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PSICOLOGIA SOCIAL sa SOLUÇÕES EDUCACIONAIS INTEGRADASRelações de poder e modos de subjetivação Tainá Thies OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM > Identificar as principais abordagens teóricas sobre as relações de poder e modos de subjetivação. > Conceituar poder e modos de subjetivação no contexto da psicologia social. > Analisar as principais aplicações práticas de poder e subjetivação. Introdução A psicologia social se ocupa de conceitos que visam analisar as relações en- tre os indivíduos e a forma como adquirem uma consciência sobre si mesmos, a sua subjetivação. Contudo, por vivermos em sociedade devemos pensar que a construção de si mesmo só pode acontecer no contato do indivíduo com outros e com as estruturas que formam a sociedade. Tais estruturas são todas formadas com base em relações de poder, entre aqueles que 0 detêm e aqueles que obedecem, mesmo sem saber que 0 fazem. Neste capítulo, você estudará os conceitos de poder e subjetivação nas dife- rentes visões de filósofos e sociólogos que primeiro questionaram tais relações. Em seguida, verá a importância desses conceitos para a área de psicologia social, e ainda conhecerá algumas aplicações práticas dos conceitos trabalhados dentro do campo da psicologia e em diferentes espaços.2 Relações de poder e modos de subjetivação Poder e subjetivação aproximações teóricas conceito de poder foi definido e redefinido ao longo dos séculos englo- bando diferentes dimensões a partir da visão de cada movimento social e filosófico que fez tal revisão. Assim, definir poder foi uma tarefa sobre a qual filósofos e sociólogos se debruçaram desde a Antiguidade Clássica, sempre reestruturando termo de acordo com contexto histórico de cada período. Por volta do século IV a. C., Platão estudou a política e definiu que ela deveria ser exercida por reis e rainhas dotados de razão e mais capazes que restante da população para governar de forma vertical, tomando decisões de cima para baixo. Já na Modernidade, Nicolau Maquiavel lançou uma obra revolucionária para século XVI, defendendo a violência e a coerção como formas de exercer poder e impor a vontade dos governantes sobre um povo indisciplinado. Mudamos então da razão e da moral à força (MACKENZIE, 2011). Após lançamento da obra Príncipe, de Maquiavel, houve modificações profundas na Europa, com revoluções e surgimento de um novo sistema econômico, capitalismo. Tais alterações também fizeram mudar a ideia que pensadores tinham sobre poder e autoridade. Dentre os autores que ques- tionaram as bases estabelecidas sobre a autoridade política está filósofo Thomas Hobbes, com sua obra Leviatã, publicada em 1651. Nessa obra, Hobbes defende a ideia de que os seres humanos não possuem livre arbítrio, uma vez que seríamos todos movidos pelas nossas paixões e estas guiariam nossa capacidade de raciocinar e prever desenrolar dos acontecimentos. Logo, a única liberdade que teríamos seria aquela definida por nossos desejos, mas que termina tão logo é barrada por impedimentos externos ao sujeito. poder seria então conseguir objeto de desejo a qualquer custo, mas isso acarretaria caos social. De acordo com Mackenzie (2011), para Hobbes os sujeitos concedem ao Estado seu próprio poder de escolha e de tomada de decisões por meio de um contrato social que garante certa paz e a preservação da vida na luta individual pela satisfação de seus desejos. Estado é aquele que governa acordos sociais que garantem harmonia e a estrutura social e, em troca, os sujeitos alienam-se de seu poder político. Avançando no tempo e na concepção de poder, já no século XIX filósofo e sociólogo Karl Marx discutiu as relações de poder no âmbito do sistema capitalista. Para ele, 0 poder se coloca como uma relação de dominação a partir da economia e do controle dos meios de produção. capitalismo aprofundou a distinção entre as classes sociais, gerando disputas pela propriedade daRelações de poder e modos de subjetivação 3 produção, especialmente pela classe trabalhadora, que entrega sua força de trabalho em troca de um retorno muito baixo. É nessa luta pelo direito aos frutos do trabalho que se estabelecem as relações de poder (MACKENZIE, 2011). Na virada do século XIX para século Max Weber, jurista e economista alemão, munido de uma visão influenciada por Maquiavel, estabeleceu uma ideia de poder que foi empregada largamente do longo do século Para ele, os líderes devem tomar decisões que protejam a cultura e os valores da nação. Assim, poder é a capacidade de impor sua vontade a outros, mesmo se eles resistem" (WHIMSTER, 2009, p. 302). 