecia é muito imper-
feito” (I Coríntios, XIII, 9) – traziam, diziam eles, uma revelação
que vinha confirmar e completar a de Jesus.
Desde o século III, afirmavam que os dogmas impostos pela
Igreja, como um desafio à razão, não eram mais que um obscure-
cimento do pensamento do Cristo.
Combatiam os faustos já excessivos e escandalosos dos bispos,
insurgindo-se energicamente contra o que aos seus olhos era uma
corrupção da moral.58
Essa oposição crescente tornava-se intolerável aos olhos da I-
greja. Os “heresiarcas”, aconselhados e dirigidos pelos Espíritos,
entravam em luta aberta contra ela. Interpretavam o Evangelho
com amplitude de vistas que a Igreja não podia admitir, sem cavar
a ruína dos seus interesses materiais. Quase todos se tornavam
neoplatônicos, aceitando a sucessão das vidas do homem e o que
Orígenes denominava “os castigos medicinais”, isto é, punições
proporcionais às faltas da alma, reencarnada em novos corpos, para
resgatar o passado e purificar-se pela dor. Essa doutrina, ensinada
pelos Espíritos e cuja sanção Orígenes e muitos padres da Igreja,
como vimos, encontravam nas Escrituras, era mais conforme com a
justiça e misericórdia divinas. Deus não pode condenar as almas a
suplícios eternos, depois de uma vida única, mas deve-lhes forne-
cer os meios de se elevarem mediante existências laboriosas e
provas aceitas com resignação e suportadas com coragem.
Essa doutrina de esperança e de progresso não inspirava, aos
olhos dos chefes da Igreja, o suficiente terror da morte e do pecado.
Não permitia firmar sobre bases convenientemente sólidas a auto-
ridade do sacerdócio. O homem, podendo resgatar-se a si próprio
58 Padre de Longuevsl, História da igreja galicana, 1, 84.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
72
das suas faltas, não necessitava do padre. O dom de profecia, a
comunicação constante com os Espíritos, eram forças que, sem
cessar, minavam o poder da Igreja. Esta, assustada, resolveu pôr
termo à luta, sufocando o profetismo. Impôs silêncio a todos os
que, invisíveis ou humanos, no intuito de espiritualizar o Cristia-
nismo, afirmavam idéias cuja elevação a amedrontava.
Depois de ter, durante três séculos, reconhecido no dom de
profecia, ou de mediunidade acessível a todos, conforme a promes-
sa dos apóstolos, um soberano meio de elucidar os problemas
religiosos e fortificar a fé, a Igreja chegou a declarar que tudo o
que provinha dessa fonte não era mais que pura ilusão ou obra do
demônio. Ela se declarou, do alto da sua autoridade, a única profe-
cia viva, a única revelação perpétua e permanente. Tudo o que dela
não provinha foi condenado, amaldiçoado. Todo esse lado grandio-
so do Evangelho, de que temos falado; toda a obra dos profetas que
o completava e esclarecia, foi recalcado para a sombra. Não se
tratou mais dos Espíritos nem da elevação dos seres na escala das
existências e dos mundos, nem do resgate das faltas cometidas,
nem de progressos efetuados e trabalhos realizados através do
infinito dos espaços e do tempo.
Perderam-se de vista todos os ensinos; a tal ponto se esqueceu
a verdadeira natureza dos dons de profecia que os modernos co-
mentadores das Escrituras dizem que “a profecia era o dom de
explicar aos fiéis os mistérios da religião”.59 Os profetas eram, a
seu ver, “o bispo e o padre que julgavam, pelo dom do discerni-
mento e as regras da Escritura, se o que fora dito provinha do
espírito de Deus ou do espírito do demônio”: – contradição absolu-
ta com a opinião dos primeiros cristãos, que nos profetas viam
inspirados, não de Deus mas dos Espíritos, como o diz S. João, na
passagem de sua primeira Epístola (IV, 1), já citada.
59 De Maistre de Sacy, Comentários sobre São Paulo, 1, 3, 22, 29.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
73
Um momento, ter-se-ia podido acreditar que, aliada aos des-
cortinos profundos dos filósofos de Alexandria, a doutrina de Jesus
ia prevalecer sobre as tendências do misticismo judeu-cristão e
lançar a Humanidade na ampla via do progresso, à fonte das altas
inspirações espirituais. Mas os homens desinteressados, que ama-
vam a verdade pela verdade, não eram bastante numerosos nos
concílios. Doutrinas que melhor se adaptavam aos interesses terre-
nos da Igreja foram elaboradas por essas célebres assembléias, que
não cessaram de imobilizar e materializar a Religião. Graças a elas
e sob a soberana influência dos pontífices romanos é que se elevou,
através dos séculos, esse amálgama de dogmas estranhos, que nada
têm de comum com o Evangelho e lhe são muitíssimo posteriores –
sombrio edifício em que o pensamento humano, semelhante a uma
águia engaiolada, impotente para desdobrar as asas e não vendo
mais que uma nesga do céu, foi encerrado durante tanto tempo
como em uma catacumba.
Essa pesada construção, que obstrui o caminho à Humanidade,
surgiu na Terra em 325 com o concílio de Nicéia e foi concluída
em 1870 com o último concílio de Roma. Tem por alicerce o peca-
do original e por coroamento a imaculada conceição e a infalibili-
dade papal.
É por essa obra monstruosa que o homem aprende a conhecer
esse Deus implacável e vingativo, esse inferno sempre atuante, esse
paraíso fechado a tantas almas valorosas, a tantas generosas inteli-gências, e facilmente alcançado por uma vida de alguns dias, ter-
minada após o batismo – concepções que têm impelido tantos seres
humanos ao ateísmo e ao desespero.
*
Examinemos os principais dogmas e mistérios, cujo conjunto
constitui o ensino das igrejas cristãs. Encontramos a sua exposição
em todos os catecismos ortodoxos.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
74
Começa com essa estranha concepção do Ser divino, que se re-
solve no mistério da Trindade, um só Deus em três pessoas, o Pai,
o Filho e o Espírito-Santo.
Jesus trouxera ao mundo uma noção da divindade, desconheci-
da ao Judaísmo. O Deus de Jesus já não é o déspota zeloso e parci-
al que protege Israel contra os outros povos; é o Deus Pai da Hu-
manidade. Todas as nações, todos os homens, são seus filhos. É o
Deus em quem tudo vive, move-se e respira, imanente em a Natu-
reza e na consciência humana.
Para o mundo pagão, como para os judeus, essa noção de Deus
encerrava toda uma revolução moral. A homens que tudo haviam
chegado a divinizar e a temer tudo o que haviam divinizado, a
doutrina de Jesus revelava a existência de um só Deus, Criador e
Pai, por quem todos os homens são irmãos e em cujo nome eles se
devem afeição e assistência. Ela tornava possível a comunhão com
esse Pai, pela união fraternal dos membros da família humana.
Franqueava a todos o caminho da perfeição pelo amor ao próximo
e pela dedicação à Humanidade.
Essa doutrina, simples e grande ao mesmo tempo, devia elevar
o espírito humano a alturas admiráveis, até ao Foco divino, cuja
irradiação todo homem pode sentir dentro em si mesmo. Como foi
essa idéia simples e pura, que podia regenerar o mundo, transfor-
mada a ponto de se tornar irreconhecível?
É o resultado das paixões e dos interesses materiais que entra-
ram em jogo no mundo cristão, depois da morte de Jesus.
A noção da Trindade, colhida numa lenda hindu que era a ex-
pressão de um símbolo, veio obscurecer e desnaturar essa alta idéia
de Deus. A inteligência humana podia elevar-se a essa concepção
do Ser eterno, que abrange o Universo e dá a vida a todas as criatu-
ras: não pode a si mesma explicar como três pessoas se unem para
constituir um só Deus. A questão da consubstancialidade em nada
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
75
elucida o problema. Em vão nos advertiriam que o homem não
pode conhecer a natureza de Deus. Neste caso, não se trata dos
atributos divinos mas da lei dos números e medidas, lei que tudo
regula no Universo, mesmo as relações que ligam a razão humana à
razão suprema das coisas.
Essa concepção trinitária, tão obscura, tão incompreensível,
oferecia, entretanto, grande vantagem às pretensões da Igreja.
Permitia-lhe fazer de Jesus-Cristo um Deus. Conferia ao poderoso
Espírito, a que ela chama seu fundador, um prestígio, uma autori-
dade, cujo esplendor sobre ela recaía e assegurava o seu poder.
Nisso está o segredo da sua adoção pelo concílio de Nicéia. As
discussões e perturbações que suscitou essa questão agitaram os
espíritos durante três séculos e só vieram a cessar com a proscrição
dos bispos arianos, ordenados pelo imperador Constâncio, e o
banimento do papa Libero que recusava sancionar a decisão do
Concílio.60
A divindade de Jesus, rejeitada por três concílios, o mais im-
portante dos quais foi o de Antioquia (269), foi, em 325, proclama-
da pelo de Nicéia, nestes termos:
“A Igreja de Deus, católica e apostólica, anatematiza os que
dizem que houve um tempo em que o Filho não existia, ou que não
existia antes de haver sido gerado.”
Essa declaração está em contradição formal com as opiniões
dos apóstolos. Ao passo que todos acreditavam o Filho criado pelo
Pai, os bispos do século IV proclamavam o Filho igual ao Pai,
“eterno como ele, gerado e não criado”, opondo assim um desmen-
tido ao próprio Cristo, que dizia e repetia: “meu Pai é maior do que
eu”.
60 Ver, quanto às particularidades desses fatos. E. Bellemare, Espírita e
Cristão, Pág. 212.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
76
Para justificar essa afirmação, apóia-se a Igreja em certas pala-
vras do Cristo, que, se exatas, foram mal compreendidas, mal
interpretadas. Em João (X, 33), por exemplo, se diz: “Nós te ape-
drejamos porque, sendo homem, te fazes Deus a ti mesmo”.
A resposta de Jesus destrói essa acusação e revela o seu pen-
samento íntimo: “Não está escrito na vossa lei: – Eu disse: vós sois
deuses?” (João, X, 34).61
“Se ela chamou deuses àqueles a quem a palavra de Deus foi
dirigida...” (João, X, 35).
Todos sabem que os antigos, latinos e orientais, chamavam
deuses a todos quantos, por qualquer motivo, se tornavam superio-
res ao comum dos homens.62 O Cristo preferia a essa qualificação
abusiva, a de filho de Deus para designar os que investigavam e
observavam os divinos ensinamentos. É o que ele expõe no versí-
culo seguinte:
“Bem-aventurados os pacíficos, porque serão chamados filhos
de Deus.” (Mateus, V, 9).
Os apóstolos atribuíam o mesmo sentido a essa expressão:
“Todos os que são levados pelo Espírito de Deus, esses tais são
filhos de Deus.” (S. Paulo, Epístola aos Romanos, VIII, 14)
Jesus o confirma em muitas circunstâncias:
61 Essas palavras se referem à seguinte passagem do Salmo LXXXI, v.
6: "Eu disse: vós sois deuses e todos filhos do Excelso."
62 Ver nota complementar nº 8.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
77
“A mim, a quem o Pai santificou e enviou ao mundo, porque
dizeis vós “Tu blasfemas”, por eu ter dito que sou Filho de Deus?”
(João, X, 36) 63
A um israelita redarguiu: “Porque me chamais bom? Ninguém
é bom senão Deus, unicamente.” (Lucas, XVIII, 19). “Eu não
posso de mim mesmo fazer coisa alguma. Não busco a minha
vontade, mas à vontade daquele que me enviou.” (João, V, 30).
As seguintes palavras são ainda mais explícitas:
“Procurais tirar-me à vida, a mim que sou um homem, que vos
tenho dito a verdade que de Deus ouvi.” (João, VIII, 40)
“Se me amásseis, certamente havíeis de folgar que eu vá para o
Pai, porque o Pai é maior do que eu.” (João, XIV, 28)
“Jesus diz à Madalena: Vai a meus irmãos e dize-lhes que eu
vou para meu Pai e vosso Pai, para meu Deus e vosso Deus.” (Jo-
ão, XX, 17)
Assim, longe de externar a idéia sacrílega de que era Deus, em
todas as circunstâncias Jesus fala do Ser infinito como a criatura
deve falar do Criador, ou ainda como um subordinado fala do seu
senhor.
Nem mesmo sua mãe acreditava na sua divindade, e todavia
quem mais autorizado que ela a admiti-la? Não recebera a visita do
anjo que lhe anunciava a vinda do Menino, abençoado pelo Altís-
simo e por sua graça concebido?.64 Porque tenta, pois, embaraçar-
63 Se, em sua linguagem parabólica, Jesus algumas vezes se denomina
filho de Deus, com muito mais freqüência se designa filho do homem.
Esta expressão se encontra setenta e seis vezes nos Evangelhos.
64 Lucas 1, 26-28.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
78
lhe a obra, imaginando que ele perdera o juízo?65 Há aí contradição
patente.
Os apóstolos por sua vez não viam em Jesus senão um missio-
nário enviado do céu, um espírito sem dúvida superior por suas
luzes e virtudes, mas humano. Sua atitude para com ele, sua lin-
guagem, o provam claramente.
Se o tivessem considerado um Deus não se teriam prosternado
diante dele, não seriam genuflexos que lhe teriam falado? ao passo
que a sua deferência e respeito não ultrapassem o devido a um
mestre, a um homem eminente. E ao demais esse título do mestre
(em hebreu rabi) que lhe dispensavam habitualmente. Os evange-
lhos dão o testemunho disso. Quando lhe chamam de Cristo, não
vêem nessequalitativo senão o sinônimo de enviado de Deus.
Respondeu Pedro: “Tu és o Cristo.” (marcos, VIII,29).
O pensamento dos apóstolos acha-se explicado, esclarecido
por certas passagens dos Atos (II,22). Pedro, dirigindo-se à multi-
dão:
“Varões israelitas, ouvi minhas palavras. Jesus Nazareno foi
um varão (virium), aprovado por Deus entre nós, com virtudes,
prodígios e sinais que Deus obrou por ele no meio de nós.”
Encontra o mesmo pensamento expresso em Lucas, XXIV, 19:
“Jesus de Nazaré foi um profeta, poderoso em obras e palavras
diante de Deus e de todo o povo.”
Se os primeiros cristãos tivessem acreditado na divindade de
Jesus, se dele houvessem feito um Deus, sua religião teria se sub-
mergido na multidão que o império Romano admitia, em cada qual
existindo divindades particulares. Os arroubos de entusiasmos dos
apóstolos, a indomável energia dos mártires, tinham sua origem na
65 Marcos, 3, 21.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
79
ressurreição de Cristo. Considerando-o um homem semelhante a
eles, viam nessa ressurreição a prova manifesta da sua própria
imortalidade. São Paulo confirma com absoluta clareza essa opini-
ão, quando diz:
“Pois se não há ressurreição de mortos, nem Cristo ressuscitou.
E se Cristo não ressuscitou, é logo vã a nossa pregação, é também
vã a nossa fé. E somos assim mesmo convencidos por falsos teste-
munhos de Deus, dizendo que ressuscitou a Cristo, ao qual não
ressuscitou, se os mortos não ressuscitam”.66
Assim, para os discípulos de Jesus, como para todos os que a-
tentamente, e sem paixão, estudam o problema dessa existência
admirável, o Cristo, segundo a expressão que a si próprio aplica,
não é mais que o “profeta” de Deus, isto é, um intérprete, um por-
ta-voz de Deus, um Espírito dotado de faculdades especiais, de
poderes excepcionais, mas não superiores à natureza humana.
Sua clarividência, suas inspirações, o dom de curar que possu-
ía em tão elevado grau, encontra-se em épocas diversas e em dife-
rentes graus, em outros homens.
Pode-se comprovar a existência dessas faculdades nos médiuns
de nossos dias, não agrupadas, reunidas de modo a constituírem
uma poderosa personalidade como a do Cristo, mas dispersas,
distribuídas por grande número de indivíduos. As curas de Jesus
não são milagres,67 mas a aplicação de um poder fluídico e magné-
66 I Coríntios, XV, 13-15.
67 O que se denomina milagres são fenômenos produzidos pela ação de
forças desconhecidas, que a ciência descobre cedo ou tarde. Não pode
existir milagre no sentido de postergarão das leis naturais. Com a vio-
lação dessas leis, a desordem e a confusão penetrariam no mundo.
Deus não pode ter estabelecido leis para, em seguida, as violar. Ele
nos daria, assim, o mais pernicioso exemplo; porque, se violamos a
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
80
tico, que novamente se encontra mais ou menos desenvolvido, em
certos curadores da nossa época. Essas faculdades estão sujeitas a
variações, a intermitências que no próprio Cristo se observam,
como o provam os versículos do Evangelho de Marcos (VI, 4, 5):
“Mas Jesus lhes dizia: Um profeta só deixa de ser honrado em
sua pátria, em sua casa e entre seus parentes. E não podia ali fazer
milagre algum.”
Todos os que têm de perto observado os fenômenos do Espiri-
tismo, do magnetismo e da sugestão, e remontado dos efeitos à
causa que os produz, sabem que existe uma grande analogia entre
as curas operadas pelo Cristo e as obtidas pelos que exercem mo-
dernamente essas funções. Como ele, mas com menos força e
êxito, os curadores espíritas tratam dos casos de obsessão e posses-
são e, com o auxílio de passes, tocando os indivíduos pela imposi-
ção das mãos, libertam os doentes dos males produzidos pela influ-
ência dos Espíritos impuros, daqueles que a Escritura designa sob o
nome de demônios:
“À tarde, porém, apresentaram-lhe muitos endemoninhados,
dos quais ele expelia os maus espíritos com a sua palavra; e curou
todos os enfermos.” (Mateus, VIII, 16)
A maior parte das moléstias nervosas provém das perturbações
causadas por estranhas influências em nosso organismo fluídico, ou
perispírito. A Medicina, que estuda simplesmente o corpo material,
não pôde descobrir a causa desses males e os remédios a eles apli-
cáveis. Por isso é quase sempre impotente para os curar. A ação
fluídica de certos homens, firmados na vontade, na prece e na
assistência dos Espíritos elevados, pode fazer cessarem essas per-
turbações, restituir ao invólucro fluídico dos doentes as suas vibra-
lei, poderemos ser punidos, ao passo que Deus, fonte da lei, terá aten-
tado contra ela?
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
81
ções normais e forçar a se retirarem os maus Espíritos. Era o que
Jesus obtinha facilmente, como o obtinham, depois dele, os apósto-
los e os santos.
*
Os conhecimentos difundidos entre os homens pelo moderno
Espiritualismo permitem melhor compreender e definir a alta per-
sonalidade do Cristo. Jesus era um divino missionário, dotado de
poderosas faculdades, um médium incomparável. Ele próprio o
afirma:
“Eu não falei de mim mesmo, mas o Pai que me enviou é o
mesmo que me prescreveu o que devo dizer e o que devo falar.”
(João, XII, 49)
A todas as raças humanas, em todas as épocas da História, en-
viou Deus missionários, Espíritos superiores, chegados, por seus
esforços e merecimentos, ao mais alto grau da hierarquia espiritual.
Podem-se acompanhar, através dos tempos, os sulcos dos seus
passos. Suas frontes dominam, sobranceiras, a multidão dos huma-
nos que eles têm o encargo de dirigir para as altitudes intelectuais.
O céu os apercebeu para as lutas do pensamento; dele recebe-
ram o poder e a intrepidez.
Jesus é um desses divinos missionários e é de todos o maior.
Destituído da falsa auréola da divindade, mais imponente nos
parece ele. Seus sofrimentos, seus desfalecimentos, sua resignação,
deixam-nos quase insensíveis, se oriundos de um Deus, mas tocam-
nos, comovem-nos profundamente em um irmão. Jesus é, de todos
os filhos dos homens, o mais digno de admiração. É extraordinário
no sermão da montanha, em meio à turba dos humildes. É maior
ainda no Calvário, quando a sombra da cruz se estende sobre o
mundo, na tarde do suplício.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
82
Nele vemos o homem que ascendeu à eminência final da evo-
lução, e neste sentido é que se lhe pode chamar deus, assim conci-
liando os apologistas da sua divindade com os que a negam. A
humanidade e a divindade do Cristo representam os extremos de
sua individualidade, como o são para todo ser humano. Ao termo
de nossa evolução, cada qual se tornará um “Cristo”, será um com
o Pai e terá alcançado a condição divina.
A passagem de Jesus pela Terra, seus ensinamentos e exem-
plos, deixaram traços indeléveis; sua influência se estenderá pelos
séculos vindouros. Ainda hoje, ele preside aos destinos do globo
em que viveu, amou, sofreu. Governador espiritual deste planeta,
veio, com seu sacrifício, encarreirá-lo para a senda do bem e é sob
a sua direção oculta e com o seu apoio que se opera essa nova
revelação, que, sob o nome de moderno espiritualismo, vem resta-
belecer sua doutrina, restituir aos homens o sentimento dos pró-
prios deveres, o conhecimento de sua natureza e dos seus destinos.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
83
7
Os Dogmas – os Sacramentos, o Culto
O pecado original é o dogma fundamental em que repousa to-
do o edifício dos dogmas cristãos – idéia verdadeira, no fundo, mas
falsa em sua forma e desnaturada pela Igreja – verdadeira,no
sentido de que o homem sofre com a intuição que conserva das
faltas cometidas em suas vidas anteriores e pelas conseqüências
que acarretam para ele. Esse sofrimento, porém, é pessoal e mere-
cido. Ninguém é responsável pelas faltas de outrem, se nelas não
tomou alguma parte. Apresentado em seu aspecto dogmático, o
pecado original, que pune toda a posteridade de Adão, isto é, a
Humanidade inteira, pela desobediência do primeiro par, para
depois salvá-la por meio de uma iniqüidade inda maior – a imola-
ção de um justo – é um ultraje à razão e à moral, consideradas em
seus princípios essenciais – a bondade e a justiça. Mais contribuiu
para afastar o homem da crença em Deus, que todas as agressões e
todas as críticas da Filosofia.
Não é, com efeito, impunemente que se tenta separar, no pen-
samento e na consciência, a idéia de Deus da de justiça. Com isso,
o que se logra é lançar a perturbação nas almas e provocar um
trabalho mental que conduz, forçosamente, à exclusão de uma
dessas duas idéias. Ora, foi a idéia de Deus que esteve quase a
perecer, porque o homem não pode ver em Deus senão a mais alta
personificação da justiça, do amor e da sabedoria. Todas as perfei-
ções devem encontrar-se reunidas no Ser eterno.
Do seu passado criminoso perdeu o homem a recordação pre-
cisa, mas conservou um vago sentimento. Daí proveio essa concep-
ção do pecado original, que se encontra em muitas religiões, e da
expiação que ele requer. Dessa concepção errônea derivam as da
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
84
queda, do resgate e da redenção pelo sangue do Cristo, os mistérios
da encarnação, da virgem-mãe, da imaculada conceição, numa
palavra, todo o amontoado do Catolicismo.68
Todos esses dogmas constituem verdadeira negação da razão e
da justiça divinas, desde que tomados ao pé da letra, como o quer a
Igreja, e em seu sentido material.
Não é admissível houvesse Deus criado o homem e a mulher
com a condição de não se instruírem. Menos admissível, ainda, é
que ele tenha, por uma única desobediência, condenado a sua pos-
teridade e a Humanidade inteira à morte e ao inferno.
“Que pensar, diz com razão E. Bellemare, de um juiz que con-
denasse um homem sob o pretexto de que, há milhares de anos, um
seu antepassado cometera um crime?” É, entretanto, esse odioso
papel que o Catolicismo atribui ao juiz supremo – Deus!
É por motivos tais que se justificou o afastamento e a ojeriza
que certos pensadores conceberam pela idéia de Deus. É o que
explica, sem a desculpar, a veemente acusação de um célebre escri-
tor: Deus é o mal!
Se considerarmos o dogma do pecado original e da queda qual
o é, realmente, isto é, como um mito, uma lenda oriental, exata-
mente como se depara em todas as cosmogonias antigas; se destru-
irmos com um sopro tais quimeras, todo o edifício dos dogmas e
mistérios imediatamente se desmorona. Que restará, então, do
68 A queda da humanidade em Adão - diz o abade de Noirlieu em seu
Catecismo filosófico para uso dos seculares - e a sua reparação em
Jesus-Cristo, são os dois grandes fatos sobre que repousa o Cristia-
nismo. Sem o dogma do pecado original não mais se concebe a neces-
sidade do Redentor. Por isso, nada é ensinado mais explicitamente pe-
la Igreja do que a queda de Adão e as suas funestas conseqüências,
para todos os seus descendentes."
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
85
Cristianismo? pode-se-me perguntar. Restará o que ele em si con-
tém de verdadeiramente grande, de vivo e racional, isto é, tudo o
que é suscetível de elevar e fortalecer a Humanidade.
Prossigamos em nosso exame. A soberania de Deus, dizem os
teólogos, manifesta-se pela predestinação e pela redenção. Sendo
Deus absoluto soberano, sua vontade é a causa final e decisiva de
tudo quanto ocorre no Universo. Agostinho é o autor desse dogma,
que ele institui em sua luta com os maniqueus, partidários de dois
princípios opostos: o bem e o mal, e contra Pelágio, que reivindi-
cava os direitos da liberdade humana. Todavia, Agostinho louva-
se, para defender o seu dogma, na autoridade de S. Paulo, verdadei-
ro criador da doutrina da predestinação, cujo enunciado, pouco
concludente ao nosso ver, está no capítulo IX da Epístola aos Ro-
manos.
Segundo S. Paulo, cuja teoria foi adotada sucessivamente por
Agostinho, pelos reformadores do século XVI e, mais tarde, por
Jansen, Pascal, etc., o homem não pode obter a salvação por suas
próprias obras, arrastando-o sua natureza, como invariavelmente o
arrasta, ao mal.
Essa inclinação funesta é o resultado da queda do primeiro
homem e da corrupção que dela deriva para toda a Humanidade,
tendo-se tornado a herança de todos os filhos de Adão. É pela
concepção que aos filhos se transmite o pecado dos pais. Esse
dogma denomina-se traducianismo e as igrejas cristãs parece não
perceberem que, com essa afirmação monstruosa, se fazem aliadas
do materialismo, que proclama a mesma teoria sob o nome de lei
da hereditariedade.
Todos os homens, perdidos pelo pecado de Adão, seriam vota-
dos à condenação eterna, se Deus, em sua misericórdia, não tivesse
encontrado um meio de os salvar. Esse meio é a redenção. O filho
de Deus se faz homem. Em sua vida terrestre, cumpriu a vontade
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
86
do Pai e satisfez sua justiça, oferecendo-se em holocausto para
salvação de todos os que se ligam à sua igreja.
Desse dogma resulta que os fiéis não são salvos por um exer-
cício da sua livre vontade, nem por seus próprios merecimentos,
porque não há livre-arbítrio em face da soberania de Deus, mas por
efeito de uma graça que Deus concede a seus eleitos. Levando esse
argumento a todas as suas conseqüências lógicas, poder-se-ia dizer:
É Deus quem atrai os escolhidos e quem endurece os pecadores.
Tudo se faz pela predestinação divina. Adão, por conseguinte, não
pecou por seu livre-arbítrio. Foi Deus, absoluto soberano, que o
predestinou à queda.
Esse dogma conduz a tão deploráveis resultados, que o próprio
Calvino, que o afirmou com todas as suas conseqüências, o deno-
mina, falando dos homens predestinados à condenação eterna, um
“horrível decreto” (decretum horribile).”Mas Deus falou, acrescen-
ta, e a razão deve submeter-se”.
Deus falou! Onde e por quem falou ele? Em obscuros textos,
obra de uma imaginação perturbada.
E para impor tais opiniões, para as incutir nos espíritos, Calvi-
no não recuou nem ante o emprego da violência! A fogueira de
Servet no-lo atesta.
Lógica terrível que, procedendo de verdades mal compreendi-
das, como dissemos mais acima, confunde-se em seus próprios
sofismas e recorre ao ferro e ao fogo, com o fim de se impor e
resolver questões inextricáveis, com o fim de elucidar um imbró-
glio criado pelas paixões e pela ignorância.
“Como – redargüia Pelágio a Agostinho – nos perdoa Deus
nossos pecados e imputar-nos-ia os de outrem?”
*
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
87
“Só há um Deus – diz S. Paulo69 e um só mediador70 entre
Deus e os homens, que é Jesus-Cristo, homem.”
Mediador, isto é, intermediário, médium incomparável, traço
de união que liga a Humanidade a Deus, eis o que é Jesus! Media-
dor e não redentor, porque a idéia de redenção não suporta exame.
E contrária à justiça divina; é contrária à ordem majestosa do Uni-
verso. Entre os mundos que rolam no espaço, a Terra não é o único
lugar de dor. Outras estâncias há de sofrimento, em que as almas,
cativas na matéria, aprendem, como aqui, a dominar seus vícios e
adquirir qualidades que lhes permitirão o acesso a mundos mais
felizes.
Se o sacrifício de Jesus fosse necessário para salvar a Humani-
dade terrestre, Deus deveria o mesmo socorro a outras Humanida-
des desgraçadas. Sendo, porém, ilimitado o número dos mundosinferiores em que dominam as paixões materiais, o filho de Deus
seria, por isso mesmo, condenado a sofrimentos e sacrifícios infini-
tos. É inadmissível semelhante hipótese.
Com o seu sacrifício, dizem outros teólogos, Jesus “venceu o
pecado e a morte, porque a morte é o salário do pecado e uma
tremenda desordem na Criação”.71
Entretanto, morre-se depois da vinda de Jesus, como antes dele
se morria. A morte, considerada por certos cristãos como conse-
qüência do pecado e punição do ser, é, todavia, uma lei natural e
uma transformação necessária ao progresso e elevação da alma.
69 I Epístola a Timóteo, II, 5.
70 Essa expressão "mediador" é, além disso, aplicada três vezes a Jesus
pelo autor da "Epístola aos Hebreus".
71 De Pressensé, Jesus Cristo, seu tempo, sua vida, sua obra, pág. 654.
Encontra-se essa opinião em muitos autores católicos.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
88
Não pode ser elemento de desordem no Universo. Julgá-la por esse
modo não é insurgir-se contra a divina sabedoria?
É assim que, partindo de um ponto de vista errôneo, os homens
da Igreja chegam às mais estranhas concepções. Quando afirmam
que, por sua morte, Jesus se ofereceu a Deus em holocausto, para o
resgate da Humanidade, não equivale isso a dizer, na opinião dos
que crêem na divindade do Cristo, que se ofereceu a si mesmo? E
do que terá ele resgatado os homens? Não é das penas do inferno,
pois que todos os dias nos repetem que os indivíduos que morrem
em estado de pecado mortal são condenados às penas eternas.
A palavra pecado não exprime, em si mesma, senão uma idéia
confusa. A violação da lei acarreta a cada ser um amesquinhamento
moral, uma reação da consciência, que é uma causa de sofrimento
íntimo e uma diminuição das percepções animais. Assim, o ser
pune-se a si mesmo. Deus não intervém, porque Deus é infinito;
nenhum ser seria capaz de lhe produzir o menor mal.
Se o sacrifício de Jesus resgatou os homens do pecado, porque,
então, inda os batizam? Essa redenção, em todo caso, não se pode
estender senão unicamente aos cristãos, aos que têm conhecido e
aceitado a doutrina do Nazareno. Teria ela, pois, excluído da sua
esfera de ação a maior parte da Humanidade? Existem ainda hoje
na Terra milhares, milhões de homens que vivem fora das igrejas
cristãs, na ignorância das suas leis, privados desse ensino, sem cuja
observância, dizem, “não há salvação”. Que pensar de opiniões tão
opostas aos verdadeiros princípios de amor e justiça que regem os
mundos?
Não, a missão do Cristo não era resgatar com o seu sangue os
crimes da Humanidade. O sangue, mesmo de um Deus, não seria
capaz de resgatar ninguém. Cada qual deve resgatar-se a si mesmo,
resgatar-se da ignorância e do mal. Nada de exterior a nós poderia
fazê-lo. É o que os Espíritos, aos milhares, afirmam em todos os
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
89
pontos do mundo. Das esferas de luz, onde tudo é serenidade e paz,
desceu o Cristo às nossas obscuras e tormentosas regiões, para
mostrar-nos o caminho que conduz a Deus: tal o seu sacrifício. A
efusão de amor em que envolve os homens, sua identificação com
eles, nas alegrias como nos sofrimentos, constituem a redenção que
nos oferece e que somos livres de aceitar. Outros, antes dele, havi-
am induzido os povos ao caminho do bem e da verdade. Nenhum o
fizera com a singular doçura, com a ternura penetrante que caracte-
riza o ensino de Jesus. Nenhum soube, como ele, ensinar a amar as
virtudes modestas e escondidas. Nisso reside o poder, a grandeza
moral do Evangelho, o elemento vital do Cristianismo, que sucum-
be ao peso dos estranhos dogmas de que o cumularam.
*
O dogma das penas eternas deve prender-nos a atenção. Arma
temível nas mãos do padre, nas épocas de fé, ameaça suspensa
sobre a cabeça do homem, ele foi para a Igreja um instrumento
incomparável de domínio.
Donde procede essa concepção de Satanás e do inferno? Uni-
camente das noções falsas que o passado nos legou a respeito de
Deus. Toda a Humanidade primitiva acreditou nos deuses do mal,
nas potências das trevas, e essa crença traduziu-se em lendas de
terror, em imagens pavorosas, que se transmitiram de geração a
geração, e inspirando grande número de mitos religiosos. As forças
misteriosas da Natureza, em suas manifestações, lançavam o terror
no espírito dos homens primitivos.
Em torno de si, na sombra, em toda a parte, julgavam ver for-
mas ameaçadoras, prontas a agarrá-los, a se apoderar deles.
