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Saúde e qualidade de vida do servidor penitenciário AULA 2: Caracterização do sistema penitenciário e de seus servidores Conceitos IniciaisMÓDULO 1 Saúde e qualidade de vida do servidor penitenciário 2. MÓDULO 1: Conceitos iniciais AULA 2: Caracterização do sistema penitenciário e de seus servidores Sumário INTRODUÇÃO ______________________________________________________________________ 3 OBJETIVO DA AULA ________________________________________________________________ 3 O SISTEMA PENITENCIÁRIO COMO ELE É _______________________________________ 3 SISDEPEN: DADOS DA SENAPPEN SOBRE OS SERVIDORES PENITENCIÁRIOS __________________________________________________ 9 O SENTIDO DO TRABALHO E A ATUAÇÃO DOS SERVIDORES PENITENCIÁRIOS _________________________________________________ 13 CARACTERIZAÇÃO DO TRABALHADOR DO SISTEMA PENITENCIÁRIO: APRISIONAMENTO/ESTIGMATIZAÇÃO/VALORIZAÇÃO _______________________ 16 IDENTIDADE E PERTENCIMENTO _______________________________________________ 19 RELAÇÃO ENTRE O TRABALHO E O PROJETO DE VIDA/QUALIDADE DE VIDA ____________________________________________________________________________ 21 TRABALHO PRESCRITO X TRABALHO REAL ____________________________________ 22 ENCERRAMENTO _________________________________________________________________ 24 REFERÊNCIAS _____________________________________________________________________ 25 FICHA TÉCNICA ___________________________________________________________________ 28 Saúde e qualidade de vida do servidor penitenciário 3. MÓDULO 1: Conceitos iniciais AULA 2: Caracterização do sistema penitenciário e de seus servidores INTRODUÇÃO Na primeira aula, abordamos os processos históricos e os principais conceitos sobre saúde e qualidade de vida no trabalho, apresentamos as principais legislações e iniciativas voltadas à saúde do trabalhador. Adicionalmente, abordamos alguns conceitos relevantes para a compreensão da relação entre trabalho, subjetividade e impactos psicológicos do trabalho na vida do trabalhador e refletimos sobre a importância do desenvolvimento da política de saúde e qualidade de vida dos trabalhadores. Na segunda aula, abordaremos a caracterização do sistema penitenciário, considerando os aspectos históricos e atuais. Também vamos refletir sobre o sentido do trabalho e a atuação dos servidores penitenciários, considerando as dimensões pessoal, organizacional e social do trabalho, a identidade e o senso de pertencimento dos servidores, a relação entre o trabalho e a qualidade de vida, bem como a distinção entre o trabalho prescrito e o trabalho real. Que esse percurso seja muito proveitoso! OBJETIVO DA AULA Explicitar informações sobre o sistema penitenciário e o perfil de seus servidores. Ao final desta aula, o cursista será capaz de compreender a história do sistema penitenciário e identificar as categorias que compõem o quadro de servidores. O SISTEMA PENITENCIÁRIO COMO ELE É No mundo todo, o sistema penitenciário enfrenta desafios que vão além da questão da segurança. Tais desafios afetam tanto a vida das pessoas privadas de liberdade quanto dos trabalhadores e refletem na sociedade. Como bem definiu Goffman (1974, p. 11), o sociólogo canadense mais influente do século XX, o sistema prisional configura-se como uma instituição total, ou seja, é um local onde muitos indivíduos em situação semelhante, separados da sociedade por um período considerável, vivem uma vida fechada e rigidamente administrada. Nesse ambiente, diversos aspectos da vida cotidiana, como lazer, trabalho e vida social, são compartilhados, deixando pouco espaço para a privacidade e a expressão da individualidade. Por sua natureza complexa, frequentemente desconhecida e ignorada pela sociedade, o sistema prisional envolve diversas questões que despertaram o interesse de pesquisadores de diversas áreas. Entre eles, destaca-se a figura de Michel Foucault (1987), filósofo francês que, em sua obra “Vigiar e punir: nascimento da prisão”, publicada pela primeira vez em 1975, mergulha nesse universo e revela os mecanismos de violência historicamente utilizados pelo Estado como forma de controle sobre aqueles que não se submetem às normas sociais. Assim, antes de falarmos sobre a atual realidade do sistema prisional, é importante entender como esse sistema foi se construindo ao longo do tempo. Para isso, utilizaremos como principal referência a obra de Foucault (1987), que traça um panorama da legislação penal e dos métodos punitivos. A partir de uma análise profunda, o autor desvenda como o poder moldou e implementou sistemas de repressão para aqueles que transgrediam as normas morais e convencionais vigentes em cada sociedade e época. Foucault (1987) explica que, no passado, as penas buscavam marcar os corpos dos condenados, expondo-os a castigos físicos. Os castigos aconteciam em espaços públicos para que, além de punir, alertassem à população que não desviasse das regras e normas estabelecidas. Apesar dos castigos impostos, a ocorrência de crimes aumentava. Aos poucos, passou-se a exigir a humanização Saúde e qualidade de vida do servidor penitenciário 4. MÓDULO 1: Conceitos iniciais AULA 2: Caracterização do sistema penitenciário e de seus servidores das penas. E, em vez do castigo físico, estabeleceram-se mecanismos mais elaborados, objetivando moldar a psique das pessoas privadas de liberdade pelo controle. A análise crítica apresentada por Foucault (1987) nos convida a repensar a função da prisão e de seus impactos na vida dos indivíduos. SAIBA MAIS! Considerando a relevância da obra de Foucault (1987) por seus aspectos reflexivos e críticos, sobretudo para os servidores penitenciários, recomendamos que a obra “Vigiar e punir” seja lida na íntegra. E, para introduzi-lo/a imediatamente ao tema, preparamos um breve resumo: A obra se estrutura em quatro partes: 1ª parte: suplício. Aborda os métodos brutais de punição utilizados no passado. Pela análise minuciosa de um caso real ocorrido na França, em 1757, o autor expõe a barbárie do suplício, descrevendo uma série de torturas públicas, incluindo queima e esquartejamento, que foram infligidas ao condenado. O sofrimento excruciante era o elemento central dessa prática, servindo como instrumento de demonstração do poder absoluto do Estado. Por meio da dor infligida, buscava-se punir o indivíduo e, além disso, induzir medo na população, dissuadindo qualquer tipo de contestação à ordem vigente. O suplício servia como um lembrete da crueldade e do autoritarismo que marcaram épocas passadas. Sua análise nos convida a refletir sobre a evolução dos sistemas penais e a importância da luta por sociedades mais justas e humanizadas. Em nosso estudo, devemos refletir ainda a respeito do papel exercido pelos servidores penitenciários e, mais especialmente, pelos policiais penais em nome das práticas validadas pelo Estado, que teve tantas mudanças ao longo dos anos. 2ª parte: punição. Foucault (1987) destaca a mudança de paradigma ocorrida no século XVIII. A partir de protestos contra os suplícios, que evidenciavam a barbárie das práticas punitivistas, os cidadãos exigiam um sistema de justiça criminal mais justo e humanitário. Essa mudança foi impulsionada por diversos fatores. Primeiramente, houve um aumento significativo dos crimes patrimoniais em detrimento dos crimes de agressão e homicídio, os quais antes predominavam. Outro motivo é que a burguesia buscava uma repressão mais eficaz e menos baseada em espetáculos públicos de sofrimento. Diante disso, a busca por uma abordagem mais humanitária na aplicação das penas se tornou urgente. 3ª parte: disciplina. Aqui, o autor aborda os mecanismos do poder disciplinar e sua capacidade de moldar “corpos dóceis”, ou seja, um tipo de corpo disciplinado por intermédio de estratégias sutis de vigilância, sanção, normalização e dominação. Assim, os sujeitos se tornam úteis e submissos às normas sociais. E, a partir da disciplina, a punição deixa de seAcesso em: 27 abr. 2024. BRASIL. Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984. Institui a Lei de Execução Penal. Brasília, DF: Presidência da Repú- blica, 1984. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm. Acesso: 27 abr. 2024. BRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública. Portaria nº 109, de 21 de julho de 2022. Institui a Política e o Programa de Qualidade de Vida no Trabalho (QVT) do DEPEN/MJSP. Brasília, DF: MJSP, 2022. Disponível em: https://dspace.mj.gov.br/bitstream/1/7251/1/PRT_DEPEN_2022_109.pdf. Acesso em: 11 maio 2024. BRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública. Secretaria Nacional de Políticas Penais. 