0 poder então passa a ser equivalente à dominação. Em seguida, o século XX viu florescer muitas vertentes sociológicas e filosóficas, incluindo o construtivismo estruturalista na sociologia e a análise histórico-crítica na filosofia. No âmbito deste capítulo, os representantes desses movimentos que nos ajudam a compreender a noção mais atual de poder são respectivamente Pierre Bourdieu e Michel Foucault. Para Foucault, a compreensão de um poder vertical que se emprega para subjugar as pessoas e mantê-las dentro da classe à qual pertencem não faz mais tanto sentido como antes. Para o filósofo, poder está agora des- centralizado e se instala em todas as relações: "ele permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso. Deve-se considerá-lo como uma rede produtiva que atravessa todo corpo social muito mais do que uma instância negativa que tem por função reprimir" (FOUCAULT, 2000, p. 8). poder não é mais algo que é adquirido com um cargo, e sim uma forma de exercer dominância. As relações de poder são administradas por diferentes atores e de di- ferentes formas. Se antes havia um monarca que ditava as regras, agora a sociedade criou instituições que se retroalimentam na execução do poder, incluindo a polícia, a igreja, a escola e as administrações locais. Além disso, Foucault chama a atenção para um poder que passa a ser exercido de forma disciplinar, por meio dos saberes que definem o que é "normal" para os sujeitos. Dessa norma que controla a todos, nascem diversas ciências, entre elas a psicologia (HENNIGEN; GUARESCHI, 2006). Por sua vez, Bourdieu discorre acerca do poder simbólico, que tem a capacidade de fabricação da realidade por meio da instituição de valores e crenças que formam os sujeitos. Para sociólogo, cada um traz em si uma herança social, isto é, capitais culturais e sociais pertencentes à classe social dominante, que perpetua seus valores e suas crenças por meio de agentes que divulgam os símbolos dessa cultura dominante. Tais agentes são figuras públicas, celebridades, intelectuais, entre outros (BRAGHIN, 2017).4 Relações de poder e modos de subjetivação pensador entende ainda que cada sujeito internaliza normas de com- portamento a partir de tais crenças e valores, constituindo um habitus. Ademais, transitamos por diferentes campos político, econômico, profis- sional, religioso, acadêmico etc. e cada um deles vai delimitar suas regras, exercendo um poder sobre os sujeitos, os quais se enquadram dentro de uma hierarquia de forma a acolher as normas dominantes como se fossem suas próprias (ÁLVARO; GARRIDO, 2006). Portanto, como você pode ver por esse brevíssimo resumo, o poder é uma força que se estabelece nas relações, sejam elas entre cidadãos e um governo ou entre sujeitos e instituições que tentam manter uma hierarquia dominante por meio de símbolos de autoridade, sem necessariamente usar a força bruta para fazer valer seus desígnios. Mas e sujeito em meio a todo esse jogo? Como fica a subjetividade? Bem, antes de você compreender como a subjetividade se constrói, é preciso definir este conceito, bem como conceito de subjetivação. su- jeito, ser de relações, qual modifica e é modificado por suas experiências, tem a capacidade de se moldar a partir dos contatos com o tecido social, construindo incessantemente então a subjetividade, isto é, as características que delimitam sujeito. Ao processo de construir-se sujeito denominamos subjetivação. E a subjetivação acontece diariamente nas lutas estabelecidas nas relações de poder (MANSANO, 2009) De acordo com Jacó-Vilela, Ferreira e Portugal (2006), a