Essas potências malignas foram personificadas, individualiza-
das pelo homem. Desse modo, criou ele os deuses do mal. E essas
remotas tradições, legado das raças desaparecidas, perpetuadas de
idade em idade, encontram-se ainda nas atuais religiões.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
90
Daí Satanás, o eterno revoltado, o inimigo eterno do bem, mais
poderoso que o próprio Deus, pois que reina como senhor no mun-
do, e as almas criadas para a felicidade caem, na maior parte, de-
baixo do seu jugo; – Satanás, a astúcia, a perfídia personificadas;
depois, o inferno e suas torturas requintadas, cuja descrição faz
desvairarem as imaginações simples.
Assim é que, em todos os domínios do pensamento, o homem
terrestre substituiu as claras luzes da razão, que Deus lhe deu como
seguro guia, pelas quimeras da sua imaginação desnorteada.
É verdade que nossa época, motejadora e céptica, já não acre-
dita absolutamente no diabo; mas os padres não continuam menos,
por esse motivo, a ensinar a sua existência e a do inferno. De tem-
pos a tempos, pode-se ouvir, do alto do púlpito, a descrição dos
castigos reservados aos condenados, ou das façanhas de Satanás. E
não se trata já de modestas cátedras de aldeia: era sob as abóbadas
de Nossa Senhora de Paris, que o padre Janvier, na quaresma de
1907, pronunciava estas palavras:
“Imagina muita gente que o demônio não é mais que um sím-
bolo, uma figura literária que não corresponde a coisa alguma na
Criação, uma ficção poética, uma palavra que serve para designar o
mal e as paixões: é um erro. O demônio, na doutrina católica é um
ser perfeitamente real, uma personalidade distinta do resto da
Natureza, tendo vida, ação e domínio próprios. O que, porém, é
infinitamente mais temível é a ação ordinária, contínua, exercida
por Satanás na Criação, a intervenção real e oculta que tem no
curso dos sucessos e das estações, na germinação das plantas, no
desencadear dos ventos e das tempestades”.72
72 P Janvier, Explicação da moral católica. O vício e o pecado. - ver
também La libre Parole, 3 de novembro de 1907.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
91
Assim se atasca a Igreja nas doutrinas do passado. Continua a
proscrever a ciência e o conhecimento, a introduzir em todas as
coisas o demônio, até mesmo no domínio da moderna Psicologia.
Ameaça com as chamas eternas todo indivíduo que procura eman-
cipar-se de um Credo que a sua razão e consciência repudiam. Em
suas mãos, o Evangelho do amor se converteu num instrumento de
terror.
Justo é, sem dúvida, que a Igreja recomende prudência aos
seus fiéis; errada, porém, em lhes proibir as práticas espíritas, a
pretexto de que emanam do demônio. É, porventura, demônio o
Espírito que se confessa arrependido e pede preces? Demônio o
que nos exorta à caridade e ao perdão? Na maioria dos casos, em
lugar de ser essa personagem astuciosa e maligna descrita pela
Igreja, Satanás seria completamente destituído de bom senso, não
percebendo que trabalha contra si.
Se há maus espíritos, aos quais se poderia com razão aplicar
esse qualificativo, é preciso também não esquecer que esses demô-
nios são perfectíveis. São, por exemplo, os criminosos que a pena
de morte fazpassar para a outra vida, com a blasfêmia nos lábios e
o ódio no coração. Esses não cessam de dirigir contra os homens
sua maléfica influência, que, com mais forte razão, se há de fazer
sentir quando se apresentem nas sessões espíritas em que não haja,
para os afastar, um conjunto de vontades suficientemente enérgi-
cas.
Mas não basta refletir um momento na obra divina, para repelir
toda crença no demônio? Como admitir que o supremo foco do
Bem e do Belo, a inesgotável fonte de misericórdia e bondade,
tenha podido criar esse ser hediondo e malfazejo? Como acreditar
que Deus lhe tenha podido conceder, com a consciência do mal,
todo o poder sobre o mundo, e lhe tenha abandonado, como presa
fácil, toda a família humana? Não, Deus não podia criar a imensa
maioria de seus filhos para os perder, para fazer a sua desgraça
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
92
eterna; Deus não outorgou o poder a quem mais dele abusaria, ao
mais iníquo, ao mais perverso. Isso é inadmissível, indigno de uma
alma que crê na justiça e na bondade do Criador. Admitir Satanás e
o inferno eterno é insultar a Divindade. De duas uma: ou Deus
possui a presciência e soube, de antemão, quais os resultados da
sua obra, e, neste caso, executando-a, fez-se o carrasco de suas
criaturas; ou não previu esse resultado, não possui a presciência, é
falível como a sua própria obra, e então, proclamando a infalibili-
dade do papa, a Igreja o colocou superior a Deus. É com semelhan-
tes concepções que se induzem os povos ao cepticismo, ao materia-
lismo. A Igreja Romana com um tal princípio incorre nas mais
graves responsabilidades.
Quanto aos castigos reservados aos culpados, como sanção pe-
nal e para assegurar a execução da lei de justiça, não há necessida-
de de os criar imaginários.
Se repararmos em torno de nós, veremos que por toda parte, na
Terra, a dor nos espreita. Não é necessário sair deste mundo para
encontrar sofrimentos proporcionais a todas as faltas, condições
expiatórias para todos os culpados. Porque buscar o inferno em
regiões quiméricas? O inferno está em torno de nós. Qual o verda-
deiro sentido da palavra inferno? Lugar inferior! Ora, a Terra é um
dos mundos inferiores do Universo. O destino do homem aqui é
muitas vezes cruel, muito grande a soma dos seus males, para que
se devam tornar sombrias, por concepções fantásticas, as perspec-
tivas do futuro. Semelhantes idéias são um ultraje lançado a Deus.
Não pode haver eternos sofrimentos, mas unicamente sofrimentos
temporários, apropriados às necessidades da lei de evolução e de
progresso. O princípio das reencarnações sucessivas é mais eqüita-
tivo que a noção do inferno eterno; torna efetiva a justiça e a har-
monia do Universo. É no decurso de novas e penosas existências
terrestres que o culpado resgata o seu passado de crimes. A teia do
destino é tecida individualmente por nós, na trama das ações boas e
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
93
más, que todas em nós se refletem através dos tempos, com suas
conseqüências felizes ou funestas. É assim que cada qual prepara o
seu céu ou o seu inferno.
A alma, no período inferior de sua evolução, encerrada no cír-
culo das vidas terrestres, hesitante, incerta, oscilante entre diversas
atrações, ignorante dos grandiosos destinos que a esperam e do fim
da Criação, erra, fraqueja, abandona-se às paixões, às correntes
materiais que a arrebatam. Mas, pouco a pouco, pelo desenvolvi-
mento de suas forças psíquicas, de seus conhecimentos, de sua
vontade, a alma se eleva, liberta-se das influências inferiores e
paira nas regiões divinas.
Tempo virá em que o mal já não será a condição desta existên-
cia; em que os seres, purificados pelo sofrimento, depois de have-
rem recebido a longa educação dos séculos, deixarão a senda obs-
cura para se encaminharem à luz eterna. As Humanidades, vincula-
das pelos elos de uma íntima solidariedade e de uma afeição pro-
funda, caminharão de progresso em progresso, de perfeição em
perfeição, para o grande foco, para o alvo supremo que é Deus,
assim realizando essa obra do Pai, que não quer a perdição, mas a
felicidade e a elevação de todos os filhos.
*
O argumento principal dos defensores da teoria do inferno é
que a ofensa feita pelo homem, ser finito, a Deus, ser infinito, é,
por conseqüência, infinita e merece pena eterna. Ora, qualquer
matemático dirá que a relação de uma quantidade finita ao infinito
é nula. Poder-se-ia inverter o argumento e dizer que o homem,
finito e ignorante, não seria capaz de ofender o infinito, e que a sua
ofensa é nula em relação a este. Ele não pode fazer mal senão a si
mesmo, retardando a sua elevação e atraindo os sofrimentos que
toda ação culposa engendra.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
94
Estarão os chefes da Igreja realmente convencidos da existên-
cia do inferno eterno, não verão nele, de preferência, um ilusório
espantalho, necessário, porém, à conduta da Humanidade?
É o que se poderia crer, comentando as seguintes palavras de
S. Jerônimo, o tradutor da Vulgata:
... Tais são os motivos em que se apóiam os que querem fazer
compreender, que, depois dos suplícios e tormentos, haverá Conso-
lação, o que presentemente se deve ocultar àqueles a quem é útil o
temor, a fim de que, receando os suplícios, se abstenham de pecar.
(Quae nunc abscondenda sunt ab his quibus timor est utilis, ut,
dum suplicia reformidant, peceare desistant).73
É verdade que S. Jerônimo não hesitou em fazer figurar, no
texto do Evangelho segundo Mateus, estas expressões: “o fogo
eterno, o suplício eterno”. Mas as palavras hebraicas que assim
foram traduzidas não parece, de modo algum, terem o sentido que
os latinos lhes atribuíram.74
73 S. Jerônimo, Obras, edição beneditina de 1704, t. III, col. 514; S.
Jerônimo cita os seguintes textos: Romanos, XI, 25, 26, 32; Miquéias,
VII, 9, 19, etc.
74 A palavra eterno, que tão freqüentes vezes se encontra nas Escrituras,
parece não dever ser tomada ao pé da letra, mas como uma dessas ex-
pressões enfáticas, hiperbólicas, familiares aos orientais. É um erro
esquecer que tudo são símbolos e imagens em seus escritos. Quantas
promessas, pretensamente eternas, feitas ao povo hebreu ou a seus
chefes, não tiveram realização! Onde está essa terra que os israelitas
deviam possuir eternamente - in aeternum - (Pentateuco, passim). On-
de essas pedras do Jordão, que Deus anunciava deverem ser, para o
seu povo, um monumento eterno (Josué, VI, 7)? Onde essa descen-
dência de Salomão, que devia reinar eternamente em Israel (I Parali-
pom., XXII, 10), e tantas outras, idênticas promessas? Em todos esses
casos, a palavra eterno parece simplesmente significar: longa duração.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
95
Não pode ser esse o pensamento daquele que disse: “Deus não
quer que pereça um só desses pequeninos.” Estas palavras são
confirmadas pelos apóstolos:
“Deus quer que todos os homens se salvem e cheguem a ter o
conhecimento da verdade.” (S. Paulo, I Timóteo, II, 4)
“Deus é o salvador de todos os homens.” (S. Paulo, I Timóteo,
IV, 10.)
“Deus não quer que homem algum pereça, mas que todos se
convertam à penitência.” (S. Pedro, II Epístola, III, 9)
Muitos, entre os padres da Igreja, opinam no mesmo sentido.
Primeiro é o mestre de Orígenes, S. Clemente de Alexandria, que
diz:
“O Cristo Salvador opera finalmente a salvação de todos, e não
apenas a de alguns privilegiados. O soberano Mestre tudo dispôs,
quer em seu conjunto, quer em seus pormenores, para que fosse
atingido esse fim definitivo.”
Em seguida, é S. Gregório de Nissa que do modo mais formal
se pronuncia contra a eternidade das penas. A seu ver:O termo hebraico ôlam, traduzido por eterno, tem como raiz o verbo
âlam, ocultar. Exprime um período cujo fim se desconhece. O mesmo
acontece à palavra grega aion e à latina aeternitas. Tem esta como ra-
iz aetas, idade, Eternidade, no sentido em que o entendemos hoje, dir-
se-ia em grego aidios e em latim sempiternus, de semper, sempre.
(Ver abade J. Petit, Résurrection, de abril 1903). As penas eternas
significam então: sem duração limitada. Para quem não lhes vê o ter-
mo, são eternas. As mesmas formas de linguagem eram empregadas
pelos poetas latinos Horácio, Virgílio, Estácio e outros. Todos os mo-
numentos imperiais de que falam devem ser, diziam eles, de eterna
duração.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
96
“Há necessidade de que a alma imortal seja purificada das suas
máculas e curada de todas as suas enfermidades. As provações
terrestres têm por objetivo operar essa cura, que depois da morte se
completa, quando não pôde ser concluída nesta vida. Quando Deus
faz sofrer o pecador, não é por espírito de ódio ou de vingança;
quer reconduzir a alma a ele, que é a fonte de toda felicidade. O
fogo da purificação dura mais que um tempo conveniente e o único
fim de Deus é fazer definitivamente participar todos os homens dos
bens que constituem a sua essência.” 75
Em nossos dias é monsenhor Méric, diretor do Seminário de S.
Suplício, que longamente expõe em suas obras a teoria da mitiga-
ção dos sofrimentos. E a Igreja, sentindo talvez que a idéia de um
inferno eterno fez sua época, não se opôs à divulgação dessa tese.
Radica nas mesmas preocupações a noção do purgatório, termo
médio adotado pela Igreja, que recuou ante a enormidade das penas
eternas aplicadas a ligeiras faltas. A questão do purgatório é da
mais alta importância, podendo constituir um vínculo, um traço de
união entre as doutrinas católicas e as do moderno Espiritualismo.
No pensamento da Igreja Romana o purgatório é um lugar não
definido, indeterminado. Nada impede o católico de conceber os
sofrimentos purificadores da alma sob a forma de vidas planetárias
ulteriores, ao passo que o protestante ortodoxo, para adotar a noção
das vidas sucessivas, é obrigado a abrir mão de suas convicções,
em que o purgatório não é admitido.
Na maioria dos casos, o purgatório é a vida terrestre com as
provações que a acidentam. Os primeiros cristãos não o ignoravam.
A Igreja da Idade Média repeliu essa explicação, que teria acarre-
tado a afirmação da pluralidade das existências da alma e a ruína
75 Extraído do Exame critico das doutrinas da religião cristã, de Patrí-
cio Laroque. As palavras são citadas em grego.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
97
da instituição das indulgências – fonte de grandes proventos para
os pontífices romanos. Sabe-se quantos abusos daí se originaram.
Realmente, Satanás não passa de alegoria. Satanás é o símbolo
do mal. O mal, porém, não é um princípio eterno, coexistente com
o bem. Há de passar. O mal é o estado transitório dos seres em via
de evolução.
Não há nem lacuna nem imperfeição no Universo. A obra di-
vina é harmônica e perfeita. Dessa obra o homem não vê senão um
fragmento e, todavia, pretende julgá-la através de suas acanhadas
percepções. O homem, na vida presente, não é mais que um ponto
no tempo e no espaço. Para julgar a Criação, ser-lhe-ia preciso
abrangê-la inteiramente, medir a escala dos mundos que é chamado
a percorrer e a sucessão das existências que o aguardam no seio
dos séculos por vir. Esse vasto conjunto escapa às suas concepções;
daí os seus erros; daí a deficiência de suas apreciações.
Quase sempre o que chamamos o mal é apenas o sofrimento;
mas este é necessário, porque só ele conduz à compreensão. Por ele
aprende o homem a diferençar, a analisar suas sensações.
A alma é uma centelha projetada do eterno foco criador. É pelo
sofrimento que ela atinge a plenitude do seu brilho, a plena consci-
ência de si mesma. A dor é como a sombra que faz sobressair e
apreciar a luz. Sem a noite, acaso contemplaríamos as estrelas? A
dor quebra as algemas das fatalidades materiais e franqueia à alma
evasões para a vida superior.
Do ponto de vista físico, o mal, o sofrimento, são muitas vezes
coisas relativas e de pura convenção. As sensações variam ao
infinito, conforme as pessoas; agradáveis para uns, dolorosas para
outros. Há mundos muito diferentes do meio terrestre, nos quais
tudo seria penoso para nós, ao passo que outros homens podem
neles viver comodamente.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
98
Se fizermos abstração do acanhado meio em que vivemos, o
mal já nos não aparecerá como causa fixa, princípio imutável, mas
como efeitos passageiros variando com os indivíduos, transfor-
mando-se e atenuando-se com o seu aperfeiçoamento.
O homem, ignorante no começo de sua jornada, tem que de-
senvolver a inteligência e a vontade por meio de constantes esfor-
ços. Na luta que empenha contra a Natureza, a energia se lhe re-
tempera, o ser moral se afirma e engrandece. Graças a essa luta é
que se realiza o progresso e se efetua a ascensão da Humanidade,
subindo, de estância em estância, de degrau em degrau, para o bem
e o melhor, conquistando ela própria a sua preponderância sobre o
mundo material.
Criado feliz e perfeito, o homem teria ficado confundido na
perfeição divina; não teria podido individualizar o princípio espiri-
tual nele existente. Não teria havido no Universo nem trabalho,
nem esforços, nem progresso; nada, a não ser a imobilidade, a
inércia. A evolução dos seres seria substituída por triste e monóto-
na perfeição. Seria o paraíso católico.
Sob o látego da necessidade, sob o aguilhão da dor, o homem
caminha, avança, eleva-se e, de existência em existência, de pro-
gresso em progresso, chega a imprimir ao mundo o cunho do seu
domínio e inteligência.
O mesmo acontece com o mal moral. Como o mal físico, este
não é mais que um aspecto passageiro, uma forma transitória da
vida universal. O homem pratica o mal por ignorância, por fraque-
za, e os seus atos reagem contra ele. O mal é a luta que se trava
entre as potências inferiores da matéria e as potências superiores
que constituem o ser pensante, o seu verdadeiro “eu”. Do mal,
porém, e do sofrimento nascerão, um dia, a felicidade e a virtude.
Quando a alma tiver suplantado as influências materiais, será como
se para ela o mal nunca houvesse existido.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
99
Não é, pois, o inferno que luta contra Deus; não é Satanás que
arma as ciladas pelo mundo, não; é a alma humana que procura, na
sombra, o seu roteiro; ela que envida esforços por afirmar sua
personalidade progressiva e, depois de muitos desfalecimentos,
quedas e reerguimentos, domina os vícios, conquista a força moral
e a verdadeira luz. É assim que, lentamente, de idade em idade,
através do fluxo e refluxo das paixões, o progresso se acentua, o
bem se realiza.
O império do mal são os mundos inferiores, tenebrosos; é a
multidão das almas retardatárias que se agitam nas veredas do erro
e do crime, torvelinhando no círculo das existências materiais, e
que, ao atrito das provações, sob o látego da dor, emergem lenta-
mente desse pélago de sombra, de egoísmo e de miséria, para se
iluminarem aos raios da caridade e da ciência. Satanás é a ignorân-
cia, a matéria e suas grosseiras influências; Deus é o conhecimento,
a sublime claridade, da qual um raio ilumina toda consciência
humana.
A marcha da Humanidade se efetuará em demanda dos eleva-
dos cimos. O espírito moderno se libertará, cada vez mais, dos
preconceitos do passado. A vida perderá o aspecto cruel dos sécu-
los ferrenhos, para tornar-se o campo fecundo e pacífico, no qual o
homem trabalhará no desenvolvimento de suas faculdadese quali-
dades morais.
Lá não chegamos certamente, ainda; o mal na Terra não está
extinto; a luta não terminou. Os vícios e as paixões fermentam no
fundo da alma humana. Há que temer ainda conflitos terríveis e
tempestades sociais. Por toda parte, surdos ruídos, veementes
reivindicações se fazem ouvir.
A luta é necessária nos mundos da matéria, para arrancar o
homem ao seu torpor, aos seus grosseiros apetites, para preparar o
advento de uma nova sociedade. Como a centelha brota do atrito
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
100
das pedras de fuzil, assim, ao choque das paixões pode surgir um
ideal novo, uma forma superior da justiça, pela qual a Humanidade
modelará as suas instituições.
O homem moderno já sente aumentar em si a consciência do
seu papel e do seu valor. Em breve ele se sentirá vinculado ao
Universo, participando da sua vida imensa; reconhecer-se-á para
sempre cidadão do céu. Por sua inteligência, por sua alma, o ho-
mem saberá intervir, colaborar na obra universal; tornar-se-á cria-
dor por sua vez; far-se-á operário de Deus.
A nova revelação ter-lhe-á ensinado a conhecer-se, a conhecer
a natureza da alma, o seu mister e os seus destinos. Ela lhe atestará
o duplo poder que possui sobre o mundo da matéria e o do espírito.
Todas as incoerências, todas as aparentes contradições da obra
divina ser-lhe-ão esclarecidas. O que denominava mal físico e mal
moral, tudo o que se lhe figurava negação do bem, do belo, do
justo, se unificará nos contornos de uma obra majestosa e sólida,
na harmonia de sábias e profundas leis.
*
O homem verá desvanecer-se o sonho aterrador, o pesadelo da
condenação; elevará a alma até ao espaço em que se expande o
divino pensamento, até ao espaço de onde desce o perdão de todas
as faltas, o resgate de todos os crimes, a consolação para todas as
dores, até ao espaço radiante em que a misericórdia eterna assenta
o seu império.
As potências do inferno se dissiparão para sempre; o reino de
Satanás terá findado; a alma, liberta dos seus terrores, rir-se-á dos
fantasmas que tanto tempo a amedrontaram.
Deveremos falar da ressurreição da carne, dogma segundo o
qual os átomos do nosso corpo carnal, disseminados, dispersos por
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
101
mil novos corpos, devem reunir-se um dia, reconstituir nosso invó-
lucro e figurar no juízo final?
As leis da evolução material, a circulação incessante da vida, o
jogo das moléculas que, em inúmeras correntes, passam de forma
em forma, de organismo em organismo, tornam inadmissível essa
teoria.
O corpo humano constantemente se modifica; os elementos
que o compõem renovam-se completamente em alguns anos. Ne-
nhum dos átomos atuais da nossa carne se tornará a achar na ocasi-
ão da morte, por pouco que se prolongue nossa vida, e os que então
constituírem o nosso invólucro, serão dispersos aos quatro ventos
do infinito.
A maior parte dos padres da Igreja o entendiam de outro modo.
Conheciam eles a existência do perispírito, desse corpo fluídico,
sutil, imponderável, que é o invólucro permanente da alma, antes,
durante e depois da vida terrestre; denominavam-no corpo espiritu-
al. São Paulo, Orígenes e os sacerdotes de Alexandria afirmavam a
sua existência. Na sua opinião, os corpos dos anjos e dos escolhi-
dos, formados com esse elemento sutil, eram “incorruptíveis, del-
gados, tênues e soberanamente ágeis”.76 Por isso não atribuíam eles
a ressurreição senão a esse corpo espiritual, o qual resume, em sua
substância quintessenciada, todos os invólucros grosseiros, todos
os revestimentos perecíveis que a alma tomou, depois abandonou,
em suas peregrinações através dos mundos.
O perispírito, penetrando com a sua energia todas as matérias
passageiras da vida terrestre, é de fato o corpo essencial.
A questão achava-se, por esse modo, simplificada. Essa crença
dos primeiros padres no corpo espiritual lançava, além disso, luz
vivíssima sobre o problema das manifestações ocultas.
76 Ver nota complementar n° 9.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
102
Tertuliano diz (De carne Christi, cap. VI):
“Os anjos têm um corpo que lhes é próprio e que se pode
transfigurar em carne humana; eles podem, por certo tempo, tornar-
se perceptíveis aos homens e com eles comunicar visivelmente.”
Torne-se extensivo aos espíritos dos mortos o poder que Tertu-
liano atribui aos anjos e aí teremos explicado o fenômeno das
materializações e das aparições!
Por outro lado, se consultarmos com atenção as Escrituras, no-
taremos que o sentido grosseiro atribuído à ressurreição, em nossos
dias, pela Igreja, não se justifica absolutamente. Aí não encontra-
remos a expressão: ressurreição da carne, mas antes: ressuscitar
dentre os mortos (a mortuis resurgere) e, num sentido mais geral: a
ressurreição dos mortos (resurrectio mortuorum). É grande a dife-
rença.
Segundo os textos, a ressurreição tomada no sentido espiritual
é o renascimento na vida de além-túmulo, a espiritualização da
forma humana para os que dela são dignos, e não a operação quí-
mica que reconstituísse elementos materiais; é a purificação da
alma e do seu perispírito, esboço fluídico que conforma o corpo
material para o tempo de vida terrestre.
É o que o apóstolo se esforçava por fazer compreender:77 “Se-
meia-se o corpo em corrupção, ressuscitará em incorrupção; se-
meia-se em vileza, ressuscitará em glória; semeia-se em fraqueza,
ressuscitará em vigor. E semeado o corpo animal, ressuscitará o
corpo espiritual. Eu vo-lo digo, meus irmãos, a carne e o sangue
não podem possuir o reino de Deus, nem a corrupção possuirá a
incorruptibilidade.”
77 I Epístola aos Coríntios XV, 42-50 (traduzido do texto grego); ver
também XV, 52-56; Epístola aos Filipenses, III, 21; S. João, V, 28 e
29; S. Inácio, Epístola aos Trallianos, Ix.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
103
Muitos teólogos adotam essa interpretação, dando aos corpos
ressuscitados propriedades desconhecidas da matéria carnal, fazen-
do-os luminosos, ágeis como Espíritos, sutis como o éter e impas-
síveis.78
Tal o verdadeiro sentido da ressurreição dos mortos, como os
primeiros cristãos a entendiam. Se vemos, em uma época posterior,
aparecer em certos documentos, e em particular no símbolo apócri-
fo dos apóstolos, a expressão “ressurreição da carne”, é isso sem-
pre no sentido da reencarnação79 – isto é, de volta à vida material –
ato pelo qual a alma reveste uma nova carne para percorrer o cam-
po de suas existências terrestres.
*
O Cristianismo, sob o tríplice aspecto que revestiu em nossos
dias – catolicismo romano, protestantismo ortodoxo, ou religião
grega –, não se constituiu integralmente em um só momento, como
acreditam muitos, mas lentamente, através dos séculos, no meio de
hesitações, de lutas encarniçadas e de profundas comoções políti-
co-sociais. Cada dogma que se edificava sobre outro vinha afirmar
o que os anteriores tempos haviam repelido. O próprio século XIX
viu promulgados dois dogmas dos mais contestados e controverti-
dos: Os da imaculada conceição e da infalibilidade papal, dos quais
disse um padre católico de grande merecimento: “inspiram muito
pouca veneração, quando se viu como são feitos”.80
Entretanto, essa obra dos séculos, de que a tradição eclesiástica
fez uma doutrina ininteligível, teria podido tornar-se o implemento
de uma religião racional, de conformidade com os dados da Ciên-
78 Abade Petit, A renovação religiosa, págs. 4 e 53. Ver também nota
complementar nº 9.
79 Abade Petit, obra citada, pág. 53.
80 Padre Marchal, O Espírito Consolador. pág. 24.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo104
cia e as exigências do senso comum, se, em lugar de tomar cada
dogma ao pé da letra, tivessem querido ver uma imagem, um sím-
bolo transparente.
Despojando o dogma cristão do seu caráter sobrenatural, po-
der-se-ia quase sempre encontrar nele uma idéia filosófica, um
ensinamento substancial.
A Trindade, por exemplo, definida pela Igreja “um só Deus em
três pessoas”, não seria, daquele ponto de vista, senão um conceito
do espírito representando a Divindade sob três aspectos essenciais:
a Lei viva e imutável é o Pai; a Razão ou sabedoria eterna é o
Filho; o Amor, potência criadora e fecundante é o Espírito-Santo.
A encarnação do Cristo é a divina sabedoria descendo do céu à
Humanidade, nela tomando corpo para constituir um tipo de per-
feição moral, oferecido como exemplo aos homens, que ele iniciou
na grande lei do sacrifício.
O pecado original, a culpa de que o homem tem a responsabi-
lidade, é a de suas anteriores existências que lhe cumpre extinguir
por seus méritos, resignação e intrepidez nas provações.
Assim se poderiam explicar de modo simples, claro, racional,
todos os antigos dogmas do Cristianismo, os que procedem da
doutrina secreta ensinada nos primeiros séculos, cuja chave se
perdeu e cujo sentido ficou desconhecido.
Quanto aos dogmas modernos, neles não se pode ver mais que
um produto da ambição sacerdotal. Não foram promulgados senão
para tornar mais completa a escravização das almas.
Por profundo, porém, que seja o pensamento filosófico, oculto
sob o símbolo, ele não bastaria, doravante, para uma restauração
das crenças humanas. As leis superiores e os destinos da alma nos
são revelados por vozes muito mais autorizadas que as dos antigos
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
105
pensadores: são as dos seres que habitam o espaço e vivem dessa
vida fluídica, que há de um dia ser a nossa.
Essa revelação há de servir de base às crenças do futuro, por-
que oferece brilhante demonstração dessa outra vida de que a alma
tem sede, desse mundo espiritual a que ela aspira, e que até agora
as religiões lhe apresentaram sob formas tão incompletas ou qui-
méricas.
*
A explicação racional dos dogmas pode ser estendida aos sa-
cramentos, instituições respeitáveis, consideradas como figuras
simbólicas, como meios de adestramento moral e disciplina religio-
sa, mas que se não poderiam tomar ao pé da letra, no sentido im-
posto pela Igreja.
O que dissemos do pecado original nos conduz a considerar o
batismo como simples cerimônia iniciática, ou de consagração,
porque a água é impotente para limpar de suas máculas a alma.
A confirmação, ou imposição das mãos é o ato de transmissão
dos dons fluídicos, do poder do apóstolo a outra pessoa, que ele
assim colocava em relação com o invisível.81 Esse poder não se
justifica senão por merecimentos adquiridos no decurso de anterio-
res existências.
A penitência e a remissão dos pecados deram origem à confis-
são, pública a princípio e feita a outros cristãos, ou diretamente a
Deus; depois auricular, na Igreja Católica, e dirigida ao padre. Este,
constituído árbitro exclusivo, julgou indispensável esse meio para
se esclarecerem e discernirem os casos em que era merecida a
absolvição. Pode, ele, porém, pronunciar-se jamais com segurança?
A contrição do penitente, diz a Igreja, é necessária. Mas, como
81 Atos, VIII, 17; XIX, 6, etc.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
106
assegurar seja suficiente e verdadeira essa contrição? A decisão do
padre decorre da confissão das faltas; é sempre certo que essa
confissão seja completa?
Se consultarmos todos os textos em que se funda a instituição
da confissão82 neles só encontramos uma coisa: é que o homem
deve reconhecer as ofensas cometidas contra o próximo; é que ele
deve confessar diante de Deus as suas faltas. Desses textos antes
resulta esta consideração: a consciência individual é sagrada; só
depende de Deus diretamente. Nada aí autoriza a pretensão do
padre, de se erigir em julgador.
Que diz S. Paulo, falando da comunhão e dos que dela são
dignos?
“Examine-se, pois, a si mesmo o homem.” (I Epístola aos Co-
ríntios, XI, 28)
Ele guarda silêncio no que respeita à confissão, em nossos dias
considerada indispensável em circunstância equivalente. S. João
Crisóstomo, em um caso semelhante, diz:
“Revelai a Deus vossa vida; confessai vossos pecados a Deus;
confessai-os ao vosso juiz, suplicando-lhe, senão com a voz, ao
menos mentalmente, e suplicai-lhe de tal sorte que ele vos perdoe.”
(Homília. XXXI, sobre a Epístola aos Hebreus.)
A confissão auricular nunca foi praticada nos primeiros tempos
do Cristianismo; não foi instituída por Jesus, mas pelos homens.
Quanto à remissão dos pecados, deduzida destas palavras do
Cristo: “O que for ligado na terra será ligado nos céus”, parece que
este modo de exprimir se aplica, de preferência, aos hábitos, aos
82 Mateus, III, 6; Lucas, XVIII, 13; Tiago, Epístola, V, 16; João, I Epís-
tola, I, 9; etc.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
107
apetites materiais contraídos pelo Espírito durante a vida terrestre,
e que o prendem, fluidicamente à Terra depois da morte.
Vem depois a Eucaristia, ou presença real do corpo e do san-
gue de Jesus-Cristo, a hóstia consagrada, o sacrifício da cruz todos
os dias renovado sobre os milhares de altares da catolicidade, à voz
do padre, e com absorção pelos fiéis, do corpo vivo e sangrento do
Cristo, segundo a fórmula do catecismo do concílio de Trento:
“Não é somente o corpo de Jesus-Cristo que se contém na Eu-
caristia, com tudo o que constitui um verdadeiro corpo, como os
ossos e os nervos; é inteiramente o próprio Jesus-Cristo.”
Donde provém esse mistério afirmado pela Igreja? De palavras
de Jesus, tomadas ao pé da letra, e que tinham caráter puramente
simbólico. Esse caráter, ao demais, é claramente indicado na frase
por ele acrescentada: “Fazei isto, em memória de mim”.83
Com isso afasta o Cristo qualquer idéia de presença real. Não
pretendeu, evidentemente, falar senão do seu corpo espiritual,
personificando o homem regenerado pelo espírito de amor e cari-
dade. A comunhão entre o ser humano e a natureza divina se opera
pela união moral com Deus; ela se realiza por enérgicos surtos da
alma para seu Pai, por aspirações constantes ao divino foco. Toda
cerimônia material é vã, se não corresponde a um estado elevado
do coração e do pensamento. Preenchidas essas condições, estabe-
lece ao contrário, como ao começo acontecia, uma relação misteri-
osa entre o homem fervoroso e o mundo invisível. Influências
magnéticas baixam a esse homem e à assembléia da qual faz parte,
e muitos experimentam seus benefícios.
O culto religioso é uma legítima homenagem prestada à Oni-
potência; é a elevação da alma para o seu Criador, a relação natural
e essencial do homem com Deus. As práticas desses cultos são de
83 Lucas, XXII, 19; I Cor., XI, 23-25.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
108
utilidade; as aspirações que despertam, a poesia consoladora que
daí deriva, são um sustentáculo para o homem, uma proteção con-
tra as suas próprias paixões. Para falar, porém, ao espírito e ao
coração do crente, deve o culto ser sóbrio em suas manifestações;
deve renunciar a qualquer ostentação de riqueza material, sempre
prejudicial ao recolhimento e à oração; não deve ceder o menor
lugar às superstições pueris. Simples e grande em suas formas,
deve dar a impressão da divina majestade.