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Ministério da Justiça e Segurança Pública Secretaria Nacional de Políticas Penais André de Albuquerque Garcia Secretário Nacional de Políticas Penais Diretoria de Políticas Penitenciárias Sandro Abel Sousa Barradas Diretor de Políticas Penitenciárias Coordenação-Geral de Cidadania e Alternativas Penais Cintia Rangel Assumpção Coordenadora-Geral de Cidadania e Alternativas Penais Coordenação de Saúde Kleber Carlos Morais Coordenador Nacional de Saúde Fundação Oswaldo Cruz Mario Santos Moreira Presidente Fiocruz Brasília – GEREB Maria Fabiana Damásio Passos Diretora Escola de Governo Fiocruz Brasília (EGF) Luciana Sepúlveda Köptche Diretora Executiva Escola de Governo Fiocruz Brasília Avenida L3 Norte, s/n Campus Universitário Darcy Ribeiro, Gleba A CEP: 70.904-130 – Brasília/DF Telefone: (61) 3329-4550 FICHA TÉCNICA Esta obra é disponibilizada nos termos da Licença Creative Commons – Atribuição – Não Comercial – Compartilhamento pela mesma licença 4.0 Internacional. É permitida a reprodução parcial ou total desta obra, desde que citada a fonte. Coordenação-Geral do Projeto Valoriza - Saúde em Foco Ana Paula Morgado Carneiro André Vinicius Pires Guerrero Cintya Azevedo Gonçalves Deize Rackuel Pereira da Silva Kleber Carlos Morais Coordenação-Geral do Curso Ana Paula Morgado Carneiro André Vinicius Pires Guerrero Cintya Azevedo Gonçalves Deciane Figueiredo Mafra June Corrêa Borges Scafuto Letícia Maranhão Matos Sara Maria Baptista Reis Revisão Técnico-Científica Ana Beatriz Barbosa Barreiros Carla Fernanda de Almeida Lacruz Rodriguez Cintya Azevedo Gonçalves Deciane Figueiredo Mafra June Corrêa Borges Scafuto Kleber Carlos Morais Letícia Maranhão Matos Luciano Pereira dos Santos Sara Maria Baptista Reis Orientação Pedagógica Luciano Pereira dos Santos Conteudistas Jaqueline Tavares de Assis Letícia Maranhão Matos Milena Leal Pacheco Olga Maria Pimentel Jacobina Rodrigo Pereira Lopes Vilene Eulálio Magalhães Wladimir Rodrigues da Fonseca Produção Núcleo de Educação a Distância da EGF – Fiocruz Brasília Coordenação Geral Anna Pontes Coordenação Técnica Samuel Leandro Pereira Dourado Designer Educacional Fabrícia Kelly Alves Ramos Juliana Bermudez Souto de Oliveira Sarah Saraiva Silva Resende Revisão Textual Erick Pessôa Guilhon Editor AVA Rafael Cotrim Henriques Trevor Furtado Souza Produtor Audiovisual Arthur Boás da Silva Gonzaga Produtor Multimídia Márlon Cavalcanti Lima Designer Gráfico Agência Vidya Philippe Alves Lepletier Desenvolvedor Bruno Cardozo Cotrim da Costa Joana D’Angeles Costa Ribeiro Thiago Xavier da Silva Vando Carvalho Rodrigues Pinto Supervisão de Oferta Meirirene Moslaves Suporte Técnico Caio Cardoso Cotrim Henriques Dionete de Souza Gonçalves Sabate Poliana dos Santos Silva CRÉDITOS INTRODUÇÃO Objetivo da aula O sistema penitenciário como ele é Sisdepen: dados da Senappen sobre os servidores penitenciários O sentido do trabalho e a atuação dos servidores penitenciários Caracterização do trabalhador do sistema penitenciário: aprisionamento/estigmatização/valorização Identidade e pertencimento Relação entre o trabalho e o projeto de vida/qualidade de vida Trabalho prescrito X Trabalho real Encerramento REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Ficha técnicaconcentrar apenas no corpo do condenado e passa a atingir também sua alma ou psique (Foucault, 1987). Ao falar das prisões, Foucault (1987) explora o conceito do “panóptico”, a partir de uma analogia ao poder disciplinar da sociedade moderna. O modelo do dispositivo panóptico, caracterizado por um ponto de observação central (como a torre de um relógio) e salas ou espaços dispostos ao redor, serve como modelo para a organização de instituições como escolas, hospitais, locais de trabalho e, principalmente, as prisões (Trindade, 2024). No panóptico, a vigilância se torna onipresente e constante. Os guardas, posicionados no ponto central, conseguem observar as pessoas presas através de venezianas. Nessa estrutura, as pessoas vigiadas não sabem se estão sendo vigiadas ou não. Essa dúvida gera uma sensação Saúde e qualidade de vida do servidor penitenciário 5. MÓDULO 1: Conceitos iniciais AULA 2: Caracterização do sistema penitenciário e de seus servidores de vigilância constante, e elas passam a internalizar as normas e regras da instituição, tornando a disciplina e o controle possíveis, sem a necessidade de força física explícita (Foucault, 1987). O panóptico, portanto, representa a máxima expressão do poder disciplinar. Mediante a hiper vigilância e a internalização das normas, o indivíduo é moldado de acordo com as expectativas da sociedade, tornando-se um “corpo dócil”, submisso à ordem social (Foucault, 1987). CURIOSIDADE! Foram construídos pelo menos sete edifícios com esse modelo no mundo: um em Portugal (o único a céu aberto); um na França; três na Holanda; um nos Estados Unidos; e um em Cuba. Este último é apresentado nas fotos abaixo: a penitenciária da Ilha dos Pinheiros, construída em 1928 e desativada em 1967. Figura 1 - Presídio Modelo - visão externa. Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/Presidio_Modelo. Figura 2 - Presídio Modelo - visão interna. Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/Presidio_Modelo. Saúde e qualidade de vida do servidor penitenciário 6. MÓDULO 1: Conceitos iniciais AULA 2: Caracterização do sistema penitenciário e de seus servidores 4ª parte: prisão. Aqui, o autor analisa a instituição central da punição moderna, argumenta que a prisão se baseia na “privação de liberdade” e enfatiza que essa liberdade é um bem que pertence a todos de maneira igual. Perder a liberdade tem, portanto, o mesmo preço para todos. Compreende- se que, retirando tempo do condenado, a prisão parece traduzir concretamente a ideia de que a infração lesou, além da vítima, a sociedade inteira (Foucault, 1987, p. 261). Por fim, Foucault conclui que há um paradoxo entre a realidade e o modelo coercitivo proporcionado pelo aprisionamento. Dessa forma, o modelo carcerário é concebido com o objetivo primordial de reprimir e reduzir a criminalidade, mas certamente esse modelo alimenta o ciclo da criminalidade e da desigualdade social. Mais recentemente, Póvoas (2020), corroborando com a análise de Foucault (1987), compreende que, diante da crescente rejeição à crueldade e à irracionalidade das penas impostas no passado, procurou-se maior pro- porcionalidade entre a gravidade do crime e a sanção aplicada. Essa mudança de paradigma resultou em uma grad- ual diminuição da severidade das punições, evoluindo para o modelo atual, que considera a liberdade como um direito fundamental e adota a pena privativa de liberdade como exceção, estabelecendo que esta deve focar na reinserção social das pessoas privadas de liberdade. Segundo Póvoas (2020), a sociedade se or- ganiza em etapas de disciplinamento, com a família, a escola e o trabalho como os primeiros “palcos” des- sa moldagem de comportamento. Nesse sistema, in- divíduos obedientes e submissos à ordem social são considerados mais úteis e produtivos. E a prisão surge como uma instância de controle para aqueles que resistem à disciplina e se desviam da norma. Por meio da privação de liberdade e da imposição de regras rígidas, o sistema prisional busca reeducar e re- integrar o indivíduo à sociedade, mas, frequentemente, falha em sua missão, dando continuidade ao ciclo de marginalização e exclusão, já que, em vez de corrigir, perpetua o problema e favorece a criminalidade. Em “Vigiar e punir”, a prisão é um dispositivo de controle social que vai além da mera privação da liberdade, pois se configura como um instrumento de moldagem do comportamento e da subjetividade das pessoas, a partir da utilização de técnicas sutis de vigilância constante, separação e trabalho compulsório em algumas sit- uações. Tais técnicas visam produzir indivíduos submissos à autoridade, prontos para se reintegrar à sociedade como pessoas obedientes e produtivas. Nesse cenário, pode-se dizer que, embora os servidores penitenciários não estejam submetidos exatamente às mesmas condições que as vividas pelas pessoas privadas de liberdade, estão inseridos no mesmo sistema e vivenciam um cotidiano similar, especialmente nos aspectos mais negativos. No entanto, diferentemente das pessoas presas, os servidores penitenciários preservam o direito de ir e vir. Machado e Guimarães (2014) e Rodrigues (2023) situam as unidades prisionais brasileiras como um ambiente degradante e desumano que viola os direitos humanos básicos das pessoas presas. Em contraste com o que a legislação brasileira determina, a realidade das prisões brasileiras é marcada por características como violência, presença de crime organizado, superlotação e precárias condições de saúde, alimentação, infraestrutura, recur- sos materiais e higiene. Esse cenário é resultado da negligência a políticas públicas eficazes, o que gera um ciclo de violência, desumanização e reincidência criminal. Saúde e qualidade de vida do servidor penitenciário 7. MÓDULO 1: Conceitos iniciais AULA 2: Caracterização do sistema penitenciário e de seus servidores Essa condição propicia o surgimento de diversas doenças – tanto físicas quanto psicológicas – entre as pes- soas privadas de liberdade. Servidores penitenciários, familiares e comunidade em geral também são afetados e sofrem com a violência, a insegurança e a marginalização (Machado; Guimarães, 2014). Por consequência, tais condições aumentam a demanda de atuação/intervenção dos trabalhadores do sistema prisional. A sobrecarga de trabalho no ambiente prisional é uma realidade de todas as unidades da federação, os desafios da falta de condições adequadas nas unidades prisionais se somam à quantidade insuficiente de servidores penitenciários nas mais diversas áreas de atuação exigidas pela rotina penitenciária. SAIBA MAIS! Rodrigues (2023), ao traçar um panorama acerca da precariedade do sistema, destaca os seguintes pontos: Superlotação e condições insalubres: a falta de vagas nas prisões resulta em celas superlotadas, higiene precária e violações constantes dos direitos humanos dos detentos. A