subjetividade é uma capacidade de reflexão a respeito de uma experiência de "eu", de ser alguém em contato com outros "eus". Contudo, essa busca por fazer-se sujeito, por definir identidades a cada encontro e dar sentido à própria existência é recente. Até pelo menos Re- nascimento não havia busca por sentidos individuais e dúvidas a respeito do significado das ações e das relações entre as pessoas. Na Antiguidade, havia a busca por conhecer os limites e por seguir os ensinamentos dos mestres, não a busca por si mesmo, por um eu diferente dos outros. As figuras de referência clássicas, os heróis, não buscavam a si mesmos, buscavam feitos, batalhas, coisas no mundo físico para atingir espiritual, mas não passavam por desencontros psíquicos. advento do Cristianismo também envolveu uma figura que buscava algo, mas essa busca era por sua alma ser salva do mal. Entra em cena, então, a figura do santo. A vida, até Renascimento, é coletiva, pautada pelo senso de comunidade e não no indivíduo. As regras eram as da igreja; as massas não eram educadas e as experiências eram todas partilhadas. Não havia a noção de privado, apenas da coisa pública. A sexualidade, por exemplo, nãoRelações de poder e modos de subjetivação 5 era algo privado, fechada entre paredes, até mesmo porque eram poucos os que tinham paredes! A partir da invenção da imprensa e da possibilidade de publicar um volume maior de exemplares, começa-se a vislumbrar uma modificação na esfera da interiorização. É claro que muitos anos se passaram até esse acesso ser (um pouco) facilitado às massas, o que só ocorreu de fato quando, pós- -Revolução Industrial, foi preciso educar as massas para servirem de força de produção. Com advento dos romances, com a proliferação do público leitor e com a possibilidade da aquisição de um livro para uma leitura silenciosa, iniciou-se, entre outros fatores, um marco no processo de interiorização dos sujeitos. Desse modo, a literatura deu um pontapé inicial não apenas na vida privada, mas também na construção de novos espaços, como jardins privados, bares fechados para certo público, espaços reservados a homens e a mulheres, entre outros (JACÓ-VILELA; FERREIRA; PORTUGAL, 2006). Com isso, foram lançados os dados para surgimento da ciência psicológica afinal, como controlar sujeitos que agora possuem vidas privadas e que pensam a respeito de suas relações com mundo e com Estado? E assim como a pedagogia, a psicologia se estabeleceu inicialmente como uma forma de controle e poder dos Estados. Um poder disciplinar, conforme Foucault. Aliás, Foucault não tinha por objetivo estudar poder por si só, mas sim compreender como se constituem os modos de subjetivação, os quais são perpassados pelas relações de poder. Assim, para filósofo, no mundo atual a construção da subjetividade se dá no interior daquilo que é tido como regra nas diferentes disciplinas, dentro de um controle sobre os corpos dos sujeitos como devem ser, que devem vestir, como sua sexualidade deve ser exercida. 0 sujeito é, então, "derivado de práticas sociais, econômicas, culturais, políticas: ele não faz a história, é construído pela mesma" (JACÓ- -VILELA; FERREIRA; PORTUGAL, 2006, p. 66). Ao mesmo tempo, se consideramos conceito de poder de Bourdieu, os sujeitos se fazem na aceitação/negação dos valores e das crenças im- postas pelas classes dominantes por meio de diferentes símbolos. É sabido, por exemplo, que a classe médica tem alto prestígio em nossa sociedade, estando hierarquicamente acima de outras profissões. Seus símbolos, como o jaleco, o consultório particular, os fármacos, entre outros, representam o saber da classe, a qual não precisa dominar pela força, uma vez que os sujeitos internalizaram tais símbolos como sendo a expressão de um poder que deve ser respeitado.6 Relações de poder e modos de subjetivação Da mesma forma, na atualidade a posse de certos instrumentos tecnoló- gicos de determinadas marcas demarca onde você se instala na engrenagem do poder econômico e qual seu valor dentro dessa sociedade capitalista. Assim, não basta apenas dominar pelas disciplinas, domínio se dá