Nas épocas remotas, o culto exterior quase sempre ultrapassou
os limites que lhe assina uma fé pura e elevada. Induzido pelo
fanatismo religioso resultante da sua inferioridademoral e da sua
ignorância, o homem ofereceu à Divindade sanguinolentos sacrifí-
cios; o padre encerrou o espírito das gerações em trama de terrifi-
cantes cerimônias.
Mudaram-se os tempos; a inteligência se desenvolveu; suavi-
zaram-se os costumes; mas a opressão sacerdotal manifesta-se
ainda em nossos dias, nesses ritos sob os quais a idéia de Deus se
oculta e obscurece, nesse cerimonial cujo esplendor e luxo subju-
gam os sentidos e desviam o pensamento do elevado fim a que
devera encaminhar-se. Não há, sob esse fausto, nessas brilhantes
pompas do Catolicismo, um espírito de domínio que tudo procura
invadir, enlaçar, e que, sob essas diferentes formas, com tais práti-
cas exteriores se afasta, cada vez mais, do verdadeiro ideal cristão?
É necessário, é urgente que o culto rendido a Deus volte a ser
simples e austero em seu princípio, como em suas manifestações.
Quantos progressos se realizariam se o culto, praticado na família,
permitisse a todos os seus membros, reunidos e em recolhimento,
elevar, num mesmo impulso de fé, pensamentos e corações para o
Eterno; se, em determinadas épocas, todos os crentes se reunissem
para ouvir, de uma voz autorizada, a palavra da verdade! Então, a
doutrina de Jesus, melhor compreendida, seria amada e praticada; o
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
109
culto, restituído ao seu caráter simples e sincero, exerceria ação
eficacíssima nas almas.
A despeito de tudo, o culto romano se obstina em conservar
formas adotadas das antigas religiões orientais, formas que nada
mais dizem ao coração e são para os fiéis um hábito rotineiro, sem
influencia em sua vida moral. Persiste em dirigir-se a Deus, há dois
mil anos, em língua que não mais se compreende, com palavras
que os lábios murmuram, mas cujo sentido já se não percebe.
Todas essas manifestações tendem a desviar o homem do estu-
do aprofundado e da reflexão que nele desenvolvessem a vida
contemplativa. As longas orações, o cerimonial pomposo, absor-
vem os sentidos, mantêm a ilusão e habituam o pensamento a
funcionar mecanicamente, sem o concurso da razão.
Todas as formas do culto romano são uma herança do passado.
Suas cerimônias, seus vasos de ouro e prata, os cânticos, a água
lustral, são legados do Paganismo. Do Bramanismo tomaram o
altar, o fogo sagrado que nele arde, o pão e o licor de soma consa-
grados à Divindade. Do Budismo copiaram o celibato dos padres e
a hierarquia sacerdotal.
Uma lenta substituição se produziu, na qual se encontram os
vestígios das crenças desaparecidas. Os deuses pagãos tornaram-se
demônios. As divindades dos fenícios e dos assírios:
Baal-Zebud (Belzebu), Astarot, Lúcifer, foram transformados
em potências infernais. Os demônios do Platonismo, que eram
Espíritos familiares, tornaram-se diabos. Dos heróis, das persona-
gens veneradas na Gália, na Grécia, na Itália, fizeram santos. Con-
servaram as festas religiosas dos antigos povos, dando-lhes apenas
formas diferentes, como a dos Mortos. Por toda parte enxertaram
no antigo culto um culto novo, que era a sua reprodução sob outros
nomes. Os próprios dogmas cristãos se encontram na Índia e na
Pérsia.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
110
O Zendavestá84 como a doutrina cristã, contém as teorias da
queda e da redenção, a dos anjos bons e maus, a desobediência
inicial do homem e a necessidade da salvação mediante a graça.
Sob esse amontoado de formas materiais e concepções enve-
lhecidas, no meio desse incômodo legado de religiões extintas, que
constitui o Cristianismo moderno, tem-se dificuldade em reconhe-
cer o pensamento do seu fundador. Os autores do Evangelho não
previram, decerto, nem os dogmas, nem o culto, nem o sacerdócio.
Nada de semelhante se encontra no pensamento evangélico. Nin-
guém foi menos imbuído do espírito sacerdotal do que Jesus; nin-
guém foi menos afeiçoado às formas, às práticas exteriores. Tudo
nele é sentimento, elevação do pensamento, pureza do coração,
simplicidade.
Nesse ponto, seus sucessores desvirtuaram completamente as
suas intenções. Induzidos pelos instintos materiais que na Humani-
dade predominam, sobrecarregaram a religião cristã de um pompo-
so aparato, sob o qual foi sufocada a idéia máter.
“Mas vós não queirais ser chamados mestres”,85 dissera Jesus,
e os papas se fazem chamar Santidade e consentem em ser incen-
sados. Esqueceram o exemplo do apóstolo Pedro, quando ao
centurião Cornélio, prosternado a seus pés, advertia: “Levanta-te,
que eu também sou homem!”.86 Já não consideram que, à seme-
lhança do Mestre, deveriam ter permanecido mansos e humildes de
coração; o orgulho os avassalou. Na Igreja se constituiu uma impo-
nente hierarquia, fundada não já nos dons espirituais, como nos
primeiros tempos, mas numa autoridade puramente humana. A
influência do Alto, única que dirigia a primitiva Igreja, foi sendo
pouco a pouco substituída pelo princípio de obediência passiva às
84 Emílio Burnouf, A ciência das religiões, pág. 222.
85 Mateus XXIII, 8.
86 Atos, X, 26.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
111
substituída pelo princípio de obediência passiva às regras fixadas.
Cedo ou tarde, porém, o pensamento do Mestre, restituído à sua
pureza primitiva, fulgirá com um brilho novo. As formas religiosas
passarão; as instituições humanas se hão de desmoronar; a palavra
do Cristo viverá eternamente para fortalecer as almas e regenerar
as sociedades.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
112
8
Decadência do Cristianismo
Dezenove séculos decorreram desde os tempos do Cristo, de-
zenove séculos de autoridade para a Igreja, dos quais doze de poder
absoluto. Quais, na hora presente, as conseqüências do seu ensino?
O Cristianismo tinha por missão recolher, explicar, difundir a
doutrina de Jesus, dela fazendo o estatuto de uma sociedade melhor
e mais feliz. Soube ela desempenhar essa grande tarefa? “Julga-se a
árvore pelos frutos”, diz a Escritura. Reparai na árvore do Cristia-
nismo. Verga ela ao peso de frutos de amor e de esperança?
A árvore, indubitavelmente, conserva-se sempre gigantesca,
mas, na ramaria, quantos galhos não foram decepados, mutilados;
quantos outros não secaram, não ficaram infecundos! O peregrino
da vida se detém, exausto, à sua sombra, mas é em vão que aí
procura o repouso da alma, a confiança, a força moral necessária
para continuar o caminho. Ele aspira a sombras mais propícias;
apetecem-lhe mais saborosos alimentos; instintivamente o seu
olhar explora o horizonte.
Na hora atual, neste século de progresso, o homem ainda nada
sabe do futuro, da sorte que o aguarda no fim da sua estância neste
mundo. A fé na imortalidade é fraquíssima em muitos dos que se
inculcam discípulos do Cristo; por vezes, as suas esperanças vaci-
lam ao sopro glacial do cepticismo. Os fiéis lançam no túmulo os
seus mortos e, com as marteladas a pregar o esquife, a dúvida
sombria lhes pesa na alma e a confrange.
O padre conhece a sua fraqueza; ele sente-se frágil, sujeito ao
erro como os que têm a pretensão de dirigir, e, se não estivessem
em causa a sua dignidade e situação material, reconheceria a sua
incapacidade, deixaria de ser um cego condutor de cegos. Porque
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
113
aquele que, nada sabendo da vida futura e das suas verdadeiras leis,
erige-se em diretor dos outros, torna-se aquele homem de que fala
o Evangelho:
“Se um cego guia outro, vêm ambos a cair no barranco” (Ma-
teus., XV, 14).
Fez-se a obscuridade no santuário. Não há um único bispo que
pareça conhecer, acerca das condições da vida de além-túmulo, o
que sabia o menor iniciado dos antigos tempos, o diácono mais
humilde da primitiva Igreja.
Fora, imperam a dúvida, a indiferença, o ateísmo. O ideal cris-
tãoperdeu a sua influência sobre o povo; a vida moral se enfraque-
ceu. A sociedade, ignorante do elevado objetivo da existência,
atira-se com frenesi à fruição dos gozos materiais. Um período de
perturbação e decomposição se iniciou, período que conduziria ao
abismo e à ruína se, já agora, confusamente, não começasse um
novo ideal a assomar e esclarecer as inteligências.
De que procede ao atual estado de coisas?
Durante doze séculos a Igreja dominou, formou a seu talante a
alma humana e toda a sociedade. Em sua mão se concentravam
todos os poderes. Todas as autoridades residiam nela, ou dela
procediam. Ela imperava sobre os espíritos como sobre os corpos;
imperava pela palavra e pelo livro, pelo ferro e pelo fogo. Era
senhora absoluta do mundo cristão; nenhum freio, nenhum marco
limitava a sua ação. Que fez ela dessa sociedade? Queixa-se da sua
corrupção, do seu cepticismo, dos seus vícios. Esquece-se de que,
acusando-a, acusa-se a si mesma? Essa sociedade é obra sua; a
verdade é que ela foi impotente para a dirigir e melhorar. A socie-
dade corrompida e céptica do século XVIII saiu de suas mãos.
Foram os abusos, os excessos, os erros do sacerdócio que determi-
naram o seu estado de espírito. Foi a impossibilidade de crer nos
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
114
dogmas da Igreja, o que impeliu a Humanidade para a dúvida e
para a negação.
O materialismo penetrou até à medula, no corpo social. Mas de
quem é a culpa? Se as almas tivessem encontrado na religião, tal
como lhes era ensinada, a força moral, as consolações, a direção
espiritual de que necessitavam, ter-se-iam afastado dessas igrejas
que em seus poderosos braços embalaram tantas gerações? Teriam
elas deixado de crer, de amar e de esperar?
A verdade é que o ensino da Igreja não conseguiu satisfazer as
inteligências e as consciências. Não pôde dominar os costumes; por
toda parte lançou a incerteza, a perturbação do pensamento, de que
proveio a hesitação no cumprimento do dever e, para muitos, o
aniquilamento de toda esperança.
Se, no auge do seu poderio, a Igreja não conseguiu regenerar a
Humanidade, como o poderia hoje fazer? Ah! talvez, se abando-
nasse os seus palácios, as suas riquezas, o seu culto faustoso e
teatral, o ouro e a púrpura; se, cobertos de burel, com o crucifixo
na mão, os bispos, os príncipes da Igreja, renunciando aos bens
materiais e tornando-se como o Cristo, sublimes vagabundos,
fossem pregar às multidões o verdadeiro evangelho da paz e do
amor, então talvez a Humanidade acreditasse neles. Não se mostra
disposta a Igreja Romana a desempenhar esse papel; o espírito do
Cristo parece cada vez mais abandoná-la. Nela quase não resta
senão uma forma exterior, uma aparência, sob a qual já não existe
mais que o cadáver de uma grande idéia.
As igrejas cristãs, em seu conjunto, não subsistem senão pelo
que nelas resta de moral evangélica; sua concepção do mundo, da
vida, do destino, é simplesmente letra morta. Que pensar, com
efeito, e que dizer de um ensino que forçou os homens a crer, a
afirmar, durante séculos, a imobilidade da Terra e a criação do
mundo em seis dias? Que pensar de uma doutrina que vê na ressur-
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
115
reição da carne o único meio de restituir à vida os mortos? Que
dizer dessa crença que pretende deverem os átomos do nosso cor-
po, há tanto tempo dispersos, reunir-se um dia? Em presença dos
novos dados que todo dia vêm esclarecer o problema da sobrevi-
vência, tudo isso não é mais que um sonho de criança. O mesmo
acontece com a idéia de Deus. A mais grave censura que se pode
arrogar ao ensino das igrejas incide no fato de haver falseado,
desnaturado a idéia de Deus, tornando-a por isso odiosa a muitís-
simos espíritos. A Igreja Romana sempre impôs o temor de Deus às
multidões. Havia nisso um sentimento necessário para realizar o
seu plano de domínio, para submeter a Humanidade semibárbara ao
princípio da autoridade, mas um sentimento perigoso, porque,
depois de haver feito por muito tempo escravos, acabou por susci-
tar os revoltados – sentimento nocivo, esse do medo, que, depois
de ter levado o homem a temer, o levou a odiar; que o ensinou a
não ver no poder supremo senão o Deus das punições terríveis e
das eternas penas, o Deus em cujo nome se levantaram os cadafal-
sos e as fogueiras, em cujo nome correu o sangue nas salas de
tortura. Daí se originou essa reação violenta, essa furiosa negação,
esse ódio à idéia de Deus, do Deus carrasco e déspota, ódio que se
traduz por esse grito que hoje em dia ressoa em toda parte, em
nossos lares, em nossas praças, em nossas folhas públicas: nem
Deus, nem Senhor!
E, se a isso acrescentarmos a terrível disciplina imposta aos fi-
éis pela Igreja da Idade Média, os jejuns, as macerações, o temor
perpétuo da condenação, os exagerados escrúpulos, sendo um
olhar, um pensamento, uma palavra delituosa, passíveis de penas
do inferno, compreendereis que ideal sombrio, que regime de terror
fez a Igreja pesar durante séculos sobre o mundo, compelindo-o a
renunciar a tudo o que constitui a civilização, a vida social, para
não cuidar senão da salvação pessoal, com desprezo das leis natu-
rais, que são as leis divinas.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
116
Ah! Não era isso o que ensinava Jesus, quando falava do Pai,
quando afirmava este único, este verdadeiro princípio do Cristia-
nismo – o amor, sentimento que fecunda a alma, que a reergue de
todo o abatimento, franqueia os umbrais às potências afetivas que
ela encerra, sentimento de que ainda pode surgir a renovação, a
regeneração da Humanidade.
Porque nós não podemos conhecer Deus e dele aproximar-nos
senão pelo amor; só o amor atrai e vivifica. Deus é todo amor e
para o compreender é necessário desenvolver em nós esse princípio
divino. É preciso cessar de viver na esfera do “eu” para viver na
esfera do divino, que abrange todas as criações. Deus está em todo
homem que sabe amar. Em amar e cultivar o que há de divino em
nós e na Humanidade é que consiste o segredo de todo progresso,
de toda elevação. Escrito está: “Amarás a Deus sobre todas as
coisas e ao próximo como a ti mesmo”.
Foi assim que as grandes almas cristãs se elevaram a sublimes
eminências. Foi assim que os Vicentes de Paulo, os Franciscos de
Assis e alguns outros puderam realizar obras que fazem a admira-
ção dos séculos. Sua acrisolada caridade não era inspirada pelo
dogma católico: no Evangelho é que esses insignes Espíritos hauri-
ram a fé no amor que os animava.
Se tivessem prevalecido os preceitos evangélicos, o Cristia-
nismo estaria no apogeu do seu poder e da sua glória. Eis porque
será preciso voltar aos puros ensinamentos de Jesus, se quiserem
reerguer e salvar a religião; porque, se a religião do poder tem sua
grandeza, maior é a do amor; se a religião da justiça é grande,
maior é a do perdão e da misericórdia. Aí estão os verdadeiros
princípios e a base real do Cristianismo.
Com a concepção do mundo e da vida sucedeu o mesmo que
com a idéia de Deus. Por muito tempo a Igreja impôs às inteligên-
cias essa velha teoria que fazia da Terra o corpo central mais im-
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
117
portante do Universo; do Sol e dos astros, tributários que em torno
dela se moviam. Os céus eram qual sólida abóbada; por cima se
entronava o Eterno, cercado dos exércitos celestes; sob a Terra, os
lugares profundos, inferiores, os infernos.
O mundo, criado há seis mil anos, devia ter próximo fim; daí,
uma ameaça permanente pairando sobre a Humanidade. Com o fim
do mundo coincidirá o julgamento terrível, definitivo, universal,
em virtude do qual todos os mortos sairão dos túmulos, revestidos
do seu corpo carnal, para comparecer perante o tribunal de Deus.
A Astronomia moderna destruiu essasconcepções. Ela de-
monstra que o nosso globo é um simples membro da grande família
dos corpos celestes, que as profundezas do céu estão povoadas de
astros em número infinito. Por toda parte sóis, terras, esferas em
via de formação, de desenvolvimento ou decadência, referem-nos
as maravilhas de uma criação incessante, eterna, em que as formas
da vida se multiplicam, se sucedem, se renovam como produções
de um pensamento soberano.
Entre esses mundos que rolam na imensidade dos espaços nos-
sa Terra é um grão de areia, um átomo perdido no infinito. Esse
átomo a Igreja persiste em acreditar o único habitado. Mas a Ciên-
cia, a Filosofia e a revelação dos Espíritos nos mostram a vida a se
expandir na superfície desses mundos, a se elevar, de degrau em
degrau, através de lentas transformações, para um ideal de beleza e
perfeição. Por toda parte povos, raças, humanidades sem-número,
seguem os seus destinos no seio da harmonia universal.
A Igreja ensina que um primeiro homem apareceu na Terra, há
seis mil anos, em estado de felicidade do qual decaiu em conse-
qüência do pecado.
A Antropologia pré-histórica faz recuar a existência da Huma-
nidade a muito mais remotas épocas. Mostra-nos o homem, a prin-
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
118
cípio no estado selvagem, de que pouco a pouco saiu, para elevar-
se em constante progressão, até à civilização atual.
O globo terrestre não foi criado em seis dias; é um organismo
que se desenvolve através das idades. Nas camadas superpostas
que se acumulam em sua superfície, a Geologia indica as sucessi-
vas fases da sua formação. A observação científica, o estudo perse-
verante e paciente das leis da vida, fizeram reconhecer a ação de
uma vontade que dispôs todas as coisas num determinado plano.
Em virtude desse plano, os seres possuem em si o princípio de
existência e se elevam, por calculadas gradações, de forma em
forma, de espécie em espécie, em direção a tipos sempre mais
perfeitos. Em parte alguma se descobrem os traços de uma criação
arbitrária ou milagrosa, mas, ao contrário, o trabalho lento de uma
criação que se efetua graças aos esforços de cada um e em proveito
de todos. Por toda parte se revela a ação de leis sábias e profundas,
a manifestação de uma ordem universal, de um pensamento divino
que deixou ao ser a liberdade e os meios de a si próprio se desen-
volver, à custa de tempo, provações e trabalho.
A Igreja que, durante tantos séculos, ensinou, regeu, dirigiu o
mundo, sempre ignorou, na realidade, as verdadeiras leis da vida e
do Universo. Entretanto, aí estão as obras daquele que ela diz
representar, em cujo nome pretende falar e ensinar. Essas obras,
desconheceu-as ela e as desconhece ainda. Suas explicações acerca
da ordem e da estrutura do Universo, relativamente à vida da alma
e ao seu futuro sobre os poderes psíquicos do ser, foram sempre
errôneas.
Foram precisos os repetidos esforços do livre pensamento e da
Ciência para sondar esse imenso domínio da Natureza, de que dizia
a Igreja ser a zeladora e cuja interpretação dizia possuir. Só a Ciên-
cia foi que a obrigou a se retificar a si própria, em numerosos
pontos, e a distinguir no Cristianismo as verdades essenciais, das
ficções ou alegorias.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
119
A Igreja por muito tempo considerou hereges os sábios que a-
firmavam o movimento da Terra. Galileu foi condenado ao cárcere
por ter ensinado que o Globo se movia.87 O frade irlandês Virgílio
foi excomungado pelo papa Zacarias, por haver afirmado a existên-
cia dos antípodas.
Tomando ao pé da letra o que não passava de figuras, a Igreja
não podia crer na esfericidade do Globo, desde que muitas passa-
gens das Escrituras parece imporem-lhe quatro cantos. Agora
declara ela que, falando da imobilidade da Terra no centro do
mundo, as Escrituras se colocam no ponto de vista da ignorância
antiga e, em certos casos, se amoldou ao sistema de Galileu e de
Descartes. Não o fez, porém, sem longas hesitações, porque as
obras de Galileu e de Copérnico não foram eliminadas do índex
senão em 1835. Chegou assim a Igreja, insensivelmente, a conside-
rar uma simples ficção o que outrora para ela constituía um dogma.
Nesse ponto foi, pois, a Ciência que a auxiliou a compreender a
Bíblia.
O mesmo aconteceu com as suas opiniões acerca da Criação. A
extrema antiguidade do nosso planeta e a sua lenta formação, esta-
belecidas pela Ciência, foram condenadas muito tempo pela Igreja,
como opostas à narrativa do Gênesis. Hoje ela cede à pressão dos
estudos geológicos e já não vê na descrição bíblica senão um qua-
dro simbólico da obra da Natureza, desenvolvendo-se através dos
tempos, de conformidade com um plano divino.
Deter-se-á aí? Não será obrigada a inclinar-se diante da Histó-
ria e da exegese, como o fez diante da Astronomia e da Geologia?
Não virá a desvencilhar a personalidade do Cristo e sua elevada
87 Ver, na nota complementar nº 10, o texto de condenação de Galileu
em 1615.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
120
missão de ordem moral, de todas as hipóteses formuladas sobre a
sua origem e natureza divinas?88
A Igreja, depois de haver combatido e anatematizado a Ciên-
cia, deverá forçosamente acompanhá-la e assimilar todas as suas
descobertas, se quiser viver. E nem por isso ficarão menos os seus
erros seculares a atestar sua impotência, no sentido de se elevar por
si mesma ao conhecimento das leis universais. E será o caso de
perguntar – tendo assim a Igreja se enganado acerca de coisas
físicas, sujeitas sempre à verificação – que crédito se lhe pode dar
no concernente às doutrinas místicas, excluídas até hoje da crítica e
do exame?
Tudo nos demonstra que não é menos defeituosa essa parte do
seu ensino. Já as manifestações dos Espíritos dos mortos, que se
multiplicam, nos proporcionam sobre a Vida de além-túmulo uma
fonte de esclarecimentos, de novas apreciações que vêm fazer
ruírem as afirmações do dogma.
Não podíamos mais crer em um mundo, em um Universo ori-
undo do nada, que Deus governa por meio da graça e do milagre.
Menos, ainda, podemos crer que a vida seja obra de salvação pes-
soal, o trabalho uma ignomínia, um castigo, com o inferno eterno
por perspectiva; ou, então, um purgatório de onde se não sai senão
mediante orações pagas, ou ainda um paraíso melancólico e monó-
tono, em que seríamos condenados a viver inativos, sem alvo,
separados para sempre dos que amamos. Não podemos mais crer
no pecado de Adão recaindo sobre toda a Humanidade, nem no
resgate mediante a imolação de um Deus na cruz.
88 Quase nada parece ela disposta a evolver em tal sentido, e ainda em
1908 excomungou o abade Loisy por haver articulado em suas obras
que a divindade do Cristo não é, historicamente, demonstrável. (Nota
da segunda edição.)
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
121
O pensamento moderno liberta-se cada vez mais de semelhan-
tes mitos, de tais espantalhos pueris; despedaça essas teias de ara-
nha que pretenderam correr entre ele e a verdade; eleva-se todos os
dias e, no espetáculo dos mundos, no grande livro da Natureza
cujas páginas em torno dele se desdobram, no maravilhoso mapa
da vida em suas perpétuas evoluções, nessa lei de progresso inscri-
ta no céu, como na Terra, nessa lei de liberdade e de amor gravada
no coração do homem, ele vê a obra de um Ser que não é o Deus
quimérico da Bíblia, mas a Soberana Majestade – princípio eterno
de justiça, lei viva do bem, do belo e do verdadeiro, que enche o
Infinito e paira sobranceiro aos tempos.
Chega-se a perguntar como o alimento dogmático da Igreja
pôde ser administrado às inteligências populares durante tantos
séculos, uma vez que o menor estudodo Universo, o menor olhar
lançado ao espaço nos podem dar da vida, sempre renascente, da
suprema causa e de suas leis uma idéia tão imponente, tão fecunda
em grandes ensinamentos, em poderosas inspirações.
A essa idéia vem juntar-se a noção clara e positiva do objeto
da existência, do objetivo que todos os seres visam em sua jornada,
resgatando-se a si mesmos desse fundo de egoísmo e barbaria, que
é o único pecado original, e adquirindo, passo a passo, essa perfei-
ção cujo germe Deus neles colocou e eles devem, pelo regresso à
carne, desenvolver na sucessão das existências porvindouras.
Assim se revela o pensamento de Deus. Porque Deus, que é a
Justiça absoluta, não poderia querer a condenação, nem mesmo a
salvação mediante a graça ou os merecimentos de um salvador,
mas a salvação do homem por suas próprias obras e a satisfação,
para nós, de obtermos nós mesmos, com a sua assistência, a nossa
elevação e a nossa felicidade.
Infelizmente, esta concepção do mundo e da vida, indispensá-
vel ao desenvolvimento das sociedades humanas, não é ainda a
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
122
partilha senão de um reduzido número. A grande massa erra nas
veredas da existência, ignorante das leis da Natureza, não tendo por
nutrição moral senão esse catecismo ensinado às crianças em todos
os países cristãos, incompreensível, ininteligível para a maior parte
e que bem poucos vestígios deixa no espírito.
É, todavia, uma imperiosa necessidade que todos os homens
possuam uma noção precisa do objetivo da existência, que todos
saibam o que são, donde vêm, para onde vão, como e por que
devem agir.
Essa noção, esse conhecimento, quando é seguro e elevado,
pode guiá-los, ampará-los nas horas difíceis, prepará-los para as
inevitáveis lutas. Sem o conhecimento do objetivo da existência
não há fortaleza d'alma nem solidariedade duradoura entre os
membros de qualquer sociedade. É a única idéia que faz a coesão
dos homens; é a base comum dos princípios e das crenças, que
promove a união moral na sociedade, em a nação, na Humanidade.
Dessa concepção do mundo, da vida e do seu objetivo, mante-
ve a Igreja, até agora, o monopólio. A todos ensina ela por meio do
catecismo. Por insuficientes, obscuros e obsoletos que sejam os
princípios desse ensino popular, em que à moral cristã se mesclam
dogmas caducos, eles constituem, ainda hoje, a força da Igreja e a
sua superioridade sobre a sociedade leiga, porque esta ainda nada
soube colocar em substituição do catecismo e, em sua hesitação ou
impotência para oferecer à criança, ao homem, uma síntese, uma
idéia exata das suas relações com o Universo, consigo mesmo, com
os seus semelhantes e com Deus, abandona a direção moral do
povo a uma instituição que apenas representa um ideal agonizante,
incapaz de regenerar as nações.
Nos novos manuais de ensino leigo, sem dúvida, se encontram
muitas páginas consagradas às questões morais, a Deus, à imortali-
dade da alma; essas noções, porém, são muito pouco cultivadas na
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
123
prática. O preceptor, quase sempre impossibilitado de satisfazer as
exigências de um programa complexo, baldo ele próprio de convic-
ção na maioria dos casos, menospreza ou desdenha esse lado es-
sencial do ensino. Daí resulta, como íamos dizendo, que o catecis-
mo permanece o único meio de educação moral ao alcance de
todos. Foi por ele, pelas noções de conjunto que oferece, que a
sociedade cristã se constituiu e se mantém; é por meio dele que se
perpetua o poder da Igreja. Este ensino, porém, é todo superficial e
de memória; as noções incompletas que incute na criança são a-
prendidas de cor; não são sentidas; não lhe penetram na alma; não
resistem muito às influências exteriores que o menino sofre, nem
ao desenvolvimento da sua própria razão.
Quando o filho do pobre, obrigado bem cedo a se entregar ao
trabalho, não tendo para se guiar senão os ensinos do catecismo,
chega a neles não crer mais, é o desmoronamento, é o vácuo que se
produz no seu pensamento e na sua consciência. Incapaz de, por si
mesmo, elevar-se a uma concepção mais alta da existência, dos
seus direitos e deveres, tendo repelido com a crença nos dogmas
tudo o que possuía de noções morais, fica abandonado a todas as
correntes do materialismo e da negação, sem preservativo contra os
grosseiros apetites, sem defesa, nos dias de miséria, contra as su-
gestões do suicídio ou da depravação.
*
Desde as idades da fé cega, a sociedade cristã está, por conse-
guinte, reduzida a viver de um retrógrado ideal, de uma concepção
do Universo e da vida inconciliável em muitos pontos com as
descobertas da Ciência e as aspirações da Humanidade. Daí uma
intensa perturbação nos espíritos e nas consciências; daí a alteração
de todas as condições necessárias à harmonia social.
Há muito um sopro de liberdade agita o mundo; o pensamento
vai-se desembaraçando dos empecilhos que o prendiam; a fé se
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
124
amesquinhou. Mas os povos latinos conservam o cunho indelével
do ensino católico que, durante doze séculos, os afeiçoou a seu
talante e neles cultivou as qualidades e os defeitos que os caracteri-
zam, e esses defeitos precipitam a sua decadência.
A doutrina católica, ministrando ao homem uma idéia errônea
do seu papel, contribuiu para obscurecer a razão, para falsear o
critério às gerações. Não se pôde manter senão recorrendo a argu-
mentos capciosos e sutis, cujo emprego repetido faz perder o hábito
de raciocínio e de julgar com retidão as coisas. Pouco a pouco se
chegou a aceitar, a considerar infalíveis sistemas fictícios, em
oposição às leis naturais e às superiores faculdades da alma.
Essa maneira de ver e de julgar devia forçosamente refletir-se
nos atos da vida social e nas conquistas da Civilização. Viram-se,
por isso, muitas vezes os povos católicos, pelo excesso de confian-
ça neles próprios, perder o senso prático e se apaixonar por empre-
endimentos sem utilidade e sem alcance.
É o que se evidencia em todas as obras políticas, financeiras e
de colonização, nas quais os povos católicos se revelam sensivel-
mente inferiores às nações protestantes, mais bem preparadas, por
sua educação religiosa e pelo espírito de livre-exame, para tudo o
que exige a ordem, a previdência, o discernimento, a perseverança
no trabalho. Em compensação, os católicos se avantajam nas artes
e nas letras; mas é uma insuficiente compensação.
Os povos latinos, nos quais a educação católica desenvolveu o
sentimento e a imaginação em detrimento da razão, se entusiasmam
facilmente, adotam, sem as amadurecer, certas idéias em cuja
execução prosseguem com um ardor e um exagero que conduzem
muitas vezes à perda e à ruína. As paixões sempre muito vivas,
quando a razão não as vem refrear, levam esses povos à instabili-
dade: as modas, as idéias, os gostos neles variam muitas vezes, em
detrimento das obras sólidas e duradouras.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
125
Por isso se vêem as nações anglo-saxônias e de religião protes-
tante serem bem-sucedidas onde os povos latinos fracassam. Cada
vez mais a iniciativa nas obras de progresso, a conquista e a colo-
nização do globo passam para as mãos dos povos do Norte, que
crescem e se fortificam sem cessar, em prejuízo das nações latinas
e católicas.
A influência nos costumes não é menos prejudicial. O caráter
latino, o espírito francês em particular, durante séculos afeiçoado
pelo Catolicismo, tornou-se pouco afeito às coisas sérias e profun-
das. Na França, as conversações são de ordinário frívolas; fala-se
preferentemente de prazeres, de coisas fúteis; a maledicência, a
crítica maliciosa, o hábito da difamação, ocupam nas conversações
um largo trecho. Destroem, pouco a pouco, o espírito de benevo-lência e tolerância que liga os membros de uma mesma sociedade;
fomentam entre os homens o espírito de malícia, a inveja e o ran-
cor.
Esses defeitos não se encontram no mesmo grau nas socieda-
des protestantes. Nelas a instrução é mais desenvolvida, as conver-
sações são em geral mais sérias e a maledicência mais atenuada. As
pessoas acham-se mais ligadas à religião e a praticam com maior
escrúpulo. Na maioria dos povos católicos, ao contrário, a religião
tornou-se uma questão de forma, um partido político, antes que
uma convicção; a moral evangélica é por eles cada vez menos
observada. Os gestos sérios rareiam; cada qual quer satisfazer suas
inclinações, sobressair e gozar.
Parece que a Igreja Romana, em seus ensinos, se aplica a ocu-
par o espírito, a desviá-lo para as vias do sentimento, no intuito de
lhe fazer esquecer o verdadeiro fim do estudo, que é a posse da
verdade. Ela não oferece às inteligências senão uma ilusória nutri-
ção, uma quimérica doutrina, perfeitamente adaptada, porém, aos
seus interesses materiais.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
126
As pompas do culto, as festas numerosas, as cerimônias pro-
longadas, desviam os fiéis das árduas investigações, do frutífero
labor, e os induzem à ociosidade. Todo trabalho é, antes, um cons-
trangimento que benéfica necessidade. Suportam-no sem o amar.
Por isso, encontram-se mais ignorância e maior miséria nas nações
latinas do que nos povos do Norte.
Seria, sem dúvida, injusto atribuir à Igreja todos os defeitos da
nossa raça; o caráter francês é, por natureza, volúvel, impressioná-
vel, pouco refletido; mas o Catolicismo agravou esses defeitos
aniquilando, com a sua doutrina, o emprego da razão e o espírito de
observação, exigindo dos seus fiéis uma credulidade cega, a respei-
to de afirmações destituídas de provas.
Não é impunemente que se calca aos pés, durante séculos, a
razão, essa faculdade máter, dada por Deus ao homem para guiá-lo
nas sendas do destino. Desse modo se prepara, fatalmente, o rebai-
xamento das nações.