superlotação também impede a separação de presos por critérios de periculosidade, aumentando drasticamente a incidência de conflitos e violência entre detentos. Violência e crime organizado: as condições precárias do sistema prisional brasileiro criam um terreno fértil para o fortalecimento do crime organizado. Grupos criminosos se estruturam dentro das prisões, perpetuando violência, extorsões, tráfico de drogas e planejamento de crimes fora das prisões, além de representarem uma constante ameaça aos trabalhadores. Infraestrutura deficiente e falta de recursos: muitas prisões carecem de estruturas adequadas a atividades educacionais, de trabalho e de lazer, cerceando a população privada de liberdade de oportunidades de ressocialização. A falta de recursos financeiros e a má gestão dos recursos disponíveis, muitas vezes, impedem investimentos significativos na construção e na manutenção das instalações, perpetuando o ciclo de degradação do sistema. Há, portanto, uma correlação que não pode ser ignorada, pois toda decisão que interfira na vida da pessoa privada de liberdade também interferirá, em maiorou menor grau, na vida e nas condições de trabalho dos ser- vidores penitenciários (Rodrigues, 2023), vejamos: 1. A superlotação exige maior atenção, esforço e entrega que os trabalhadores deveriam fazer em condições adequadas de trabalho. Além disso, eles enfrentam, nas suas rotinas de trabalho, as mesmas condições insalubres vividas pelas pessoas presas, o que pode gerar doenças e agravos na saúde do trabalhador com o passar do tempo. 2. O crime organizado ameaça diuturnamente a integridade física, moral e mental do trabalhador. O medo e a ansiedade experimentados na rotina de trabalho são suficientes para desencadearem adoecimentos e conflitos, trazendo consequências nas relações profissionais, familiares e sociais. 3. Os trabalhadores têm de lidar com a precariedade, o sucateamento e a degradação das estru- turas das unidades prisionais. Além disso, é comum que tenham que percorrer longas distâncias até o local de trabalho, assim, após o cumprimento de uma jornada exaustiva de trabalho, o re- torno para suas residências também é uma questão a ser enfrentada. 4. Adicionalmente, observa-se a falta de investimentos na qualificação inicial e continuada dos profissionais, sobretudo daqueles que não são policiais penais, como profissionais da saúde e da educação. Frequentemente, esses servidores não passam por treinamentos ou cursos de for- mação, como os policiais penais realizam, e precisam aprender o seu trabalho no exercício diário, contando com a disponibilidade de um colega mais experiente para repassar o aprendizado acu- mulado com prática. Saúde e qualidade de vida do servidor penitenciário 8. MÓDULO 1: Conceitos iniciais AULA 2: Caracterização do sistema penitenciário e de seus servidores Conforme indica Pontes (2020), os profissionais que trabalham nesse contexto desenvolvem a necessária ha- bilidade de vigilância, mas vão além, tornando-se hipervigilantes, inclusive fora do horário de trabalho. A vida, mesmo nos períodos de descanso e folga, transforma-se em uma extensão de angústias, preocupações e medos vivenciados no cotidiano prisional. Esses profissionais não apenas se mantêm atentos para custodiar os presos, também estão alertas e vigilantes para proteger suas próprias vidas e as de seus familiares. Ou seja, a responsa- bilidade se estende para além dos muros da unidade prisional, criando um estado de vigilância permanente. Reforçando as embasadas críticas defendidas por Foucault (1987), Goffman (1974), Póvoas (2020), entre outros, o Supremo Tribunal Federal (2023) decidiu, por meio da Arguição de Descumprimento de Preceito Fun- damental nº 347 (ADPF/347), que o sistema prisional brasileiro apresenta um quadro de grave desconform- idade constitucional, caracterizado por superlotação, condições insalubres, ingresso de presos em desacordo com os critérios legais e execução penal irregular. Tal sit- uação resulta na violação dos direitos fundamentais dos presos e compromete a efetividade do sistema prisional em sua principal missão: a ressocialização das pessoas privadas de liberdade. Em face da grave crise do sistema prisional, caracter- izada pela violação de direitos fundamentais, o STF determina que a União, os Estados e o Distrito Federal, em parceria com o Departamento de Monitoramento e sob a Fiscalização do Conselho Nacional de Justiça (DMF/ CNJ), elaborem planos para reduzir a superlotação, melhorar as condições carcerárias e garantir a regularidade da execução penal. Além disso, o CNJ ficou responsável por realizar um estudo para fomentar a criação de novas varas de execução penal, como medida urgente para desafogar o sistema prisional, atuando com mais celeri- dade na condução dos processos judiciais (Supremo Tribunal Federal, 2023). Resta evidente a necessidade urgente de reformas estruturais e paradigmáticas no sistema prisional brasileiro. É fundamental investir (Rodrigues, 2023): • na adequação dos espaços físicos das unidades prisionais de acordo com a legislação vigente; • na ampliação do quadro de profissionais; • na garantia de acesso a serviços básicos de saúde, alimentação e higiene para todas as pessoas privadas de liberdade e para os servidores penitenciários; • na implementação de programas de ressocialização eficazes; • no fomento de políticas de valorização profissional atreladas à conscientização social sobre a relevância social do trabalho desenvolvido pelos servidores penitenciários; • no aperfeiçoamento de todos/as os/as trabalhadores/as do sistema. Somente por meio de medidas efetivas de humanização e de respeito aos direitos humanos será possível trans- formar as prisões brasileiras em espaços de ressocialização e reinserção social, contribuindo para a construção de uma sociedade mais justa e segura para todos. Da mesma forma, somente após a implementação dessas medidas será possível a existência de um sistema prisional que não adoeça constantemente tanto os indivíduos privados de liberdade quanto os seus trabalhadores (Rodrigues, 2023). Diante dos fatores expostos quanto à evolução histórica do sistema prisional, podemos concluir que os de- safios são numerosos e que a perspectiva de ressocialização, determinante para a efetiva garantia dos direitos fundamentais das pessoas privadas de liberdade, justifica o trabalho e o investimento no sistema penitenciário brasileiro, tanto em recursos materiais quanto humanos, uma vez que essas iniciativas se desdobram em mais justiça, equidade e segurança à sociedade. Saúde e qualidade de vida do servidor penitenciário 9. MÓDULO 1: Conceitos iniciais AULA 2: Caracterização do sistema penitenciário e de seus servidores SISDEPEN: DADOS DA SENAPPEN SOBRE OS SERVIDORES PENITENCIÁRIOS Após termos avaliado o processo histórico de desenvolvimento das prisões, vamos conhecer alguns dados do sistema prisional brasileiro, que conta com a terceira maior população carcerária do mundo, antecedido apenas pelos Estados Unidos e pela China (Barros Filho; Leite; Monteiro, 2023). Os dados oriundos do Sistema Nacional de Informações Penais (Sisdepen) são disponibilizados pela Secretaria Na- cional de Políticas Penais (Senappen), a partir da compilação e divulgação de informações obtidas semestralmente, por meio do preenchimento eletrônico de formulário específi- co destinado ao levantamento dos dados prisionais pelas Unidades da Federação (Brasil, 2024). Com base nos dados apresentados no relatório de infor- mações penais (Relipen), que são apresentados no gráfico subsequente, verifica-se que o Brasil possui uma popu- lação prisional de 644.833 indivíduos (617.823 homens e 27.010 mulheres), para uma capacidade de 488.035 vagas, ou seja, há um déficit real de 156.281 vagas. O país con- ta com 1.388 unidades prisionais, distribuídas entre as 27 unidades da federação, sendo cinco delas presídios federais, situados no Distrito Federal, Mato Grosso do Sul, Rondônia, Rio Grande do Norte e Paraná (Brasil, 2024). Gráfico 1 - Distribuição da população carcerária pelo número de vagas e número de estabelecimentos prisionais de 2019 a 2023 1.000.000 População Carcerária Nº de Vagas Nº de Estabelecimentos Prisionais 750.000 755.274 1.435 442.349 811.107 1.527 545.060 833.176 1.549 573.330 832.295 1.458 596.442 644.833 1.388 489.075500.000 250.000 0 2019 2020 2021 2022 2023 Fonte: elaborado pelos autores com dados de Brasil, 2024. O gráfico anterior retrata o sistema prisional brasileiro nos últimos cinco anos. Por meio dele, identifica-se que, em 2022 e 2023, ocorreu uma leve diminuição da população carcerária, assim como do número de vagas no sistema penitenciário, que continua deficitário para atender à demanda do sistema de justiça (Brasil, 2024). A seguir, o gráfico apresenta os números de pessoas privadas de liberdade distribuídos pelas unidades feder- ativas do Brasil, em que se constata que São Paulo conta com o maior número de pessoas presas, seguido por Minas Gerais e Rio de Janeiro. Saúde e qualidade de vida do servidor penitenciário10. MÓDULO 1: Conceitos iniciais AULA 2: Caracterização do sistema penitenciário e de seus servidores Gráfico 2 - Distribuição da população carcerária por unidade da federação. 