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CONCEITOS BÁSICOS SOBRE O ENCÉFALO Fernando Eduardo Padovan Neto¹ Roberta Monteiro Incrocci² ¹Professor Doutor do Departamento de Psicologia, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Avenida Bandeirantes 3900, 14040-901, Ribeirão Preto, São Paulo, Brasil. ²Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Psicobiologia, Departamento de Psicologia, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Avenida Bandeirantes 3900, 14040-901, Ribeirão Preto, São Paulo, Brasil. 1. Introdução Nós, seres humanos, possuímos trilhões de células que formam nossos músculos e ossos, que servem para nossa sustentação e nossa locomoção. Existem ainda outros bilhões de células no encéfalo que guiam nossos comportamentos e nos permitem experienciar emoções, tais como raiva, medo, desgosto, felicidade, surpresa e tristeza. A ciência moderna conseguiu desvendar informações importantes sobre como o encéfalo funciona. Uma das descobertas mais importantes é a de que o encéfalo controla o comportamento e, por sua vez, o comportamento e a experiência modificam o funcionamento do encéfalo. Você verá mais adiante, ao estudar neuroplasticidade, que o encéfalo está em constante mudança. Um dos grandes desafios das neurociências é entender as maneiras pelas quais o comportamento e a experiência podem modificar as estruturas e as funções do encéfalo. O encéfalo produziu toda a extensão do conhecimento humano, tudo que sabemos e entendemos sobre o universo. Além disso, temos a capacidade de dedução através de pistas contextuais e assim supor como foi a história de nossos antepassados. Somos capazes de descrever, armazenar e passar adiante as informações deixando ensinamentos para outras gerações, possibilitando a continuidade do conhecimento, inclusive em forma de arte. Numericamente falando, o encéfalo apresenta 86 bilhões de células nervosas ou neurônios (Herculano-Houzel, 2012). Cada neurônio se comunica com muitas outras células, em regiões chamadas de sinapses. Os estudos das relações entre o encéfalo e o comportamento contribuíram para o nascimento de outras duas áreas diferentes: a biologia e a psicologia. Porém, apesar de serem diferentes, há uma intersecção entre elas formando, no século XX, a Psicologia Biológica (ou ainda Psicobiologia), o campo de conhecimento que relaciona o comportamento aos processos corporais. Esta intersecção tem como principal objetivo entender a neurociência subjacente ao comportamento e à experiência. No que se refere a profissionais envolvidos, temos mão de obra especializada oriundas de diversas áreas atuando na neurociência comportamental. Para citar alguns exemplos, temos, dentre outros, psicólogos, biólogos, engenheiros, neurologistas e psiquiatras. 2. Como estudar o comportamento? Com o intuito de entender as diferentes nuances da relação do encéfalo com o comportamento, a Psicobiologia utiliza-se de diferentes perspectivas, que podem incluir desde a descrição, evolução e características biológicas do comportamento ao longo da vida até mecanismos biológicos do comportamento com aplicações translacionais. A neurociência translacional é o processo de traduzir os avanços científicos e tecnológicos gerados pela pesquisa básica para promover o desenvolvimento de novas terapias com aplicabilidade para pacientes portadores de doenças neurológicas. Para aprender sobre os mecanismos do comportamento de um indivíduo, estudamos como o corpo funciona e procuramos entendê-lo em diversas vertentes. Por exemplo, de que maneira o comportamento muda como consequência da experiência? Como o aprendizado e a memória mudam à medida que envelhecemos? Ainda nesse sentido, quais as mudanças anatômicas e químicas que ocorrem no encéfalo para que o encéfalo possa aprender algo? O estudo de distúrbios da memória em humanos levou os investigadores a ampliar nosso conhecimento das regiões do encéfalo envolvidas em diferentes tipos de memória. Um dos casos mais conhecidos no estudo da memória é o de Henry Molaison, conhecido no