Em muitos casos, não se nos apresenta o Catolicismo apenas
como doutrina religiosa, mas também como poder temporal, envol-
vido em todas as contendas deste mundo, animado do desejo de
adquirir uma autoridade absoluta e de pretenso direito divino. Esse
duplo aspecto contribuiu largamente para subtrair ao Catolicismo
essa dignidade serena, esse desprendimento das coisas materiais
que deveriam fazer o prestígio das religiões. Parece não ser a ele
que se aplica o que disse Jesus: “Meu reino não é deste mundo”.
Em todos os tempos o Catolicismo se duplicou de um partido
político, pronto a secundar os esforços da reação contra a corrente
das idéias modernas. Sob esse ponto de vista, pode-se dizer que a
educação católica desenvolve o espírito de intolerância e estimula a
resistência ao progresso; alimenta no seio das nações um instinto
de luta, um estado de antagonismo e de discórdia, mediante o qual
se despendem e anulam muitas reservas morais e intelectuais.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
127
A sociedade acha-se por esse motivo dividida em dois campos
inimigos; a oposição se perpetua em duas metades nacionais, uma a
avançar para o futuro e outra a retrogradar para o passado. Esgo-
tam, assim, as suas forças vivas em detrimento da paz e da prospe-
ridade gerais.
A Igreja Romana, que durante quinze séculos sufocou o pen-
samento e oprimiu a consciência em nome da unidade da fé, que se
associou a todos os despotismos, sempre que tinha interesse em
fazê-lo, arroga-se hoje o princípio de liberdade. Seria uma reivin-
dicação muito legítima se, por liberdade, não entendesse ela o
privilégio. Necessário é, porém, observar que jamais pôde o Cato-
licismo conciliar-se com o espírito de liberdade. Este não pôde
manifestar-se no mundo senão no dia em que o poderio da Igreja
decresceu. Os progressos de um estiveram sempre em proporção
exata com a diminuição do outro, enquanto que os modernos pro-
testantes, habituados pela sua religião a usar da liberdade, têm
sabido aplicá-la à vida política e civil.
Agora mesmo, não condena a Igreja o livre-pensamento, como
condenou outrora o livre-exame aplicado à interpretação das Escri-
turas? Não proíbe a todos os seus raciocinar e discutir a religião? E
é ainda isso o que nos demonstra como as opiniões da Igreja Ro-
mana se afastaram dos princípios do verdadeiro Cristianismo.
Aqui está o que dizia S. Paulo:
“Examinai tudo: abraçai o que é bom.” (I Tessalonicenses, V,
21.)
“Onde há o espírito do Senhor, aí há liberdade.” (II Epístola
aos Coríntios, III, 17)
A doutrina de Jesus, tal como se expressa nos Evangelhos e
nas Epístolas, é doutrina de liberdade. A afirmação dessa liberdade
moral e da supremacia da consciência é repetida em quase todas as
páginas do Novo Testamento.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
128
Foi por terem desconhecido esse fato que os chefes da Igreja
fizeram desorientar o Cristianismo e oprimiram as consciências.
Impuseram a fé em vez de a solicitar à vontade livre e esclarecida
do homem e, assim, fizeram da história do Catolicismo o calvário
da Humanidade.
Outro tanto se pode dizer da razão, tão ultrajada pelos sacerdo-
tes d' Aquele que foi a Razão personificada, o Verbo, a Palavra.
Esqueceram que a razão, “essa luz – diz S. João –, com que to-
do homem vem a este mundo”, é una; que a razão humana, cente-
lha desprendida da razão divina, dela não difere senão em poder e
extensão e que, obedecer às suas leis, é obedecer a Deus.
“Ó Razão! – dizia Fenelon em momento de profunda intuição
– não és tu o Deus que procuro?”.
Se a Igreja tivesse compreendido a essência mesma do Cristia-
nismo, ter-se-ia abstido de lançar o anátema ao raciocínio e de
imolar a liberdade e a Ciência no altar das superstições humanas.
O direito de pensar é o que de mais nobre e de maior existe em
nós. Ora, a Igreja sempre se esforçou por impedir o homem de usar
desse direito. E lhe disse: “Crê e não raciocines; ignora e submete-
te; fecha os olhos e aceita o jugo.” Não é isso ordenar que renunci-
emos ao divino privilégio?
Porque a razão, desdenhada pela Igreja, é de fato o instrumento
mais seguro que o homem recebeu de Deus para descobrir a verda-
de. Desconhecê-la é desconhecer o próprio Deus, que é a sua fonte.
Não é por meio dela que o homem esclarece e resolve todos os
problemas da vida social, política e doméstica? E pretenderiam que
a repudiasse quando se trata de verdades religiosas que ele não
pode penetrar sem o seu concurso?
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
129
Relativa e falível em si mesma, a razão humana se retifica e se
completa remontando à divina fonte, comunicando com essa razão
absoluta que a si mesma se conhece, reflete e possui, e que é Deus.
Podem ser necessárias faculdades assaz elevadas para inventar
e corporificar sistemas errôneos, para os defender e propagar. A
verdade, simples e clara, é apresentada e compreendida pelos espí-
ritos mais humildes, quando sabem utilizar-se da razão, ao passo
que os sofistas que a excluem, afastam-se cada vez mais da verda-
de, para se emaranharem num Dédalo de teorias, de dogmas, de
afirmações, em que se perdem. Para tornarem a encontrar a vereda
segura, ser-lhes-á preciso destruir o que penosamente edificaram e
voltar a essa razão menosprezada, única que lhes dá o sentido real
da vida e o conhecimento das leis divinas.
Assim se confirmam estas palavras das Escrituras: “Ocultou-se
aos sábios o que foi revelado aos pequeninos”.
Acabamos de pôr em evidência as conseqüências da educação
religiosa em nosso país. Sua influência, por vezes tão nociva na
prática da vida, persiste depois da morte e reserva às almas crédu-
las profundas e cruéis decepções. Quantos católicos nos têm descri-
to, emnumerosas comunicações mediúnicas, as suas angústias,
quando, confiantes nas prometidas recompensas, imbuídos das
idéias de paraíso e redenção, se viram no espaço vazio, imenso e
melancólico, errantes, anos inteiros em busca de uma quimérica
felicidade e nada compreendendo desse novo meio, tão diferente
do que lhes fora tantas vezes exaltado! Suas acanhadas percepções,
a compreensão velada por doutrinas e práticas abusivas, não lhes
permitiam apreender as belezas do universo fluídico.
E quando, em pesquisas e peregrinações extraterrestres, encon-
tram esses padres, seus educadores religiosos, restituídos como eles
ao estado de Espírito, as queixas e exprobrações não encontram, de
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
130
sua parte senão a perturbação e a ansiedade que a eles próprios
atribulam.
Triste efeito de um ensino falso, tão ineficiente para aparelhar
as almas aos combates e realidades do destino.
*
No desenvolvimento deste estudo aconteceu-nos muitas vezes
confrontar as doutrinas da Igreja Romana com as do Protestantismo
e fazer sobressair, em certos pontos, a superioridade destas últimas.
Daí, segue-se que consideremos o Protestantismo a mais perfeita
das religiões? Tal não é o nosso pensamento.
O Protestantismo, em seu culto e prédicas, aproxima-se vanta-
josamente, é certo, da simplicidade e das concepções dos primeiros
cristãos. Não despreza a razão, como faz o Catolicismo, mas, ao
contrário, respeita-a, apóia-se nela. Sua moral é mais pura e a sua
organização sem fausto e aparato. Suprime a hierarquia sacerdotal,
o culto à Virgem e aos santos, as práticas fastidiosas, as longas
orações, os rosários, os bentinhos, todo o arsenal pueril da devoção
católica. O pastor não é mais que um professor de moral, encarre-
gado de presidir às cerimônias religiosas, reduzidas ao batismo, à
comunhão e à prédica, a abençoar os casamentos, assistir os po-
bres, os enfermos e os moribundos.
O Protestantismo estabelece o livre-exame, a livre interpreta-
ção das Escrituras. Com isso desenvolve o entendimento e favorece
a instrução, em todos os tempos considerada perigosa pela Igreja
Romana. O protestante se mantém, portanto, livre e aprende a
dirigir-se por si mesmo, ao passo que o católico abdica sua razão e
sua liberdade nas mãos do sacerdote.
Entretanto, por maior que seja a obra da reforma do século
XVI, ela não poderia satisfazer as necessidades atuais do pensa-
mento. O Protestantismo conservou, da bagagem dogmática da
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
131
Idade Média, muitas coisas inaceitáveis. A autoridade do papa,
substituiu a do livro; mas a Bíblia, interpretada mediante o livre-
exame, não pode ser considerada produto da inspiração divina.89
As consciências que conseguiram subtrair-se ao jugo de Roma não
se poderiam colocar sob o de uma obra, sem dúvida respeitável e
que é preciso tomar em consideração, mas de origem puramente
humana, semeada de ficções e alegorias, sob as quais o pensamento
filosófico se dissimula e desaparece na maioria das vezes.
Lutero proclamava a divindade de Jesus, o seu miraculoso nas-
cimento e a sua ressurreição; Calvino impõe os dogmas da trindade
e da predestinação. Os artigos da “Confissão de Augsburgo” e da
“Declaração de la Rochelle” afirmam o pecado original, o resgate
pelo sangue do Cristo, as penas eternas, a condenação das crianças
mortas sem batismo.
Entre os protestantes, mesmo ortodoxos, quantos haverá hoje
que subscrevam essas afirmações e aceitem em seu conjunto o
símbolo dos apóstolos, lido em todos os templos e que os apóstolos
jamais conheceram?
Ao lado da ortodoxia protestante um grande partido se formou
sob a designação de protestantismo liberal. Repudia os dogmas que
acabamos de enumerar e limita-se a reconhecer a grandeza moral
de Jesus e de seus ensinamentos. Esse partido conta em suas filei-
ras espíritos muito esclarecidos, animados de louvável sentimento
de tolerância e grande amor ao progresso – homens dignos de
admiração e simpatia.
Mas os protestantes liberais colocam-se em situação falsa e de-
licada. Persistem em se conservar na igreja reformada, depois de
haverem rejeitado, um a um, quase todos os pontos de doutrina.
Tomaram larga parte nos consideráveis trabalhos de que falamos
89 Ver nota complementar n° 1.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
132
no começo desta obra, trabalhos empreendidos acerca das origens
do Cristianismo e da autenticidade dos sagrados livros. Submete-
ram ao crivo de uma crítica rigorosa todos os documentos em que
repousa a tradição cristã. A aplicação do livre-exame os impeliu a
constantes investigações, em conseqüência das quais os dogmas, os
milagres e grande número de fatos históricos perderam todo o
crédito aos seus olhos. Desse exame, só uma coisa ficou de pé – a
moral evangélica.
Os protestantes liberais foram levados a colocar o princípio da
liberdade e da supremacia da consciência acima da unidade da fé;
agindo desse modo, destruíram os laços religiosos que os vincula-
vam à Igreja reformada. Não são mais, realmente, protestantes; são
antes cristãos livres-pensadores.
É, portanto, uma anomalia praticarem, em todas as suas for-
mas, um culto que tão escassamente corresponde às suas próprias
aspirações. Parece-nos que melhor coisa se poderia fazer, nas
assembléias religiosas dos “protestantes liberais”, que ler e comen-
tar unicamente a Bíblia, cantar salmos calcados sobre velhas árias,
falar de um “Deus zeloso e forte”, ou recomendar aos habitantes de
Paris, como todos os domingos fazem no templo do Oratório, que
não cobicem “nem o boi nem o asno do seu próximo”. Semelhante
culto e tais exortações poderiam convir aos povos pastores da
antiguidade; já não correspondem às necessidades, às idéias, às
esperanças dos cristãos contemporâneos.
Às aspirações modernas são necessárias outras expressões, ou-
tras formas, outras manifestações religiosas. São precisos uma
linguagem e cânticos que falem à alma, que a atraiam, emocionem
e façam vibrar íntimas cordas. Permanecendo sóbrio e inteiramente
simples, o culto deve inspirar-se na arte musical contemporânea e
esforçar-se por elevar o pensamento às divinas esferas, às regiões
imáculas do ideal.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
133
Em resumo, o Protestantismo pode ser considerado, em seu
conjunto, superior ao Catolicismo, no sentido de que mais se apro-
xima do pensamento do Cristo. Demasiadamente adstrito, porém, à
forma e à letra, não poderia bastar às solicitações do espírito mo-
derno.
Faria obra de utilidade se abandonasse o legado da Reforma
para, exclusivamente, inspirar-se no espírito evangélico. O espírito
da Reforma tinha sua razão de ser no século XVI, ao termo de um
longo período de treva e despotismo; ao mundo moderno já não
pode oferecer senão fantasias teológicas e motivos de divisão entre
os membros da grande família cristã.
O que é presentemente necessária à Humanidade, não é mais
uma crença, uma fé decorrente de um sistema ou de uma religião
particular, inspirada em textos respeitáveis, mas de autenticidade
duvidosa, em que a verdade e o erro se mesclam e se confundem. O
que se impõe é uma crença baseada em provas e em fatos; uma
certeza fundada no estudo e na experiência, de que se destacam um
ideal de justiça, uma noção positiva do destino, um estímulo de
aperfeiçoamento, suscetíveis de regenerar os povos e ligar os ho-
mens de todas as raças e de todas as religiões.
Muitos laços históricos e religiosos prendem, incontestavel-
mente, a alma moderna à idéia cristã, para que possa deixar de por
ela interessar-se. Há no Cristianismo elementos de progresso,
germes de vida moral e social, que, desenvolvendo-se, grandes
coisas podem produzir. A doutrinado Cristo contém muitos ensi-
nos que ficaram incompreendidos e que, sob mais esclarecidas
influências, podem produzir frutos de amor e sabedoria, resultados
eficazes a favor do bem geral. Sejamos cristãos, mas, elevando-nos
acima das diversas confissões, até à fonte pura de que brotou o
Evangelho. Amemos o Cristo, mas coloquemo-lo superior às seitas
intolerantes, às igrejas que se excluem mutuamente e se anatemati-
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
134
zam. O Cristo não pode ser jesuíta, nem jansenista, nem huguenote;
seus braços estão amplamente abertos a toda a Humanidade.
*
Vimos acima quais as conseqüências da educação religiosa em
nosso país. Se a educação católica, em particular, é incompleta e
semeada de ilusões, deve, o ensino leigo, por isso, ser-lhe preferi-
do?
O ensino leigo produz efeitos opostos aos que havemos indica-
do. Confere aos homens o espírito de independência; exime-os da
tutela governamental e religiosa, mas ao mesmo tempo enfraquece
a disciplina moral, sem a qual não se pode manter coesa a socieda-
de.
Esse ensino não é, como pretendem seus detratores, inteira-
mente destituído de princípios; entretanto, não tem sabido oferecer
à vida um elevado objetivo; nada pôde colocar no lugar do ideal
cristão; afrouxou os laços de solidariedade que devem unir os
homens e conduzi-los para um fim comum.
Por isso é que em nosso país o espírito familiar e a autoridade
paterna se têm enfraquecido. Os pais parecem subordinados dos
próprios filhos, nos quais já se não encontram os sentimentos res-
peitosos que constituem a força da família e asseguram à velhice a
necessária autoridade. Essas causas de enfraquecimento parecem,
pouco a pouco, invadir todo o organismo social. Quase por toda
parte se contraem novos hábitos e maneiras de viver, de que são
excluídas as coisas sérias, únicas capazes de fortalecer o espírito e
orientá-lo no sentido da prática incessante do dever.
O ensino primário não proporciona mais que uma instrução
apenas esboçada e cedo posta à margem, uma instrução prematura,
destituída de vínculo, de encadeamento e, sobretudo, de remate.
Ela não é completada por esse elemento indispensável do ensino
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
135
moral. Deixa a criança e, por conseguinte, o homem, na ignorância
das coisas mais essenciais: as grandes leis da vida.
Quando, dos doze aos catorze anos, o aluno das escolas primá-
rias, munido do seu certificado de exames, é lançado ao combate
dos interesses, à grande batalha social, falta-lhe esse fundo sólido,
esse conhecimento da verdade e do dever, que é o sustentáculo
supremo, a mais necessária arma para as lutas da existência.
Tudo o que lhe disseram sobre os deveres do homem – e se re-
duz a muito pouca coisa – disseram-lho numa idade em que ele não
podia dar valor a isso. E tudo se vai esmigalhar, dissipar, sem
deixar vestígios.
Dir-se-ia, porém, que, se a instrução primária é insuficiente,
mal exposta, mal digerida, um pouco mais alto, no ensino clássico
e superior deve encontrar o rapaz ampla messe de princípios, no-
ções essenciais à consecução de um elevado fim? Pois bem! ainda
nisso há ilusão. Reporto-me, nesse ponto, à opinião de um escritor
competente. Francisque Sarcey declarava em uma das suas crôni-
cas no Petit Journal (7 de março 1894):
“Dos meus estudos clássicos, da minha passagem pelas classes
de Filosofia, não colhi noção alguma positiva acerca dos destinos
da alma humana.”
Isso nos faz recordar a conhecida apreciação de um bom juiz
em tal matéria:
“a Filosofia clássica não é mais que a história das contradições
do espírito humano.”
O materialismo e o Positivismo reinam quase exclusivamente
nas altas esferas políticas, povoadas de inteligências buriladas pelo
ensino superior. A influência dessas teorias se reflete sobre toda a
vida política e social e, concorrentemente com as doutrinas do
Catolicismo, contribui para deprimir os caracteres e as vontades.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
136
Quando penetramos até ao fundo das coisas, a despeito de al-
gumas ligeiras aparências de espiritualismo, somos obrigados a
reconhecer que o ensino leigo encontra-se, em todos os graus,
impregnado de cepticismo, inspirado pelas filosofias negativas. Daí
a sua impotência para incutir na criança noções profundas de mora-
lidade.
Porque é em vão que se preconiza a moral, independente de
qualquer crença e de qualquer religião; a experiência demonstra
que, quanto mais se espalham as concepções materialistas e ateís-
tas, mais se subtraem às consciências os princípios de moralidade
e, por conseqüência, os deveres que eles impõem. A desmoraliza-
ção coincide com a subversão das crenças.90 É verdade que nos
falam muito de altruísmo; mas o altruísmo não passa de palavra vã,
teoria destituída de base e sanção. É semente lançada à rocha e
condenada a perecer; porque não basta semear, é necessário ainda
preparar o terreno. As sábias noções do altruísmo não seriam capa-
zes de comover e moralizar indivíduos saturados da idéia de que a
luta das necessidades e dos interesses é a lei suprema da existência,
convencidos de que todas as esperanças, todos os impulsos genero-
sos vão terminar em nada.
O materialismo, reação vigorosa e inevitável contra o dogma e
a superstição, penetrou em todas as camadas da sociedade francesa.
Nos espíritos cultos ele se adorna com o nome de Positivismo.
Quaisquer que sejam, entretanto, os nomes com que se decorem as
filosofias negativas e as diferenças que caracterizem os seus méto-
90 Um escritor materialista de nomeada, o Sr. Emílio Ferrière, confessa
em sua obra A causa primária, (Alcan, 1897) que a ciência materialis-
ta é incapaz de organizar um plano lógico de moral.
"Quanto às conclusões morais – diz ele –, as trevas são de tal modo
espessas e tão violentas as contradições, que ficamos reduzidos ao ú-
nico partido filosófico prudente, a saber: resignar-se à ignorância".
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
137
dos, as suas investigações, limitando-se às coisas concretas, ao
domínio da matéria e das forças elementares, conduzem aos mes-
mos resultados. Pode-se, por esse motivo, reuni-las em uma apreci-
ação comum.
O materialismo teve a sua hora de triunfo. Em dado momento,
suas teorias predominaram na Ciência. Em suas lutas contra uma
opressão secular, em seus esforços por libertar a consciência e
permitir livre surto ao pensamento, ele bem o mereceu da Humani-
dade. Poderoso, porém, para destruir, nada pôde edificar. Se liberta
a alma humana da rede de superstições em que ela se debate, é para
em seguida a deixar vagando ao acaso, sem guia e sem apoio.
Ignora, ou pretende ignorar a verdadeira natureza do homem, as
suas necessidades e aspirações, porque se sente incapaz de as satis-
fazer. Destrói o edifício das velhas crenças – acanhado edifício que
já não era suficiente para abrigar o pensamento e a consciência – e,
em lugar de uma construção mais espaçosa, melhor esclarecida, é o
vácuo o que lhes oferece, é um abismo de miséria moral e desespe-
rança. Por isso, todas as almas sofredoras, todas as inteligências
apaixonadas de ideal que cederam às suas sugestões acabam, cedo
ou tarde, por abandoná-lo.
Se as correntes de idéias materialistas penetraram das altas re-
giões políticas até às mais profundas camadas sociais, em compen-
sação, no domínio da Ciência, perderam em grande parte a influên-
cia. As experiências da moderna Psicologia têm sobejamente de-
monstrado que tudo não é exclusivamente matéria ou força, qual
afirmavam Büchner, Carl Vogt, Júlio Soury e outros; provaram que
a vida não é uma propriedade dos corpos, que se esvai com eles.91
Depois das experiências do Doutor Luys, de Baraduc, de Rochas,
Myers,Richet, etc., não se ousaria mais dizer com Carl Vogt que o
cérebro segrega o pensamento como o fígado segrega a bílis. Pe-
91 Ver Depois da Morte, cap. VIII.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
138
sam-se as secreções do corpo humano, mas quem, porventura,
pesou o pensamento? A própria teoria atomística desacreditou-se.
O átomo, base essencial do Universo, no dizer dos materialistas, é
agora reputado pelos químicos uma pura abstração. É o que diz
Berthelot em suas Origens da Química, pág. 320:
“O éter dos físicos e o átomo dos químicos se desvanecem para
ceder o lugar a concepções mais elevadas, que tudo tende a expli-
car pelos exclusivos fenômenos do movimento.”
W. Ostwald, professor de Física na Universidade de Leipzig,
em seu estudo intitulado A derrota do atomismo (Revista Geral das
Ciências, de novembro 1895), exprime-se nestes termos a respeito
do átomo e da teoria mecânica do Universo, a qual abrange ao
mesmo tempo a mecânica celeste e os fenômenos da vida orgânica:
“É uma invenção muito imperfeita. A tentativa nem mesmo
tem o valor de uma hipótese subsidiária. É um puro e simples
erro.”
O Senhor Oswald acredita, como Newton, que devem existir
princípios mais elevados que os atualmente conhecidos.
Dessas apreciações dos homens mais competentes resulta que
os materialistas construíram o edifício da Ciência sobre a base mais
frágil que se possa imaginar.
O materialismo vê apenas o primeiro plano das coisas; não a-
brange senão um único aspecto da realidade. A matéria é, incontes-
tavelmente, um mundo magnífico quando a consideramos na ma-
jestosa unidade das suas leis. Mas a matéria, mesmo que pudésse-
mos conhecê-la em essência, não é tudo. Não representa mais que o
aspecto inferior do mundo e da vida.
A filosofia sobre tais noções arquitetada baseia suas conclu-
sões no testemunho exclusivo dos sentidos; ora, os nossos sentidos
são limitados e insuficientes; muitas vezes nos enganam. Não é
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
139
com os sentidos físicos, nem com os instrumentos de precisão, ou
com retortas, que se descobrem as causas e as leis superiores. Só a
razão pode conhecer a razão suprema das coisas.
Com o seu acurado estudo das formas físicas, os materialistas
acreditaram penetrar todos os segredos da Natureza. Dela não
consideravam, realmente, senão o aspecto menos sutil; faziam
abstração de todo um conjunto de forças e de causas, sem o conhe-
cimento das quais toda explicação do Universo é impossível.
Os materialistas fizeram como o mineiro que sob a terra cava o
aurífero filão. A cada passo descobre ele novos tesouros, novas
riquezas, e o mesmo aconteceu à ciência positiva – justiça se lhe
faça – mas, à medida que prossegue na tarefa, o mineiro perde de
vista a luz do dia, o domínio esplêndido da vida, para engolfar-se
nas regiões da noite, da morte e do silêncio. Assim procedeu o
materialismo.
Nas altas esferas intelectuais, a derrota do materialismo esteve
a pique de arrastar consigo a da Ciência. Lançaram a esta a pedra,
como se pudesse ela ser responsabilizada pelas teorias formuladas
em seu nome. Em vibrantes artigos, foi acusada de não haver dado
o que o espírito humano tinha o direito de esperar.
O Senhor Séailles diz, em seu discurso proferido por ocasião
da abertura da Faculdade de Letras, em 1894:
“A ciência moderna conduz à confusão do pensamento, que se
perde no mundo que ela descerra, e sepulta-se em sua vitória.”
Outros asseguravam, com o Senhor Brunetiere, que a Ciência
havia feito bancarrota. Evidentemente, isto é excessivo e inexato.
O que fez bancarrota, realmente, não foi a Ciência em seu conjun-
to, foram certas teorias baseadas no Materialismo e no Positivismo.
Se atiram a luva à Ciência, não é que desconheçam os serviços
que prestou e presta, todos os dias, à Humanidade. Ninguém pode
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
140
dizer que a Ciência não contribuiu, em larga escala, para o desen-
volvimento do progresso material e da civilização. Vimos acima
que foi graças a ela, às suas descobertas, que se retificaram as
concepções errôneas da Teologia.
Razão de estranheza há, todavia, ao considerarmos a sua impo-
tência para fornecer ao homem o verdadeiro conhecimento de si
mesmo e das leis que regem o seu destino. Ora, sente-se vagamente
que a Ciência teria podido conduzir a esses resultados se, em lugar
de encerrar-se no estudo da matéria, tivesse querido explorar since-
ramente, com perseverança, todos os domínios da vida. Sob a
pressão das doutrinas negativas, a Ciência perdeu-se na análise, no
estudo fragmentário da natureza física. Mas a poeira da Ciência
não é a Ciência; a poeira da Verdade não é a Verdade.
A Humanidade, fatigada das concepções metafísicas e das so-
luções teológicas, tinha voltado o olhar e as esperanças para a
Ciência. Pedia-lhe o segredo da existência, uma crença, uma nova
fé para substituir a dos templos, que se abate. Pedia-lhe a solução
desses problemas da vida, que a dominam, assediam, envolvem nas
suas profundezas.
Diante desses reclamos reiterados, a Ciência permaneceu mu-
da, ou antes, se em certos casos formulou uma solução, a idéia
dominante que dela se destacava era a idéia do nada. Daí a decep-
ção, a irritação de certos pensadores; daí as acusações que se levan-
taram. Essas acusações, porém, devem recair exclusivamente sobre
as escolas materialistas. A Ciência, em seu conjunto, desde que se
tiver desembaraçado desses empecilhos, saberá completar-se medi-
ante concepções mais esclarecidas e elevadas, que já começa a
entrever. Sociedades oficialmente constituídas, como o Instituto
Geral Psicológico, sob a sucessiva direção do Doutor Duclaux e do
Professor d'Arsonval, empreenderam pesquisas em um novo domí-
nio – o do Psiquismo. E se a conclusão do relatório publicado em
1909, por aquele Instituto, não é ainda afirmativa, nem por isso a
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
141
atenção dos seus membros, voltada agora para essas questões es-
senciais, poderá delas jamais se desviar. Suas experiências, prosse-
guidas em condições mais favoráveis, hão de provar-lhes a existên-
cia de um mundo excluído até agora de suas investigações, mas
cuja realidade cedo ou tarde se lhes há de impor.
*
Uma coisa sempre nos surpreendeu profundamente: é que, en-
tre os homens de espírito liberal que dirigem os destinos da Repú-
blica, muitos se acreditam e se confessam materialistas e ateus.
Como não compreenderam que o materialismo, baseando-se na
fatalidade cega e consagrando o direito da força, não pode produzir
homens livres? Os democratas de 89 e de 48 tinham outras concep-
ções.
Segundo as teorias materialistas, o homem não passa de má-
quina governada por instintos. Ora, para uma máquina não pode
haver liberdade, nem responsabilidade, nem leis morais, porque a
moral é lei do espírito. E sem lei moral, em que se torna a idéia do
dever? Subverte-se, e com ela toda a ordem estabelecida. Uma
sociedade não pode viver, desenvolver-se e progredir senão firma-
da na idéia do dever, ou, por dizer diversamente, na virtude e na
justiça. Estas as bases únicas, possíveis, da ordem social. Por isso é
que esta jamais pôde conciliar-se com o ateísmo e o materialismo;
porque, do mesmo modo que a superstição e a idolatria levam ao
arbítrio e ao despotismo, o materialismo e o ateísmo conduzem
logicamente à depressão das forças sociais, muitas vezes até à
anarquia e ao niilismo.
O materialismo, com a noção puramente mecânica do Univer-
so e da vida, lançou no domínio do pensamento uma noção acabru-
nhadora do futuro. A seu ver, o homem não é mais que joguete do
acaso, simples roleta da grande e cega máquina do mundo. A exis-
tência não passa de luta áspera, feroz, emque domina a força, em
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
142
que os fracos sucumbem fatalmente. Quem não conhece a doutrina
do struggle for life, graças à qual a vida se torna um sinistro campo
cerrado, onde os seres passam, se sucedem, se impelem, para aca-
bar submersos nas profundezas do nada?
É com semelhantes teorias, difundidas nas massas, que o mate-
rialismo se constituiu um verdadeiro perigo social. Desse modo,
tornou mais pesado ao homem o fardo das misérias e mais sombri-
as as perspectivas da existência; diminuiu a energia humana, com-
peliu o desgraçado à tristeza, ao desespero, ou à revolta. Como,
pois, estranharmos que os casamentos se tornem cada vez mais
raros e os infanticídios, suicídios, alienações mentais se multipli-
quem? Em nossos dias, como sinal dos tempos, vêem-se, muitas
vezes, jovens de ambos os sexos, crianças quase, recorrer ao suicí-
dio por motivos fúteis.92 O exército do vício e do assassínio en-
grossa em proporções assustadoras.
Com as teorias da escola materialista a responsabilidade moral
desaparece. O homem não é livre, dizem-nos Büchner e seus discí-
pulos; é escravo do meio. O crime se explica pelo atavismo e pela
hereditariedade. É um fenômeno natural; é o efeito necessário de
uma causa, a conseqüência de uma fatalidade oculta. Não há, em
definitivo, nem bem nem mal! E por esse modo se justificam as
mais graves faltas, anestesia-se a consciência, destrói-se toda idéia
de sanção moral e de justiça. Se, com efeito, o crime é fatal, é
involuntário, não é imputável nem infamante. Se a paixão é irresis-
tível, porque se há de tentar combatê-la? Semelhantes opiniões,
propagadas em todas as camadas, têm tido como conseqüência
sobreexcitar ao mais alto grau os apetites, desenvolvendo o sensua-
lismo e os instintos egoístas. Nas classes abastadas, muitos não têm
senão um objetivo: suprimir os deveres e as lutas austeras da vida,
92 Segundo as estatísticas, o número dos mortos voluntariamente se
elevou de trezentos per cento, de cinqüenta anos para cá.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
143
fazer da existência uma perpétua bacanal, uma espécie de embria-
guez, mas embriaguez cujo despertar poderia ser terrível.
Negam o livre-arbítrio e a sobrevivência do ser; negam Deus, o
dever, a justiça, todos os princípios em que repousam as sociedades
humanas, sem se preocuparem com o que pode resultar de seme-
lhantes negações. Não reparam a deplorável influência que elas
exercem sobre as multidões, que são, desse modo, impelidas aos
excessos. Assim é que, pouco a pouco, os caracteres se enfraque-
cem, a dignidade humana se amesquinha, as sociedades perdem a
virilidade e a grandeza.
Uma literatura inspirada pelo tédio da vida surgiu e se espa-
lhou por toda parte – uma literatura cuja onda sobe, alastra-se,
ameaça extinguir toda chama, sufocar no seio da alma humana as
esperanças generosas, os santos entusiasmos, submergir o pensa-
mento nas ondas do mais negro pessimismo.
Lede, por exemplo, O Combate Social, do Senhor Clemenceau.
Prestai atenção ao prefácio dessa obra, de que se exala a triste
poesia do nada, em que tudo fala de invasora decrepitude, de morte
do pensamento e da consciência, do nada sobretudo, para o qual
acredita o autor que todas as coisas rolam ou se arrastam. O senhor
Clemenceau descreve as últimas fases da existência na Terra:
“As nossas cidades derrocadas no meio de informes vestígios
humanos, as últimas ruínas tombadas sobre a vida expirante, todo o
pensamento, toda a arte tragados pela grande morte avassaladora.
Toda a obra humana sob a derradeira viscosidade da vida.”
“E depois, a derradeira manifestação de vida terrestre será, a
seu turno, destruída. Inutilmente, passeará o globo frio e nu a sua
indiferença pelos estéreis caminhos do espaço. Encerrar-se-á,
então, o ciclo dos últimos planetas irmãos, mortos alguns talvez já,
desde agora. E os Sóis extintos, seguidos do seu fúnebre cortejo,
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
144
precipitarão na noite a sua desordenada carreira para o desconheci-
do.”
Ignora o autor, então, que a vida é eterna? Se no fundo dos
céus se extinguem universos, outros se acendem e resplandecem;
se há túmulos no espaço, também existem berços. Nada pode ser
destruído, uma só molécula, nem um princípio de vida; para cada
ser, como para cada mundo, a morte não é mais que transição, o
crepúsculo que precede a aurora de um eterno recomeço. O Uni-
verso é o campo de educação do espírito imortal, a vida o seu
conduto de ascensão para um ideal mais belo, iluminado pelos
raios do amor e da justiça.
Em definitivo, de tantas lutas, de tantos males e vicissitudes, o
que resulta é o bem final dos seres. Desgraçado de quem o não
sabe ver e compreender!