também pelas identificações da cultura capitalista que vai aos poucos minando a reflexão, introduzindo novamente os sujeitos na engrenagem que move a economia, o consumo. Portanto, a subjetividade é construída hoje por todos os mecanismos que se colocam à disposição do poder a mídia, os saberes, a ciência. Os questionamentos do papel na sociedade e do propósito de vida servem para mascarar que na verdade os sujeitos ainda são combustível dentro do sistema econômico em que vivem. E se a subjetividade criada nesse embate não sai como a classe dominante espera, então não há visibilidade para aquela pessoa, nem mesmo sujeito ela é mais, como no caso das pessoas em situação de rua, pessoas transexuais ou mesmo desempregados, pessoas à margem do consumo que mal ganham status de sujeito (SILVA, 2013). Saiba mais Poder e autoridade sempre estiveram na base das sociedades, ge- rando lutas e desigualdades. Mas e quando a autoridade passa a ser agressiva, assumindo a forma de governos que se desviam da tarefa de cuidar de uma nação e de seus cidadãos? Para entender como o poder de influência pode gerar movimentos e governos autoritários e/ou totalitários, assista ao filme Onda, de 2008, dirigido Dennis Gansel. Nele, um professor ensina sobre estados autocráticos incentivando os alunos a buscarem a compreensão aprofundada sobre tema. Porém, os alunos acabam por instaurar um movimento que se parece muito com nazismo. Um filme que vale a pena ver e refletir. Subjetivação e poder no campo da psicologia social Até aqui, estudamos diferentes visões a respeito do que é poder e como ele atua na construção das subjetividades. Mas e sua relação com a psicologia social, qual seria? Bom, se lembrarmos que a psicologia social é uma área que estuda 0 impacto das relações sociais sobre os indivíduos, já teremos aí uma pista. Se todas as relações sociais acontecem no campo do poder, e este influencia a subjetivação, logo teremos que para a psicologia social atitudes,Relações de poder e modos de subjetivação 7 crenças, valores, comportamentos e processos de grupo serão atravessados por essa subjetividade construída em relações desiguais. É muito comum falarmos em obediência e também em influência social, mas muitos manuais de psicologia social abordam tais construtos de forma individual, sempre com olhar para indivíduo e raras vezes voltando-se para as relações em si. Parece até jocoso falar que um campo que se diz social acabe individualizando seus estudos, mas isso acontece por influência da psicologia social norte-americana, que se volta mais ao cognitivismo e menos às relações de dominação como vemos nos estudos latino-americanos. Portanto, dentro da área psicológica, encontraremos muitos mais es- tudos que tratam sobre a influência social e experimentos de obediência e autoridade. No âmbito da influência social, Torres e Neiva (2011) afirmam que há três formas de influência: a direta, de uma pessoa para a outra; a de modificação indireta de normas, costumes e atitudes; e as influências sutis da cultura que moldam os sujeitos e perpetuam valores sem questionamentos. De toda maneira, qualquer uma das formas de influenciar outro estão baseadas no poder que há entre os indivíduos ou entre indivíduo e sociedade. Nesse sentido, os pesquisadores John French Jr. e Bertram Raven publicaram em 1959 uma teoria sobre as bases do poder social, chegando inicialmente a cinco tipos de poder, e acrescentando um sexto tipo em 1965. Examinemos a seguir cada um deles (RODRIGUES; ASSMAR; JABLONSKI, 2009): Poder de recompensa: quando um agente influencia outras pessoas a mudarem seus comportamentos mediante uma recompensa. Quanto maior a recompensa, maior poder do agente. Exemplo disso seria uma empresa com uma péssima cultura organizacional e ambientes não saudáveis de trabalho, com prazos impraticáveis e chefes que assediam seus subalternos, que podem fazer com que seus empregados continuem se comportando de forma submissa por bônus anuais na folha de pagamento. Poder de coerção: acontece quando poder se estabelece por meio de punições e violências de variados tipos. Retomando o