Prévia do material em texto
ARQUITETURA Biblioteca Central - UnB B0041814 ar. Viver. aço geométrico cria vida com a integração entre o homem e a casa. se dizer que, na casa; a matéria se humaniza. pósito deste livro é contar como, nesses quinhentos anos, o espaço da moradia na junção das influências européias, sobretudo portuguesa e francesa, 500 aracterísticas africanas e Nesta ocupação do espaço, a conquista se deu pelas TRANSFORMAÇÕES DA ARQUITETURA E DA UTILIZAÇÃO DO ESPAÇO DE MORADIA sidades sociais e culturais, formando um viver especificamente brasileiro, que não mas, ao contrário, cria o novo e o belo. Francisco Salvador os poetas que as velhas casas vivem em nós, fazendo parte do sonho, do imaginário reconstruídas na A casa brasileira, do ponto de vista arquitetônico, nada William Seba Mallmann em aqueles que a ocuparam ao longo do tempo com suas necessidades, seus dese- as alegrias e ISBN 85-00-00716-8 *** 728 9 7 88500 007163 V51 2.eht © 1999 by Francisco S. Veríssimo e William S.M. Bittar s direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. ida a reprodução total ou parcial por quaisquer meios, torização prévia, por escrito, da editora. editorial: MARIA ANGELA VILLELA ação de originais: MARIA DE SANT'ANNA ão editorial: JAQUELINE sque: JORGE MOUTINHO SANDRA PÁSSARO E ANA C. Ao professor Murillo Gouvêa, nosso mestre e gráfico, editoração e capa: MIRIAM LER amigo, que entre muitas lições a nós transmitidas, sempre prevaleceu o humanismo. gráfica: ARMANDO P. GOMES CIP - INDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ. Verissimo, Francisco Salvador 500 anos da casa no Brasil / Francisco S. e William S.M. Bittar. - Rio de Janeiro : Ediouro, 1999 il. Inclui bibliografia e discografia ISBN 85-00-00716-8 1. Arquitetura de habitação - Brasil - História. 2. Habitações - Aspectos sociais - Brasil. 3. Família - Brasil. Bittar, William Seba II. CDD 720.0981 CDU 728 (81) 0 01 02 03 8765432 S.A. PT. DE VENDAS E EXPEDIÇÃO VA 345 - RJ ONDENCIA: CAIXA POSTAL 8544 212-970 - DE JANEIRO - RJ 21) 560-6122 Fax: (021) 280-2438Sumário Prefácio Introdução 1 Capítulo - Antecedentes 1 Capítulo 2 - - A familia brasileira: algumas reflexões sobre sua evolução 2 3 - A varanda 3 4 - - A garagem 4 5 - - 0 setor social 5 5.1 - A sala 5 6 - 0 setor intimo 8 6.1 - 0 quarto 8 6.2 - 0 banheiro Capitulo 7 - 0 setor de serviços 7.1 - - A cozinha 10 7.2 - A copa 7.3 - Areas de serviço 1 7.4 - alojamento de empregados Capítulo - Epilogo? Referências 1 Periódicos Discografia 1 Créditos das ilustrações 1PREFACIO Porque a casa é nosso rinção do mundo. É, diz-lhe com nosso primeiro É realmente um cosmos. G. Bachelard Não poderia iniciar uma apreciação sobre este trabalho sem citar Ba- chelard em seu magnífico texto sobre a poética do espaço. Com essa citação, em 1985, apresentávamos uma pesquisa desenvolvida sob nossa coorde- nação, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, financiada pelo CNPq, com a finalidade de estudar o espaço da casa brasileira, cuja equipe esses autores integravam. Naquela ocasião pretendia-se aprofundar o trabalho, procurando novos caminhos e novas interpretações, o que agora vem a público, com transcrições e incursões poéticas pela música brasileira e pro- fusamente ilustrado por seus autores. Louvamos portanto a iniciativa desses dedicados mestres de arquitetura por este livro sobre os quinhentos anos da casa no Brasil colonizado pelos portugueses com a inestimável contribuição dos africanos e do gentio da terra. A produção do espaço arquitetônico de morar é interpretada como resul- tado de um processo criativo, conduzido pelas necessidades sociais e cultu- rais. espaço de habitar no Brasil é um rico e inesgotável campo de criação que aqui é abordado sob variados aspectos. texto busca mostrar a integração entre o homem e a casa; e, como diz Bachelard, "longe de qualquer referência às simples formas geométricas" espaço da casa se faz transcender ao espaço geométrico. Queremos, à pri- meira vista, compreender a casa como uma realidade visível e tangível: volu- mes, planos, linhas