Ouçamos ainda o Sr. Júlio Soury, num artigo da Justiça, de 10
de maio de 1895, no qual analisa a obra que citamos:
“Que vem a ser o belo, o bem, o verdadeiro, senão meros con-
ceitos, abstrações de abstrações? Ora, um conceito não corresponde
a coisa alguma de objetivo. Na Natureza não há bem nem mal, nem
verdade nem erro, nem beleza nem fealdade. Esses fantasmas não
surgem senão em nosso espírito: hão de se desvanecer com o der-
radeiro homem”.
“Nós ignoraremos sempre de que substância é feito este mun-
do. Nunca chegaremos a saber se no Universo há outra coisa além
de mecanismos. E lá, onde imperam as leis da mecânica, não há
Deus, alma, religião, nem metafísica.”
É o mesmo autor que nos dizia:93
93 Filosofia natural - pág. 210.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
145
“A vida é um sonho sinistro, uma dolorosa alucinação, por cu-
jo preço seria um bem o nada.”
Outros vão mais longe ainda. Um jornalista muito conhecido,
Edmundo Lepelletier, escrevia a respeito do naufrágio da Utopia:
“Todas as vantagens na existência pertencem aos que se acham
mais bem armados para triunfar na concorrência vital; e o mais
bem armado é o mais implacável, o mais egoísta, o menos acessí-
vel aos sentimentos de dor, de humanidade e também de justiça.”
“É essa necessidade de luta e essa fatalidade da vitória da força
com desprezo do direito, da justiça, da humanidade, o que faz todo
o vigor das sociedades e a salvação das civilizações.”
“Que é o bom?” – diz Frederico Nietzsche.94 – O poder! Que é
o mau? – A fraqueza! Que é a felicidade? – O Sentimento de que o
poder se engrandece, de que foi superada uma resistência. Come-
dimento, não; porém mais poder; não a paz antes de tudo, mas a
guerra; não a virtude, mas o valor!
“Pereçam os fracos e os estropiados. E que ainda os ajudemos
a desaparecer. Que pode haver de mais pernicioso do que não
importa que vício? – A piedade pelos fracos e desclassificados!”
Eis aí o que os escritores e filósofos materialistas difundem nas
folhas públicas. Têm eles verdadeiramente consciência da respon-
sabilidade que contraem? Consideram a messe que tal sementeira
produzirá? Sabem que, vulgarizando essas doutrinas desesperado-
ras e iníquas, metem na mão dos deserdados o facho dos incêndios
e os instrumentos de morte?
Ah! Essas doutrinas parecem anódinas, inofensivas aos felizes,
aos satisfeitos, aos cépticos que gozam, que possuem com o neces-
sário o supérfluo, e com as quais justificam todos os seus apetites,
94 O Anti-Cristo, por Frederico Nietzsche.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
146
desculpam todos os seus vícios; mas os que a sorte fere, os que
padecem e sofrem, que uso, que aplicação farão de tais doutrinas?
O exemplo de Vaillant e de Emílio Henry no-lo demonstra.
Vaillant o declarou perante o Tribunal do Sena, em janeiro de
1894. Foi na leitura deobras materialistas que hauriu a idéia do seu
crime.
Emílio Henry usava da mesma linguagem: “Estudos científicos
iniciaram-me no jogo das forças naturais; eu sou materialista e
ateu.”
E quantos outros, depois, afirmaram as mesmas teorias perante
seus juízes!
O ciência da matéria! Com as tuas implacáveis afirmações,
com as tuas inexoráveis leis do atavismo e da hereditariedade,
quando ensinas que a fatalidade e a força regem o mundo, tu ani-
quilas todo impulso, toda energia moral nos fracos e nos deserda-
dos da existência; fazes penetrar o desespero no lar de inúmeras
famílias; instilas o teu veneno até o âmago das sociedades!
Ó materialistas! Apagastes o nome de Deus no coração do po-
vo: dissestes-lhe que tudo se resumia nos prazeres da Terra; que
todos os apetites eram legítimos, que a vida era uma sombra efê-
mera.
E o povo acreditou; calaram-se as vozes íntimas que lhe fala-
vam de esperança e de justiça. As almas fecharam-se à fé, para se
abrirem às más paixões. O egoísmo expulsou a piedade, o desinte-
resse, a fraternidade.
Sem ideal em sua triste vida, sem fé no futuro, sem luz moral,
o homem retrogradou ao estado bestial; sentiu o despertar dos
ferozes instintos, entregou-se à cobiça, à inveja, aos arrastamentos
desordenados. E agora, as feras rugem na sombra, tendo no coração
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
147
o ódio e a raiva, prontas a despedaçar, a destruir, a amontoar ruínas
sobre ruínas.
A sociedade está afetada de profundos males. O espetáculo das
corrupções, do impudor, que em torno de nós se ostentam, a febre
das riquezas, o luxo insolente, o frenesi da especulação que, em sua
avidez, chega a esgotar, a estancar as fontes naturais da produção,
tudo isso enche de tristeza o pensador.
E, como na ordem das coisas tudo se encadeia, tudo produz os
seus frutos, o mal profusamente semeado parece atrair a dor e a
tempestade. Esse o aspecto formidável da situação. Parece que
atingimos uma hora sombria da História:
Desgraçados dos que sufocaram as vozes da consciência, que
assassinaram o ideal puro e desinteressado, que ensinaram ao povo
que tudo era matéria e a morte o nada! Desgraçados dos que não
quiseram compreender que todo ser humano tem direito à existên-
cia, à luz e, mais ainda, à vida espiritual; que deram o exemplo do
egoísmo, do sensualismo e da imoralidade!
Contra essa sociedade que não oferece ao homem nem amparo,
nem consolação, nem apoio moral, uma tempestade furiosa se
prepara. Fuzilam, por vezes, raios do seio das multidões; a hora da
cólera se avizinha. Porque não é sem perigo que se comprime a
alma humana, que se impede a evolução moral do mundo, que se
encerra o pensamento no círculo de ferro do cepticismo e do nega-
tivismo. Chega um dia em que esse pensamento retrocede violen-
tamente, em que as camadas sociais são abaladas por terríveis
convulsões.
Ergue, porém, a tua fronte, ó homem! e recobra a esperança.
Um novo clarão vai descer dos espaços e iluminar o teu caminho.
Tudo o que até agora te ensinaram era estéril e incompleto. Os
materialistas não perceberam das coisas mais que a aparência e a
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
148
superfície. Eles não conhecem da vida infinita senão os aspectos
inferiores. O sonho deles é um pesadelo.
Sem dúvida, se considerarmos o espetáculo da vida na Terra,
forçoso é reconhecer que o que nela predomina, nas inferiores
regiões da Natureza, é a luta ardente, o combate sem tréguas, a
perpétua guerra com que cada ser procura conquistar um lugar ao
Sol. Sim, os seres se engalfinham e as forças universais se chocam
em luta gigantesca; mas, em definitivo, o que dessa luta resulta não
é o caos, a confusão, como se poderia esperar de forças cegas; é o
equilíbrio e a harmonia. Por toda parte a destruição dos seres e das
coisas não é senão o prelúdio de reconstruções, de novos nascimen-
tos.
E que importa a morte aparente, se a vida é imortal, se o ser é,
em sua essência, imperecível; se mesmo essa morte é uma das
condições, uma das fases da sua elevação?
E preciso não enxergar somente a evolução material. Essa não
é mais que uma face das coisas. A destruição dos organismos nada
prova. São passageiras construções; o corpo é apenas uma veste. A
realidade viva reside no ser psíquico, no espírito. É ele quem anima
essas formas materiais. O espírito torna a encontrar-se integral no
além-túmulo, com as qualidades adquiridas e os merecimentos
acumulados, pronto para novas ascensões. Torna a encontrar-se
revestido desse invólucro sutil, desse corpo fluídico que lhe é
inseparável, que existia antes do nascimento, subsiste atualmente
em cada um de nós e sobreviverá à morte; a existência desse corpo
sutil está demonstrada por experiências cotidianas de desdobra-
mento, de exteriorização da sensibilidade, pela aparição, à distân-
cia, dos fantasmas de vivos durante o sono, assim como pela de
pessoas falecidas.95
95 Ver No Invisível - "Espiritismo e Mediunidade", cap. XX.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
149
Acerca de outros pontos não são mais felizes as teorias materi-
alistas. Dizem que tudo o que caracteriza o espírito humano –
aptidões, faculdades, vícios e virtudes – se explica pela lei de
hereditariedade e pela influência do meio. Reparai em torno de vós;
vereis um desmentido a esta asserção, nos próprios fatos. Certo, é
considerável a influência das condições materiais; obriga às vezes
ao seu jugo, alguns espíritos. Quantos outros, porém, graças à
vontade, à coragem, à perseverança, têm sabido elevar-se da mais
obscura posição, das classes mais inferiores, até às alturas em que
brilha o gênio! Quantos pensadores, sábios, filósofos, nascidos na
pobreza, têm sabido, por seus esforços, atingir as maiores culmi-
nâncias! É necessário mencioná-los? Recordemos apenas que
Copérnico era filho de um padeiro; Kepler, filho de um taverneiro,
foi também, por sua vez, caixeiro de taverna, em moço: d'Alem-
bert, enjeitado, apanhado em noite invernosa, à porta de uma igre-
ja, foi educado pela mulher de um vidraceiro; Newton e Laplace
eram filhos de pobres camponeses; Humphry Davy, criado de um
farmacêutico; Faraday, operário encadernador; Franklin, aprendiz
de impressor. Todos esses e milhares de outros souberam reagir
contra as mais desfavoráveis condições, triunfar dos maiores obstá-
culos, adquirir uma reputação indestrutível.
Não são, pois, a condição nem a origem que dão o talento. Um
pai ilustrado pode ter uma descendência medíocre. Dois irmãos
podem parecer-se fisicamente, nutrir-se com os mesmos alimentos,
receber a mesma educação, sem ter por isso as mesmas aptidões, as
mesmas faculdades.
Em desmentido às teorias negativas, tudo, ao contrário, de-
monstra que a inteligência, o gênio, a virtude, não são o resultado
das condições materiais, mas que, longe disso, se afirmam como
um poder superior a essas condições e muitas vezes as dominam e
governam.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
150
Sim, inegavelmente, de um modo geral, a matéria pesa grossei-
ramente sobre o espírito e lhe estorva os surtos; mas também,
muitas vezes, a vontade se ergue e subjuga as resistências da carne,
até no meio das torturas mais cruéis. Não o vemos em todos os que
sofreram e morreram por uma grande causa, em todos os mártires
que deram pela verdade a própria vida? É Giordano Bruno prefe-
rindo o suplício à retratação; Campanella que sofre sete vezes a
tortura e sete vezes recomeça as suas sátiras mordazes contra os
inquisidores; Joana d'Arc, que morre na fogueira; Sócrates, que
prefere beber a cicuta a renegar suas doutrinas. É Pedro Ramus,
Arnaldo de Brescia, João Huss, Jerônimo de Praga, Savonarola.
Em todos esses grandes supliciados vemos afirmar-se a cinti-lante superioridade do espírito sobre a matéria. O corpo, atormen-
tado pelo sofrimento, se estorce e geme, mas lá está a alma que se
impõe e domina as revoltas da carne.
Tudo isso nos demonstra que imenso tesouro é a vontade, fa-
culdade máter, cuja utilização constante e esclarecida tão alto pode
elevar o homem. A vontade é a arma por excelência que ele precisa
aprender a utilizar e incessantemente exercitar. Os que, com os
seus sofismas, a procuram deprimir e entorpecer, cometem a mais
funesta ação.
Não é, realmente, bem amargo assinalarmos que as doutrinas
mais difundidas entre nós, o Catolicismo de um lado, o Materia-
lismo do outro, concorrem ambas para aniquilar ou, pelo menos,
dificultar o exercício das potências ocultas no ser humano – razão,
vontade, liberdade –, potências mediante as quais poderia o homem
realizar tão grandes coisas e criar para si um esplêndido futuro?
Como, depois disso, nos admirarmos de que a nossa civiliza-
ção ainda apresente tantas chagas repugnantes, desde que o homem
a si mesmo se ignora, ignorando a extensão das riquezas que nele a
mão divina colocou para sua felicidade e elevação?
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
151
*
A Humanidade, no círculo da vida, debate-se entre dois erros:
um que afirma e outro que nega; um que diz ao homem: crê sem
compreender; outro que lhe grita: morre sem esperar!
De um lado a idolatria, porque é um ídolo esse Deus que ainda
parece desejar o sangue em seu nome outrora derramado, que se
ergue como obstáculo entre o homem e a Ciência, que combate o
progresso e a liberdade – sombria divindade de que se não pode
fazer objeto de ensino, sem velar a face do Cristo, sem calcar aos
pés a razão e a consciência.
Do outro lado o nada, o aniquilamento de toda esperança, de
toda aspiração à outra vida, a destruição de toda idéia de solidarie-
dade, de fraternidade entre os homens; se eles podem sentir-se
ligados por uma crença, mesmo cega, não o podem ser por nega-
ções.
A França, em particular, acha-se presa, como em um tornique-
te, entre essas duas concepções opostas, ambas dogmáticas a seu
modo, ambas procurando impor-se a todo o país e nele fundar o
reino da teocracia ou do ateísmo.
Se o materialismo e o negativismo tivessem apenas sido os i-
nimigos da superstição e da idolatria, ter-se-ia podido neles ver os
agentes de uma transformação necessária. Mas, não se limitaram a
dar combate aos dogmas religiosos, condenaram tudo o que consti-
tui a grandeza da alma, aniquilaram as suas energias morais, des-
truíram a sua confiança em si mesma e em Deus, preconizaram
esse abandono à fatalidade, esse apego exclusivo às coisas materi-
ais, que lentamente nos desarma, enfraquece e prepara para a queda
e para o desbarato.
A alma humana recuou diante desse abismo. Os progressos do
materialismo, as suas conseqüências sociais, lançaram o terror em
grande número de espíritos. Diante da obra de destruição realizada
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
152
pela crítica materialista e da ausência de todo ensino suscetível de
elevar e fortalecer a alma das democracias, ocorreu-lhes o poder da
idéia religiosa; voltaram-se para a Igreja como único refúgio, única
autoridade sólida e eficaz.
Daí, um recobro de vitalidade, um retorno de prestígio para o
Catolicismo. Este, prevalecendo-se dos erros dos adversários,
emprega vigorosos esforços por disputar aos livres pensadores a
direção das massas e readquirir a perdida influência.
Como vimos, porém, não seria capaz a Igreja Romana de satis-
fazer a necessidade de luz e de ideal que para ela conduz certos
espíritos. Suas forças não são forças vivas; o que ela traz no seio
não é o futuro, é o passado com as suas sombras, a sua intolerância,
os seus ódios, os seus motivos de divisão e perpétua discórdia entre
os homens. Essa retroação das coisas que vem favorecê-la não
pode deixar de ser efêmera. Cedo a incapacidade da Igreja se pa-
tenteará aos olhos de uma geração esclarecida, ávida de fatos e
realidades.
A própria Igreja se encarregou de desiludir os que nela deposi-
tavam algumas esperanças de progresso e renovação.
Com sua encíclica Satis cognitum, publicada em agosto de
1896, Leão XIII reincidiu cegamente nas doutrinas do passado, nas
mais intransigentes afirmações.
“É na Igreja Romana que se perpetua – diz ele – a missão
constante e imutável de ensinar tudo o que o próprio Jesus-Cristo
ensinou.” Para todos subsiste “a obrigação constante e imutável de
aceitar e professar toda a doutrina assim ensinada.”
“A Igreja e os Santos Padres viram sempre como excluído da
comunhão católica, e fora da Igreja, quem quer que se separe,
pouquíssimo que seja, da doutrina ensinada pelo magistério autên-
tico.”
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
153
“Toda vez, pois, que a palavra desse magistério, instituído na
Igreja por Jesus-Cristo, declara que tal ou tal verdade faz parte do
conjunto da doutrina divinamente revelada, deve cada um crer com
certeza que isso é verdade.”
Depois, ainda Pio X, em suas instruções sobre o modernismo,
acentuou esse estado de espírito.
Assim, mais que nunca, pretendem os papas decidir do destino
das almas. Suas encíclicas não são mais que reedições, noutros
termos, da famosa expressão: “Fora da Igreja não há salvação!”
Eles condenam todas as doutrinas que não aceitam a sua suprema-
cia. Cavam mais profundamente o fosso que separa o pensamento
moderno, o livre e claro espiritualismo, do dogmatismo romano.
Aniquilam as ilusões dos que haviam acreditado num possível
retorno do Catolicismo na direção de mais largos e iluminados
horizontes, na conciliação entre os crentes de todas as ordens,
unindo seus esforços comuns para combater o ateísmo e a desmora-
lização.
*
A despeito das investidas que sofreu nos últimos séculos, a I-
greja pôde resistir e manter-se. Sua força, recordemo-lo, residia no
fato de possuir uma concepção geral do mundo e da vida, embora
falsa, para opor ao vácuo e à esterilidade dás doutrinas materialis-
tas. O que nela resta de moral evangélica, junto à sua poderosa
organização hierárquica, à sua rigorosa disciplina, às obras de
beneficência e às virtudes de um certo número dos sacerdotes,
bastou para favorecer a resistência, para assegurar-lhe a vida no
seio de um mundo que se esforçava por escapar à sua constrição.
Pueril seria, porém, acreditar que a fé do passado pode renas-
cer; para sempre se afrouxou o laço religioso que prendia os ho-
mens à Igreja Romana. O Catolicismo, dissemos, já não está em
condições de fornecer às sociedades modernas o alimento necessá-
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
154
rio à sua vida espiritual, à sua elevação moral. Não o vemos em
torno de nós? Os crentes atuais, tomados de conjunto, não são nem
menos materiais, nem menos aferrados à fortuna, aos prazeres, aos
gozos, do que os livres pensadores.
Entre eles, quantos indiferentes, que praticam a meio, sem
crer, sem jamais refletir nos problemas religiosos relativos ao
Universo, ao homem e à vida! Todos os erros do passado, todos os
vícios do velho mundo, o farisaísmo judaico, as superstições e a
idolatria pagãs, reapareceram na sociedade dita cristã, a tal ponto
que se tem o direito de perguntar se a civilização que se adorna
com esse nome é superior à que adotam outros.
O Cristianismo era uma fé viva e radiante; o Catolicismo é a-
penas uma doutrina áspera e sombria, irreconciliável com os pre-
ceitos do Evangelho, não tendo para opor aos argumentos da crítica
racionalista senão as afirmações de um dogma impotente para
provar e convencer.
Todas as declarações, todas as encíclicas pontificais nada po-
dem a esse respeito. Será preciso mudar ou morrer. A Igreja Ro-
mana não reassumirá o governo do mundo.
Na hora atual não há renovaçãomoral possível senão fora do
dogmatismo das igrejas. O que reclamam as nossas sociedades é
uma concepção religiosa em harmonia com o Universo e a Ciência
e que satisfaça à razão. Toda restauração dogmática seria estéril.
Os povos já se não enganariam com isso. O dogma, para eles, é a
Igreja. E a Igreja, aliando-se a todas as opressões, tornou-se, na
frase de J. Jaurès, “uma das formas da exploração humana”. Suas
afirmações perderam todo o crédito no espírito das massas. O
povo, hoje, quer a verdade, toda a verdade.
É certo que a sociedade moderna ainda se prende, senão à Igre-
ja, pelo menos ao Cristianismo, por certos laços que são os de todo
um passado, lentamente formados através dos séculos. Continua
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
155
ligada à idéia cristã, porque os princípios do Evangelho penetra-
ram, sem que talvez o percebesse e sob novos nomes, em seu cora-
ção e pensamento.
Há, no Evangelho, princípios, germes, longo tempo ocultos e
incompreendidos, como a semente sob a terra, e que, depois de
muitos sofrimentos lenta e dolorosamente fermentados, não recla-
mam senão aparecer, desabrochar, produzir frutos. Para isso é
necessário um novo impulso, uma diferente orientação do pensa-
mento neocristão, promovida por espíritos sinceros e desinteressa-
dos.
O Cristianismo trouxera ao mundo, mais que todas as outras
religiões, o amor ativo por todo o que sofre, a dedicação à Huma-
nidade levada até ao sacrifício, à idéia de fraternidade na vida e na
morte, aparecendo pela primeira vez na História sob a figura do
Crucificado, do Cristo morrendo por todos.
Foi esse grande pensamento que, não obstante as manobras da
Igreja e o falseamento das doutrinas primitivas, penetrou nas soci-
edades ocidentais e impeliu as raças brancas, de estádio em estádio,
para formas sociais mais conformes ao espírito de justiça e frater-
nidade, incitando-as a assegurar aos humildes um lugar cada vez
mais amplo à plena luz da vida. É preciso que um novo movimento
de idéias, partido, não do santuário, mas de fora, venha completar e
pôr em evidência esses preceitos, essas verdades ocultas, mostrar
nelas o princípio das leis que regem os seres nesta, como na outra
vida. Será essa a missão do moderno Espiritualismo.
A nova revelação, os ensinos dos Espíritos, as provas que for-
necem da sobrevivência, da imortalidade do ser e da justiça eterna,
habilitam a distinguir o que há de vivo ou morto no Cristianismo.
Se os homens de fé quiserem convencer-se do poder desses ensinos
e colher os seus frutos, poderão neles encontrar novamente a vida
esgotada, o ideal atualmente agonizante.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
156
Esse ideal, que as vozes do mundo invisível proclamam, não é
diferente do dos fundadores do Cristianismo. Trata-se sempre de
realizar na Terra “o reino de Deus e sua justiça”, de purificar a
alma humana dos seus vícios, dos seus erros, de a reerguer de suas
quedas e, ministrando-lhe o conhecimento das leis superiores e dos
seus verdadeiros destinos, nela desenvolver esse espírito de amor e
de sabedoria sem o qual não há enobrecimento nem paz social. O
Cristianismo, para renascer e resplandecer, deverá vivificar-se
nessa fonte em que se desalteravam os primeiros cristãos. Terá que
se transformar, libertar-se de todo caráter miraculoso e sobrenatu-
ral, voltar a ser simples, claro, racional, sem deixar de ser um laço,
uma relação entre o homem, o mundo invisível e Deus. Sem essa
relação, não há crença forte, nem filosofia elevada, nem religião
viva.
Desembaraçando-se das formas obsoletas, deve a Religião ins-
pirar-se nas modernas descobertas, nas leis da Natureza e nas pres-
crições da razão. Deve familiarizar o espírito com essa lei do desti-
no que multiplica as existências e o coloca alternativamente nos
dois mundos, material e fluídico, permitindo-lhe, assim, completar,
desenvolver, conquistar a própria felicidade. Deve fazer-lhe com-
preender que uma estreita solidariedade liga os membros das duas
humanidades, a da Terra e a do espaço, os que vivem na carne e os
que nela aspiram renascer para trabalhar no progresso dos seus
semelhantes e no seu próprio. Deve mostrar-lhe, acima de tudo,
essa regra de soberana justiça, em virtude da qual cada um colhe,
através dos tempos, tudo o que semeou de bem e de mal, como
germes de felicidade ou sofrimento.
Essas noções, essas leis, mais bem-compreendidas, fornecerão
nova base de educação, um princípio de reconstituição, um laço
religioso entre os homens. Porque o vínculo da solidariedade que
os reúne estende-se ao passado e ao futuro, abrange todos os sécu-
los, liga-os a todos os mundos. Membros de uma só família imen-
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
157
sa, solidários através das suas existências no vastíssimo campo de
seus destinos, partidos do mesmo ponto para atingir as mesmas
eminências, todos os homens são irmãos e se devem mutuamente
auxiliar, amparar em sua marcha através das idades, para um ideal
de ciência, sabedoria e virtude.
*
O Cristo disse: “a letra mata e o espírito vivifica”. Mas sempre
os homens da letra procuraram avassalar o espírito. Emaranharam
o pensamento em uma rede de dogmas de que este não pode sair
senão mediante um despedaçamento. À força de comprimir a ver-
dade, as igrejas terminaram por desconhecer o seu poder. Chega,
porém, o dia, cedo ou tarde, em que ela explode com força incoer-
cível, abalando, até aos seus fundamentos, as instituições que por
muito tempo a escravizaram.
É do que estão ameaçadas as igrejas. As advertências, todavia,
não lhes têm faltado. Mesmo dentre os mais sinceros cristãos,
vozes proféticas se têm feito ouvir. Que dizia de Maistre desde a
primeira metade do século dezenove?
“Igreja cristã, imaginas que possa tal estado de coisas ser du-
radouro e que essa extensa apostasia não seja ao mesmo tempo a
causa e o presságio de memorável julgamento? Vê se os ilumina-
dos erraram encarando como mais ou menos próxima uma terceira
explosão da onipotente bondade de Deus para com os homens. Eu
não acabaria mais, se me propusesse acumular todas as provas que
se reúnem para justificar essa longa expectativa. Força é que nos
preparemos para um grande acontecimento na ordem divina. Na
Terra não há mais religião. Formidáveis oráculos, além disso,
anunciam que os tempos são chegados.”
Realizam-se as previsões desse escritor. A Humanidade atra-
vessa, do ponto de vista filosófico, religioso e social, profunda
crise. As potências invisíveis estão em atividade. Todos quantos,
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
158
no silêncio, quando emudecem os ruídos da Terra têm escutado as
suas vozes, todos os que estudam as correntes, os sopros misterio-
sos que passam pelo mundo, sabem que um trabalho de fermenta-
ção se opera nas profundezas do pensamento e na própria Ciência.
Uma renovação se está preparando. Nosso século assistirá ao desa-
brochar de uma grande idéia.
Por isso é que dizemos aos sacerdotes de todos os cultos e de
todas as religiões: Se quereis que vivam as vossas igrejas, volvei a
atenção para a nova luz que Deus envia à Humanidade. Deixai que
ela penetre no sombrio edifício das vossas concepções; deixai-a
entrar a flux nas inteligências, a fim de que os homens, esclarecen-
do-se, corrijam-se; a fim de que o ideal religioso renasça, aqueça
os corações e vivifique as sociedades.
Dilatai vossos horizontes; procurai o que aproxima as almas e
não o que as divide. Não lanceis o anátema aos que não pensam
como vós, porque para vós mesmos preparareis cruéis decepções
na outra vida. Que a vossa fé não seja exclusivista, nem intolerante.
Aprendei a discernir, a separar as coisas imaginárias das reais.
Abstende-vos de combater a Ciência e renegar a razão, porque a
razão é Deus dentro de nós,e o seu santuário é a nossa consciência.
Objetareis, porém: já aí não estará a nossa religião?
Sem dúvida, o novo espiritualismo não é uma religião; mas a-
parece no mundo, tendo na mão um facho cuja projeção vai ilumi-
nar, à distância, e fecundar todas as religiões. O moderno espiritua-
lismo é uma crença baseada em fatos, em realidades palpáveis,
uma crença que se desenvolve, progride com a Humanidade e pode
unir todos os seres, elevando-os a uma concepção sempre mais alta
de Deus, do destino e do dever. Graças a ele, cada um de nós a-
prenderá a comunicar-se com o supremo Autor das coisas, com
esse Pai de todos, que é o vosso e o nosso Deus, e que todo cérebro
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
159
que pensa, e todos os corações que adoram, procuram desde a
origem das idades.
Cessai de atribuir a capacidade de estabelecer o vínculo moral
e religioso a uma doutrina de opressão e de terror. Deixai ao espíri-
to humano o livre surto para a luz e para a imensidade. Toda fulgu-
ração do alto é uma emanação de Deus, que é o sol eterno das
almas.
Quando a Humanidade se houver libertado das superstições e
dos fantasmas do passado, nela então vereis desabrochar os germes
de amor e de bem que a mão divina lhe depôs no íntimo, e conhe-
cereis a verdadeira religião, a que paira acima das diversas crenças
e não maldiz nenhuma.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
160
9
A Nova Revelação – o Espiritismo e a Ciência
A nova revelação se efetua sob inesperadas formas, ou, antes,
sob formas esquecidas, idênticas, contudo, às que revestiram as
primeiras manifestações do Cristianismo.
Este havia começado pelo milagre. Foi com a prova material e
a sobrevivência que a religião do Cristo se fundou.96 O moderno
espiritualismo se revela com o concurso do fenômeno. Ora, milagre
e fenômeno são duas palavras para exprimir um só e mesmo fato.
O sentido diferente que se lhe atribui dá a medida do caminho
percorrido pelo espírito humano em dezenove séculos. O milagre é
superior à lei natural; o fenômeno submete-se a ela. Não há mais
que o efeito de uma causa, a resultante de uma lei. A experiência e
a razão têm demonstrado que o milagre é impossível. As leis da
Natureza, que são as leis divinas, não poderiam ser violadas, por-
que são elas que regulam e mantêm a harmonia do Universo. Deus
não pode a si mesmo desmentir.
Os fenômenos de além-túmulo são encontrados na base de to-
das as grandes doutrinas do passado. Em todos os tempos, constan-
tes relações mantinham unidos o mundo invisível e o visível. Na
Índia, na Grécia e no Egito, esse estudo era privilégio de reduzido
número de investigadores e iniciados; os resultados obtidos se
conservavam cuidadosamente ocultos.
Para tornar esses estudos acessíveis a todos, para fazer conhe-
cer as verdadeiras leis que regem o mundo invisível, para ensinar
os homens a ver nesses fenômenos não mais uma ordem de coisas
sobrenatural, mas um ignorado aspecto da Natureza e da vida, eram
96 Ver capitulo V.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
161
necessários o imenso trabalho dos séculos, todas as descobertas da
Ciência, todas as conquistas do espírito humano em tal matéria. Era
preciso que o homem conhecesse o seu verdadeiro lugar no Uni-
verso, aprendesse a ponderar a fraqueza dos seus sentidos, a impo-
tência destes para explorar, por si e sem auxílio, todos os domínios
da Natureza viva.
A Ciência, com as suas invenções, atenuou essa imperfeição
dos nossos órgãos. O telescópio descerrou ao nosso olhar os abis-
mos do espaço; o microscópio revelou o infinitamente pequeno. A
vida apareceu por toda parte, no mundo dos infusórios como na
superfície dos globos gigantescos, que rolam na profundeza dos
céus. A Física descobriu a transformação das forças, a radioativi-
dade dos corpos e as leis que mantêm o equilíbrio universal: a
Química deu a conhecer as combinações da substância. O vapor e a
eletricidade vieram revolucionar a face do globo, facilitar as rela-
ções dos povos e as manifestações do pensamento, a fim de que a
idéia irradie e se propague na esfera terrestre, por todos os seus
pontos.
O espírito humano pôde mergulhar os olhos nessa grande Bí-
blia da Natureza, nesse livro divino que ultrapassa, em toda a sua
majestade, as bíblias humanas. Aí leu ele, correntemente, as fórmu-
las e as leis que presidem às evoluções da vida, à marcha do Uni-
verso.
Agora vem o estudo do mundo invisível completar essa magní-
fica ascensão do pensamento e da Ciência. O problema da outra
vida ergue-se diante do espírito humano com um poder, uma auto-
ridade, uma insistência, como nada, talvez, de semelhante se pro-
duziu jamais na História. Porque nunca se tinha visto, assim, um
conjunto de fatos, de fenômenos a princípio considerados impossí-
veis, que não despertavam, no conceito da maioria dos nossos
contemporâneos, senão a antipatia e o sarcasmo, acabar impondo-
se à atenção e ao exame dos mais competentes e autorizados.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
162
Em meados do século transato, o homem, iludido por todas as
teorias contraditórias, por todos os sistemas deficientes com que
pretenderam nutrir-lhe o pensamento, deixava-se embalar pela
dúvida; perdia cada vez mais a noção da vida futura. Foi então que
o mundo invisível veio ter com ele e o perseguiu até em sua própria
casa. Por diversos meios, os mortos manifestaram-se aos vivos. As
vozes de além-túmulo falaram. Os mistérios dos santuários orien-
tais, os fenômenos ocultos da Idade Média, depois de longo silên-
cio, se renovaram e nasceu o Espiritismo.
Foi além-mar, num mundo novo e rico de energia vital, de ar-
dente expansão, menos escravizado que a velha Europa ao espírito
de rotina e aos preconceitos do passado – foi na América do Norte
que se produziram às primeiras manifestações do moderno Espiri-
tualismo. De lá se espalharam por todo o globo. Essa escolha era
profundamente judiciosa. A livre América era, justamente, o meio
propício para a obra de difusão e renovação. Por isso, nela se con-
tam hoje vinte milhões de “neo-espiritualistas”.
De um lado, porém, como do outro do Atlântico, foram idênti-
cas as fases de progressão da idéia espírita.
Nos dois continentes, o estudo do magnetismo e dos fluidos
havia preparado certos espíritos para a observação do mundo invi-
sível.
A princípio, fatos estranhos se produziram de todos os lados,
fatos de que se não atreviam as pessoas a falar senão à meia voz, na
intimidade. Depois, pouco a pouco, elevou-se o diapasão. Homens
de talento, sábios cujos nomes são outras tantas garantias de hono-
rabilidade e sinceridade, ousaram falar bem alto de tais fatos e
afirmá-los. Tratou-se de hipnotismo, de sugestão; vieram depois a
telepatia, os casos de levitação e todos os fenômenos do Espiritis-
mo.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
163
Mesas giravam num doido rodopio, objetos se deslocavam sem
contacto, ressoavam pancadas nas paredes e nos móveis. Todo um
conjunto de manifestações se produzia, vulgares na aparência, mas
perfeitamente adaptadas às exigências do meio terrestre, ao estado
de espírito positivo e céptico das sociedades modernas.
O fenômeno falava aos sentidos, porque os sentidos são como
as brechas por onde o fato penetrará até ao entendimento. As im-
pressões produzidas no organismo despertam a surpresa, provocam
a investigação, levam à convicção.