exemplo da empresa, um chefe verbal e psicologicamente violento faz com que seus empregados continuem agindo de determinada forma por sua truculência e por sanções que pode impor a eles, como a demissão. Porém, esse tipo de poder se estabelece até ponto em que aqueles que sofrem a coerção aceitam, isto é, caso os funcionários tomem alguma atitude e este chefe seja demitido, ele não mais terá poder sobre eles.8 Relações de poder e modos de subjetivação Poder de legitimidade: quando a tradição legitima a posição de certa pessoa, isso confere a ela maior poder, que decorre da crença do grupo de que ela deve naturalmente exercê-lo. Um exemplo pode ser um chefe de uma igreja, que tem seu poder legitimado por seu posto tradicionalmente imbuído de autoridade. Poder de referência: quando identificamos alguém como uma influência (positiva ou negativa), conferimos a tal pessoa o poder de estabelecer regras de comportamento. Pode-se mencionar aqui líderes de seitas, que por inúmeras identificações conseguem cometer atrocidades sem serem questionados por muito tempo. Poder de conhecimento ou de perícia: é um poder que se confere a alguém quando que se torna um especialista em alguma área. 0 maior exemplo é da relação entre médico e paciente. Muitas vezes, paciente nem mesmo compreende porque faz tal tratamento, mas como foi o médico instruiu, ele deve saber o que está fazendo, afinal, tem conhecimento. Poder de informação: manifesta-se quando a modificação de compor- tamentos ocorre por reconhecimento de alguma informação dada pelo agente, e não necessariamente pela figura do agente. Como exemplo, pode-se citar a mudança de hábitos alimentares por meio da compre- ensão de como atuam os açúcares e carboidratos em nosso organismo. Porém, em tempos de fake news, nem toda informação é de fato válida para embasar decisões. Além disso, as modalidades de poder foram classificadas por French e Raven em dois grupos de influência (RODRIGUES; ASSMAR; JABLONSKI, 2009): Influência independente: quando 0 poder que se estabelece é 0 de informação, não é necessária a figura do agente influenciador, pois quem de fato altera comportamento do influenciado são os argu- mentos, que provocarão insights, que por sua vez possibilitarão a ação. Influência dependente: pública a influência depende da figura do influenciador, mas a modificação dos comportamentos se dá apenas de forma externa, pública, ou seja, internamente influenciado não aceita tais mu- danças (acontece quando há poder por coerção ou por recompensa);Relações de poder e modos de subjetivação 9 privada a influência depende da figura do influenciador, a partir da percepção do influenciado, e as mudanças geradas pela influência são mais duradouras e não exigem a presença do agente que exerce 0 poder (inclui os poderes de referência, de conhecimento e legítimo). Assim, a influência e os diferentes tipos de poder exercidos por grupos e governos podem moldar as atitudes e pensamentos dos mais variados grupos. Se pensarmos em ditaduras, o mais provável é que pela mera coerção os cidadãos somente se comportem de determinada maneira para evitar punições, e não por aceitação das regras. Já na sociedade em que estamos vivendo, é muito mais fácil que figuras de referência, as quais ainda possuem a legitimidade do poder, influenciem de acordo com seus valores e crenças. Celebridades, políticos e cientistas hoje têm inserção nos lares e podem produzir mudanças privadas. A questão é se essas mudanças serão de fato benéficas para a coletividade ou não. Assim, com a influência diária de diversos agentes de poder, cada sujeito vai se moldando, se construindo, produzindo sua subjetividade. Com poderes de referência, legitimidade, informação e conhecimento, o sistema reforma as estruturas culturais e de valores para atender agendas econômicas que necessitam dos sujeitos subjugados, conformados com aquilo que lhes é demandado. Na pós-modernidade, 0 alcance da mídia e da influência é tão ramificado que valores individualistas passam a sobrepujar os comunitários. Não mais pensamos em prosperar com a vizinhança, em melhorar bairro, a