retas, linhas curvas... Mas, casa não é um frio sólido que envolve o homem. A casa é vivida pelo homem; adquire valores humanos.. Esse objeto geométrico se transforma em humano, assim que entendemos a casa como um espaço de conforto e intimidade. Além da racionalidade, des- cortina-se o campo do onirismo. Sonho e realidade. nunca definitivamente10 resolvidos. A vivência humana não apagará a objetividade da casa. Preci- A metodologia adotada foi a de passar pela análise de cada um dos se- samos analisar melhor, na geometria do sonho, as casas de outrora, onde ire- tores da casa, configurando-os no tempo e nos espaços urbano e rural, em mos reencontrar, em nossos devaneios, como diz Bachelard, a intimidade do todas as suas interdependências com a sociedade brasileira. As estruturas passado. sociais, o tempo e o espaço geográfico armam todo um invisível arcabouço Nossas velhas casas perdidas no tempo vivem em nós, dizem os poetas. analítico que conduz à abordagem plena de cada parcela da casa. Insistem em reviver em nós, como se nos pedissem um suplemento de ser. A publicação desta obra certamente contribuirá para o melhor conheci- Sentimos uma espécie de remorso de não termos vivido tão intensamente mento de nossa arquitetura habitacional, levando o leitor a melhor com- aqueles espaços. Talvez não os tenhamos sabido viver intensamente, não fa- preender os espaços da morada brasileira e suas influências sobre o compor- zendo com que as horas durassem mais. Assola-nos uma pungente saudade tamento dos grupos sociais. Em importante estudo sobre as relações entre que o poeta transcreve em versos: o homem e o espaço arquitetônico, R. deixa bem clara a importân- cia desse espaço sobre o comportamento humano. Com uma criteriosa e nostalgia dos lugares que não foram justificada análise dos diversos espaços funcionais da casa brasileira, os Bastante amados na hora passageira autores demonstram, claramente, a profunda correlação entre a arquitetu- Quem me dera devolver-lhes de longe gesto esquecido, a ação ra e a sociedade. R. M. Rilke Acreditamos que este tema não se encerra aqui com a edição dessa obra, ao deverá ser foco de interesse de outros pesquisadores, profes- E o sonho traz a casa perdida na noite do tempo e a reconstrói em nossas sores e alunos de arquitetura e urbanismo, que certamente serão motivados lembranças. Parece que nos envolve, ligando-nos intimamente a ela. sonho a prosseguir tais estudos. traz as claras lembranças da casa natal. Rilke fala dessa fusão do ser na casa sucesso desta publicação está, sem dúvida, garantido pelo conheci- perdida: mento, seriedade e competência de seus autores-pesquisadores, Francisco e William queridos companheiros de sagas universitárias, e mestres, que Não tornei mais a ver essa estranha morada. Tal como o encontro em minha lembrança são, no ensino da arquitetura no Brasil e da teoria da arquitetura em nos- de visão infantil, ela não é uma construção; está fundida e repartida em mim: aqui um sas cômodo, ali outro cômodo e acolá um fundo de corredor que já não liga esses dois cômodos, mas conservou-se em mim como um fragmento. É assim que tudo se difundiu em mim, os quartos, as escadas que desciam com lentidão tão cerimoniosa, outras Rio de Janeiro, inverno de 1999 escadas, vãos estreitos subindo em espiral, em cuja obscuridade caminhávamos como o Olinio Gomes P. Coelho sangue nas Os autores prosseguem a discussão crítica da casa através da distribuição espacial de seus diversos setores funcionais, entendida sob pontos de vista de segregação sexual, posições socioeconômicas, faixas etárias, comporta- mento ético, preferências políticas e religiosas. Tal distribuição é facilmente compreendida na medida em que possamos apreender a formação e a evo- lução da sociedade brasileira, que os autores abordam de uma forma clara e concisa.13 Fig "Mas muito boa temperados, Douro "CASA. [Do lat. casa] S.f. 1. Edifício de um ou poucos andares, destinado, geralmente, Caminha) seu ideal: a habitação; 2. morada, vivenda, moradia, residência, habitação. 