Depois da primeira fase, material e grosseira, as manifestações
revestiram novo aspecto. As pancadas vibradas se regularizaram e
tornaram um modo de comunicação inteligente e consciente. A
possibilidade de relações entre o mundo visível e o invisível surgiu
como fato extraordinário, subvertendo as idéias estabelecidas,
abalando os ensinoshabituais, mas franqueando sobre a vida futura
umbrais que o homem hesitava ainda em transpor, deslumbrado
como estava com as perspectivas que se lhe antolhavam.
À medida que se ia propagando, via o Espiritismo levantarem-
se contra ele numerosas oposições. Como todas as concepções
novas, teve que afrontar o desprezo, a calúnia, a perseguição moral.
Do mesmo modo que a idéia cristã em seu começo, foi cumulado
de animosidade e de injúrias. É sempre assim. Quando novos as-
pectos da verdade se apresentam aos homens, é sempre a desconfi-
ança e a hostilidade o que provocam.
E isso é fácil de compreender. A Humanidade esgotou as ve-
lhas formas do pensamento e da crença; e quando as novas, inespe-
radas formas da verdade se revelam, parece corresponderem mui
pouco ao ideal antigo, que está enfraquecido, mas não morto. Por
isso, é necessário um período assaz longo de exame, de reflexão,
de incubação, para que a idéia nova abra caminho nos espíritos.
Daí as incertezas e sofrimentos da primeira hora.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
164
Muito se tem ridiculizado as formas que o novo espiritualismo
revestia. Mas as potências invisíveis que velam pela humanidade
são melhores juízes que nós, dos meios de ação e de atração que
convêm adotar, conforme os tempos e os lugares, para conduzir o
homem à noção do seu papel e dos seus destinos, sem lhe estorvar
o livre-arbítrio. Porque está nisso o essencial: é preciso que a liber-
dade do homem seja integralmente respeitada.
A vontade superior sabe apropriar às necessidades de uma é-
poca e de uma raça as novas formas da revelação eterna. É ela que
suscita no seio das sociedades os pensadores, os experimentadores,
os sábios que indicarão o caminho a seguir e colocarão os primei-
ros marcos. Sua obra desenvolve-se lentamente. Fracos e insensí-
veis, a princípio, os resultados, mas a idéia penetra pouco a pouco
nas inteligências. O movimento, embora imperceptível, não deixa,
por isso mesmo, de ser às vezes mais seguro e mais profundo.
Em nossa época, a Ciência veio a ser a soberana mestra, a dire-
tora do movimento intelectual. Fatigada das especulações metafísi-
cas e dos dogmas religiosos, a Humanidade reclamava provas
palpáveis, sólidas bases em que pudesse repousar as suas convic-
ções. Apegava-se ao estudo experimental, à observação dos fatos
como a uma tábua de salvação. Daí, o grande crédito dos homens
de ciência no momento que atravessamos. Por isso é que a revela-
ção tomou um caráter científico. Foi por meio de fatos materiais
que se atraiu a atenção dos homens, tornados eles próprios materi-
ais.
Os misteriosos fenômenos que se encontram disseminados na
história do passado renovaram-se e multiplicaram-se ao redor de
nós; sucederam-se em ordem progressiva, que parece indicar um
plano preconcebido, decorrente de um pensamento, de uma vonta-
de.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
165
Efetivamente, à proporção que o novo espiritualismo ganhava
terreno, transformavam-se os fenômenos. As manifestações gros-
seiras do princípio se modificavam, revestiam caráter mais eleva-
do. Médiuns recebiam, por meio da escrita, de um modo mecânico
ou intuitivo, comunicações, inspirações de estranha fonte. Instru-
mentos de música tocavam sem contacto. Escutavam-se vozes e
cantos; melodias penetrantes parecia descerem do céu e perturba-
ram os mais incrédulos. A escrita direta produzia-se do lado interi-
or de ardósias justapostas e lacradas. Fenômenos de incorporação
permitiam aos falecidos tomar posse do organismo de um sensitivo
adormecido. Gradualmente, e como que em conseqüência de um
desdobramento calculado, apareciam os médiuns videntes, falantes,
curadores.
Finalmente, os habitantes do espaço, revestindo temporários
invólucros, vinham misturar-se com os humanos, vivendo um
instante da sua vida material e terrestre, deixando-se ver, palpar,
fotografar, dando impressões de mãos, de rostos, esvaecendo-se em
seguida para retomar o seu estado etéreo.
Assim que, há cerca de meio século, todo um encadeamento de
fatos se produziu, desde os mais inferiores e vulgares, até os mais
transcendentes, conforme o grau de elevação das inteligências que
intervinham. Toda uma ordem de manifestações se desdobrou sob
as vistas de observadores atentos.
Por isso, a despeito das dificuldades de experimentação, a des-
peito dos casos de impostura e das formas de exploração a que
esses fenômenos algumas vezes serviram de pretexto, a apreensão
e a desconfiança diminuíram pouco a pouco; o número dos verifi-
cadores foi crescendo sempre.
De cinqüenta anos para cá, em todos os países o fenômeno es-
pírita tem sido objeto de freqüentes investigações, empreendidas e
dirigidas por comissões científicas. Cépticos sábios, professores
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
166
célebres, de todas as universidades do mundo, têm submetido esses
fatos a um exame profundo e rigoroso. Sua intenção era, a princí-
pio, fazer luz sobre o que acreditavam resultado de fraudes ou
alucinações. Todos, porém, incrédulos como eram, após anos de
consciencioso estudo e repetidas experimentações, abriram mão
das suas prevenções e se inclinaram perante a realidade dos fatos.
Quanto mais se tem examinado e escrutado o problema, tanto
mais numerosos è expressivos se têm revelado os casos de identi-
dade, as provas da persistência da personalidade humana no além-
túmulo. As manifestações espíritas, verificadas aos milhares em
todos os pontos do globo, demonstraram que um mundo invisível
se agita em torno de nós, ao nosso alcance, um mundo em que
vivem em estado fluídico todos os que nos precederam na Terra,
que aqui lutaram e sofreram, e constituem, para além da morte,
uma segunda humanidade.
O novo espiritualismo apresenta-se hoje com um cortejo de
provas, um conjunto de testemunhos tão imponente, que já não é
possível à dúvida para os investigadores de boa fé. Era o que,
nestes termos, externava o professor Challis, da Universidade de
Cambridge:
“Os atestados têm sido tão abundantes e completos, os teste-
munhos têm vindo de tantas fontes independentes entre si e de um
número tão considerável de assistentes, que é forçoso, ou admitir
as manifestações tais como no-las representam, ou renunciar à
possibilidade de certificar um fato, qualquer que seja, mediante um
depoimento humano.”97
Por isso o movimento de propagação se acentuou cada vez
mais. Na hora atual, assistimos a uma verdadeira expansão da idéia
espírita. A crença no mundo invisível se espalhou por toda a super-
97 Russell Wallace - O moderno espiritualismo, página 139.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
167
fície da Terra. Em toda parte o Espiritismo possui as suas socieda-
des de experimentação, os seus vulgarizadores, os seus jornais.
*
Insistamos num ponto essencial. O erro ou o cepticismo do
homem, relativamente à existência do mundo invisível, era devido
a uma causa única: a incapacidade da sua organização para lhe
fornecer uma idéia completa das formas e possibilidades da vida.
Perdemos de vista que os nossos sentidos, posto que se tenham
desenvolvido e apurado, desde a origem da Humanidade, ainda não
percebem senão as mais rudimentares formas da matéria; seus
estados sutis lhes escapam absolutamente. Daí a opinião, geralmen-
te divulgada, de que a vida não era possível senão sob formas e
com organismos semelhantes aos que nos afetam a vista. Daí a
idéia falsa de que a vida não era, por toda parte, mais que uma
imitação, uma reprodução do que vemos ao redor de nós.
No dia em que, com o auxílio de poderosos instrumentos de
óptica, o infinitamente grande e o infinitamente pequeno se paten-
tearam, foi realmente necessário reconhecer que os nossos senti-
dos, reduzidos a si mesmos,não abrangiam senão um círculo muito
restrito do domínio das coisas, um limitadíssimo campo da Nature-
za; que, em definitivo, quase nada sabíamos da vida universal.
Em época muito mais recente, ainda não conhecíamos da maté-
ria senão os seus três modos mais elementares: os sólidos, os líqui-
dos e os gases. Nada sabíamos das inúmeras transformações de que
é suscetível.
Foi somente há uns trinta anos que o quarto estado da matéria,
o estado radiante, se tornou conhecido dos sábios. W Crookes, o
acadêmico inglês, foi o primeiro que verificou a sua existência e as
suas experiências espíritas, continuadas por espaço de três anos,
não foram estranhas a essa descoberta. Ele conseguiu demonstrar
que a matéria, tornada invisível, reduzida a quantidades infinitesi-
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
168
mais, adquire energias e potencialidades incalculáveis, e que essas
energias aumentam sem cessar, à medida que a matéria se rarefaz.
Mais recentemente, investigações de numerosos sábios vieram
confirmar essas descobertas. Pouco a pouco a Ciência abordou o
domínio do invisível, do intangível, do imponderável. Forçoso foi
reconhecer que o estado radiante não é o último que a matéria
possa revestir; além desse, ela se apresentou sob aspectos cada vez
mais sutis e quintessenciados, rarefazendo-se quase ao infinito,
sem deixar de ser a forma possível, a forma necessária da vida.
O que a Ciência começa apenas a entrever, os espíritas sabiam-
no há muito pela revelação dos Espíritos. Eles tinham vindo assim
a saber que o mundo visível não é mais que ínfima porção do Uni-
verso; que fora do que incide sob os nossos sentidos, a matéria, a
força e a vida se apresentam sob formas variadas, sob inúmeros
aspectos; que nós estamos rodeados, envolvidos de radiações invi-
síveis para nós, em razão da grosseria dos nossos órgãos.
As experiências científicas vêm hoje demonstrar todas essas
noções. A comprovação desses modos de energia, a existência
dessas formas sutis da matéria fornecem, ao mesmo tempo, a ex-
plicação racional dos fenômenos espíritas. É aí que os invisíveis
haurem as forças de que se servem em suas manifestações físicas; é
com elementos da matéria imponderável que são formados os seus
invólucros, os seus organismos.
Os investigadores de boa fé não tardaram a reconhecê-lo. De-
pois da descoberta da matéria radiante, a Ciência avançou passo a
passo nesse vasto império do desconhecido. Todos os dias vem-na
confirmar, mediante novas experiências, o que o espírito humano,
mais clarividente que os nossos sentidos, há muito pressentira.
A Ciência havia começado por fotografar os raios invisíveis do
espectro solar, os raios ultravioleta e infravermelho, que não nos
impressionam a retina. Obteve, depois, a reprodução, na placa
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
169
sensível, de grande número de mundos estelares, de estrelas lon-
gínquas, de astros perdidos nas profundezas do espaço, a uma
distância tal que as suas irradiações luminosas escapam, não só à
nossa vista, mas, às vezes, mesmo ao telescópio.
Sabe-se que as sensações de luz, como as de som, calor, etc.,
são produzidas por determinada quantidade de vibrações do éter.
A retina, órgão da vista, percebe, em certos limites, as ondas
luminosas.98 Além desses limites, escapa-lhe grande número de
vibrações. Ora, essas vibrações, inapreciáveis para nós, podem ser
percebidas pela placa fotográfica, que é mais sensível que a vista
humana, o que permite dizer que a objetiva fotográfica é como um
olhar projetado ao invisível.
Temos disso ainda urna prova na aplicação dos raios X, dos
raios obscuros de Roentgen, à fotografia. Esses raios, posto que
invisíveis, têm o poder de atravessar certos corpos opacos, tais
98 A retina, que é o mais perfeito dos nossos órgãos, percebe as ondula-
ções etéreas desde 400 trilhões por segundo até 790 trilhões, isto é,
tudo o que constitui a gama das cores, do vermelho, numa das extre-
midades do espectro solar, ao violeta, na outra extremidade. Fora daí,
a sensação é nula. O professor Stokes conseguiu, entretanto, tornar
visíveis os raios ultravioletas, fazendo-os atravessar um papel embe-
bido em solução de sulfato de quinina, que reduz o número das vibra-
ções. Do mesmo modo, o professor Tyndall tornou visíveis, por meio
do calor, os raios infravermelhos, inapreciáveis à vista no estado nor-
mal.
Partindo desses dados, podemos cientificamente admitir uma seqüên-
cia ininterrupta de vibrações invisíveis, e daí deduzir que, se os nossos
órgãos fossem suscetíveis de receber a sua impressão, poderíamos dis-
tinguir uma variedade inimaginável de cores ignoradas e também i-
númeras formas, substâncias, organismos, que presentemente não se
nos revelam, em conseqüência da imperfeição dos nossos sentidos.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
170
como o tecido, a carne, a madeira, e permitem reproduzir objetos
ocultos a todos os olhos, como o conteúdo de uma bolsa, de unia
carta, etc. Penetram nas profundezas do organismo humano, e as
mínimas particularidades da nossa anatomia não são mais segredo
para eles.
A utilização dos raios X tende a generalizar-se cada vez mais e
nos mostra que considerável partido a Ciência do futuro poderá
tirar das formas sutis da matéria, quando as souber acumular e
dirigir.
A descoberta da matéria luminosa e de suas aplicações é de um
alcance incalculável. Não somente prova que além dos nossos
sentidos se desdobram, gradualmente, formas da matéria unica-
mente perceptíveis mediante aparelhos que as registram, mas,
também, que essas formas e radiações, à medida que aumentam de
sutileza, adquirem mais força e maior penetração. Habituamo-nos,
assim, a estudar a Natureza sob os seus recônditos aspectos, que
são os do seu maior poder.
Nessas manifestações ainda mal definidas da energia encon-
tramos a explicação científica de inúmeros fenômenos como as
aparições, a passagem dos Espíritos através dos corpos sólidos, etc.
A aplicação dos raios Roentgen à fotografia nos faz compreender o
fenômeno da vista dupla dos médiuns e o da fotografia espírita.
Efetivamente, se placas podem ser influenciadas por invisíveis
raios, por irradiações da matéria imponderável, que penetram os
corpos, com mais forte razão os fluidos quintessenciados, de que se
compõe o invólucro invisível dos Espíritos, podem, em certas
condições, impressionar a retina dos médiuns, aparelho delicado e
complexo como não o é a placa de vidro. Assim é que, a cada dia,
mais se fortifica o Espiritismo pelo acréscimo de argumentos tira-
dos das descobertas da Ciência e que terminarão por abalar os mais
obstinados cépticos.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
171
A fotografia das irradiações do pensamento vem descerrar no-
vo campo aos investigadores.
Numerosos experimentadores99 conseguiram fixar na placa
sensível as radiações do pensamento e as vibrações da vontade.
Suas experiências demonstraram que existe em cada ser humano
um centro de radiações invisíveis, um foco de luzes que escapam à
vista, mas podem impressionar as placas fotográficas.
Quer apoiando os dedos na face que tem a gelatina, quer apli-
cando no alto do cérebro e na obscuridade, a face vítrea da placa,
nesta se obtêm ondas, vibrações que variam de aspecto e intensida-
de sob a influência das disposições mentais do operador. Unifor-
mes, regulares no estado normal, essas ondas se formam em turbi-
lhões, em espirais, sob o influxo da cólera; estendem-se em len-
çóis, em largos eflúvios no êxtase, e se elevam em colunas majes-
tosas durante a prece, como vapores de incenso.
Conseguiu-se, mesmo, reproduzir nas placas o duplo fluídico
do homem, centro de tais radiações. O coronel de Rochas e o Dou-
tor Barlemontobtiveram, na oficina fotográfica de Nadar, a foto-
grafia simultânea do corpo de um médium e do seu duplo, momen-
taneamente separados.100
99 Ver, entre outras, a obra do Dr. Baraduc, A alma humana, seus movi-
mentos, suas luzes.
100 Ver Revista Espírita, novembro de 1894, com o fac-símile e as obras
do coronel de Rochas, Exteriorização da sensibilidade e Exterioriza-
ção da motricidade.
Análogos resultados se encontram no caso do médium Herrod, e no
caso afirmado pelo juiz Carter (Aksakof, Animismo e Espiritismo,
págs. 78 e 79) assim como nos testemunhos do Sr. Glendinning (Bor-
derland de julho 1896).
Ver também G. Delanne, As aparições materializadas dos Vivos e dos
Mortos, e H. Durville, O fantasma dos Vivos.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
172
Como prelúdio de tantas outras provas objetivas, que adiante
assinalaremos, a fotografia vem, portanto, revelar a existência
desse corpo fluídico que duplica e mantém o nosso corpo físico,
desse invólucro sutil que é a forma radiante do Espírito, dele inse-
parável durante a vida, como depois da morte.
As placas fotográficas não são unicamente impressionadas pe-
las vibrações fluídicas do ser humano; igualmente o são por formas
pertencentes ao mundo invisível, seres que existem, vivem e se
movem em torno de nós, presidindo a todo um conjunto de mani-
festações que vamos passar em revista e que se não podem explicar
de outro modo, que não pela sua presença e ação.
Tais seres, pela morte libertados das necessidades e misérias
da natureza humana, continuam a agir, graças a esse corpo fluídico
imperecível, formado de elementos muitíssimo sutis da matéria,
dos quais acabamos de falar e que até agora escapavam aos nossos
sentidos, em seu estado normal.
A questão do corpo fluídico, ou perispírito, posto que já por
nós tratada em outras páginas101 necessita de novas explicações,
porque nos faz melhor compreender a vida no espaço e o modo de
ação dos Espíritos sobre a matéria.
É sabido que as moléculas do nosso corpo físico estão subme-
tidas a constantes mutações. Todos os dias o nosso invólucro carnal
elimina e assimila um certo número de elementos. O corpo, desde
as partes moles do cérebro até as mais duras parcelas da carcaça
óssea, renova-se integralmente dentro de certo número de anos. Em
meio dessas correntes incessantes, subsiste em nós uma forma
fluídica original, compressível e expansível, que se mantém e
perpetua. É nela, no desenho invisível que apresenta, que se vêm
101 Ver caps. V, VIII; - Depois da Morte, cap. XXI e No Invisível, cap.
III.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
173
incorporar, fixar, as moléculas da matéria grosseira. O perispírito é
como o molde, o esboço fluídico do ser humano. É por isso que,
quando com a morte se efetua a separação, o corpo material tomba
imediatamente e se desorganiza e decompõe.
O perispírito é o invólucro permanente do Espírito, ao passo
que o corpo físico não passa de invólucro temporário, veste em-
prestada, que tomamos para realizar a peregrinação terrestre. O
perispírito existia antes do nascimento e sobrevive á morte. Ele
constitui, em sua íntima ligação com o Espírito, o elemento essen-
cial e persistente da nossa individualidade, através das múltiplas
existências que nos é dado percorrer.102
É pela existência desse corpo fluídico, pelo seu desprendimen-
to durante o sono, quer natural, quer provocado, que se explicam às
102 Segundo o Sr. Gabriel Delanne, que se aplicou a um estudo conscien-
cioso e aprofundado do corpo fluídico, o perispírito é um verdadeiro
organismo fluídico, um modelo em que se concreta a matéria e se or-
ganiza o corpo físico. É ele que dirige automaticamente todos os atos
que concorrem para a manutenção da vida. Sob o influxo da força vi-
tal, dispõe as moléculas materiais de conformidade com um desenho,
um plano determinado, que representa todos os grandes aparelhos do
organismo: respiração, circulação, sistema nervoso, etc., que são as
linhas de força.
É esse modelo, esse "invisível desenho ideal pressentido por Claude
Bernard", que mantém a estabilidade do ser no meio da renovação in-
tegral da matéria organizada; sem ele, a ação vital poderia tomar todas
as formas, o que não se verifica.
É igualmente de acordo com esse plano fluídico perispiritual que é
regulada a evolução embriogênica do ser, até à organização completa.
Ver G. Delanne, A evolução anímica e As aparições materializadas
dos vivos e dos mortos.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
174
aparições dos fantasmas dos vivos e, por extensão, as dos Espíritos
dos mortos.
Havia-se já podido verificar, em muitos casos, que o duplo flu-
ídico de pessoas vivas se afastava, em certas condições, do corpo
material para aparecer e manifestar-se à distância. Esses fenômenos
são conhecidos sob a denominação de fatos telepáticos.103 Desde
então, tornava-se evidente que, se durante a vida a forma fluídica
pode agir fora e sem o concurso do corpo, já não podia a morte ser
o termo da sua atividade.
No estudo especial dos fenômenos de exteriorização da sensi-
bilidade e da motricidade, o coronel de Rochas e, com ele, os pro-
fessores Richet e Sabatier, o Doutor Dariex, os Srs. de Grammont e
de Watterville, haviam abordado o domínio das provas experimen-
tais, donde resultou a certeza da ação do duplo fluídico, à distância.
Os sábios ingleses, por sua vez, averiguaram, em numerosos casos,
que formas fluídicas de Espíritos desencarnados se tornavam visí-
veis por via de condensação, ou, antes, de materialização, como o
vapor d'água espalhado, em estado invisível, na atmosfera pode,
mediante sucessivas transformações, tornar-se visível e tangível,
no estado de congelamento.
O perispírito é para nós invisível no seu estado ordinário; sua
essência sutil produz um número de vibrações que ultrapassa o
nosso campo de percepção visual. Nos casos de materialização, o
Espírito é obrigado a absorver dos médiuns, ou de outras pessoas
presentes, fluidos mais grosseiros, que assimila aos seus, a fim de
adaptar o número de vibrações do seu invólucro à nossa capacidade
visual. A operação é delicada, inçada de dificuldades. Entretanto,
os casos de aparição de Espíritos são numerosos e se apóiam em
respeitáveis testemunhos.
103 Ver nota complementar n° 13.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
175
O mais célebre é o do Espírito Katie King que, durante três
anos, se manifestou em casa de W. Crookes, o acadêmico inglês,
com o concurso da médium Florence Cook. O próprio W. Crookes
descreveu essas experiências em uma obra muito vulgarizada.104
Katie King e Florence Cook foram vistas lado a lado. Eram de
estatura e fisionomia diferentes e distinguia-se entre si por muitas
particularidades.
O testemunho de W. Crookes é confirmado pelos Drs. Gully e
Sexton, príncipe de Sayn-Wittgensteim, de Hárrison, B. Cóleman,
Sergeant Cox, Varley, engenheiros eletricistas, Senhores Florence
Maryat, etc., que assistiram, em diferentes lugares, às aparições de
Katie.
Em vão procuraram, muitas vezes, insinuar que o Senhor Cro-
okes se havia retratado de suas afirmações. Em 7 de fevereiro de
1909, W Stead, diretor da Review of Reviews, escrevia ao New
York American: “Estive com o Senhor Ch. W Crookes no Ghost
Club, onde fora jantar, e ele me autoriza a declarar o seguinte:
Depois das experiências que, em matéria de espiritualismo, há
trinta anos comecei, não vejo motivo algum para modificar minha
precedente opinião.”
Outro caso célebre é o do Espírito Abdullah, relatado por Ak-
sakof, conselheiro de Estado russo, em suaobra Animismo e Espi-
ritismo. O Espírito era de tipo oriental e a sua forma tinha mais de
1,80m. de altura, ao passo que o médium Eglinton era de pequena
estatura e de tipo anglo-saxônio muito acentuado.
Um sábio americano, Robert Dale Owen, antigo embaixador
dos Estados Unidos em Nápoles, consagrou seis anos às experiên-
cias de materialização. Declarou ter visto centenas de formas de
104 Investigações sobre os fenômenos do espiritualismo, Leymarie, edi-
tor”.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
176
Espíritos. Em sessão promovida pela Sociedade de Investigações
Psíquicas dos Estados Unidos, à qual assistia o Reverendo Savage,
célebre pregador, trinta Espíritos materializados apareceram à vista
dos assistentes, que neles reconheceram parentes e amigos faleci-
dos. Essas manifestações são freqüentes na América.105
O professor Lombroso, de Turim, conhecido em todo o mundo
por seus trabalhos de Fisiologia criminalista, fala também de várias
aparições que se produziram em sua presença, com a médium
Eusápia Paladino. Nestes termos o refere, em seu livro póstumo
Richerche sui fenomeni ipnotici e spiritici, a primeira aparição de
seu genitor:
“Em Gênova (1902), estava a médium em estado de semi-
inconsciência e eu não esperava obter fenômeno de importância.
Antes da sessão, havia-lhe pedido que deslocasse, em plena luz, um
pesado tinteiro de vidro. Em tom de voz muito comum, respondeu-
me ela: – Porque te ocupas com essas ninharias? Eu sou capaz de
coisa bem diferente: sou capaz de te fazer ver tua mãe. Nisso é que
deverias pensar!”.
“Impressionado com semelhante promessa, ao fim de meia ho-
ra de sessão assaltou-me o mais intenso desejo de vê-la realizado e
ao meu pensamento a mesa respondeu com três pancadas. De re-
pente (estávamos em meia-obscuridade, com a luz vermelha), vi
sair do gabinete uma forma pequenina, como era a de minha mãe.
(Convém notar que a estatura de Eusápia é superior, pelo menos
dez centímetros, à de minha mãe.) O fantasma estava envolto num
véu; fez o giro completo em torno da mesa até chegar ao pé de
mim, murmurando palavras que muitos ouviram, mas que minha
semi-surdez impediu-me de perceber. Ao tempo em que, tomado
105 Ver O Psiquismo experimental, por A. Erny, página 184. - Ver tam-
bém minha obra No Invisível, cap. XX.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
177
de comoção, lhe suplicava mas repetisse, diz-me ela: Cesare, mio
fio! – o que, devo confessar, não era hábito seu. Ela era, com efei-
to, veneziana e tinha o hábito regional de me dizer: mio fio! Pouco
depois, a meu pedido, afastou um momento o véu e me deu um
beijo.”
À páginas 93 da mencionada obra lê-se que a mãe do autor lhe
reapareceu umas vinte vezes ainda, no curso das sessões de Eusá-
pia.
A objeção favorita dos incrédulos, relativamente a esse gênero
de fenômenos, é que eles se produzem na escuridade, tão propícia a
fraudes.
Há nessa objeção uma parte de verdade e, por nossa vez, não
tem vacilado em denunciar escandalosas fraudes; mas é preciso
notar que a escuridade é indispensável às aparições luminosas, que
são as mais comuns. A luz exerce ação dissolvente sobre os flui-
dos, e inúmeras manifestações não podem ter bom êxito senão com
a sua exclusão. Há, entretanto, casos em que certos Espíritos pude-
ram aparecer à luz fosfórea. Outros se desmaterializam à plena luz.
Sob as irradiações de três bicos de gás, viram Katie King fundir-se
pouco a pouco, dissolver-se e desaparecer.106
A esses testemunhos temos o dever de acrescentar o nosso, re-
latando um fato de nosso conhecimento pessoal.
Durante dez anos praticamos essa ordem de estudos, com o
concurso de um médico de Tours, o Dr. A., e de um capitão arqui-
vista do 94º Corpo. Por intermédio de um deles, mergulhado em
sono magnético, os invisíveis nos prometiam, havia muito tempo,
uma materialização, quando, uma tarde, achando-nos os três reuni-
dos no consultório do amigo, portas cuidadosamente fechadas e
106 Revue Scientifique et Morale du Spiritisme, dezembro 1909 e janeiro
1910.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
178
penetrando ainda suficiente claridade pela ampla janela, de modo
que nos permitia ver distintamente os menores objetos, ouvimos
três pancadas em dado ponto da parede. Era o sinal convencionado.
Tendo-se os olhos voltados para esse lado, vimos surgir do
meio da parede, sem qualquer solução de continuidade, uma forma
humana, de estatura média. Aparecia de perfil, mostrando a princí-
pio os ombros e a cabeça. Gradualmente, foi-se apresentando todo
o corpo. A parte superior desenhava-se perfeitamente; os contornos
eram nítidos e precisos. A parte inferior era mais vaporosa e for-
mava apenas uma confusa massa. A aparição não caminhava, des-
lizava. Depois de atravessar lentamente a sala, a dois passos de
nós, foi entranhar-se e desaparecer na parede oposta, num ponto
que não apresentava abertura alguma. Pudemos contemplá-la du-
rante cerca de três minutos e as nossas impressões, confrontadas
logo após, acusavam perfeita identidade.
As materializações e aparições de Espíritos encontram, como
vimos, obstáculos que, forçosamente, lhes limitam o número. O
contrário se dá com certos fenômenos de ordem física e de varia-
díssima natureza, os quais se propagam e multiplicam, cada vez
mais, em torno de nós.
Vamos examinar sucintamente esses fatos em sua escala pro-
gressiva, no ponto de vista do interesse que oferecem e da certeza
que deles resulta, relativamente à vida livre do Espírito.
Em primeira linha vem o fenômeno hoje tão comum, das casas
mal-assombradas. São habitações freqüentadas por Espíritos de
ordem inferior, nas quais se entregam eles a ruidosas manifesta-
ções. Pancadas, sons de toda a ordem, desde os mais fracos até os
mais retumbantes, fazem vibrar os soalhos, móveis, paredes e o
próprio ar. A louça é mudada e quebrada; pedras são atiradas de
fora para dentro dos aposentos.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
179
Os jornais trazem, freqüentemente, narrativas de fenômenos
desse gênero. Mal cessam num ponto, reproduzem-se noutros, quer
na França, quer no estrangeiro, despertando a atenção pública. Em
certos lugares, como em Valence-en-Brie, em Yzeures (Indre-e-
Loire), em Ath (Brabant), em Agen, em Turim, etc., duraram meses
inteiros, sem que os mais hábeis policiais tivessem conseguido
descobrir uma causa humana para tais manifestações.
É o seguinte, sobre o assunto, o testemunho de Lombroso, que
escrevia na Leitura:
“Os casos de casas mal-assombradas, em que durante anos se
reproduzem aparições ou ruídos, em concordância com a narração
de mortes trágicas, observados sem a presença dos médiuns, mili-
tam a favor da ação dos falecidos. Trata-se muitas vezes de casas
desabitadas, onde não raro se observam tais fenômenos durante
várias gerações e mesmo até durante séculos.107
“O Dr. Maxwell, Procurador Geral da Corte de Apelação de
Bordéus, encontrou acórdãos de diversos tribunais superiores, no
século dezoito, anulando arrendamentos por motivo de serem mal-
assombrados os lugares”.
Esses fatos se explicam pela ação malfazeja de seres invisíveis
que desabafam, post mortem, ódios nascidos, no mundo, de más
relações anteriores, de prejuízos causados por certas famílias ou
indivíduos, que por esse motivo se tornam vítimas da perniciosa
influência desses desencarnados. Assim, no plano geral de evolu-
ção, a própria liberdade do mal, o exercício das paixões inferiores
atraindo, com a produção desses fenômenos, a atenção pública para
um mundo ignorado, concorrem para a instrução e o progresso de
todos.107 J. Maxwell Phenomènes Psychiques. pág. 260.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
180
Mau grado à repugnância da Ciência em geral, para ocupar-se
de tais fatos, cada dia vemos crescer o número dos investigadores
conscienciosos que, afastando-se das trilhas seguidas, se entregam
à paciente observação do mundo invisível. Não há mês, semana,
que não se registre um novo fato no domínio experimental.
Os fenômenos de ordem física, a levitação de corpos pesados e
o seu transporte à distância, sem contacto, provocam mui especi-
almente a observação de alguns sábios.
Falamos em outro lugar108 das experiências realizadas em
1892, em Nápoles e Milão, sob a direção de homens de ciência de
várias nações. Processos verbais, por eles redigidos, reconhecem a
intervenção de forças e vontades desconhecidas, na produção des-
ses fenômenos.
Análogas experiências foram depois efetuadas em Roma, em
Varsóvia, em casa do Doutor Ochorowicz, na ilha de Roubaud, em
casa do Senhor Richet, professor da Academia de Medicina de
Paris, em Bordéus, em Agnelas, perto de Voiron (Isère), em casa
do coronel de Rochas. Citemos ainda as do professor Botázzi,
diretor do Instituto de Fisiologia na Universidade de Nápoles, em
maio de 1907, com a assistência do professor Cardarélli, senador,
de Galeótti, Passíni, Scarpa, de Amícis, etc.
Essas experiências foram dirigidas com método rigorosamente
científico. Como, evidentemente, os sentidos podem enganar,
empregaram-se aparelhos registradores que permitiram estabelecer,
não somente a realidade, a objetividade do fenômeno, mas ainda a
grafia da força física em ação.
As cautelas adotadas pelo grupo de sábios acima indicados,
sendo médium Eusápia Paladino, foram as seguintes:
108 Depois da Morte e No Invisível.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
181
Na extremidade da sala, por trás de uma cortina, foi previa-
mente colocada uma mesa com duas prateleiras pesando 21 quilos,
e ocupando todo o espaço do gabinete à distância de 20 centímetros
da cortina, mais ou menos.
Sobre essa mesa foram dispostos:
1- Um cilindro coberto de papel enfumaçado, movediço, em
torno de um eixo ao qual fora fixada uma espécie de caneta cuja
ponta atingia a superfície do cilindro. Imprimindo movimento de
rotação ao cilindro, aí a caneta registrava uma linha horizontal;
2- Uma balança de pesar cartas;
3- Um metrônomo elétrico de Zimmermann (o contacto é esta-
belecido por uma ponta de platina que, a cada oscilação dupla da
haste, mergulha em pequeno tubo de mercúrio), posto em comuni-
cação com um aparelho-avisador Desprez, situado num comparti-
mento ao lado;
4- Um teclado telegráfico, ligado a um outro avisador Desprez.
5- Uma pêra de cauchu, ligada, por comprido tubo também de
cauchu, através da parede, a um manômetro de mercúrio de Fran-
çois Frank, situado no compartimento contíguo.