200.000 150.000 100.000 50.000 0 AC AL AM AP BA CE DF ES GO MA MG MS MT PA PB PE PI PR RJ RN RO RR RS SC SE SP TO N º P es so as P ri va da s de L ib er da de Fonte: elaborado pelos autores com dados de Brasil, 2024. Outro dado importante é o quantitativo de presos provisórios: 175.315 (27%). Esse dado, apresentado no gráfi- co subsequente, revela a lentidão do sistema de justiça e influencia a superlotação carcerária observada no país. Gráfico 3 - Distribuição da população carcerária por regime de pena. 400.000 300.000 200.000 100.000 0 175.315 115.410 6.496 Provisórios Regime Fechado Regime Semiaberto Regime Aberto Medida de Segurança (Internação) Medida de Segurança (Ambulatorial) 2.314 169 345.129 População Prisional X Regime Fonte: elaborado pelos autores com dados de Brasil, 2024. Saúde e qualidade de vida do servidor penitenciário 11. MÓDULO 1: Conceitos iniciais AULA 2: Caracterização do sistema penitenciário e de seus servidores IMPORTANTE Para gerir as unidades prisionais, o Brasil conta com 119.374 servidores penitenciários, 88.318 são policiais penais, responsáveis pela custódia das pessoas privadas de liberdade. Os demais servidores (31.056) atuam na assistência às pessoas privadas de liberdade e estão distribuídos nas seguintes áreas: administrativa, saúde, educação e jurídica, entre outras, como pode ser observado no gráfico a seguir (Brasil, 2024). Gráfico 4 - Distribuição dos servidores penitenciários por área de atuação. Fonte: elaborado pelos autores com dados de Brasil, 2024. Observa-se no gráfico seguinte que, quanto ao gênero dos servidores penitenciários, o perfil tem predominân- cia masculina. Essa diferença pode estar ancorada no fato de que 95,8% das pessoas privadas de liberdade também são homens (Brasil, 2024). Saúde e qualidade de vida do servidor penitenciário 12. MÓDULO 1: Conceitos iniciais AULA 2: Caracterização do sistema penitenciário e de seus servidores Gráfico 5 - Distribuição dos servidores penitenciários por gênero. Servidores Penitenciários X Gênero 100.000 75.000 50.000 25.000 0 85.646 87.337 86.998 88.768 84.400 41.562 30.902 30.611 31.511 31.298 Masculino Feminino 2019 2020 2021 2022 2023 Fonte: elaborado pelos autores com dados de Brasil, 2024. O gráfico subsequente demonstra a distribuição de servidores por carreira profissional em comparação ao gênero. De modo geral, as mulheres predominam no que se refere às profissões relacionadas à assistência e ao cuidado das pessoas privadas de liberdade, enquanto os homens se ocupam majoritariamente das atividades de custódia. Gráfico 6 - Distribuição dos servidores penitenciários por gênero e profissão. Fonte: elaborado pelos autores com dados de Brasil, 2024. Saúde e qualidade de vida do servidor penitenciário 13. MÓDULO 1: Conceitos iniciais AULA 2: Caracterização do sistema penitenciário e de seus servidores Os dados apresentados nos levam a refletir acerca da complexidade e dos desafios vivenciados em todo o ter- ritório nacional no que diz respeito à condução da política penitenciária. Compreender o perfil dos trabalhadores que atuam nesse contexto é determinante para os passos seguintes relacionados à instrumentalização e à profis- sionalização desse grupo de servidores, que, a partir de suas especificidades, carecem urgentemente de políticas públicas condutoras de um processo de qualificação dos serviços penais. Somado a isso, é fundamental o desenvolvimento de estratégias que aproximem o país ao alcance de uma proporção razoável entre o número de servidores penitenciários e o número de pessoas privadas de liberdade. Atualmente, o Brasil se guia a partir das orientações do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), cuja Resolução nº 9/2009 estabelece como parâmetro a proporção de 1 “agente penitenciário” para 5 pessoas presas. O SENTIDO DO TRABALHO E A ATUAÇÃO DOS SERVIDORES PENITENCIÁRIOS De modo geral, os servidores penitenciários estabelecem uma relação particular com a instituição por meio do seu trabalho. Observa-se que a quantidade de materiais pub- licados sobre os impactos do trabalho na saúde e na vida dos agentes penitenciários ou policiais penais (como pas- saram a ser nomeados após a alteração da legislação em 2019) tem aumentado nos últimos anos. Provavelmente isso acontece porque representam o maior número de tra- balhadores no sistema prisional. Sobre os mesmos impac- tos aos demais servidores, como aqueles que trabalham nas assistências à saúde, educacional, jurídica e adminis- trativa, há poucos registros. Jesus, Scarparo e Lermen (2013), ao falarem sobre os desafios no campo da saúde no sistema prisional, indic- am que este é um tema cheio de especificidade e pouco estudado. Certamente os desafios existem quando comparamos com outras carreiras necessárias ao funcionamento da rotina penitenciária, como professores, pedagogos etc. IMPORTANTE Isso posto, respeitando as particularidades de cada carreira, neste curso, sempre que possível, será utilizado o termo “servidores penitenciários” para abarcar o universo dos profissionais que atuam no sistema prisional. Entretanto, serão apresentadas referências e citações de documentos que versam, majoritariamente, sobre os agentes penitenciários/policiais penais, considerando que os estudos e os dados mencionam essa categoria especialmente. Segundo Fonseca (2006), a prisão, além de confinar os detentos, também confina seus trabalhadores, uma vez que utiliza a disciplina como mecanismo de transformação, por meio de regras rígidas e rotinas controladas, que visam moldar o comportamento e a subjetividade dos trabalhadores e impõem uma nova realidade e um novo modo de ser. Em suas análises sobre o sentido do trabalho, Codo (1996, p. 41) explora a interação entre o indivíduo e o con- texto laboral. Para ele, o “trabalho é uma relação de dupla transformação entre o homem e a natureza, geradora de significado”. Ou seja, quando trabalhamos, não apenas realizamos tarefas, mas também atribuímos sentido Saúde e qualidade de vida do servidor penitenciário 14. MÓDULO 1: Conceitos iniciais AULA 2: Caracterização do sistema penitenciário e de seus servidores e significado a essas atividades. O sentido ou significado do trabalho corresponde a um circuito (sujeito – trabalho – significado) e, quanto mais complexo e completo o circu- ito, maior é o prazer no trabalho. Por outro lado, o rompi- mento no circuito de significados, do ponto de vista do tra- balhador, ocasiona sofrimentos que podem comprometer a saúde mental. Codo (1996) nos convida a ir além da visão simplista do trabalho como mera atividade para a obtenção de renda. Pela análise, o autor revela a profundidade e a complexi- dade dessa dimensão fundamental da experiência huma- na. Nesse sentido, o trabalho transcende a mera produção de bens ou serviços. Ele se configura como uma atividade humana por excelência, um meio pelo qual transmitimos significado à natureza e construímos nossa identidade. Por intermédio do trabalho, molda- mos quem somos e como nos relacionamos com o mundo ao nosso redor (Codo, 1996). Essa visão holística do trabalho destaca três aspectos essenciais: • Expressão: o trabalho é uma forma de expressar nossa criatividade, habilidades e valores. Por meio dele, deixamos nossa marca no mundo e contribuímos para a sociedade (Codo, 2016). Assim, a criatividade é um elemento importante aos servidores penitenciários que precisam dar novas respostas aos problemas e desafios que se apresentam na rotina de trabalho, sobretudo ao considerarmos que o servidor está em contato constante com as pessoas privadas de liber- dade. Além disso, trata-se de um sistema em que não há um modelo pronto, acabado, estan- do em constante construção e reconstrução desuas atividades, e que pretende oportunizar a mudança das pessoas em privação de liberdade, por meio da ressocialização e oferecendo segurança à sociedade. • Aprendizado: o trabalho é um constante processo de aprendizado. Ao nos dedicarmos a dif- erentes tarefas e desafios, desenvolvemos novas habilidades, conhecimentos e experiências (Codo, 2016). O fazer do servidor penitenciário não é aprendido na escola. É um aprendizado assimilado a partir dos cursos de formação para ingresso na carreira e em cursos realizados, quando disponibilizados, ao longo do exercício profissional, mas, com toda certeza, o maior aprendizado é experimentado na vivência da profissão. É um trabalho com uma variedade sig- nificativa de tarefas e desafios que possibilitam o desenvolvimento de novas habilidades e con- hecimentos. • Conexão: o trabalho nos conecta com outras pessoas, construindo laços sociais e senso de comunidade. Por meio da colaboração e do trabalho em equipe, construímos relações significa- tivas e contribuímos para objetivos comuns (Codo, 2016). A atuação no sistema prisional exige um trabalho de equipe, com grande conexão com outras pessoas. Se tomarmos como princi- pais objetivos do sistema prisional a ressocialização e a reinserção social das pessoas privadas de liberdade, teremos um sistema prisional alicerçado em objetivos nobres, que conferem sen- tido e significado aos trabalhadores, à medida que possibilitam a transformação das pessoas privadas de liberdade, de dentro para fora, ou seja, uma mudança interna que refletirá em mudança de comportamento e na relação que o sujeito estabelece com a sociedade. Na mesma linha de entendimento de Codo (2016), Siqueira, Silva e Angnes (2017, p. 85) afirmam: O sentido do trabalho pode ser definido como o entendimento dos empregados daquilo que eles fazem no trabalho, assim como a