3. Lar; família (...)" um Império Calabar, de Ruy Guerra) Era uma casa muito engraçada não tinha teto não tinha nada ninguém podia entrar nela não porque na casa não tinha Mas era feita com muito esmero Na rua dos bobos Número zero. 2 1 de Novo dicion portuguesa. Este livro compreende um trabalho de consulta, agrupamento e orga- 2 Trecho da Bardotti, nização de informações existentes que vai permitir uma visão cronológica Moraes e integrada da evolução do espaço do habitar no Brasil nestes quinhentos amigos anos. Eventualmente, o texto privilegia regiões como Olinda, Salvador, São Paulo ou Rio de Janeiro por se tratarem de cidades representativas da história do país, pelo acesso a dados já devidamente dispostos em bibliografia, arquivo ou depoimentos ou pela vivência dos autores em núcleos como a última cidade aqui citada, verdadeira síntese da evolução sociopolítica nacional, 1 inclusive por manter-se como capital de 1763 a 1960, quando esta foi trans- ferida para Brasília. A semente deste trabalho está na iniciativa do Departamento de Arqui- tetura e Urbanismo do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro que, em 1985, sob a direção do professor-arquiteto Olinio Gomes Paschoal Coelho, convidou-nos para o desenvolvimento de uma pesquisa sobre a evolução das plantas das casas no Brasil, a ser completada em um ano, com finan- ciamento do CNPq Tratava-se de um trabalho em equipe, com a participação de outro cole- ga, o professor José Maurício Alvarez, formado em História e Belas-Artes, fi- gura imprescindível na elaboração da referida pesquisa, responsável direto por grande parte do conhecimento para nós transmitido e amadurecido pos- teriormente, aproveitando seu vasto saber e brilhante Quatro esta-14 15 giários completavam aquele time, todos então estudantes de arquitetura, ato de ocupar "um o "próprio o "espaço criado" por um alguns hoje também no magistério Elisabete Rodrigues dos Reis, Franklin homem para a utilização de outrem. Pedroso, Luis Fernando Monteiro Leal, Sergio de Paiva Magalhães Calvet trabalho é dividido em capítulos que apresentam a mesma estrutura, além da assistente de pesquisa Eunice Vieira Rodrigues. procurando permitir a leitura geral ou compartimentada dos tópicos listados, Foi produzido um inventário de diversas plantas de residências, de diver- facilitando a compreensão de cada setor por si. Assim, o prólogo, ou o capí- SOS períodos, que foram catalogadas, assim como material de periódicos e tulo seguinte, servirá como elo ou cimento, já que o assunto é arquitetura, bibliografia especializada. unindo as partes subseqüentes como numa construção. Os dados foram interpretados pelos pesquisadores e produziu-se um tra- texto está fundamentado sobre referências historiográficas como tam- balho entregue e aprovado pelo CNPq, com cópia arquivada no MAM-RJ. bém em extensa documentação iconográfica e referências bibliográficas aqui Há muito pretendíamos ampliar aquelas investigações para apresentá-las citadas, possibilitando novas leituras e aprofundamentos. ao público, e não foram poucas as tentativas de publicação. A documentação escrita consultada não é restrita apenas a textos de ar- Agora, 14 anos depois, utilizamos aquela antiga pesquisa como principal quitetura ou história, mas também envolve a produção literária e a música fonte de consulta para a realização desta nova obra que procura adotar uma criada pelos diversos segmentos sociais, em diferentes épocas, componentes linguagem facilmente acessível ao leitor em geral, mesmo se apartando de fundamentais quando se pretende um mergulho um pouco mais profundo uma forma acadêmica ou erudita, pois assim esperamos que as informações em determinado período que pode ser tratado unilateralmente pelos textos sejam compartilhadas por um público mais abrangente, despertando seu dos "vencedores". Neste caso, a música popular, provérbios, a literatura de interesse por fragmentos de nossa cultura. cordel, muitas vezes expressam verdades dissimuladas pelo poder oficial. Iniciamos nossa exposição com algumas reflexões sobre a evolução da Aqui está o resultado que associa