Nessas condições, todos os aparelhos descritos foram impres-
sionados, à distância, estando as mãos de Eusápia seguras por dois
experimentadores e formando círculo em torno dela todos os assis-
tentes.
Por toda parte foi verificado o deslocamento de móveis, sons
de instrumentos, sem contacto, levitação de corpos humanos, le-
vantamento de cadeiras com as pessoas que as ocupavam. O pro-
fessor Lombroso fala de um guarda-louça “que avançava como um
paquiderme”.
Todas essas manifestações se poderiam explicar, indiferente-
mente, por causas exclusivamente materiais, pela ação de forças
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
182
inconscientes. A força psíquica, exteriorizada pela criatura huma-
na, bastaria, por exemplo, para explicar o movimento de mesas e
outros objetos à distância e, por extensão, todos os fenômenos que
não acusam a ação de uma inteligência estranha à dos assistentes.
Mas o que complica o fenômeno e torna insuficiente essa ex-
plicação é que, na maior parte das sessões de que falamos, de par
com o movimento de objetos e levitação de pessoas, produzem-se
tateamentos, aparição de mãos luminosas e de formas humanas,
que não são dos experimentadores.
Os Annales des Sciences Psychiques de 1° de fevereiro 1903
relatam os seguintes fatos observados pelo Doutor Venzano: “Nu-
ma sessão em Milão, quando Eusápia se achava no máximo grau
do transe, vimos, eu e as pessoas que me ficavam próximas, apare-
cer do lado direito uma forma de mulher, sumamente cara, que me
disse uma palavra confusa: tesouro – ao que me pareceu. Ao centro
achava-se Eusápia adormecida, ao pé de mim, e por cima a cortina
se intumesceu diversas vezes; ao mesmo tempo, à esquerda, a mesa
movia-se no gabinete e um pequeno objeto era de lá transportado
para a mesa do centro.”
“Em Gênova, o Doutor Imoda observou que, enquanto o fan-
tasma tirava da mão do Sr. Becker uma pena e lha restituía, outro
fantasma se inclinava sobre Imoda. Outra feita – diz o narrador –
ao mesmo tempo em que eu era acariciado por um fantasma, a
princesa Ruspoli sentia que uma mão lhe tocava a cabeça e Imoda
sentia, a seu turno, que outra mão lhe apertava a sua, com força.
Ora, como explicar que a força física de um médium operasse ao
mesmo tempo em três direções e com três diferentes objetivos? É
possível concentrar a atenção assaz fortemente para obter fenôme-
nos plásticos em três diversas direções?”
Algumas vezes árias têm sido executadas em pianos fechados;
vozes e cantos se fazem ouvir e, como em Roma, nas experiências
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
183
do Dr. Sant'Ângelo, penetrantes melodias, que nada têm de terres-
tres, mergulham os assistentes num enlevo que quase toca ao êxta-
se.
Todos esses fenômenos têm sido obtidos com a presença de
médiuns célebres, entre outros, Jessé Stephard e Eusápia Paladino.
Agora, algumas explicações sobre a natureza e o verdadeiro papel
da mediunidade, nos parecem indispensáveis.
*
Nossos sentidos, dissemo-lo acima, não nos permitem conhe-
cer mais que restrito setor do Universo. Entretanto, o círculo dos
nossos conhecimentos pouco a pouco se ampliou e crescerá ainda,
à proporção que se aperfeiçoarem os nossos sentidos.
Bastar-nos-ia possuir mais um sentido, uma nova faculdade
psíquica, para ver descerrarem-se ante nós alguns domínios ignora-
dos da vida, para ver ostentarem-se ao nosso alcance as maravilhas
do mundo invisível.
Ora, esses novos sentidos, essas faculdades que no futuro serão
propriedade de todos, já o são de certas pessoas, em diferentes
graus. São essas pessoas que designamos sob o nome de médiuns.
É preciso, além disso, notar que em todos os tempos existiram
indivíduos dotados de faculdades especiais, que lhes permitiam
comunicar com o invisível. A História, os livros sagrados de todos
os povos, deles fazem menção quase a cada página. Os videntes da
Gália, os oráculos e pitonisas da Grécia, as sibilas do mundo pa-
gão, os grandes e pequenos profetas da Judéia, outra coisa não
eram senão os médiuns de nossos dias. As potências superiores
sempre se utilizaram desses intermediários para fazer ouvir seus
ensinos, suas exortações à Humanidade. Só os nomes mudam; os
fatos permanecem os mesmos, com a única diferença de que esses
fatos se produzem em maior número, sob mais variadas formas,
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
184
quando chega para a Humanidade a hora de começar um ciclo, uma
nova ascensão para essas culminâncias do pensamento, que são o
objetivo da sua trajetória.
Convém acrescentar que os Espíritos elevados não são os úni-
cos a se manifestar; Espíritos de todas as categorias gostam de
entrar em relação com os homens, desde que encontrem para isso
os meios. Daí, a necessidade de distinguir, nas comunicações, o
que procede de cima e o que vem de baixo; o que emana dos Espí-
ritos de luze o que provém dos atrasados. Há Espíritos de todos os
caracteres e de todas as elevações; há mesmo, ao redor de nós,
muito maior número de inferiores que de adiantados. São aqueles
que produzem os fenômenos físicos, as manifestações estrondosas,
tudo que é de índole vulgar, manifestações todavia úteis, como
demonstramos, pois que nos facultam o conhecimento de todo um
mundo ignorado ou esquecido.
Nesses fenômenos os médiuns desempenham um papel passi-
vo, à semelhança do das pilhas, na eletricidade. São produtores,
acumuladores de fluidos e é neles que os Espíritos haurem as for-
ças necessárias para atuar sobre a matéria. Encontra-se essa catego-
ria de médiuns um pouco por toda parte, até nos meios pouco
esclarecidos. Seu concurso é puramente material; suas aptidões são
antes um predicado físico que indício de elevação. Muito diferente
é a parte dos médiuns nos fenômenos intelectuais, de todos os mais
interessantes e nos quais melhor se revela a personalidade das
inteligências invisíveis. É por eles que nos vêm os ensinos, as
revelações que fazem do Espiritismo não somente um campo de
explorações científicas, mas ainda, conforme a expressão de Russel
Wallace, “um verbo, uma palavra”.
Passemos em revista alguns desses fenômenos:
O da escrita direta deve, em primeiro lugar, atrair nossa aten-
ção. Em certas circunstâncias, vê-se aparecerem folhas de papel
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
185
cobertas de escrita de origem não humana.109 Nós mesmos assisti-
mos à produção de muitos fatos dessa natureza. Um dia entre ou-
tros, em Orange, no correr de uma sessão de Espiritismo, vimos
descer pelo espaço, por cima de nossa cabeça, um pedaço de papel
que parecia sair do teto e que veio, lentamente, cair no chapéu
colocado em cima da mesa, ao pé de nós. Duas linhas com uma
letra fina, dois versos estavam nele escritos. Exprimiam um aviso,
uma predição que nos dizia respeito e que mais tarde se realizou.
A maior parte das vezes esse fenômeno se produz em ardósias
duplas, fechadas, seladas, carimbadas, no interior das quais se
coloca um fragmento de lápis. A comunicação é redigida em pre-
sença dos assistentes, às vezes em língua estrangeira, desconhecida
do médium e das pessoas presentes, e responde a perguntas por
estas formuladas.
O Doutor Gibier estudou esse gênero de manifestações durante
trinta e três sessões, com o concurso do médium Slade.110 Censura-
ram este último por experimentar fora das vistas dos assistentes,
colocando as ardósias debaixo da mesa. Citaremos, portanto, de
preferência o caso do médium Eglinton, relatado na obra do profes-
sor Stainton Moses, da Universidade de Oxford, intitulada Psyco-
graphy. Aí o fenômeno se produzia em plena luz, à vista de todos.
Nessa obra ele fala de uma sessão a que assistia o Senhor
Gladstone. O grande estadista inglês escreve uma pergunta na
ardósia e volta-a imediatamente, adaptando-a a uma outra; um
pedaço de lápis é colocado no intervalo. Amarram-se as duas ardó-
sias, sobre as quais o médium coloca a extremidade dos dedos para
estabelecer a comunicação fluídica. Pouco depois, ouve-se o ranger
do lápis. O olhar penetrante do Senhor Gladstone não se desviava
109 Ver No Invisível, cap. XVIII.
110 Ver Espiritismo ou Faquirismo ocidental, pelo Dr. Gibier.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
186
do médium. Nessas condições de rigorosa verificação, foram obti-
das respostas em várias línguas, algumas das quais ignoradas do
médium, respostas em perfeita concordância com as perguntas
formuladas.
A Revue Spirite de abril 1907 relata as experiências de escrita
direta efetuadas pelo Doutor Roman Uricz, chefe de clínica do
hospital de Bialy-Kamien, na Galícia. Assim se exprime ele:
“Muito tempo me ocupei de Espiritismo. Tenho agora um mé-
dium com quem durante três meses realizei experiências, duas
vezes por semana, e obtive fenômenos verdadeiramente interessan-
tes.
“Esse médium é uma camponesa absolutamente ignorante.
Freqüentou a escola de sua aldeia dois anos apenas, lê com dificul-
dade e escreve mal. Está empregada como criada de uma Sra. R.,
em Bialy-Kamien. As sessões, efetuadas em minha casa, assistem,
além de mim e do médium, essa Sra. R. e um amigo, o Doutor W.
Obtivemos a escrita direta. O que é notável e, que o saiba, inteira-
mente novo, é o modo pelo qual a obtivemos. Tenho visto muitas
vezes a escrita produzida entre duas ardósias ou no papel, com um
lápis, num quarto em condições de escuridade; mas as precauções
que tomamos foram de tal ordem que excluem absolutamente
qualquer possibilidade de fraude, não só da parte do médium, como
de qualquer outra pessoa. Quis ver sem resquício de dúvida, como
se produzia a escrita. Fiz, por conseguinte, construir, com o con-
sentimento da Inteligência diretora, o seguinte aparelho:
“Uma caixinha de madeira, A B C D, munida, em lugar da tá-
bua dianteira B D, de um saco em forma de funil S, feito de um
tecido de seda escura, flexível mas encorpado, de 50 centímetros
de comprimento.
“Na extremidade desse saco foi adaptado um pequeno tubo H,
com um lápis, M N, introduzido de tal sorte que a parte posterior
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
187
do lápis e, mesmo o lápis quase todo, fica dentro da caixa, ficando
a ponta aguçada N saliente do tubo H e apoiada numa folha de
papel P. O interior da caixa é inteiramente escuro e o saco em nada
impede os movimentos do lápis. Com essa disposição logramos
obter, à plena luz, com extrema rapidez e absoluta segurança,
comunicações escritas por um processo visível aos olhos de todos.
O médium coloca as mãos no tampo superior C D e, ao fim de
alguns minutos, começa a escrita, enquanto a parte inferior do saco
se intumesce, como se mão oculta se houvesse introduzido no
interior.
“É em tais condições e por esse único meio que atualmente nos
comunicamos com a Inteligência invisível. Quanto ao conteúdo das
mensagens, às vezes muito longas, é consideravelmente superior à
inteligência do médium e excede não raro a capacidade dos outros
assistentes, pois que freqüentemente recebemos comunicações em
alemão e em francês – o médium não fala senão o dialeto eslavo; –
e um dia recebemos uma mensagem de cinco páginas, em inglês,
língua que nenhum de nós conhece. As mensagens são, às vezes,
muito engenhosas e sugestivas. Assim, uma noite, perguntei se os
Espíritos eram imateriais. – “Sim, em certo sentido”, foi-me res-
pondido. – “Então – repliquei –, estais fora do tempo e do espaço.”
– “Não...” – “Como?” – “Um ponto geométrico é também imateri-
al, pois que não tem dimensões, e entretanto está no espaço. O que
acabo de dizer não constitui mais que uma comparação, porque nós
outros, Espíritos, temos dimensões, mas não como vós.” Uma
camponesa ignorante, de catorze anos, seria capaz de dar seme-
lhantes respostas?
“Outro dia, recebemos uma prova de identidade indubitável.
Durante a sessão o lápis escreveu, em caracteres inteiramente
novos para nós: “Agradeço-lhe a injeção que me fez, quando estava
em meu leito de morte. O senhor me aliviou. – Carolina C...” Per-
guntei a quem eram dirigidas essas palavras. “Ao senhor”, respon-
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
188
deu a Inteligência. – “Quando se deu esse fato e quem sois?”,
perguntei. O lápis escreveu: “No dia 18 de setembro 1900, no
hospital de Lemberg.” Nesse ano era eu ainda estudante e trabalha-
va nesse estabelecimento como auxiliar de clínica. Era tudo de que
me recordava a tal respeito.
“Dias depois da sessão, tive ensejo de ir a Lemberg. Dirigi-me
ao hospital e encontrei, no registro de 1900, o nome em questão.
Era de uma mulher de 56 anos, doente de câncer do estômago e que
lá morrera. Fui então ao escritório dos assentamentos da Políciae
perguntei se havia em Lemberg alguém com o nome de C. Infor-
maram-me que havia uma professora com esse nome. Fui nesse
mesmo dia procurá-la e como me dissesse ela haver perdido a mãe
em 1900, mostrei-lhe a comunicação recebida por escrita direta.
Com grande espanto, reconheceu a senhora, imediatamente, a letra
e a assinatura de sua falecida mãe, exibindo cartas por esta escritas,
que provavam, sem dúvida possível, a identidade da comunicante.
Deu-me de bom grado uma dessas cartas. Entretanto, não me lem-
bro de ter dado injeção de morfina em Carolina C.”
Muito mais comum que o precedente, é o fenômeno da escrita
mediúnica. O sensitivo, sob um impulso oculto, traça no papel
comunicações, mensagens em cuja redação o seu pensamento e
vontade apenas tiveram parte mínima. Essa faculdade apresenta
aspectos muito variados. Puramente mecânica em certos médiuns,
que ignoram, no momento em que escrevem, a natureza e sentido
das comunicações obtidas – a ponto de poderem alguns falar en-
quanto escrevem, desviar a atenção e trabalhar na escuridade – no
maior número é ela semimecânica; neste caso o braço e o cérebro
são igualmente influenciados; as palavras surgem ao pensamento
do médium no próprio momento em que as traça o lápis. Às vezes,
é puramente intuitiva e, por conseguinte, de natureza menos con-
vincente e mais difícil de verificar.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
189
As comunicações obtidas por esses diferentes processos apre-
sentam grande variedade de estilo e são de valor muito desigual.
Na maior parte, não contêm senão banalidades, mas há também
algumas notáveis pela beleza da forma e elevação do pensamento.
Damos, a seguir, alguns exemplos, obtidos por diferentes mé-
diuns.
*
A Prece
Médium, Sra. F.
“É chegado o momento de poder a inteligência, suficientemen-
te desenvolvida no homem, compreender a ação, significação e
alcance da prece. Certo de ser compreendido, posso, pois, dizer:
Não mais incredulidade, nem fanatismo! antes a completa seguran-
ça da força que Deus concede a todos os seres, quando a Ele se
eleva o pensamento.
“Na prece, na lembrança volvida a esse Pai, fonte inexaurível
de bondade e caridade, longe de vós essas palavras aprendidas, que
os lábios pronunciam num hábito adquirido, mas deixam frio o
coração em seus impulsos. Reanimados e atraídos para Ele pelo
conhecimento da verdade, pela fé profunda e a verdadeira luz,
enviai ao Eterno os vossos corações num pensamento de amor, de
respeito, de confiança e abandono; em um transporte, enfim, de
todo o ser, esse veemente impulso interior, único, a que se pode
chamar prece!
“Desde a aurora, a alma que se eleva, pela prece, ao infinito,
experimenta uma como primavera de pensamento que, nas circuns-
tâncias diversas da existência, a conduz ao fim preciso, que lhe é
designado.
“A prece conserva a infância, essa inocência em que sentis a-
inda a pureza, reflexo do repouso que a alma fruiu no espaço. Para
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
190
o adolescente é o freio repressor da impetuosidade, que nele brota
como vigoroso fluxo; seiva geratriz, se é seguida, perda certa em
caso de desfalecimento, mas resgate, se a alma pode e sabe retem-
perar-se na prece.
“Depois, na idade em que, na plenitude de sua força e faculda-
de, o homem sente em si a energia que, muitas vezes, o deve con-
duzir às grandes coisas, a concentração em que se firma o pensa-
mento, esse grito da consciência que lhe dirige os atos não é ainda
a prece?
“E do fraco, poderoso amparo, não é a prece o consolo, a luz
que o auxilia a dirigir-se, como o prisma do farol que indica ao
náufrago a praia salvadora?
“No perigo, mediante estas duas palavras proferidas com fé
“meu Deus!” – envia o homem toda uma prece ao Criador. Esse
brado, essa deprecação ao Todo-Poderoso não exprime, como
recordação, o instinto do socorro que ele espera receber?
“O marinheiro exposto aos perigos, à mingua de todo socorro
em meio dos elementos desencadeados, formula em sua fé profun-
da um voto: é prece cuja sinceridade sobe radiosa Àquele que o
pode salvar!
“E quando ruge na Terra a tempestade, grandes e pequenos tre-
mem ao considerar a própria impotência e, a essa voz poderosa que
repercute nas profundezas da terra, oram e confiantes dizem estas
palavras: Deus! preserva-nos de todo perigo! – Abandono comple-
to, na prece, Àquele que, por sua vontade, tudo pode.
“Quando chega a idade em que nos desaparece a força, em que
os anos fazem sentir todo o seu peso, em que a alma ensombrada
pelos sofrimentos, pela fraqueza que a invade, se sente incapaz de
reagir; quando, finalmente, o ser se vê acabrunhado pela inação, a
prece, caudal refrigerante, lhe vem acalmar e fortalecer as derradei-
ras horas que deve permanecer na Terra.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
191
“Em qualquer idade, quando vos assediam as provas, quando
sofre o corpo e, sobretudo, o coração amargurado já não deixa
repousar feliz o pensamento no que consola e atrai, à prece, unica-
mente à prece, reclamam a alma, o pensamento, o coração, a calma
que já não possuem.
“Quando o encarnado, na plenitude de suas energias, inspirado
pelo desejo do belo e do grande, refere suas aspirações a tudo que o
rodeia, pratica o bem, torna-se útil, auxilia os desgraçados e, celes-
te prece, força do pensamento, em seus atos é amparado pelo fluido
poderoso que do Além se lhe associa, constante e invisível cadeia
do encarnado com os desencarnados e, para mim, prece!
“Direi, pois, a todos que a bondade inspira, aos que, neste sé-
culo em que o pensamento inquieto investiga sem firmeza, sentem
a necessidade de uma fé profunda e regeneradora: – Ensinai a prece
à criança, desde o berço! Todo ser, mesmo no extravio das paixões,
conserva a lembrança da impressão recebida no limiar da vida e
torna a encontrar como consolação, no crepúsculo da existência
percorrida, o encanto ainda presente dos anos abençoados em que a
criança, iniciando-se na vida, respira sem temor, vive sem inquie-
tação, proferindo nos braços de sua mãe este nome tão grande e tão
doce – “Deus!” que ela lhe ensina a murmurar.
“Haurindo força e convicção nessa piedosa lembrança, ele re-
petirá com toda a confiança, no último adeus à Terra, a prece a-
prendida no primeiro sorriso.”
JERÔNIMO DE PRAGA.
*
O Céu Estrelado. Os Mundos
Médium, Srta. M L.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
192
“Claridades siderais, vias do céu! Vós, que indicais às almas as
linhas ideais de sua evolução; vós, que vos estendeis pelas profun-
dezas dos espaços! Planetas, donde as almas vos contemplam, não
sois mais que poeiras douro, luminosos traços no escuro céu de
estio. Para aqueles que, porém, já não aprisiona o túmulo da carne,
planetas, estrelas, sois os verdadeiros mensageiros do divino pen-
samento; escreveis no misterioso e divino livro da Criação os
gloriosos salmos com que Deus quis assinalar a sua obra. Sois o
perpétuo assombro das criaturas e vosso esplendor lhes há de sem-
pre dar as sensações vertiginosas do infinito! Ó nebulosas, vias-
lácteas, constelações inumeráveis, sois como bacantes pelo pensa-
mento de Deus embriagadas! Projetais vossos eternos giros ao
redor dos sóis, como as antigas sacerdotisas em torno ao carro do
deus. Sacudis nos espaços as luminosas cabeleiras e assim lançais,
através dos tempos, um testemunho fulgurante de vossas existên-
cias. Vossos cíngulos se desenrolam, nas noites de verão, em feixes
ígneos; os bólidos, os globos abrasados se vos desprenderam dos
flancos e cingis assim o mundo, nos sulcos luminosos por eles
dourados no seio dos espaços.
“Vossas vibrações harmônicas fazem acompanhamento ao hi-
no sagrado das almas, e nunca a vossa melodiosa trajetória parece
mais bela aos nossos olhos do que à hora em queterminado, final-
mente, o percurso que Deus vos assinou, ou acabada a vossa tarefa
de pátria de alma em evolução, ides despedaçar-vos contra o obstá-
culo por Deus indicado, projetando através dos espaços, assombra-
dos com o vosso desaparecimento, as partículas dessa matéria de
que éreis formados e que vai regressar ao seio de Deus, para re-
constituir outros universos.
“Passai, estrelas e planetas; seguis rápidos e vários e vosso gi-
ro, vossas órbitas imensas, parecem o símbolo da eternidade; sois
belos e deslumbrais os humanos olhares; mas que sois para a alma?
Lugares de passagem, o caro albergue em que nos demoramos uma
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
193
noite, a escutar os sons melodiosos que desferem as árvores ao
vento. Mas o viajante partiu, a casa com as paredes fendidas se
desmoronou; só restam as velhas pedras, douradas pelo Sol de
estio, a meio cobertas pelas desordenadas ervas invasoras.
“Assim vos haveis de destruir, estrelas e planetas; não sereis
mais que uma poeira de astro, planetas vagabundos pelo céu. Mas a
alma permanecerá fiel à vossa lembrança e, quando perto lhe pas-
sar um desses bólidos, há de ela reconhecer algo da antiga morada
que Deus lhe destinara.
“Terra, tu que me viste passar, que em teu seio recolhes-te às
lágrimas que vertia o homem pela dor acabrunhado, vais desmoro-
nar-te perante o teu Senhor. Já a alma prevê o tempo em que hás de
ser apenas um planeta sem vida e receamos o teu desaparecimento.
Assim é a lei. Ó Terra, ó minha mãe! tu morrerás; mas os milhões
de almas embrionárias que constituíam tua matéria, serão então
libertados e prosseguirão noutro lugar a sua evolução. Não deplo-
remos, pois, a tua sorte; ela é grande, é nobre, está em harmonia
com a lei de Deus. E quando, atingidas outras altitudes morais,
meus olhos contemplarem extasiados as fulgurantes constelações
na profundeza dos espaços, procurarei o lugar em que, radiante dos
pensamentos que teu divino vestuário agita, deverias passar.
“Nada mais verei que uma lembrança; encontrarei outras estre-
las em formação, o espaço será ainda imutável, outros planetas
serão outras tantas terras, portadoras de almas como as que hoje
trazes. Mas o que foram tuas montanhas, teus vales benditos em
que ressoa a voz da Humanidade, já nem mesmo será uma poeira
no seio dos firmamentos. Nada mais restará de tua antiga forma.
Ufana-te, porém, ó Terra! terás cumprido o teu dever. As almas,
graças a ti, se terão transportado a outros lugares, aos espaços em
que circulam constantemente os pensamentos do amor impenetrá-
vel, que são a vida e a existência das almas deslumbradas por esse
foco incessantemente renovado.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
194
“A Deus, Terra, ao teu Senhor deves o amor e o reconhecimen-
to, e eu sei que lhe rendes homenagem, porque ouço extasiado os
melodiosos cantos que tua atmosfera, ao passar no eterno éter,
entoa como as almas conscientes da verdade.
“Estrelas, inclinai-vos em vossas órbitas radiosas: lançai eter-
namente ao firmamento os feixes de luz que vos revelam. Estais no
seio daquele que É!”
R.
*
Recordações Terrestres. O Deserto
Médium, Srta. M L.
“O deserto profundo e avermelhado se estende qual mar lon-
gínquo ao pé das colinas, donde mergulho a vista nessas extensões
misteriosas e sem vida. O Sol se esconde, a noite cai e ao tórrido
calor do dia vai suceder a sombra glacial. O deserto adormece, a
viração caiu. Aqui, ali, mal se destacam alguns espinhosos e raquí-
ticos arbustos. São manchas pardas nessa toalha luminosa e infor-
me, que as últimas claridades do Sol fazem brilhar ainda. Morrem
as horas ao Sol do deserto; parece já não existir o tempo na face
dessa terra árida e triste. A alma também fica absorta e não vê
passar diante de si mais que os grupos de estrelas no sombrio fundo
azul. Envolvi os ombros no Albornoz que mal me protegera do
frio, e talvez esse gesto revele também minha inquietação e susto
em presença desse horizonte imenso que guarda o segredo de tan-
tos mortos!... Recolho-me também; quero esquivar-me a esse mis-
tério, ao enigma dessas terras desoladas. Escuto: nenhum rumor de
vida; apenas alguns murmúrios do vento, algumas longínquas
sonoridades que dificilmente o ouvido apreende. A sombria e
silenciosa majestade do deserto me comove e oprime.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
195
“Procuro dar um pouco de vida àquela solidão; volto-me para
o meu árabe e lhe pergunto onde faremos a sesta. Sei bem que não
compreenderei senão a meio sua resposta; mas ao menos ouvirei
uma voz humana. Esforço inútil; o murmúrio de minhas palavras
parece o grito do inseto. Somos ridiculamente humildes em presen-
ça do deserto. Não é a voz de um homem que o pode comover; é
preciso a do vento e da tempestade. A extensão não vibrou de
humanos sons; desprezou meu esforço, do mesmo modo que o
próximo vento apagará os vestígios de meus passos.
“Os cimos das colinas se abaixam no horizonte, semelhantes a
leões que talvez durmam nos seus antros. Dir-se-iam esfinges
agachadas, cochilando. Elas guardam os mistérios do deserto.
Escuto; o silêncio é sempre o deus do espaço, e só a noite indica
que há um poder do tempo. Mas, a Humanidade não respeita essa
grandeza. Vamos violar a poderosa e formidável solidão, e nossos
filhos buscarão nela instalar os seus ódios.
“O deserto é poderoso; lutará contra a invasão e por muito
tempo as suas estradas de rutilante esplendor conservarão o reflexo
do sangue dos audaciosos viajores que lhe quiseram arrancar o
segredo.”
UM DESCONHECIDO
*
A Reencarnação
Médium, J. D.
“A grande idéia da reencarnação é a única, meus irmãos, capaz
de restaurar a nossa decadente sociedade. Somente ela pode repri-
mir esse egoísmo avassalador que desagrega família, pátria, socie-
dade, e que substitui a generosa idéia do dever por essa feroz con-
cepção de uma individualidade que se deve afirmar a todo custo.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
196
“O materialismo, que destroçou a crença na vida futura, e os
dogmas incompletos, que desnaturam o princípio sublime das
religiões, fizeram murchar na alma humana essas admiráveis flores
de um ideal superior às subalternas contingências da vida material
e à brutalidade impulsiva dos instintos.
“É preciso, meus irmãos, que alguma coisa venha despertar nas
almas o sentido da vida espiritual.
“Por mais que a Ciência multiplique as suas maravilhas, por
mais que o homem despenda as admiráveis faculdades da sua
inteligência e do seu gênio, permanecem estéreis todos os seus
esforços, se em si mesmo não possui as fontes vivas da vida espiri-
tual; se não sente palpitar em si essa vida imperecível, que lhe
assegura a imortalidade e torna-o consciente desse Universo eterno,
de que é uma das vivas e eternas partículas.
“Não, não, irmãos, o homem não é esse efêmero e anônimo
ser; poeira transitória de vida, que dura apenas um instante para
sofrer e morrer. O homem é a vida, a vida eterna, individualizada
na substância para adquirir consciência de si mesmo e constituir a
plenitude da felicidade pela plenitude do conhecimento.
“Sim, o homem é grande: grande porque é o artífice da sua
própria grandeza; grande porque, com o próprio esforço, cria sua
futura personalidade; porque todas as aquisições da sua inteligên-
cia, da sua razão e do seu coração, as deve ele ao seu trabalho e
experiência.
“Ó divina reencarnação! Por ti, o bruto inconsciente se conver-
te em gênio; por ti, o mau adquire a bondade suprema e o ignorante
o conhecimento de todas as coisas. Por ti, o homem toma gradual-
mente consciência de si mesmo; cada vida lhe traz uma experiên-
cia, cada existência uma força e um poder novos; por ti, não há dor
nem prova que não tenha objetivo; toda alegria é uma recompensa.
Porti, a mais íntima solidariedade vincula todas as criaturas, e o
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
197
progresso, a formação de uma sociedade melhor, é a obra comum e
secular.
“Quando a idéia da reencarnação se houver novamente senho-
reado da mentalidade humana, o progresso social dará um passo
imenso. As misérias e provações do homem lhe parecerão menos
dolorosas, porque terão para ele um sentido positivo. Com mais
segurança há de ele saborear as suas alegrias, porque sentirá que a
vida se lhe tornou estável com a imortalidade.
“O Universo já se lhe não figurará implacável máquina, cujas
engrenagens trituravam desapiedadamente as criaturas, sem se
preocupar com os seus gritos e estertores.
“O homem compreenderá, então, que existe um foco imenso,
pelo qual é chamado a se tornar uma centelha consciente e fecunda,
depois de haver aprendido, na série de suas vidas sucessivas, o
segredo da eterna vida, isto é: a inteligência que sabe, a consciên-
cia que age, e o amor que ama.”
PASTOR B.
*
A Natureza
Médium, Srta. M L.
“Visitei muitas vezes os vossos belos pais, quando meu marido
residia às margens do Loire, e conheço todo o encanto da Primave-
ra entre vós. Vi o pássaro responder à sua ninhada, quando o seu
primeiro pipilar reclamava imperiosamente mais abundante nutri-
ção. Não tendes os cálidos ardores meridionais, mas o vosso céu é
mais suave: a luz de vossos sóis no ocaso se diversifica e multipli-
ca de nuvem em nuvem, e prolonga o crepúsculo.
“Muitas vezes escutei, como o podereis fazer por vossa parte, a
queda abafada dos brancos e veludosos flocos de neve. Os ninhos
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
198
balouçam, esquecidos e vazios, nas extremidades dos galhos des-
pojados da folhagem. A Natureza parece morta, mas, como toda
verdadeira obra de Deus, encerra a esperança das vindouras prima-
veras. Minha alma é irmã do Inverno: nela dorme as suas recorda-
ções. Sei, porém, que minha vontade pode ressuscitar esse passado
de ontem e dar-me, com a permissão de Deus, a ilusão das vidas
transcorridas e a certeza de um melhoramento sempre desejado. A
Natureza é a nossa grande educadora; com ela aprendemos a bal-
buciar o nome divino e é ele que canta, às noites, o hino universal
que a Humanidade escuta emocionada; transfunde a alegria em
nossos corações e nos faz ver a verdade, porque é a grande media-
dora. Se soubéssemos escutar a sua voz, seríamos mais que ho-
mens: teríamos adivinhado a palavra divina.”
MME. MICHEILET.
*
Invocações
Médium, Srta. B. R.
“Ó Deus, tu que infundes, ao mesmo tempo, nobre terror e so-
berana admiração aos que teu nome pronunciam, digna-te inundar
com tua luz resplandecente os fracos que a ti se dirigem num grito
de angústia e de amor!
“A ti, meu Deus, se eleva lentamente meu pensamento. Em ti,
foco de amor, procura minha alma se abrasar. Faze baixar à tua
humana criatura teu ardente sopro; faze cair o véu de cegueira que
me cobre os olhos e me oculta os teus imensos horizontes; revela a
meu ser teus infinitos esplendores; murmura ao meu coração pala-
vras de vida; fala-me, ó tu, que em todo o meu ser sinto vibrar!
“Deus! Ser majestoso de grandeza e de simplicidade, foco
sempre ardente de vida, amor e luz! Tu que numa eternidade sabes
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
199
conter o infinito! Tu, receptor ao mesmo tempo de meus queixu-
mes e de minhas jubilosas expansões, tu, ainda, que me guias com
teus radiosos meteoros, cuja rápida passagem ilumina meu sombrio
asilo, ampara-me, consola-me! Tu finalmente, cujo sopro abrasador
me reanima a expirante chama, pousa um instante sobre mim tua
piedade; faze renascer em mim a centelha desprendida do teu bra-
seiro de amor. Ouve minha prece! Envia, como resposta, um raio
da tua pura claridade e faze que, ao teu nome, todo o meu ser, num
sublime transporte, a ti se arroje.”
IRIAC.
*
Imaginaram recentemente os sábios experimentadores ingle-
ses, sob o nome de cross-correspondence, um novo processo de
comunicação com o invisível, que seria bem próprio a atestar a
identidade dos Espíritos cujas manifestações se produzem mediante
a escrita mediúnica. Oliver Lodge o descreveu numa reunião efetu-
ada em 30 de janeiro de 1908, pela Sociedade de Investigações
Psíquicas, de Londres.
“A cross-correspondence – diz ele – isto é, o recebimento por
um médium, de uma parte de comunicação, e de outra parte por
outro médium, não podendo cada uma dessas partes ser compreen-
dida sem a adjunção da outra, é boa prova de que uma única Inteli-
gência opera sobre os dois automatistas.
“Se, além disso, a mensagem apresenta os característicos de
um finado e é recebida a esse título por pessoas que o não conheci-
am intimamente, pode-se ver nisso a prova da persistência da ativi-
dade intelectual do desaparecido. E se do mesmo modo obtemos
um trecho de crítica literária, inteiramente conforme ao seu modo
de pensar e que não poderia ser imaginado por terceira pessoa, digo
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
200
que a prova é convincente. Tais as espécies de provas que a Socie-
dade pode comunicar sobre esse ponto.”