importância do que eles realmente fazem. Este aspecto do sentido do trabalho relaciona-se às crenças do indivíduo no que se refere à função que o trabalho exerce na sua vida, a qual é afetada pelo contexto social em que este está inserido. Saúde e qualidade de vida do servidor penitenciário 15. MÓDULO 1: Conceitos iniciais AULA 2: Caracterização do sistema penitenciário e de seus servidores Segundo esses autores, o sentido do trabalho compreende três dimensões: individual, organizacional e so- cial. Essas dimensões foram analisadas em uma pesquisa realizada com policiais penais do Paraná. O objetivo da pesquisa teve a seguinte questão norteadora: qual o sentido do trabalho para os agentes penitenciários? A análise da pesquisa apontou para os seguintes resultados: Na dimensão individual, a pesquisa demonstrou que a escolha para se tornar um agente penitenciário está fundamentada em questões financeiras e na estabilidade do serviço público. Apesar da falta de oportunidades de crescimento na carreira, o salário atrativo dos agen- tes, quando comparado a outras profissões, especialmente no setor privado, é um fator relevante, principalmente se considerarmos que, em alguns estados brasileiros, exige-se apenas o nível médio de for- mação para atuação nesse campo (Siqueira; Silva; Angnes, 2017). Com relação à dimensão organizacional, embora os trabalhadores não estejam em privação de liberdade, durante seus turnos de tra- balho também se veem enclausurados nas unidades prisionais. A pre- cariedade das condições estruturais e a falta de recursos afetam não apenas as pessoas presas, mas também a segurança e o bem-estar dos servidores penitenciários. Ao se discutir investimentos no sistema prisional, a visão generalizada e discrimi- natória da sociedade pressupõe que todos que ali estão devam conviver em condições precárias. Essa discussão não considera que nos espaços prisionais convivem os servidores penitenciários e as pessoas presas. Tal visão ignora as necessidades básicas de segurança, saúde e dignidade de todos os indivíduos que compõem o ambi- ente prisional (Siqueira; Silva; Angnes, 2017). Na dimensão social, observa-se uma complexa oposição que marca a realidade dos servidores penitenciários. De um lado, a per- cepção de desvalorização por parte da sociedade, que ignora ou subestima seu trabalho e ainda carrega uma visão pejorativa so- bre ele, habitualmente o associando à corrupção, violência, baixa instrução e falta de sensibilidade. Assim adiciona ainda o peso do imaginário coletivo que associa os servidores penitenciários à infeliz reputação do torturador, atrelada ao uso desproporcional de força e poder. Como resultado, isso gera um sentimento de falta de apoio social que, em geral, não demonstra o reconhecimento que os ser- vidores merecem pelo trabalho desafiador e arriscado que prestam à sociedade (Siqueira; Silva; Angnes, 2017; Coelho; Carvalho Filho, 2012). Por outro lado, os servidores penitenciários reconhecem a im- portância social de sua profissão e o impacto positivo que seu trabalho tem na sociedade, demonstram orgulho da profissão e da contribuição que fazem para a segurança pública, além de terem consciência de que o trabalho realizado faz diferença na vida das pessoas e contribui para a sociedade (Siqueira; Silva; Angnes, 2017). Pontes (2020), corroborando Siqueira, Silva e Angnes (2017), revela que, para os servidores penitenciários, a profissão transcende a busca por renda, assumindo a forma de um estilo de vida, uma entrega total ao sistema prisional. Apesar do sofrimento causado pela falta de reconhecimento social, os próprios trabalhadores valor- izam sua função. Essa valorização nasce da atribuição de significado pessoal à importância e ao impacto social de sua atuação, elevando o trabalho a uma posição central em suas vidas. Mesmo sem o reconhecimento merecido, os trabalhadores se identificam como parte de uma categoria e atribuem um sentido de proteção social à sua missão. A percepção dos servidores penitenciários sobre o trabalho que desenvolvem revela a complexidade e, ao mes- mo tempo, a invisibilidade da sua função. A dignidade, a segurança e a responsabilidade são elementos centrais que moldam a visão desses trabalhadores sobre seu papel na sociedade. Compreender isso é fundamental para o aprimoramento do sistema prisional e para a valorização do trabalho desses profissionais (Santos, 2014). Saúde e qualidade de vida do servidor penitenciário 16. MÓDULO 1: Conceitos iniciais AULA 2: Caracterização do sistema penitenciário e de seus servidores Assim, considerando os aspectos essenciais ao sentido do trabalho aqui apresentados e sem perder de vista a subjetividade do trabalhador, é bastante razoável pensar que o sistema prisional é um campo fértil de sentido e significado para todos os seus trabalhadores. CARACTERIZAÇÃO DO TRABALHADOR DO SISTEMA PENITENCIÁRIO: APRISIONAMENTO/ESTIGMATIZAÇÃO/VALORIZAÇÃO O sistema prisional foi marcado pelo descaso do poder público ao longo dos séculos, que se reflete diretamente na precária realidade vivenciada por pessoas presas e tra- balhadores. No Brasil, não foi diferente. Ribeiro et al. (2019), em uma pesquisa realizada em sete unidades prisionais da Região Metropolitana de Belo Hori- zonte, entre 2015 e 2017, traçam o panorama da rede de rel- acionamento dos servidores penitenciários. Como resulta- do do estudo, os pesquisadores atestam que os próprios profissionais se veem mais aprisionados do que as pessoas presas, isso porque há uma limitação da sua circulação na sociedade, ora por se sentirem em risco e ameaçados fora da prisão, ora por medo da crítica social quanto ao seu pa- pel, muitas vezes visto como tão próximo da criminalidade quanto da pessoa presa. Nesse cenário, a discussão sobre a caracterização do trabalhador do sistema prisional impõe refletir sobre o conceito de “aprisionamento”. Ribeiro et al. (2019) destacam que esse é um tema relativamente novo, uma vez que os estudos tendem a analisar o aprisionamento somente na ótica dos indivíduos privados de liberdade. Va- mos pensar juntos? O termo “prisionização”, maisdo que apenas um confinamento físico, configura-se como um processo de acul- turação. É a “adoção em maior ou menor grau dos usos, costumes, hábitos e cultura geral da prisão” (Thompson, 1980, p. 23). As consequências da prisionização desorganizam profundamente a personalidade, provocando efeitos como a perda de identidade e a aquisição de uma nova identidade; a presença de sentimento de inferioridade; o empo- brecimento psíquico; a infantilização e regressão (Sá, 1998, p. 3). O empobrecimento psíquico resulta em estreitamento do horizonte psicológico, pobreza de experiências e dificuldades para elaborar planos a médio e longo prazo. A infantilização e a regressão manifestam-se por meio de dependência, busca de proteção (como na religião), busca de soluções fáceis, projeção da culpa nos outros e dificuldades na elaboração de planos (Sá, 1998, p. 3). É importante notar que essas características também têm sido observadas entre os servidores penitenciários que, após algum tempo em contato com os detentos, começam a adotar vários desses comportamentos e per- dem a própria identidade. A linguagem, talvez, seja a primeira mudança observada (Sá, 1998, p. 3), uma vez que é recorrente a incorporação de gírias e expressões comuns ao ambiente das prisões em sus falas. Outra questão que merece atenção refere-se à estigmatização relacionada à lógica punitivista da sociedade e à função da prisão. Sobre esse tema, Lopes (2002) traça um panorama da categoria dos policiais penais, destacan- do a inevitável associação desses profissionais a figuras como “carrascos”, “carcereiros” e “guardas de presídio”, o que remete a um passado marcado por tortura e agressões como instrumentos de punição e controle social, como vimos no início desta aula. Vamos investigar essa questão: o termo “carrasco” refere-se ao indivíduo responsável por executar a pena de morte; um algoz; um verdugo. Diz também de uma pessoa que age com crueldade; quem aplica torturas; é cruel e desumano. No sentido popular, refere-se a um sujeito que se comporta com tirania, especialmente quando Saúde e qualidade de vida do servidor penitenciário 17. MÓDULO 1: Conceitos iniciais AULA 2: Caracterização do sistema penitenciário e de seus servidores busca disciplinar ou impor regras e preceitos: “contrataram um carrasco como gerente!” (Carrasco, 2024). É assim também com os demais termos pejorativamente associados ao trabalho dos servidores penitenciários. Desse modo, essa herança histórica permeia a identidade profissional dos servidores penitenciários, sobretu- do dos policiais penais, moldando suas percepções e funções que estão entrelaçadas com questões de poder, disciplina e controle dentro do sistema prisional. A cultura organizacional acaba ficando impregnada por essa visão punitivista e repressiva que contribui para a existência, embora cada vez mais reprimida, de práticas abu- sivas e desumanas, perpetuando um ciclo de violência e sofrimento (Lopes, 2002). Como já apresentado anteriormente em nossa discussão sobre a constituição do sistema prisional ao longo da história, no passado, a tortura era parte da pena dos condenados. Era, ainda, um trabalho legitimado pelo Esta- do. No presente, espera-se que todos os servidores penitenciários atuem pautados nos princípios da dignidade da pessoa