várias dessas fontes e que, em nenhu- família brasileira, principalmente nos aspectos comportamentais, procurando ma hipótese, pretende-se completo, assim como aquela pesquisa realizada associar suas mudanças às transformações ocorridas no espaço do Habitar. em equipe, semente deste trabalho que pretende abordar a casa como um A seguir, optamos pela divisão da residência nos tradicionais setores: so- mosaico caleidoscópico, pluridisciplinar, permitindo ao leitor que, caso não cial, íntimo e serviço, apresentando-se análise particular de cada um. entenda ou se enfastie com algo do texto, pelo menos lembre-se de assobiar Cabe ressaltar que, para efeito de organização de idéias, associou-se cada ou cantarolar uma melodia familiar ali citada e viaje ao som de sua própria setor a seu aposento principal social/sala; ser- música interior. Porém, quando espaços coadjuvantes apresentam influência relevante, são estes também investigados. Cada setor é analisado cronologicamente, abordando-se o espaço físico e social, verificando-se suas inter-relações. Em muitas ocasiões, para a com- preensão da arquitetura temos que nos valer de outros conhecimentos acessórios como a estética, a antropologia cultural, a sociologia, a história, sem a pretensão de dominar todas estas áreas, mas utilizando-as como fer- ramentas essenciais. Assim, cada espaço é investigado e recebe uma interpretação quanto ao seu "habitar", não pretendendo esgotar o assunto ou fechar questão, mas abrir mais uma janela sobre este tema multifacetado e envolvente que é o16 17 3 Trecho da música Fado va saindo do feudalismo e entrando no sistema mercantilista. A agricultura de 6 AVELA CAPÍTULO 1 Tropical, de Chico Buarque e Rui Guerra, incluído no LP A subsistência, com seus dias contados, era praticada até aquela data, quando arte de Chico Buarque, 1975. A T E C E D E N E S os pequenos excedentes eram comercializados. Através da colonização do 7 FREYRE 4 Carta ao Rei D. Manuel Brasil, Portugal inaugura o novo modelo de agricultura que para Pero Vaz de Caminha em relaçã Ediouro décadas mais tarde vai inspirar outras nações européias em suas colonizações. das colôn 1937 5 Guitarras e sanfonas A preferência pela plantação da cana-de-acúcar em detrimento de outras Jasmins, coqueiros, fontes especiarias não foi por acaso, pois o português já tinha, naquela ocasião, Sardinhas, mandioca dominado toda as etapas do cultivo e da manipulação dos produtos que esta Num suave azulejo cultura tinha a oferecer, graças à experiência obtida nas ilhas atlânticas desde E o rio Amazonas o século XIV. Que corre Trás-os-Montes E numa pororoca No final dos anos 1650, com um modelo agrícola monocultor da cana-de- Deságua no Tejo açúcar em plena atividade em torno de vários núcleos urbanos, em toda a Ai, esta terra vai cumprir seu ideal extensão da costa leste do litoral brasileiro, a casa no Brasil começou a esta- Ainda vai tornar-se um imenso Portugal a sua forma definitiva. Vários fatores concorreram para a gênese Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal Ainda vai tornar-se um império colonial. 3 dessa moradia, tais como o clima tropical e úmido, a flora, o gentio da terra, a princípio fácil e dócil, a se submeter à nova ordem européia, em que o mais A primeira impressão dos portugueses, em abril de 1500, ao avistar o importante de todos esses elementos foi o colonizador português. litoral brasileiro, foi a de terem chegado a um local idílico para a expansão da Um povo capaz de viver em condições mais desiguais em relação ao seu cultura lusitana. A descrição da Carta de Pero Vaz de Caminha ilustra muito meio original e de manter no final a sua identidade, como diz Gilberto Freyre: bem esta maneira de pensar do português diante da visão das novas terras: um povo com uma capacidade única de perpetuar-se em outros povos, dis- Traz, ao longo do mar, nalgumas partes, grandes barreiras, algumas ver- solvendo-se neles a ponto de perder-se nos sangues e nas culturas melhas, outras brancas; e a terra por cima toda plana e muito cheia de mas ao mesmo tempo comunicando lhes