mundo como paciente H.M. Aos 20 anos de idade, a epilepsia de Henry estava fora de controle. Os testes mostraram as suas crises iniciavam em ambos os lobos temporais e, com o intuito de aliviar as crises epilépticas, um neurocirurgião removeu, em 1953, a maior parte dos lobos temporais anteriores do encéfalo de Henry. A cirurgia aliviou as crises epilépticas de Henry, mas algo imprevisto ocorreu: Henry perdeu a capacidade de formar novas memórias (Scoville e Milner, 1957), passando a viver somente com as memórias construídas antes da cirurgia. Este caso possibilitou aos neurocientistas conhecer e compreender os mecanismos subjacentes à memória. Naquela época, por exemplo, não se conhecia a existência de diferentes tipos de memória: uma de curto prazo, aquela que permite decorar um endereço e esquecê-lo pouco tempo depois; e outra de longo prazo, pela qual fatos, nomes e habilidades adquiridas são estocados. O paciente H.M. tornou-se o parâmetro com o qual outros pacientes com deficiência de memória foram comparados, estabelecendo os princípios-chave sobre como a memória é organizada. As descobertas feitas a partir do estudo do caso do paciente H.M. levaram ao princípio de que a memória é uma função encefálica que pode ser separada de outras, como cognição e percepção, embora sejam funções com integração funcional. Estudos no paciente H.M. mostraram que havia mais de um tipo de memória envolvendo áreas diferentes do lobo temporal medial (área de lesão do paciente H.M.). Em testes da capacidade visuo-motora, no qual H.M. devia desenhar o contorno de uma estrela de cinco pontas, o paciente apresentou uma capacidade de reter a habilidade de desenhar o contorno, embora, ao final do teste, não se lembrava do que havia feito. Esses resultados sugeriram que havia uma memória motora cujo desenvolvimento ocorria em áreas diferentes da lesão (Squire, 2009). Um caso como o de Henry traz para a ciência muitas informações preciosas sobre o funcionamento do encéfalo e áreas envolvidas nestas funções. Porém, nem sempre temos a possibilidade de estudar tendo um paciente para cada área que queremos estudar. Com o intuito de compreender melhor o funcionamento do encéfalo, é necessário criar situações em laboratório para simular as condições necessárias de cada estudo. Para isso os neurocientistas comportamentais utilizam-se de várias abordagens. Podemos usar laser ou correntes elétricas para estimular uma região do encéfalo ou ainda desconectar duas estruturas do sistema nervoso para ver como essa alteração muda o comportamento. O comportamento resultante dependerá de como o encéfalo foi alterado. Podemos, de maneira oposta, intervir no comportamento ou na experiência de um organismo e procurar por mudanças resultantes na estrutura ou função do encéfalo. É possível ainda tentar descobrir a relação de como uma medida observada no encéfalo com determinado comportamento. Um exemplo é a correlação da gravidade da esquizofrenia com o alargamento dos ventrículos cerebrais. É importante salientar que uma correlação sugere que as duas variáveis podem estar vinculadas de alguma maneira, não indicando necessariamente causalidade. Essas correlações podem estimular os pesquisadores a formular hipóteses e testá-las por meio de abordagens exemplificadas no parágrafo anterior. Existem diferentes níveis de análise para se estudar o comportamento que podem variar desde interações sociais ao encéfalo até células nervosas únicas e seus constituintes moleculares ainda mais simples. Muitas vezes os neurocientistas analisam fatores que envolvem um nível de organização mais simples ou básico do que o da estrutura ou função a ser explicada. Essa abordagem é denominada reducionismo e constitui uma ferramenta bastante útil para entender a complexidade do encéfalo. O reducionismo pode ser entendido como uma abordagem para “desmontar” o encéfalo em partes pequenaspara tentar entendê-lo melhor. 