humana, na promoção dos direitos humanos, com vistas à ressocialização e à reintegração social da pessoa privada de liberdade (Silva, 2017). A despeito das mudanças ocorridas, e considerando que a cultura punitivista ainda é uma realidade, obser- va-se que os servidores do sistema prisional se encontram em um dilema: de um lado, o dever de cumprir a lei e promover a ressocialização das pessoas privadas de liberdade; do outro, a pressão de manter a ordem e lidar com a violência presente no ambiente carcerário (Lopes, 2002). Do mesmo modo, Fonseca (2006, p. 535) corrobora com Lopes (2002), afirmando que a questão central do conceito de reabilitação penal reside na ambiciosa tarefa de transformar indivíduos que cometeram crimes em cidadãos cumpridores da lei. Entretanto, na prática, a prisão é percebida como o lugar da exclusão, assumindo o papel central de segregação do indivíduo da sociedade. Essa segregação tem como objetivo principal a con- tenção, a privação da liberdade, e não necessariamente a transformação social do indivíduo. Barcinski, Cunico e Brasil (2017) indicam que o sistema prisional brasileiro é permeado pela ambiguidade de propósitos: aprisionar, punir e reintegrar à sociedade as pessoas privadas de liberdade, criando um obstáculo para que os servidores penitenciários definam sua postura profissional e suas decisões em relação aos presos. Considerando a demanda do cenário atual de realinhamento dos objetivos e propósitos, a legislação brasileira estabelece a ressocialização como ponto norteador da política prisional. Para atender a esse determinante, a Lei de Execução Penal (LEP) reconheceu a necessidade de atuação de diferentes profissionais no atendimento das pessoas privadas de liberdade. Entre os atores que devem se ocupar da ressocialização, apresentados pela LEP, podemos mencionar o tra- balho dos profissionais da assistência à saúde. E há vários outros. Para isso, vamos analisar as leis que tratam desse assunto no quadro a seguir: Constituição da República Federativa do Brasil: Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igual- itário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuper- ação (Brasil, 1988). Lei nº 8.080/1990 (SUS): Art. 2º A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício. § 1º O dever do Estado de garantir a saúde consiste na formulação Saúde e qualidade de vida do servidor penitenciário 18. MÓDULO 1: Conceitos iniciais AULA 2: Caracterização do sistema penitenciário e de seus servidores e execução de políticas econômicas e sociais que visem à redução de riscos de doenças e de outros agravos e no estabelecimento de condições que assegurem acesso universal e igualitário às ações e aos serviços para a sua promoção, proteção e recuperação (Brasil, 1990). Lei de Execuções Penais - LEP: A LEP, em seu artigo 1º, estabelece como objetivo fundamental: “a harmônica integração social do condenado e do internado”. Nesse contexto, a assistência ao preso surge como um dever do Estado, com o intuito de garantir o retorno da pessoa privada de liberdade à sociedade da melhor forma possível (Brasil, 1984). Saúde, educação, trabalho, assistência jurídica, religiosa e material são alguns dos pilares dessa assistência, previstos na LEP. Tais medidas visam à ressocialização do indivíduo, preparando-o para um futuro reingresso na sociedade de forma produtiva e pacífica (Brasil, 1984). Entretanto, a insuficiência de profissionais para a execução das atividades que focam na ressocialização compromete a efetividade da LEP e impede a plena reabilitação dos indivíduos em situação prisional. Esse cenário gera um ciclo vicioso, em que a falta de oportunidades para reinserção social contribui para o aumento da reincidência criminal (Rodrigues, 2023). Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional (PNAISP): Art. 4. Constituem-se diretrizes da PNAISP: I - promoção da cidadania e inclusão das pessoas privadas de liberdade por meio da articulação com os diversos setores de desenvolvimento social, como educação, trabalho e segurança; II - atenção integral resolutiva, contínua e de qualidade às necessidades de saúde da população privada de liberdade no sistema prisional, com ênfase em atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais (Brasil, 2014). Baseando-se nas legislações apresentadas, observa-se que as atividades dos servidores penitenciários do quadro assistencial constituemum direito das pessoas privadas de liberdade assegurado pelas norma- tivas vigentes. Contudo, a garantia desse direito é dificultada pelo baixo efetivo de profissionais, ambientes insalubres e inadequados, além de precárias condições de trabalho, que são geralmente comuns no sistema prisional brasileiro. Adicionalmente, o constante “embate” entre a ideologia repressiva da segurança, assimilada por alguns tra- balhadores, e a ideologia humanitária da assistência, corretamente defendida por outros, produz, com frequên- cia, um ambiente de descontentamento e de divisão entre os trabalhadores que atuam nas unidades prisionais. Como exemplo, Câneo e Torres (2018, p. 12), ao tratarem o trabalho do assistente social nas prisões, afirmam que impera “a lógica punitiva exercida pelo abuso de autoridade”, que resulta em uma “interferência na autono- mia profissional do/a assistente social, em que a segurança e a disciplina se tornam o eixo central reforçado pelo determinismo institucional, ao invés do compromisso com os usuários”. Assim, verifica-se que conflitos ideológicos e relacionais permeiam os trabalhadores desse sistema, o que re- força a divisão do trabalho em dois grupos: o primeiro com foco na segurança e o segundo com foco na resso- cialização/reintegração dos indivíduos privados de liberdade. Saúde e qualidade de vida do servidor penitenciário 19. MÓDULO 1: Conceitos iniciais AULA 2: Caracterização do sistema penitenciário e de seus servidores IDENTIDADE E PERTENCIMENTO Segundo Goffman (1985), a identidade dos servidores penitenciários não é um dado fixo, mas sim uma con- strução dinâmica e subjetiva moldada pelas interações sociais e pelos contextos. Essa construção se dá por intermédio das “máscaras” que vestimos e das impressões que gerenciamos, variando conforme as expectativas sociais e as complexidades da vida cotidiana. Moraes (2013), citando Goffman (1992), destaca que a ex- periência do trabalho no ambiente prisional molda profunda- mente a identidade dos servidores penitenciários. A identidade formada no mundo exterior, ligada a trabalho, emprego e profissão, dá lugar a uma nova percepção de si mesmo, intrin- secamente conectada à sua função. Em outras palavras, o tra- balho como servidor penitenciário se torna parte fundamental da identidade desses profissionais, moldando suas ações, va- lores e autopercepção. As interações com as pessoas privadas de liberdade, as normas institucionais e as expectativas sociais moldam a forma como os trabalhadores se veem e como são vistos pelos outros. Essa construção dinâmica da identidade apresenta desafios e oportunidades para os servidores peni- tenciários. Isso porque, ao mesmo tempo em que o trabalho oferece um senso de propósito e pertencimento, também pode gerar conflitos e dilemas internos. A construção da identidade do servidor penitenciário está intimamente ligada à sua função de vigiar e manter a ordem em um ambiente prisional, caracterizado por tensões e desafios. Esses profissionais se encontram em uma posição delicada, transitando entre o mundo da lei e da ordem e o universo do crime e da desordem, o que gera estresse constante. A familiarização com essas realidades opostas permite aos trabalhadores internal- izarem elementos que, caso não fossem naturalizados, causariam sofrimento psicológico e desgaste excessivo. Essa dinâmica complexa molda a identidade do servidor penitenciário, exigindo resiliência e estratégias de ad- aptação para lidar com as contradições e os desafios inerentes à sua profissão (Moraes, 2013). Boritza e Carvalho (2021) identificam lacunas na construção da identidade do servidor penitenciário, nas condições de trabalho e na responsabilidade pela reinserção social das pessoas privadas de liberdade e res- saltam que o Estado negligencia a criação de dispositivos legais que garantam o fazer desses profissionais e impedem a formação de uma identidade sólida no trabalho. Moraes (2013) aprofunda essa crítica ao destacar quatro questões que expressam as contradições do sistema penitenciário, em geral, e a percepção dos trabalhadores, a saber: 1) a exigência de que os agentes penitenciários trabalhem na ressocialização dos deten- tos e que ao mesmo tempo sejam responsáveis pela manutenção da ordem e da discipli- na; 2) a vivência da contradição entre discurso público da instituição quanto à sua função ressocializadora e o que realmente acontece, a saber, uma baixa taxa de recuperação dos detentos, percebida na alta reincidência que, segundo os agentes penitenciários, se dar- ia em função da falta de recursos para que este fim fosse cumprido; 3) a do sentimento de prisionização e de identificação com o preso; 4) do desgaste da autoridade do agente penitenciário em função do uso da força física e da violência (Moraes, 2013 apud Boritza; Carvalho, 2021, p. 432). Scartazzini e Borges (2018) alertam para outro fator crucial na construção da identidade do servidor peni- tenciário: o estigma social associado à profissão. A percepção