escola. Cada vez mais pensamos em obter prazer da gratificação fugaz da recompensa dos cliques, das compras e do conhecimento facilmente à disposição, mas que não mais temos a paciência de procurar. A sociedade prefere receber que já foi filtrado por alguma referência, escancarando a alienação em que vive. Nesse sentido, Silva (2013) nos recorda que após a Terceira Revolução Industrial, a tecnológica, a subjetividade se viu ainda mais confusa. Não há mais nada fixo. Os postos de trabalho não oferecem mais segurança, nem mesmo a separação entre público e privado. crescimento é desenfreado, a globalização aproximou fronteiras e ao mesmo tempo juntou lar com trabalho, diminuindo as horas de lazer e descanso. Como se não bastasse, a pandemia de covid-19 escancarou ainda mais esse cenário. Não sabemos mais onde termina a casa e começa trabalho, sempre ali, à espreita no aplicativo de mensagens ou de e-mail.10 Relações de poder e modos de subjetivação E se não acompanharmos essas modificações edificadas por aqueles que comandam a produção e a economia, que acontecerá? Seremos excluídos, e nada exerce maior controle na sociedade atual do que a vergonha de não pertencer ao grupo que está em alta, ou não se encaixar no modelo exigido pelo mercado (SILVA, 2013). Portanto, poder e subjetivação andam de mãos dadas, sendo influencia- dos por diversos fatores, mas sempre com vistas ao pertencimento às redes sociais de determinada cultura. Fique atento A psicologia social se vale do diálogo com áreas das ciências sociais e humanas para melhor compreender sujeito e suas relações. Por isso mesmo, muitos dos conceitos desenvolvidos no seio dessa área podem ser estudados no intercâmbio com outras ciências, em especial a sociologia e a filosofia. Poder e subjetivação na prática Até aqui, analisamos teorias diversas que tentam dar sentido às relações entre poder e subjetivação. Mas como isso pode ser trabalhado na prática da psicologia social? Antes de mais nada, lembre-se que a psicologia social se coloca como um campo reflexivo que pode perpassar diversas outras áreas da psicologia, além de ter suas próprias aplicações, especialmente na pesquisa. Então, a seguir veremos possíveis diálogos entre essa área e a psicologia escolar, a psicologia organizacional, a psicologia comunitária e também a pesquisa. No âmbito da escola, psicólogo social tem por objetivo iniciar e con- duzir um processo de mudança que parte da reflexão e conscientização das necessidades e vulnerabilidades sociais. Assim se constrói a cidadania, compreendendo sua realidade e pensando a melhor forma de agir em prol dos objetivos do seu grupo (ZANELLA, 2013). Para que isso ocorra, é papel dos profissionais da psicologia na escola debate sobre as relações sociais entre os diversos atores nesse contexto. Além disso, é imperativo que haja um questionamento a respeito da submissão e da influência de cada um dos subgrupos encontrados na escola. Nesse sentido, as relações de coerção entre professores e alunos e seu subproduto, a coerção entre alunos, deve ser questionada e modificada, especialmente por meio de influência de informação.Relações de poder e modos de subjetivação 11 Projetos, rodas de conversa, debates, palestras, acolhimento, formações, entre outras possibilidades devem ser promovidas, distribuindo-se poder entre aqueles de quem se pede a mudança. A escola ainda é um reduto de relações desiguais, espelho de nossa sociedade, e nesse âmbito é preciso estabelecer novas formas de interação, uma vez que "às relações de domi- nação/submissão contrapõem-se as relações de cooperação, marcadas por laços de solidariedade e pelo compromisso com uma sociedade não exclusora" (ZANELLA, 2013, p. 227). E é a cooperação que esperamos, pois se na escola são aprendidos modos de ser sujeito, e esses modos se dão nas relações de dominação/submissão, estamos apenas preparando alunos para perpetuar modelos hierárquicos que irão reproduzir assim que saírem portões afora. No campo da psicologia organizacional, vemos uma aproximação de con- ceitos da psicologia social, uma vez que ambas beberam da mesma fonte para