3. A importância das neurociências para os seres humanos A Psicobiologia também se dedica a melhorar a condição humana. É fato que, como qualquer outro mecanismo complexo, o nosso encéfalo está sujeito a uma variedade de defeitos e falhas. Numerosas doenças humanas resultam do mau funcionamento do encéfalo. Muitas delas já estão sendo aliviadas como resultado de pesquisas nas neurociências, e as perspectivas de avanços contínuos são boas. Dessa maneira, pode-se concluir que a compreensão da relação entre o encéfalo e o comportamento pode auxiliar na compreensão dos distúrbios psicológicos e desordens de humor. Atualmente os distúrbios do encéfalo estão cada vez mais comuns em todo mundo. Uma pesquisa europeia estimou que pelo menos 38% da população sofreria de um distúrbio mental em algum momento da vida (Wittchen et al., 2011). Além disso, pelo menos 20% dos seres humanos ao redor do mundo sofrem de distúrbios neurológicos e/ou psiquiátricos que variam em gravidade, podendo ocasionar mudanças significativas na qualidade de vida ou até mesmo incapacidade completa. O surgimento de técnicas científicas modernas para o estudo do encéfalo têm contribuído significativamente para o avanço do conhecimento acerca dos distúrbios neurodegenerativos. Um exemplo clássico de como o conhecimento oriundo da pesquisa básica pode ser traduzido para a pesquisa clínica foi a descoberta da L-DOPA como terapia para a doença de Parkinson. Veremos que esse achado resultou do conjunto de experimentos realizados em modelos animais por Arvid Carlsson e outros pesquisadores durante as décadas de 50 e 60. O tema pesquisa translacional ganhou destaque em 2003 quando o National Institute of Health (NIH) a classificou como um componente vital da pesquisa e da melhoria nos cuidados de saúde. Dentro desse cenário, a pesquisa translacional em neurociência merece ser melhor explorada no Brasil. Existe no país uma clara necessidade de derrubar barreiras entre as pesquisas básica e clínica. Distúrbios neuropsiquiátricos e doenças neurodegenerativas são problemas de saúde que acometem os idosos e respondem por uma parcela significativa das mortes no país. A população brasileira está tornando-se cada vez mais idosa e dados recentes do IBGE mostram um crescimento de 18% neste grupo etário. Sugere-se que o encéfalo da maioria das pessoas com 60 anos ou mais apresenta características típicas de distúrbios neurológicos, sendo que uma pequena parcela dessa população pode apresentar mecanismos compensatórios que evitariam perdas cognitivas consideráveis. 4. Considerações gerais Vale destacar que a neurociência é uma das disciplinas que mais crescem em toda a ciência. Novas revelações aparecem quase diariamente, lançando luz sobre a base neural do comportamento, do nível molecular ao comportamental, usando técnicas poderosas e criativas. Descobertas e avanços neurocientíficos nos permitirão entender melhor os mecanismos envolvidos e como esses mecanismos permitem habilidades cognitivas. Em resumo, vimos que a neurociência comportamental busca explicar o comportamento baseado em processos específicos do sistema nervoso. A neurociência comportamental é multidisciplinar e baseia-se no conhecimento produzido em diversos campos científicos, em um esforço para produzir descrições integradas da geração de comportamento. Isso envolve o trabalho em vários níveis de análise, desde interações moleculares até o comportamento dos organismos em seus ambientes naturais. 5. Referências bibliográficas Herculano-Houzel, S. (2012). The remarkable, yet not extraordinary, human brain as a scaled-up primate brain and its associated cost. Proceedings of the National Academy of Sciences, USA, 109(Suppl. 1), 10661–10668. Scoville, W. B., and Milner, B. (1957). Loss of recent memory after bilateral hippocampal lesions. Journal of Neurology, Neurosurgery and Psychiatry, 20, 11– 21. Squire, L. R. (2009). The legacy of patient H.M. for neuroscience. Neuron, 61(1), 6–9. Wittchen, H. U., Jacobi, F., Rehm, J., Gustavsson, A., et al. (2011). The size and burden of mental disorders and other disorders of the brain in Europe 2010. European Neuropsychopharmacology, 21(9), 655–679.