pública negativa, como mencionado anterior- mente, que liga os trabalhadores a comportamentos como tortura, violência, maus-tratos, facilitação de fugas, corrupção e negligência, gera diversos prejuízos. O estigma impede o reconhecimento profissional desses tra- balhadores, reforçando estereótipos e generalizações negativas sobre si. A consequência é a dificuldade na con- strução de uma identidade sólida e de um senso de pertencimento à categoria com valor positivo. Saúde e qualidade de vida do servidor penitenciário 20. MÓDULO 1: Conceitos iniciais AULA 2: Caracterização do sistema penitenciário e de seus servidores Assim, fica evidente a existência de um componente aversivo que permeia a história da profissão do servidor penitenciário, presente até hoje na construção de sua identidade: o sentimento de discriminação social. Em muitos casos, como vimos anteriormente, a motivação para escolha da profissão não está ligada a um desejo pessoal ou à realização profissional, mas à necessidade de renda e estabilidade de um emprego público. A in- fluência de familiares que já atuam na área ou a semelhança com o trabalho dos policiais também podem ser fatores decisivos (Scartazzini; Borges, 2018). A busca por identidade profissional e senso de pertencimento dos agentes penitenciários à car- reira policial é evidente. A sociedade tende a ver a profissão policial como mais promissora e prestig- iada, o que gera um desejo de equiparação entre as duas áreas: de âmbito policial e de âmbito penal. Nesse contexto, a Emenda Constitucional nº 104, aprovada em 2019, instituiu as polícias penais como entidades de segurança pública em níveis federal, estadual e distrital. Essa emenda concedeu aos poli- ciais penais os mesmos direitos da carreira policial. Além da equiparação de direitos, a alteração da leg- islação buscou valorizar a profissão dos policiais pe- nais, proporcionando-lhes melhores condições de trabalho e reconhecimento social (Senado Federal, 2016). Entretanto, ainda se discute a situação dos demais trabalhadores do sistema prisional, como especialistas e técnicos que atuam diretamente com as assistências penitenciárias. No entanto, a política de criação da polícia penal é, sem sombra de dúvida, uma forma de reconhecimento e valorização da profissão que ainda carece de estruturação e delimitação sobre o seu papel com foco nos obje- tivos a serem alcançados, e que diferente das demais forças policiais, convive em sua essência com os eixos da vigilância e da ressocialização. Nesse sentido, Dias e Silva (2022) apresentam uma análise crítica relacionada aos problemas do sistema pri- sional, ponderando que, apesar de representar um avanço para os policiais penais, a inclusão destes na Consti- tuição Federal, por si só, não soluciona os problemas do sistema prisional, pois a superlotação e a violação de direito dentro das prisões persistem e exigem outras ações do Estado para a resolubilidade de tais demandas. Mediante o exposto,verifica-se que a consolidação da identidade e do senso de pertencimento dos servidores penitenciários encontra-se em construção. Apesar de não ser uma função nova, as mudanças paradigmáticas que envolvem as profissões nesse contexto dificultam o processo. A identidade e o pertencimento estão diretamente relacionados ao sentido e significado que o trabalho pro- porciona ao trabalhador. Assim, considerando que o reconhecimento e a valorização profissional perpassam pelo reconhecimento social, a ressocialização representa uma perspectiva relevante por conferir segurança à sociedade, além de afastar os trabalhadores da figura do carrasco, tão repudiada pela sociedade na contempo- raneidade. Em face das considerações postas, os problemas do sistema prisional e sua resolução exigem um comprom- isso conjunto entre o Estado e a sociedade civil, pois, como demonstrado no decorrer desta aula, as exigências impostas aos trabalhadores e a rotina exaustiva, decorrente da enorme complexidade do sistema prisional, têm sido fonte de adoecimento dos servidores penitenciários. Como resposta ao cenário, a fim de valorizar o trabalho dos servidores penitenciários e reconhecer sua relevân- cia social, o Governo Federal criou, em 2019, a Política de Saúde e Qualidade de Vida, de que trataremos em outro momento. Saúde e qualidade de vida do servidor penitenciário 21. MÓDULO 1: Conceitos iniciais AULA 2: Caracterização do sistema penitenciário e de seus servidores RELAÇÃO ENTRE O TRABALHO E O PROJETO DE VIDA/QUALIDADE DE VIDA O trabalho no ambiente prisional, como apresentado no decorrer deste módulo, tem potencial adoecedor, pois a ausência do sentimento de pertencimento, de identificação com o trabalho, de valorização social e a perda de identidade, somada aos riscos inerentes ao trabalho, entre outros, constituem fontes geradoras de sofrimento (Tschiedel; Monteiro, 2013). Lauxen, Borges e Silva (2017 p. 258) observam que a atividade profissional dos servidores prisionais influencia o seu projeto de vida/qualidade de vida, pois o trabalho no sistema prisional é percebido como pesado e com- plexo, configurando-se como um ambiente de alto risco psicossocial. Essa realidade exige atenção redobrada e medidas concretas para ga- rantir a segurança e o bem-estar desses profissionais. Nesse contexto, Tschiedel e Monteiro (2013) destacam que a com- preensão da organização social do trabalho e seus impactos na quali- dade de vida é crucial para o reconhecimento de fontes de sofrimento e problemas de saúde. Sobre esse tema, Lauxen, Borges e Silva (2017) afirmam que é ur- gente que os órgãos invistam em ações que promovam a qualidade de vida no trabalho, com vistas à segurança, à saúde, ao bem-estar, além de propiciar um ambiente de trabalho equilibrado emocional- mente para a promoção da saúde física e mental dos servidores penitenciários. Nesse cenário de promoção da saúde e qualidade de vida dos trabalhadores do sistema prisional, além das iniciativas institucionais de cuidado dos servidores, é determinante que o trabalhador também incorpore o au- tocuidado em sua rotina diária. Segundo Ferreira et al. (2022), autocuidado é o ato de cuidar de si mesmo, consciente e intencionalmente, para promover a saúde física e mental. Essa prática fundamental para o desenvolvimento humano abrange uma var- iedade de ações que visam ao bem-estar integral. Para os autores, o autocuidado é essencial à saúde. A maneira como uma pessoa cuida de si mesma, física e emocionalmente, influencia diretamente a sua capacidade de lidar com as dificuldades da vida e de alcançar uma maior qualidade de vida. O bem-estar completo depende do equilíbrio entre a saúde física e mental e en- volve diferentes áreas: alimentação, sono e descanso, atividade física, lazer, rede de apoio social (família, ami- gos), espiritualidade, autoconhecimento, administração do tempo, autoconhecimento etc. Segundo Biasin e Santos (2020), a adoção de práticas de autocuidado e estilo de vida mais equilibrado podem contribuir para um ambiente de trabalho mais saudável e produtivo, além de proporcionar um maior sentido de propósito aos servidores penitenciários. Diante do exposto, observa-se que o trabalho no sistema prisional pode se tornar um ambiente vulnerável a diversos sintomas que tendem a afetar a saúde física e mental dos trabalhadores, ao passo que valorizar os es- forços para promover a qualidade de vida no trabalho prisional pode gerar diversos benefícios, como harmonia institucional e resultados mais satisfatórios do trabalho (Lauxen; Borges; Silva, 2017). Ao mesmo tempo, é essen- cial o desenvolvimento de estratégias de promoção da qualidade de vida por parte dos próprios servidores, pois toda pessoa é responsável também por si mesma e protagonista de sua própria história. Nessa seara, reconhecendo o valor da atividade desempenhada pelos servidores penitenciários e ensejando a promoção e prevenção de agravos de saúde desses trabalhadores, têm-se observado algumas iniciativas no âmbito federal e de alguns estados brasileiros, com foco na promoção da saúde e da qualidade de vida dos servidores penitenciários. Os estados de Ceará, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e São Paulo têm apresenta- do boas práticas nesse campo e este tema será retomado na terceira aula, em que abordaremos os aspectos legais da política de saúde dos trabalhadores, além da quarta aula, quando trataremos de exemplos de boas práticas nacionais. Saúde e qualidade de vida do servidor penitenciário 22. MÓDULO 1: Conceitos iniciais AULA 2: Caracterização do sistema penitenciário e de seus servidores TRABALHO PRESCRITO X TRABALHO REAL O conceito de “trabalho prescrito” e “trabalho real” foi introduzido por Christophe Dejours, psicólogo francês, durante a década de 1990. Suas pesquisas sobre a organização social do trabalho e a saúde dos trabalhadores o conduziram ao desenvolvimento desses conceitos, com o objetivo de analisar a dinâmica das relações entre o que é esperado do trabalhador (trabalho prescrito) e o que ele efetivamente realiza (trabalho real). A análise de Dejours et al. (1994) e Dejours (2004) sobre o trabalho prescrito e o trabalho real desempenhou um papel significativo na compreensão da psicodinâmica do trabalho e seus efeitos na saúde dos trabalhadores. O trabalho pre- scrito é definido pelas normas, regras e procedimentos esta- belecidos pela organização. Essas instruções são