tanto seus motivos grandes arvoredos. De ponta a ponta, é toda a praia como uma palma mui essenciais de vida e tantas de suas maneiras de ser que, passados séculos, os plana e mui formosa. Pelo sertão, nos pareceu, do mar, muito grande, traços se conservam na face dos homens e na das porque, a os olhos, não podiamos ver senão terra com arvoredos, casas, dos móveis, dos jardins, das embarcações, das formas de que nos parecia mui longa terra... Porém a terra em si é de muito bons ares, assim frios e temperados, como os de Entre-Douro e Minho, porque, neste Com essas qualidades bem ressaltadas, o português foi uma espécie de coor- tempo de agora, os achávamos como os de Águas são muitas, infindas. denador, orientador e homogeneizador dessa moradia. Com o índio, apren- de que nos trópicos é uma tarefa a ser feita do lado de fora; numa Trinta e dois anos depois, quando efetivamente se inicia a colonização do varanda ou num puxado ao lado da casa. A solução para o escoamento das Brasil, a Carta de Pero Vaz de Caminha mostra o seu lado profético ao pre- grandes chuvas ele copia da experiência aprendida no Oriente, trazendo des- ver que a ocupação desta Terra de Santa Cruz se faria pela agricultura, quan- sas regiões as inflexões dos telhados e dos beirais alongados com desenhos do "Em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar- graciosos. De Portugal traz as paredes cajadas e os portais coloridos, tão co- se-á nela tudo, por bem das águas que tem." A Europa do século XVI esta- muns nas paisagens do Minho, do Alentejo e do Algarve. Transforma a19 pequena casa portuguesa, por força do modelo econômico, numa "casa- Fig. 2 Por força do mode grande"(fig.2), à qual agrega os escravos africanos num puxado ao lado da pequena portuguesa vai transforma cozinha, que se denominou de senzala. numa Casa-Grande, uma espécie de castelo de um Do somatório dessas influências nasceu a casa no Brasil, de feitio único feudalismo tropical. muito bem adaptada à realidade social e geográfica. Esse modelo espalhou Figs. Apesar do ter a concepção de nossas se rapidamente pelo vasto território brasileiro e perpetuou-se através dos tem- mantém uma pos, sem sua tradição intrinseca, um se de permanência na A força e a permanência dessa maneira de pensar a moradia no país inclusive em valores impressionou vários estrangeiros que por aqui estiveram, os quais deixaram, por vezes, relatos esclarecedores sobre essas residências. Um dos mais famosos viajantes do século XIX, L. Vauthier, registrou em carta a um amigo a seguinte frase, a respeito da uniformi- dade e da padronização tradicionais existentes no país: "Assim, quem viu uma casa brasileira viu quase todas." Passados mais de 150 anos desta citação, a concepção de nossas casas e nos- apartamentos mantêm ainda a mesma tradição intrínseca de pensar e construir nossa moradia, apesar de aparentes dife- renças-exteriores resultantes de transformações sociais ou dita- mes da moda (figs. 3 e 4). fig. 4 fig. 3 fig. 220 21 8 Mar CAPÍTULO 2 É a casa de bonecas, a casa de brinquedos, a casa da da nossa infân- in José de Literatura brasileira das origens cia, a casa mal-assombrada, o casarão demolido, a cabana, o casebre, a aos nossos dias, ed. São A BRASILEIRA ALGUMAS choupana, a casa de cômodos, e iríamos interminavelmente enumerar mi- Paulo: Spicione, 1998. p. 53. de casas que vêm à tona. 9 E F L E SOBRE S U A E C Os Lusiadas, p. 29. Mas o que é a casa? É o abrigo? ninho? repouso do guerreiro? local de trabalho? re- ó mar salgado, quanto do teu sal canto dos encontros e reencontros? A personalização e identificação fecha- São lágrimas de Portugal! da de um universo? Simplesmente a máquina de morar preconizada pelos Por te cruzarmos, quantas mães choraram, modernistas? um símbolo de status ou de refinamento? Uma brincadeira Quantos filhos em vão rezaram! formalista? Quantas noivas ficaram por casar Para que fosses nosso, ó mar! De tudo um pouco, a casa é o reduto da família e, portanto, seu próprio espelho, refletindo também, numa maneira mais abrangente, a sociedade da Valeu a pena? Tudo vale a pena qual essa mesma família faz parte, ao mesmo tempo em que é sua geradora. Se a alma não é pequena... 