se organizar. Atitudes, valores, crenças e poder são alguns dos temas trabalhados também em organizações. Em relação ao poder e à construção de um sujeito que trabalha e se identifica enquanto alguém que tem uma função e um papel social, trabalho da psicologia social tem grande relevância (GOMIDE JR.; OLIVEIRA; SIQUEIRA, 2011). Exemplo Imagine que você trabalha numa organização e precisa identificar as necessidades das equipes. Já na análise da demanda, você percebe que as chefias são truculentas e têm pouco conhecimento sobre a função. Mais do que isso, você percebe a desmotivação dos funcionários para trabalho, com altas taxas de absenteísmo. que você pensaria sobre essa situação? Bem, fica muito claro que as lideranças não estão trabalhando como deve- riam, pois os chefes não atuam por meio de uma influência positiva, gerando impactos negativos nos funcionários, que agora questionam sua própria ca- pacidade de produção e de pertencimento às suas respectivas funções. Eis aí uma crise muito comum para os sujeitos atuais: questionar seu lugar nas organizações e muitas vezes ainda acumular toneladas de trabalho por medo de retaliação, acarretando inclusive transtornos como a síndrome de burnout. Além da identificação das fragilidades das empresas, a atuação da psi- cologia social nesse contexto busca oferecer espaço de diálogos que levem a mudanças, especialmente as produzidas de forma interna e independente. Outro âmbito de atuação da psicologia social se dá na forma de pesquisas, tentando demonstrar a validade ou não dos conceitos estudados pela área. Vejamos a seguir alguns exemplos.12 Relações de poder e modos de subjetivação A Escola de Frankfurt, movimento filosófico e sociológico que revisou criticamente a obra de Karl Marx e inseriu discussões sobre a alienação pro- duzida pela indústria cultural, teve como um de seus representantes Theodor Adorno. Junto com colaboradores, Adorno e pesquisadores estudaram antissemitismo perpetrado por Hitler em seu regime nazista e a correlação com uma personalidade autoritária. Sua pesquisa encontrou correlações entre preconceito contra minorias e tendência antidemocrática entre os sujeitos pesquisados. Esse experimento sofreu muitas críticas, mas se insere na fronteira entre as ciências sociais e a psicologia, demonstrando como as personalidades são moldadas de acordo com valores e atitudes autoritárias (RODRIGUES; ASSMAR; JABLONSKI, 2009). No início dos anos 1960, outro grande experimento, também controverso, foi de Stanley Milgram, psicólogo social norte-americano. Segundo ele, toda comunidade prevê hierarquia, autoridade e obediência. Porém, até que ponto as pessoas poderiam chegar pela obediência às autoridades? Seu interesse nasceu dos julgamentos de algozes do Holocausto, pois muitas pessoas que pareceriam pacíficas acataram ordens e mataram milhares de vítimas. E essa era exatamente a questão: que as fez acatarem a tais ordens atrozes? Em seu estudo, os participantes tomavam o posto de um professor que deveria fazer perguntas a um aluno (alguém da equipe), que estaria ligado a uma máquina de choque, dentro de uma sala. Toda vez que o aluno errasse a resposta, professor deveria dar choques no aluno por meio de uma máquina, aumentando a intensidade da voltagem a cada erro. Obviamente, aluno passava a errar cada vez mais, fazendo com que professor/participante aumentasse a intensidade dos choques, mesmo com as súplicas do aluno para que tudo terminasse. Ainda que os participantes demonstrassem von- tade de parar de dar os choques, havia na sala outra figura, um pesquisador portanto um jaleco branco. Essa pessoa ditava comandos pré-estabelecidos com cordialidade, e, assim, mais de 50% dos participantes continuaram apli- cando choques até fim, obedecendo à autoridade presente na sala (ÁLVARO; GARRIDO, 2006; TORRES; NEIVA, 2011). Torres e Neiva (2011) apontam algumas questões suscitadas nessa pesquisa de Milgram. Quanto mais próximos da vítima se encontravam os professores/ participantes, menores as chances de que os choques continuassem. Porém, sem contato visual ou verbal, mais provável era