documen- tadas, padronizadas e representam a idealização do que se espera que os trabalhadores realizem (Dejours et al., 1994; Dejours, 2004). Mas a prescrição do trabalho, conforme aborda Anjos et al. (2011), nunca abarca a totalidade da realidade enfren- tada pelo trabalhador. A distância entre aquele que planeja (o planejador) e aquele que executa (o executor) impede a criação de um espaço para discussão sobre o trabalho. O funcionário, que detém o saber de uma especialidade realizada exclusivamente por ele, não tem oportunidade de dialogar sobre o que está ocorrendo ou de sugerir modificações e adaptações. E o trabalho real é o que realmente acontece na prática. Ele emerge da interação entre o trabalhador, o contex- to e as demandas específicas da situação, considera as condições reais de trabalho, bem como as capacidades e estratégias individuais. O trabalho real é influenciado por fatores imprevistos, como pressão do tempo, recursos limitados, mudanças inesperadas e relações interpessoais (Dejours et al., 1994; Dejours, 2004). Quadro 1 - Trabalho prescrito x Trabalho real. Trabalho prescrito Trabalho real É o que se espera do trabalhador. É o que o trabalhador realmente executa. Envolve normas, regras, protocolos e procedimentos definidos pela instituição. Envolve o conjunto de atividades que serão realizadas no dia a dia laboral. Está relacionado à teoria. Está relacionado à prática. Abrange planejamento. Abrange execução. Fonte: elaborado pelos autores. PARA REFLETIR! Sugerimos que você reflita sobre as diferenças entreo trabalho prescrito e o trabalho real na sua rotina laboral. Essa é uma forma prática de assimilar o conteúdo. Tente relacionar as discussões apresentadas no curso com o desenvolvimento das suas atividades profissionais. Certamente você identificará muitos apontamentos abordados nas aulas, tanto sobre esse quanto sobre outros assuntos. Saúde e qualidade de vida do servidor penitenciário 23. MÓDULO 1: Conceitos iniciais AULA 2: Caracterização do sistema penitenciário e de seus servidores As divergências entre o trabalho prescrito e o real podem levar ao sofrimento. Quando os trabalhadores não conseguem seguir rigorosamente as prescrições, podem sentir-se frustrados, ansiosos ou culpados. O conflito entre as normas prescritas e a realidade, muitas vezes, exige que os trabalhadores façam escolhas para atender aos objetivos reais, mesmo que isso signifique desviar-se das instruções formais (Dejours et al., 1994; Dejours, 2004). Quando se trata do trabalho exercido dentro das unidades prisionais, Lemos, Mazzilli e Klering (1998) fazem uma críti- ca ao dizer que esse trabalho segue à risca os dogmas do taylorismo, por ser uma abordagem focada no controle das pessoas presas. Ele impõe uma disciplina férrea e rege cada passo do trabalho dos servidores, conforme as rígidas normas estabelecidas pela legislação, definindo quem deve trabalhar e como o trabalho deve ser executado, restando pouco espaço para a flexibilidade e a autonomia. Campos e Sousa (2011) citam que a vivência real transbor- da os limites de qualquer norma ou prescrição. Diante do inesperado e do incerto, os indivíduos se veem impelidos a buscar soluções criativas e adaptáveis para resolver as situ- ações desafiadoras que surgem. Essa realidade, frequentemente caótica e incontrolável, exige do trabalhador a capacidade de improvisar, adaptar-se e desenvolver estratégias para lidar com o que foge ao prescrito, como o procedimento operacional padrão (POP). Esses autores mencionam, ainda, que há uma dificuldade de os própri- os profissionais do sistema prisional descreverem as atribuições do seu cargo, ou seja, os aspectos prescritos do seu trabalho, sinalizando que existe mais do trabalho real do que prescrito na prática diária. Tschiedel e Monteiro (2013) relatam que, como prescrição, há a obrigação de o policial penal garantir a guarda e a vigilância das unidades prisionais. No entanto, as condições de trabalho nem sempre são adequadas ao cum- primento desse objetivo. Diante disso, os policiais penais lançam mão de estratégias para enfrentar as adversi- dades que, em resumo, possam contribuir para a manutenção do funcionamento das unidades. Tais estratégias podem também acarretar consequências significativas, como alterações na natureza do trabalho, aumento do sofrimento psíquico em decorrência da carga de trabalho e precarização das relações. Com efeito, o exercício laboral no sistema prisional exige muita criatividade e proatividade, pois, muito além do prescrito, os servidores lidam com outros seres humanos com potencialidades e limitações, restritos de liber- dade, que estão afastados de seu ambiente, de afetos e de tantos outros fatores que movem a vida de qualquer pessoa. Nesse contexto, sem desvalorizar os protocolos existentes, o imperativo da vida sempre demandará novas respostas e muita criatividade. Carl Rogers, psicólogo estadunidense, em sua obra intit- ulada “Tornar-se pessoa”, publicada pela primeira vez em 1961, apresenta uma visão profunda sobre o processo de autodescoberta e desenvolvimento pessoal. O autor explo- ra como cada indivíduo possui a capacidade de crescer e se transformar e como as relações interpessoais podem facili- tar esse processo (Rogers, 1997). Correlacionando a visão de Rogers (1997) com a teoria de Codo (1996) sobre o sentido do trabalho e o papel dos servidores penitenciários, podemos constatar que atuar no contexto prisional é um grande desafio. Ao mesmo tempo, é também um terreno fértil para aqueles que desejam participar e colaborar ativamente com uma mudança que afeta a vida dos trabalhadores, das pessoas privadas de liberdade e, consequentemente, de toda a sociedade, sobretudo, se partirmos da premissa de que toda pessoa está à procura de um lugar no mundo, o que equivale a ser reconhecido, respeitado e amado, a despeito de suas escolhas. Saúde e qualidade de vida do servidor penitenciário 24. MÓDULO 1: Conceitos iniciais AULA 2: Caracterização do sistema penitenciário e de seus servidores ENCERRAMENTO Chegamos ao fim desta aula. Para concluir, vamos revisitar os principais aprendizados que permearam tnossa jornada: • O sistema penitenciário como ele é: apresentamos a evolução histórica do sistema prisional e uma análise crítica desse processo, considerando as suas especificidades e condições de tra- balho. • Sisdepen: dados da Senappen sobre dos servidores penitenciários – foram expostos dados do sistema prisional brasileiro na atualidade, considerando a população carcerária, o número de unidades prisionais e vagas disponíveis/deficitárias, bem como as categorias profissionais e o gênero dos servidores penitenciários. • Sentido do trabalho e as reflexões sobre a atuação dos servidores penitenciários: analisamos o sentido do trabalho no sistema prisional e discutimos as três dimensões do trabalho, a saber, individual, organizacional e social. • Caracterização do trabalhador no sistema penitenciário – aprisionamento/estigmatização/val- orização: abordamos o conceito de aprisionamento, as características do sistema prisional e os conflitos que permeiam as relações de trabalho. • Identidade e pertencimento: tratamos dos atravessamentos do processo de construção da identidade e do senso de pertencimento dos servidores do sistema penitenciário. • Relação entre o trabalho e o projeto de vida/qualidade de vida: dialogamos sobre a relevância do projeto e a qualidade de vida. • Trabalho prescrito x trabalho real: analisamos a correlação entre o trabalho prescrito, aquele estabelecido por meio de normativas, e o trabalho real, realizado a partir das demandas de trabalho no sistema prisional. Na próxima aula, apresentaremos as legislações e iniciativas de políticas públicas voltadas à saúde e qualidade de vida dos servidores penitenciários. Até lá! Saúde e qualidade de vida do servidor penitenciário 25. MÓDULO 1: Conceitos iniciais AULA 2: Caracterização do sistema penitenciário e de seus servidores REFERÊNCIAS ANJOS, F. B. et al. Trabalho prescrito, real e estratégias de mediação do sofrimento de jornalistas de um órgão público. Revista Eletrônica Sistemas & Gestão, v. 6, p. 562-582, 2011. BARCINSKI, M.; ALTENBERND, B.; CAMPANI, C. Entre cuidar e vigiar: ambiguidades e contradições no discurso de uma agente penitenciária. Ciência e Saúde Coletiva, v. 19, n. 7, p. 2245-2254, 2014. BARCINSKI, M.; CUNICO, S. D.; BRASIL, M. V. Significados da ressocialização para agentes penitenciárias em uma prisão feminina: entre o cuidado e o controle. Temas em Psicologia, v. 25, n. 3, p. 1257-1269, 2017. BARROS FILHO, A. D.; LEITE, C.; MONTEIRO, A. M. R. Políticas de educação nas prisões: uma análise das 10 maiores populações prisionais. Revista Brasileira de Educação, v. 28, e280069, 2023. BIASIN, V. L.; SANTOS, D. M. E. As possibilidades das práticas de justiça restaurativa com servidores pen- itenciários. 2020. 17 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Especialização em Sistema de Justiça: Conciliação, Me- diação e Justiça Restaurativa) – Universidade do Sul de Santa Catarina, Florianópolis, 2020. BORITZA, O. R.; CARVALHO, M. S. Construção da identidade do agente penitenciário: uma análise do espaço de vida na cadeia pública do município de Ji-Paraná, Estado de Rondônia – Brasil. European Academic Research, v. 8, n. 10, 2021. BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/518231/CF88_Livro_EC91_2016.pdf.