8 Assim, comentar a evolução do espaço de morar é percorrer os corredores das transformações da família brasileira ao longo destes cinco séculos e de Não é possível analisarmos a família brasileira sem atravessarmos de volta uma forma particular, entrever que a mudança do papel da mulher na o Atlântico e olharmos para as origens d'além-mar, entre sociedade torna-se, de uma forma muito a dessas trans- as armas e os barões assinalados, que da ocidental praia lusitana, por mares nunca dantes navegados, passaram ainda além da Taprobana. 9 Família brasileira. Não só a família portuguesa transferida para o Brasil, pois, assim como a casa, não podemos limitar culturalmente essa família, que A família brasileira, contingente básico da célula de morar, é um produto encontrou habitante da terra, o índio, do qual incorporou tradições des- da miscigenação branca, e africana, responsável por sentimentos per- conhecidas, fossem nos hábitos alimentares ou mesmo construtivos E en- ceptíveis e outros sequer imagináveis geradores de seu próprio espaço de trazido como escravo para substituir o nati- permanência, local de realização de toda sorte de atividades: abrigo, alimen- vo, que mais do que trabalho trouxe todo um arsenal de conhecimento com- tação, educação, trabalho, repouso, religião, lazer, sexo. Essas atividades tan- posto por deuses, hábitos, mezinhas para curar cobreiro, mau-olhado, nervo to podem estar grupadas em espaços restritos, em modelos mais antigos ou torcido, quebranto, cantigas de ninar, vigor sexual e formas comportamen- mais pobres, ou inteiramente compartimentadas, em programas mais re- tais hoje atávicas que correm nessas artérias e veias centes ou destinados a camadas mais abastadas. A casa portuguesa, representada através de estereótipo casinha caia- Em sua essência, a casa é um complicado programa de arquitetura a ser estreita também não veio de forma unificada para a colônia. Depen- resolvido se quisermos atender plenamente a todas as suas condicionantes, dia de quem era seu ocupante, sua origem, seu nível de conhecimento e seu permitindo um bom funcionamento e um fluxo ideal. status. Assim podemos encontrar as construções em pedra aparente, oriun- Assim, ao falarmos da casa, imediatamente uma série de imagens, códi- das do norte de Portugal, as chaminés do Algarve ou as paredes caiadas de gos, reminiscências, livros, músicas e provérbios invade nossa imaginação branco com esquadrias coloridas do Sul mediterrânico, porém abrasileiradas num turbilhão. ou tropicalizadas.22 23 10 José Tudo foi amalgamado e reinterpretado, inicialmente conforme as con- Fig. 5 Residência o tronco do p.7. colonial urbana, onde dições materiais, para, num segundo estágio, ajustar-se socialmente apresenta no aposento 11 Arquitetura rua. Este modelo É o momento da definição de um modelo que surge no núcleo civil p.37. por quase três rural, esteio econômico da colônia, num patriarcalismo latifundiário onde, poucas mais do que chefe da família ou do o homem é o dono: dono da terra, dos escravos, da vida e da morte de seus subordinados. Mesmo transferindo episodicamente essa família para a cidade, em oca- siões especiais, as relações permanecem inalteradas, com a mulher desem- penhando praticamente nenhum papel nas relações sociais, exceto a de mera reprodutora dos herdeiros e duplicadores do patrimônio familiar. 12 Elemento decorativo formato de concha, uti Aqui, mais do que apenas a tradição lusitana, impõe-se uma clausura femi- A existência desse modelo urbano também expressa uma estranha relação com nos franceses do século nina quase muculmana, restringindo inclusive a área de circulação das mu- antitética de uma colônia essencialmente rural, mas que necessita de cidades corte dos lheres a espaços internos. Apenas existe a relação de mando e obediência, para acumular e negociar a produção, principalmente na faixa litorânea, jun- 13 FREYRE, Gilberto.C sem reflexão ou contestação, raramente atenuada por demonstrações de afe- to aos principais portos exportadores. Existe a cidade, porém quase sempre Grande & Senzala. p. to. Quando isto ocorre, provavelmente é dirigido às escravas femininas, que vazia, esperando ocasiões especiais. 