Depois de referir-se aos esforços em tal sentido empregados
pelos Espíritos de Gurney, Hodgson e Myers em particular, acres-
centa o orador:
“Achamos que suas respostas a perguntas especiais são formu-
ladas de um modo que caracteriza sua personalidade e revela co-
nhecimentos que eram de sua competência.”
“A parede que separa os encarnados dos desencarnados – diz
ele ao terminar – ainda se mantém de pé, mas acha-se adelgaçada
em muitos lugares. À semelhança dos escavadores de um túnel,
ouvimos, em meio do ruído das águas e dos outros rumores, as
pancadas de picareta dos nossos camaradas do outro lado.”
A isso não se limitaram os ingleses. Fundaram um escritório
de comunicações regulares com o outro mundo. Foi o intrépido
escritor W Stead que o organizou em Londres, a instâncias de uma
amiga desaparecida, Srta. Júlia Ames; e daí a sua denominação:
“Escritório de Júlia”. Esse Espírito se propõe vir em auxílio, assim,
de todos os desencarnados que procuram entrar em relação com os
vivos que atrás de si deixaram, como dos encarnados acabrunhados
com a perda de um ente caro. Para ser admitido a solicitar uma
comunicação, Júlia, que dirige pessoalmente as sessões, não requer
senão duas coisas: uma afeição lícita e sincera e um estudo prévio
do problema espírita. Não tolera retribuição alguma. O impetrante,
uma vez tomado em consideração o pedido, é levado à presença de
três médiuns diferentes e todos os resultados são registrados.
Esse escritório já conseguiu, desde a sua fundação, estabelecer
numerosas comunicações com o invisível. “Lançou uma ponte de
uma a outra margem do túmulo”, com alguma razão o disse W
Stead.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
201
Durante o primeiro trimestre de sua existência, centenas de pe-
didos lhe foram endereçados, na maior parte aceitos por Júlia.
Calcula W Stead que pelo menos 75% dos que passaram pela trí-
plice prova dos médiuns receberam respostas concludentes, em
metade dos casos afirmando os impetrantes, de modo absoluto, que
obtiveram por um ou outro médium, senão por todos eles, provas
estremes de toda contradição.111
A clientela do escritório Júlia é, sobretudo, arrebanhada entre
pessoas cultas e instruídas: doutores, advogados, professores, etc.
Um repórter do Daily News refere que um dia acompanhou um
autor bem conhecido, cujo nome causaria admiração por imiscuir-
se em semelhante assunto. Esse autor desejava obter a manifesta-
ção de um amigo falecido. Obtido o consentimento de Júlia, foi,
como de costume, posto sucessivamente em relação com três mé-
diuns, assistidos por um estenógrafo, sendo redigido de cada sessãoum detalhado termo. Numa das sessões, sua casa foi exatamente
descrita com os arredores; numa outra recebeu uma mensagem que
julgou provir, com certeza, do amigo falecido.
*
Sendo o mundo dos Espíritos, em grande parte, constituído pe-
las almas que viveram na Terra, e sendo as Inteligências de escol,
em um meio como no outro, em diminuto número, facilmente
compreenderemos que na sua maior parte as comunicações de
além-túmulo sejam destituídas de grandeza e originalidade. Quase
todas, entretanto, têm um caráter moral incontestável e denotam
louváveis intenções. Quantas pessoas desoladas têm podido, por
esse meio, receber dos que amaram e julgavam perdidos palavras
de ânimo e conforto!
111 Ver a Internacional Review, setembro 1909.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
202
Quantas almas hesitantes na obscura trilha do dever têm sido
animadas, desviadas do suicídio, fortalecidas contra as paixões,
mediante exortações vindas do outro mundo!
Acima ainda dessas manifestações, cuja utilidade é tão eviden-
te e cujo efeito moral é tão intenso, é preciso colocar certas comu-
nicações extraordinárias, subscritas por modestos nomes ou termos
alegóricos, mas animadas de um sopro vigoroso e que trazem, em
sua forma e ensinos, o cunho de Espíritos verdadeiramente superio-
res. Foi com documentos dessa natureza que se constituiu a doutri-
na do Espiritismo. Allan Kardec recolheu grande número deles.
Mesmo depois, não se estancaram essas fontes do pensamento
sobre-humano; elas têm continuado a fluir para a Humanidade.
Os fenômenos de escrita direta ou automática são completados
e confirmados pelos fatos de incorporação.112 Neles, os Espíritos já
se não contentam com órgãos de um médium adormecido. Este, por
eles mergulhado em sono magnético, abandona o seu invólucro a
personalidades invisíveis, que dele se apoderam para conversar
com os assistentes. Por esse meio, sugestivas conversações são
entabuladas entre os habitantes do espaço e os parentes e amigos
que deixaram na Terra.
Nas manifestações da escrita mecânica, já a identidade dos Es-
píritos se verifica pela forma dos caracteres traçados, pela analogia
das assinaturas, pelo estilo e até pelos erros de grafia habituais a
esses Espíritos e que reaparecem nas suas comunicações. Nos
fenômenos de incorporação, essa identidade ainda se torna mais
evidente. Pelas suas atitudes, gestos e dizeres, o Espírito se revela
tal qual era na Terra. Os que o conheceram em sua precedente
encarnação reconheceram-no integralmente o mesmo; a sua indivi-
dualidade reaparece em locuções características, em expressões
112 Ver No Invisível, cap. XIX.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
203
que lhe eram familiares, em mil particularidades psicológicas que
escapam à análise e só podem ser apreciadas pelos que estudaram
de perto esse fenômeno.
Nada mais emocionante, por exemplo, que ouvir uma mãe,
vinda do além-túmulo, exortar e reanimar os filhos que deixou
neste mundo. Nada mais curioso que ver Espíritos das mais diver-
sas categorias animar sucessivamente o invólucro de um médium e
manifestar-se aos assistentes, pela palavra e pelo gesto. A cada um
deles a fisionomia do sensitivo se transforma, a voz muda, a ex-
pressão fisionômica se modifica. Pela linguagem e atitudes a per-
sonalidade do Espírito se revela, antes mesmo que dê o nome.
Tivemos, por muito tempo, em um círculo de experimentação
a cujos trabalhos presidíamos, dois médiuns de incorporação. Um
servia de órgão aos Espíritos protetores do grupo.
Quando um destes o animava, as linhas do seu rosto adquiriam
expressão Angélica, a voz se suavizava, tornava-se melodiosa. A
linguagem revestia formas de pureza, poesia, elevação muito acima
das faculdades pessoais do sensitivo. Sua vista parecia penetrar
fundo o coração dos assistentes. Lia-lhes os pensamentos; dirigia,
nominalmente a cada um, avisos, advertências relativamente ao seu
estado moral e à sua vida privada, o que denotava, logo à primeira
vista, conhecimento perfeito do caráter e do estado de consciência
de todos. Palestrava sobre coisas íntimas, só deles conhecidas.
Impunha-se a todos pelo seu ar majestoso, do mesmo modo que
pela sabedoria e doçura das expressões. A impressão produzida era
profunda. Tudo parecia vibrar e iluminar-se, em torno desse Espíri-
to. Ao retirar-se, sentíamos que alguma coisa de grande passara
entre nós.
Quase sempre um segundo Espírito, de certa elevação, mas de
caráter muito diferente, lhe sucedia no corpo do médium. Esse
Espírito tinha a palavra rápida e forte, o gesto enérgico e domina-
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
204
dor. Sua ciência era vasta. Aceitara o encargo de dirigir os estudos
morais e filosóficos do grupo e sabia resolver os mais difíceis
problemas. Nós o tínhamos em grande consideração e nos compra-
zíamos em lhe obedecer. Para qualquer recém-chegado, porém, era
um espetáculo estranho ver sucederem, no frágil invólucro de uma
senhora de maneiras tímidas e modestos conhecimentos, dois Espí-
ritos de caráter tão elevado e tão dessemelhantes.
O segundo médium não oferecia, nas manifestações de que era
agente, menor interesse. Era uma senhora elegante e instruída,
esposa de um oficial superior e que parecia, à primeira vista, reunir
as melhores condições para fenômenos de caráter transcendente.
Ora, na prática, era exatamente o contrário que se verificava. Essa
senhora servia habitualmente de instrumento a Espíritos pouco
adiantados, que haviam ocupado na Terra diversas posições. Inte-
ressante ouvir, por exemplo, uma ex-vendedora de legumes de
Amiens exprimir-se em algaravia picarda, pela voz de uma pessoa
de maneiras distintas e que nunca estivera na Picardia. A lingua-
gem da médium, correta e escolhida quando desperta, tornava-se
confusa, arrastada, semeada de lapsos e de expressões regionais
durante o sono magnético, quando o Espírito de Sofia intervinha
em nossas sessões. Desde que este se afastava, outros Espíritos o
vinham substituir desfilando, por assim dizer, no invólucro da
sensitiva e apresentando-nos sucessivamente os tipos mais dispara-
tados: um antigo sacristão de voz untuosa e arrastada, emitida em
tom baixo, como se estivesse na igreja; um ex-procurador de gesto
imperioso e ares escarninhos, palavra ríspida e decisiva, etc.
Outras vezes, eram cenas tocantes, de arrancar lágrimas aos
assistentes. Amigos de além-túmulo vinham lembrar recordações
da infância, serviços prestados, erros cometidos; expor seu modo
de vida no espaço, falar das alegrias ou dos sofrimentos morais
colhidos depois da morte, conforme a sua norma de vida na Terra.
Assistíamos a animadas conversações entre Espíritos, comovedoras
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
205
dissertações sobre os mistérios da vida e da morte, sobre todos os
grandes problemas do Universo, e, de cada vez, sentimo-nos emo-
cionados e fortalecidos. Essa íntima comunhão com o mundo invi-
sível descerrava infinitas perspectivas ao nosso pensamento; influía
em todos os nossos atos, esclarecia-nos com uma luz intensa a
trilha da existência ainda tão obscura e tortuosa para a multidão
dos que a percorrem. Dia virá em que a Humanidade conhecerá o
valor desses ensinos e deles participará. Nesse dia, ter-se-á renova-
do a face do mundo.
Depois de haver passado em revista os principais fenômenos
que servem de base ao moderno Espiritualismo, ficaria incompleto
o nosso resumo se não disséssemos algumas palavras acerca das
objeções apresentadas e das teorias adversas, com que se tem pro-
curado explicá-los.
Há, em primeiro lugar, a negação absoluta. O Espiritismo –
têm dito – não é mais que conjunto de fraudes e de embustes.
Todos os fatosextraordinários em que se baseia são simulados.
É verdade que alguns impostores têm procurado imitar esses
fenômenos; mas os artífices têm sido facilmente descobertos e os
espíritas foram os primeiros a indicá-los. Em quase todos os casos
mencionados acima: levitação, aparições, materialização de Espíri-
tos, os médiuns foram ligados, amarrados à própria cadeira; fre-
qüentemente, os experimentadores lhes seguravam os pés e as
mãos. Às vezes, foram mesmo colocados em casinholas fechadas,
especialmente preparadas para esse fim, e cuja chave ficava em
poder dos operadores, enfileirados ao redor do médium. Foi em tais
condições que numerosos casos de materialização de fantasmas se
produziram.
Em suma, as imposturas foram quase sempre desmascaradas e
muitos fenômenos jamais foram imitados, pela simples razão de
que escapam a toda imitação.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
206
Os fenômenos espíritas têm sido observados, verificados, ins-
pecionados por sábios cépticos, que passaram por todos os graus da
incredulidade e cuja convicção não se formou senão pouco a pou-
co, sob a pressão dos fatos.
Esses sábios eram homens de laboratório, físicos e químicos
experimentados, médicos e magistrados. Possuíam todos os requi-
sitos necessários, toda a competência para desmascarar as mais
hábeis fraudes, para frustrar as mais bem urdidas tramas.
Seus nomes pertencem ao número dos que são para toda a
Humanidade objeto de respeito e veneração. Ao lado desses ho-
mens ilustres, todos os que se têm entregado a um estudo paciente,
consciencioso e perseverante desses fenômenos, vêm afirmar a sua
realidade; ao passo que a crítica e a negação emanam de pessoas
cujo pronunciamento, baseado em insuficientes noções, só pode ser
superficial.
Aconteceu a alguns deles o que muitas vezes acontece aos ob-
servadores inconstantes. Não obtiveram mais que medíocres resul-
tados, às vezes mesmo negativos, e se tornaram mais cépticos que
dantes. Não quiseram tomar em consideração uma coisa essencial:
que o fenômeno espírita é regido por leis, submetido a condições
que importa conhecer e observar.113 Sua paciência cansou muito
depressa. As provas que exigem não se obtêm em poucos dias. W
Crookes, Russell Wallace, Zõllner, Aksakof, Dale Owen, Robert
Hare, Myers, Lombroso, Oliver Lodge e outros muitos sábios
estudaram a questão longos anos. Não se contentaram com assistir
a algumas sessões mais ou menos bem dirigidas e em que bons
médiuns funcionassem. Deram-se, eles próprios, ao trabalho de
investigar os fatos, de os acumular e analisar; penetraram até ao
fundo das coisas. Por isso, foi a sua perseverança coroada de êxito
113 Ver No Invisível, caps. IX e X.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
207
e o seu método de investigação pode ser oferecido como exemplo a
todo pesquisador severo.
Entre as teorias lançadas à circulação para explicar os fenôme-
nos espíritas, a da alucinação ocupa sempre o maior lugar. Perdeu,
entretanto, toda a razão de ser, à vista das fotografias de Espíritos
obtidas por Aksakof, Crookes, Volpi, Ochorowicz, W Stead e
tantos outros. Não se fotografam alucinações.
Os invisíveis não somente impressionaram as placas fotográfi-
cas, como também instrumentos de precisão, como os aparelhos
Marey;114 levantam objetos materiais e os decompõem e recom-
põem; deixam impressões na parafina derretida. Estão aí outras
tantas provas contra a teoria da alucinação, quer individual, quer
coletiva.
Certos críticos acusam os fenômenos espíritas de vulgaridade,
grosseria, trivialidade; consideram-nos ridículos. Essas apreciações
provam incompetência. As manifestações não podem ser diferentes
do que teriam sido, provindas do mesmo Espírito, quando na Terra.
A morte não nos muda e nós somos, na outra vida, exclusivamente
o que nós fizemos aqui na Terra. Daí a inferioridade de tantos seres
desencarnados.
Por outro lado, essas manifestações grosseiras e triviais têm
sua utilidade, porque é o que melhor nos revela a identidade do
Espírito. Elas têm convencido inúmeros experimentadores da reali-
dade da sobrevivência; pouco a pouco os levaram a observar, a
estudar fenômenos de ordem mais elevada. Porque, como vimos, os
fatos se encadeiam e ligam em ordem gradual, em virtude de um
plano que parece indicar a ação de um poder, de uma vontade
superior, que procura arrancar a Humanidade à sua indiferença e
114 Ver Annales des Sciences Psychiques, agosto, setembro e novembro
1907 e fevereiro 1909.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
208
impeli-la para o estudo e a investigação dos seus destinos. Os
fenômenos físicos, mesas falantes, casas mal-assombradas, eram
necessários para atrair a atenção dos homens, mas nisso é necessá-
rio apenas ver meios preliminares, um encaminhamento para mais
elevados domínios do conhecimento.
Por muito tempo foi o Espiritismo considerado coisa ridícula:
por muito tempo foram os espíritas achincalhados, escarnecidos,
acusados de loucura. Mas, em todos os que se fizeram portadores
de uma idéia, de uma força, de uma verdade nova, não aconteceu a
mesma coisa? Louco! disseram de Galileu; loucos Giordano Bruno,
Galvani, Watt, Palissy, Salomão de Caus!
A senda do progresso é, muitas vezes, ingrata aos inovadores.
Tem sido regada por muitas lágrimas e por muito sangue. Aqueles,
cujos nomes acabamos de citar, tiveram de abrir caminho através
da conspiração dos interesses. Eram desprezados por uns, detesta-
dos e perseguidos por outros. Lutaram e sofreram; comparativa-
mente com eles, os que são hoje apenas ridiculizados devem consi-
derar sumamente benigna a sua sorte.
Foi inspirando-se nesses grandes exemplos que os espíritas a-
prenderam a suportar com paciência os sofrimentos. Uma coisa os
tem consolado de todos os sarcasmos: é a certeza de que também
são portadores de um benefício, de uma força, de uma luz à Huma-
nidade.
Em cada século a Humanidade retifica suas apreciações. O que
parecia grande torna-se pequeno, o que se figurava pequeno se
agiganta. Hoje mesmo, já se começa a compreender que o Espiri-
tismo é um dos mais consideráveis acontecimentos dos modernos
tempos, uma das mais notáveis formas da evolução do pensamento,
o germe de uma das maiores revoluções morais que o mundo terá,
porventura, conhecido.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
209
Quaisquer que sejam os motejos de que é objeto, é preciso re-
conhecer que ao Espiritismo é que a nova ciência psíquica deve o
nascimento, porque sem ele, sem o impulso que lhe deu, todas as
descobertas que se vinculam a essa ciência não teriam surgido.
No que concerne ao estudo das manifestações dos Espíritos,
sentem-se os espíritas em muito boa companhia. Os nomes ilustres
de Russell Wallace, de Crookes, Robert Hare, Mapes, Zõllner,
Aksakof, Butlerof, Wagner, Flammarion, Myers, Lombroso, têm
sido repetidamente citados. Vêem-se também sábios como os
professores Barrett, Hyslop, Morselli, Bottazzi, William James, da
Universidade de Harvard, Lodge, reitor da Universidade de Bir-
mingham, o professor Richet, o coronel de Rochas, etc., que não
consideram indignos deles tais estudos. Que pensar, depois disso,
das acusações de ridículo e loucura? Que provam elas senão esta
coisa contestadora: que o império da rotina subsiste em certos
meios? O homem se inclina, muitíssimas vezes, a julgar os fatos no
limite do acanhado horizonte dos seus preconceitos e dos seus
conhecimentos. É preciso elevar mais alto, projetar mais longe o
olhar e medir a sua fraqueza em face do Universo. Assim se apren-
derá a ser modesto, a nada rejeitar nem condenar sem prévio exa-
me.
Tem-se procurado explicar todos os fenômenos do Espiritismo
pela sugestãoe pela dupla personalidade. Nas experiências, dizem,
o médium se sugestiona a si mesmo, ou, ainda, padece a influência
dos assistentes.
A sugestão mental, que outra coisa não é senão a transmissão
do pensamento, não obstante as dificuldades que apresenta, pode
compreender-se e estabelecer-se entre dois cérebros organizados,
por exemplo entre o magnetizador e o sensitivo. Pode-se, porém,
acreditar que a sugestão opere sobre mesas? Pode-se admitir que
objetos inanimados sejam aptos a receber e reproduzir as impres-
sões dos assistentes?
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
210
Com essa teoria não se poderiam explicar os casos de identi-
dade, as revelações de fatos, de datas, ignorados do médium e dos
circunstantes, as quais se produzem muitíssimas vezes nas experi-
ências, tanto como as manifestações contrárias à vontade de todos
os espectadores. Algumas vezes, particularidades absolutamente
ignoradas de toda criatura na Terra têm sido reveladas por médiuns
e depois averiguadas e reconhecidas exatas. Disso há exemplos
notáveis na obra de Aksakof, Animismo e Espiritismo e na de Rus-
sell Wallace, O Moderno Espiritualismo, assim como casos de
mediunidade verificados em crianças de tenra idade, os quais, do
mesmo modo que os precedentes, não poderiam ser explicados pela
sugestão.115
Segundo os Srs. Pierre Janet e Ferre116 – e aí está uma explica-
ção de que freqüentemente se servem os adversários do Espiritismo
– deve-se comparar um médium escrevente a um sensitivo
hipnotizado, ao qual se sugere uma personalidade durante o sono, e
que, ao despertar, tem perdido a lembrança dessa sugestão. O
sensitivo escreve inconscientemente uma carta, uma narrativa
referente a essa pessoa imaginária. Aí está, dizem, a origem de
todas as comunicações espíritas.
Todos os que possuem alguma experiência do Espiritismo sa-
bem que essa explicação é inadmissível. Os médiuns, escrevendo
de um modo automático, não são previamente mergulhados em
sono hipnótico. É no estado de vigília, na plenitude de suas facul-
dades e do seu “eu” consciente que os médiuns escrevem, sob o
impulso dos Espíritos. Nas experiências do Senhor Janet, há sem-
pre um hipnotizador em ligação magnética com o sensitivo. Não é
isso o que se dá nas sessões espíritas; nem o evocador, nem os
assistentes atuam sobre o médium; este ignora absolutamente o
115 Ver, na nota complementar nº 13, o caso do professor Hare.
116 E Janet, O automatismo psicológico.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
211
caráter do Espírito que vai intervir. Muitas vezes mesmo, as per-
guntas são dirigidas aos Espíritos por incrédulos, mais dispostos a
combater a manifestação do que a facilitá-la.
O fenômeno da comunicação gráfica não consiste unicamente
no caráter automático do escrito, mas, sobretudo, nas provas inteli-
gentes, nas identidades que testifica. Ora, as experiências do Se-
nhor Janet nada de semelhante fornecem, absolutamente. As comu-
nicações sugeridas aos sensitivos hipnotizados são sempre de
acabrunhadora banalidade, ao passo que as mensagens dos Espíri-
tos contêm, muitas vezes, indicações, revelações que se relacionam
com a vida presente e passada de seres que na Terra conhecemos,
que foram nossos amigos ou parentes, particularidades ignoradas
do médium e que revestem cunho de certeza que os distingue,
absolutamente, das experiências de hipnotismo.
Não se conseguiria, mediante a sugestão, fazer escreverem a-
nalfabetos, obter, por meio de um velador, poesias como as que
recolheram o Senhor Jaubert, presidente do Tribunal de Carcassone
e que obtiveram prêmios nos jogos florais de Tolosa. Nem por esse
meio se poderia, igualmente, provocar a aparição de mãos, de
formas humanas, nem ainda a escrita em ardósias trazidas por
observadores que não as largaram um momento.
É preciso recordar que a doutrina dos Espíritos foi constituída
mediante numerosas comunicações, obtidas por médiuns escreven-
tes, aos quais eram absolutamente estranhos tais ensinos. Quase
todos haviam sido embalados em sua infância pelos ensinos das
igrejas, pelas idéias de inferno e paraíso. Suas convicções religio-
sas, as noções que sobre a vida futura possuíam, estavam em fla-
grante oposição com as opiniões expostas pelos Espíritos. Neles
não havia idéia alguma preconcebida da reencarnação, nem das
vidas sucessivas da alma, nem da verdadeira situação do Espírito
depois da morte, coisas essas expostas nas comunicações obtidas.
Há nisso uma objeção irrefutável à teoria da sugestão; a realidade
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
212
objetiva das comunicações ressalta com tanto mais vigor, quanto os
médiuns não se achavam de modo algum preparados, pela sua
educação e por suas opiniões pessoais, para as concepções transmi-
tidas pelos Espíritos.
É evidente que, no meio da enorme quantidade de fatos espíri-
tas atualmente registrados, muitos há medíocres e pouco conclu-
dentes, outros que podem ser explicados pela sugestão ou pela
exteriorização do sensitivo. Em certos grupos espíritas, são as
pessoas levadas a tudo aceitar como procedente dos Espíritos e não
põem convenientemente de parte os fenômenos duvidosos. Por
muito ampla, porém, que seja a parte atribuída a estes, resta um
imponente conjunto de manifestações inexplicáveis pela sugestão,
pelo inconsciente, pela alucinação e por outras análogas teorias.
Os críticos procedem sempre de modo uniforme a respeito do
Espiritismo. Não se ocupam senão de um gênero especial de fenô-
menos e afastam propositadamente da discussão tudo o que não
podem compreender nem refutar. Desde que acreditam haver en-
contrado a explicação de alguns fatos insulados, apressam-se a
concluir pelo absurdo do conjunto. Ora, quase sempre a sua expli-
cação é inexata e deixam na penumbra as provas mais flagrantes da
existência dos Espíritos e da sua intervenção nas coisas humanas.
Outra teoria, muitas vezes invocada pelos contraditores da i-
déia espírita, é a do inconsciente, ou do ego inconsciente. A ela se
reportam numerosos sistemas, obscuros e complicados.
Segundo essa teoria, dois seres co-existiriam em nós: um cons-
ciente, que se conhece e se possui; outro inconsciente, que a si
próprio se ignora, como é por nós ignorado e que, todavia, possui
faculdades superiores às nossas, pois que lhe são atribuídos todos
os fenômenos do magnetismo e do Espiritismo; e não somente
haveria um segundo “nós mesmos”, mas um terceiro, um quarto e
mais até, porque certos teóricos admitem no homem a existência de
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
213
grande número de personalidades, de consciências diferentes. Esse
sistema é conhecido sob o nome de policonsciência.
Conforme demonstrou o Sr. Charles Richet no seu livro O ho-
mem e a inteligência, o sonambulismo provocado, o que se deno-
mina a dupla personalidade representa, simplesmente, os diversos
estados de uma única e mesma personalidade. Assim também o
inconsciente não é mais que uma forma da memória, o despertar
em nós de lembranças, de faculdades, de capacidades adormeci-
das.117 Os teoristas do inconsciente pretendem, por esse meio,
combater o maravilhoso e inventam um sistema ainda mais fantás-
tico e complicado do que tudo o que colimam. Não só a sua teoria é
ininteligível, mas não explica absolutamente os fenômenos espíri-
tas, porque não se pode compreender como o inconsciente produzi-
ria formas de finados, comunicações inteligentes por meio de sons
ou de pancadas e todos os fatos outros atestados por experimenta-
dores de todos os países.
Também se pretendeu atribuir as mensagens ditadas em sessão
a uma espécie de consciência coletiva, que se desprendesse do
conjunto dos assistentes. Concepção ilógica, se assim fosse. Um
fato o vai demonstrar.
No dia 25de outubro de 1908, foi realizada uma sessão, de
manhã, em Paris, no escritório do Sr. H. Rousseau, 16 Boulevard
Beaumarchais. Durante a seqüente refeição, no domicílio da famí-
lia, em Vincennes, um batimento de pancadas chamou a atenção.
Alguém desejava ser atendida e a médium, uma filha da família, foi
solicitada por esse invisível a retificar certos erros de particularida-
des cometidos, de manhã, em Paris. Seria preciso, pois, admitir que
esse hipotético ser, esse subconsciente, emanação de todo um
grupo, persistisse depois da partida do maior número e pudesse vir,
117 Ver O Problema do Ser, do Destino e da Dor, cap. IV.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
214
noutro meio, impressionar o médium para fazer corrigir, com inte-
ligência e precisão, as indicações errôneas, registradas de manhã.
Quase sempre se confunde o subconsciente, quer com o duplo
fluídico, que não é um ser mas um organismo, quer com o Espírito
familiar, preposto à guarda de toda alma encarnada neste mundo.
Pode-se perguntar em virtude de que acordo universal esses in-
conscientes ocultos no homem, que se ignoram entre si e a si pró-
prios se ignoram, são unânimes, no curso das manifestações ocul-
tas, em se dizerem Espíritos de mortos.
Pelo menos, é o que temos podido verificar nas inúmeras expe-
riências em que temos tomado parte durante mais de trinta anos,
em tão diversos pontos, na França e no estrangeiro. Em parte al-
guma se apresentaram os seres invisíveis como inconscientes, ou
“egos” superiores dos médiuns e de outras pessoas presentes, mas
sempre como personalidades diferentes, na plenitude de sua cons-
ciência, como individualidades livres, tendo vivido na Terra, co-
nhecidos dos assistentes, na maioria dos casos com todos os carac-
teres do ser humano, suas qualidades e defeitos, suas fraquezas e
virtudes, e dando freqüentes provas de identidade.118
O que há de mais notável nisso, convenhamos, é a argúcia, a
fecundidade de certos pensadores, sua habilidade em arquitetar
teorias fantasistas, no intuito de se esquivarem a realidades que
lhes desagradam e os incomodam.
Indubitavelmente, não previram todas as conseqüências dos
seus sistemas; fecharam os olhos aos resultados que deles se po-
dem deduzir. Não ponderando que essas doutrinas funestas aniqui-
lam a consciência e a personalidade, dividindo-as, são conduzidos,
118 Ver nota complementar nº 12 e No Invisível, "Identidade dos Espíri-
tos", cap. XXI.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
215
fatal e logicamente, à negação da liberdade, da responsabilidade e,
por conseguinte, à destruição de toda a lei moral.
Com essa hipótese, efetivamente, o homem seria uma dualida-
de, ou uma pluralidade mal equilibrada, em que cada consciência
agiria à vontade, sem preocupação das outras. São tais noções que,
penetrando nas almas, tornando-se para elas uma convicção, um
argumento, as impelem a todos os excessos.
Resumamos: Tudo, na Natureza e no homem, é simples, claro,
harmônico. O espírito de sistema é que complica e obscurece tudo.
Do exame atento, do estudo constante e aprofundado do ser
humano, resulta uma coisa: a existência em nós de três elementos:
o corpo físico, o corpo fluídico ou perispírito e, finalmente, a alma
ou espírito. O que se chama o inconsciente, a segunda pessoa, o eu
superior, a policonsciência, etc., é simplesmente o espírito que, em
certas condições de desprendimento e de clarividência, sente em si
mesmo produzir-se uma como manifestação de potências ocultas,
um conjunto de elementos que estavam momentaneamente escon-
didos sob o véu da carne.
Não, certamente; o homem não possui muitas consciências. A
unidade psíquica do ser é a condição essencial da sua liberdade e
da sua responsabilidade. Nele, porém, há muitos estados de consci-
ência. À proporção que o Espírito se desprende da matéria e se
emancipa do seu invólucro carnal, suas faculdades, suas percep-
ções se ampliam, despertam as recordações, dilata-se a irradiação
da personalidade. É o que, algumas vezes, se produz no estado de
“transe”, de sono magnético. Nesse estado, o véu espesso da maté-
ria se levanta e as capacidades latentes reaparecem. Daí certas
manifestações de uma mesma Inteligência, que têm podido fazer
crer numa dupla personalidade, numa pluralidade de consciências.
Isso não basta, entretanto, para explicar os fenômenos espíri-
tas: na maioria dos casos, a intervenção de Inteligências estranhas,
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
216
de vontades livres e autônomas, impõe-se como a única explicação
racional.
Não citaremos, senão incidentemente, a teoria que atribui aos
demônios essas manifestações. É argumento bem cediço, porque
dele se tem feito uso em todos os tempos e contra quase todas as
inovações. “Deve-se julgar a árvore pelos frutos” – diz a Escritura.
Ora, se ponderarmos todo o bem moral que já realizou no mundo o
Espiritismo, se considerarmos quantos cépticos, indiferentes, sen-
suais, têm sido por ele encaminhados para uma concepção mais
alta e salutar da vida, da justiça e do dever, quantos ateus recondu-
zidos ao pensamento de Deus, teremos de concluir que o demônio,
se autor dos fenômenos de além-túmulo, trabalha contra si, em
detrimento dos próprios interesses. O que noutro lugar119 dissemos
do inferno e dos demônios nos dispensa de insistir neste ponto.
Satanás não passa de um mito. Não há ser votado eternamente ao
mal.
Se na maior parte as críticas formuladas contra o Espiritismo
são injustas e errôneas, força é reconhecer que, entre elas, algumas
há fundado. Muitos abusos se opõem à marcha e o desenvolvimen-
to do moderno espiritualismo. Esses abusos não devem ser atribuí-
dos à idéia, em si mesma, senão à má aplicação que dela é feita em
certos meios. Não se dá isso com todas as coisas humanas? Não há
idéia alguma, por mais santa e respeitável, que não tenha ocasiona-
do abusos: é a inevitável conseqüência da inferioridade do nosso
mundo. No que respeita ao Espiritismo, cumpre assinalar, antes de
tudo, a mediunidade venal, que induz muitos sensitivos à simula-
ção dos fenômenos e, em segundo lugar, as nocivas práticas adota-
das em alguns grupos baldos de saber, de preparo e direção. Muitas
pessoas fazem do Espiritismo frívola diversão e, por meio do que
se denomina “dança das mesas”, atraem Espíritos inferiores e
119 Ver Depois da Morte, cap. XXXVII.
Léon Denis – Cristianismo e Espiritismo
217
levianos; estes não têm escrúpulo em mistificá-las e travar com
elas relações que podem conduzir até à obsessão.
Outras se aplicam, sem fiscalização, à escrita mediúnica e ob-
têm copiosas comunicações, subscritas por nomes célebres e que
não passam de medíocres, sem estilo nem originalidade.
Há, assim, um Espiritismo de baixa esfera, domínio exclusivo
dos Espíritos inferiores, não raro viciado de fraude, mentira e
embuste, e contra o qual nunca seria demais nos precatarmos.
São essas práticas que têm feito acreditar na intervenção de
demônios, quando não se trata senão de Espíritos vulgares e atrasa-
dos. Basta adquirir alguma experiência dessas coisas para distin-
guir a natureza dos seres invisíveis e eximir-se às ciladas dos Espí-
ritos inferiores.
Esses abusos têm sido assinalados muitas vezes, e mesmo exa-
gerados à vontade. Deles têm lançado mão para combater o moder-
no espiritualismo. Grave erro, porém, seria não ver na prática do
Espiritismo senão esses inconvenientes e, a pretexto de os evitar,
querer privar a Humanidade das vantagens reais, consideráveis,
que pode auferir de um estudo sério, de uma prudente e refletida
prática da mediunidade.
Quanto aos perigos que apresenta o Espiritismo,