que 100% dos participantes terminassem a tarefa. Além disso, a presença de uma figura de autoridade garantia cumprimento estrito do protocolo, embora a taxa de obediência ainda continuasse alta caso as ordens fossem dadas por outros meios, comoRelações de poder e modos de subjetivação 13 telefone. Por fim, havia ainda uma questão de status envolvida, suscitada tanto pelo local de aplicação do teste quanto pelo papel de autoridade enquanto professor; ambos aumentaram a probabilidade dos participantes chegarem até fim do experimento. Vale ressaltar que as pesquisas de psicologia social nem sempre apresen- tam resultados considerados fidedignos por inúmeros vieses, especialmente quando se trata de obediência e relações de poder. Ao mesmo tempo, trata-se de um campo promissor se pensarmos na mudança de atitudes das pessoas, que pode levar a dois caminhos: aumento de consumo, no caso de aplicação de estratégias ao marketing de produtos, ou então aumento da frequência de comportamentos saudáveis/pró-sociais. Esta última aplicação pode servir tanto à pesquisa para conhecimento do público-alvo de campanhas e ações quanto a estratégias de modificação de comportamento, valores, atitudes e crenças a respeito de áreas-chave para hábitos mais saudáveis, como usar cinto de segurança ou diminuir consumo de álcool, por exemplo. Por fim, podemos citar a atuação da psicologia social no campo comunitário e da saúde, junto a ONGs, CAPS, unidades de saúde e de saúde da família, lideranças comunitárias, associações de bairro entre outras. Esses espaços são os que mais chamam a atenção pela necessidade de ressignificação das relações de dominação. Em comunidades carentes, raras são as vezes em que as lideranças conseguem de fato organizar grupos para lutar por seus direitos. Nesses espaços, trabalho do psicólogo é refletir sobre os papéis, as conformidades e as relações, preparando os sujeitos para exercício da cidadania, transformando-os em sujeitos políticos de fato, com atuação na sua comunidade, mas especialmente com sentimento de pertencimento à comunidade. Sem a compreensão de que pertencem a determinado lugar, por que os sujeitos brigariam por qualquer coisa que lhes falte? Afinal, se lugar onde estou não me acolhe, não vou me incomodar em modificar meus comportamentos em prol do grupo! Logo, primeiro passo é construir alianças e reflexões acerca das próprias subjetividades e dos locais que constroem esses sujeitos. Há, sem dúvida, muitos outros locais para modificação das relações de interação e para a construção da subjetividade; aliás, há tantos espaços quanto há sujeitos e relações. A tarefa de um psicólogo social é levar reflexão aonde for, mas sem se colocar como sabedor de tudo, no topo da relação de poder, e sim dividindo poder do conhecimento, pois ninguém sabe mais sobre sujeito do que ele próprio.14 Relações de poder e modos de subjetivação Este capítulo trouxe reflexões importantes a respeito das relações em que os seres humanos estão inseridos diariamente. Nessa esteira, a compreensão dos conceitos de poder e subjetivação fornece ao psicólogo com atuação social uma visão mais aprofundada das relações que se estabelecem em diferentes contextos de trabalho. A psicologia social dá grande ênfase aos grupos, e é exatamente nesse campo que as discussões abordadas neste capítulo mais fazem sentido. Trabalhar com grupos é compreender como as alianças se formam e como acontece a dominação e a construção da identidade, tanto individual quanto coletiva. Referências ÁLVARO, J. L.; GARRIDO, Psicologia social: perspectivas psicológicas e sociológicas. 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Fique atento Os links para sites da web fornecidos neste capítulo foram todos testados, e seu funcionamento foi comprovado no momento da publicação do material. No entanto, a rede é extremamente dinâmica; suas páginas estão constantemente mudando de local e conteúdo. Assim, os edito- res declaram não ter qualquer responsabilidade sobre qualidade, precisão ou integralidade das informações referidas em tais links.Conteúdo: S a SOLUÇÕES EDUCACIONAIS INTEGRADAS