14 podem e devem prestar favores ao garantindo algumas regalias. Com o estreitamento de relações com a Europa, já a partir do final do sé- resultado espacial dessas condicionantes é a casa-grande do engenho culo XVIII, algumas alterações formais gradativamente se incorporam ao edi- monocultor, primeira forma consolidada de moradia do colonizador. De par- fício colonial, principalmente presença de um porão, que futuramente irá tido variado, conforme a época e a geografia, mantinha em comum a pre- tornar-se habitável. senca da varanda como forma de vigília, controle e amenização climática. Aqui, com a riqueza advinda da produção aurífera, a vida urbana conso- lida-se, implicando uma substancial modificação no conforto das casas e em A casa-de-habitação chamada pelos pretos casa-grande, vasto e custoso edificio, estava sua ornamentação interior, palco de festas em salas decoradas em assentada no cimo de formosa colina, donde se descortinava um soberbo que para aqui também se transferem. Inicia-se uma vida social mais intensa, trazendo a mulher, ainda que de camadas mais abastadas, para esses salões. dos engenhos, de menor prestígio social, desenvolve-se a É ainda no final do período colonial que algumas tradições consideradas residência urbana inicialmente simples residências térreas, de porta e janela imutáveis começam a declinar lentamente, ameaçando a estabilidade da que, gradativamente, amplia suas fachadas, abre portas para o comércio, sociedade, apoiada integralmente numa infra-estrutura que se refletia na crescendo para o modelo assobradado, tão comum em Portugal na época do "antiga casa-grande patriarcal não apenas fortaleza, capela, escola, ofici- descobrimento. Aqui não encontramos porões ou preocupações formais. A na, Santa Casa, harém, convento de moças, hospedaria. Desempenhou ou- praticidade é fundamental. Este modelo torna-se tão adequado às condições tra função importante na economia brasileira: foi também banco." Defi- socioculturais que permanece inalterado por cerca de três séculos (fig. 5). nia claramente as relações pretendidas com o mundo exterior, setores e pa- péis, com suas "cozinhas enormes; vastas salas de jantar; numerosos quar- E em seguida que serão essas construções alongas que não recebem an e luz senão pelas duas extremidades? Essa forma rigida, esse tipo Comprimido na largura, não se tos de hóspedes; capela; puxados para acomodação dos filhos casados; presta nada, bem o compreendeis, a uma grande variedade de disposições internas. camarinha no centro para a reclusão quase monástica das moças solteiras; Assim, quem viu uma casa brasileira viu quase todas. gineceu; copiar; senzala". 1425 24 Fig É no imperial século XIX, após a chegada da Família Real, que se consoli- que Fig. 6 Palacete mes conhecido como o Solar da da a idéia do palacete neoclássico (fig. 6) inserido na malha urbana ou na pe- com Marquesa de Santos, no Rio de Janeiro, provavelmente uma riferia dos centros, sob a forma de românticas "chácaras" ou (fig. 7), Fig adaptação de um antigo à feição dos subúrbios londrinos da Revolução Industrial, onde as jovens, sobrado colonial. confo aprimorando seu contato com as letras e os clássicos, podem sonhar nas ala- em ob medas sombreadas dos jardins ingleses. mesmo prédio assobradado, três janelas de frente, varanda ao fundo, as mesmas alcovas e salas. Na principal destas, a pintura do teto e das paredes é mais ou menos igual, umas grinaldas de flores miúdas e grandes pássaros que as tomam nos bicos, de espaço a espaço. Nos quatro cantos do teto as figuras das estações... 15 (fig. 8) 15 ASSIS, Machado de. de Cubas Dom Casmurro, 1978. p. 178. A família, com o contato direto com a corte, deve seus hábitos arraigados. A vida social intensifica-se mais uma vez, e-o receber, ainda contra a vontade dos velhos senhores de engenho, é uma prática inevitável. A mulher deve aparecer em público e, ainda que inicialmente pouco partici- fig. pativa, sua presença pode ser notada sutilmente pela elegância das roupas ou dos gestos delicados, aprendidos com mestres franceses. Posteriormente, como cenários criados para seu desempenho, surgiriam salas de música ou de dança. As transformações sociais decorrentes da Abolição da Escravatura e da Proclamação da República também influenciam no modo de morar. Com- pactam-se os espaços, pois não há mais o para as tarefas conside- radas servis, como recolher o lixo, limpar a casa e seus despejos, que passam para a responsabilidade direta ou indireta da mulher. Há uma aceleração no processo de urbanização que implica um aden- samento demográfico, decorrente do loteamento de grandes proprie- dades, muitas agora inviáveis por falta momentânea de mão-de-obra barata. Surgem cortiços conhecidos como casas de cômodos, as primeiras fa- velas e vilas operárias para abrigar a camada mais pobre fig. da população. fig. 626 27 Fig. 9 Vista interior de As casas construídas para essa classe social procuram ser baratas, po- As mulheres saem de casa, devidamente acompanhadas, para desfrutar residência urbana do final do século XIX, comumente rém adequadas para atender, pelo menos, às necessidades básicas. do lazer oferecido pela cidade: lojas variadas, confeitarias, teatros, o cine- utilizada sob aluguel pela classe A classe média, a pequena burguesia urbana, freqüentemente vai matógrafo. Para essas saídas, horas de preparação em aposentos criados média. par casas de aluguel, com seus porões altos habitáveis e banheiro no fundo para esse fim. dos quintais. De suas janelas voltadas para as ruas, que apresentam fluxo século XX vai assistir a algumas mudanças nas formas de morar. Nas de pedestres mais intenso, meninas suspiram ou observam de soslaio suas primeiras décadas, como evolução natural dos surgem as algum admirador insistente, a lhes dirigir delicados acenos com chapéu vilas. Não devemos entender "Vila" como seu correspondente europeu: o ou a bengala (fig. 9). palacete. Vila é a "avenida", na linguagem popular, aquele nosso correr de casas semelhantes, térreas ou em torno de área comum, 16 AZEVEDO, Arthur. A capital federal. Rio de Janeiro: Serviço PROPRIETÁRIO Sala, três quartos, sala de jantar, despensa, cozinha, latrina na com acesso por estreita servidão, produto de outro retalhamento de pro- Nacional de Teatro, 1972. p. 18 cozinha, água, gás, quintal, tanque de lavar e galinheiro. priedades maiores que podem gerar capital. Aqui a vila vai abrigar a classe A SENHORA Não tem banheiro? PROPRIETÁRIO Terá, se inquilino o fizer. A casa foi pintada e forrada há dez média, que primeiro aluga suas casas, com a remota esperança de um dia está muito comprá-la. A elite, compreendida pelos latifundiários respaldados no café-com-leite, Nos anos 20, um novo modo de morar surge no Brasil, causando uma então "reforçada" pelos industriais em ascensão, continua a ocupar seus rejeição inicial: os edifícios de apartamentos, edificações de vários pavimen- palacetes que reproduzem formas européias interna e externamente, ou tos, com algumas unidades por andar, que começavam a rasgar os céus das mesmo "exóticas", conforme o poder aquisitivo do proprietário e a criativi- grandes cidades. A proposta causa admiração, porém a resistência em ocu- dade de seus arquitetos. Em suas plantas, salas, salas, salas, cada uma com pá-los é maior que a curiosidade. Torna-se necessária uma verdadeira doutri- uma linguagem estilística, para uma finalidade específica, refletindo tempos nação do futuro usuário, começando pelo trabalho de compra do terreno, do ecletismo, quando o ser era decorrência do ter. que por vezes abrigava um palacete, até a apresentação de um projeto de arquitetura convincente, uma planta- de outro palacete, só que "empilhado" sobre outros semelhantes. Bem mais adiante, ao longo dos anos 40, cio de apartamentos se populariza, abrigando a classe média e mesmo seg- mentos mais baixos da população que ocupam os conjuntos habitacionais. As residências térreas desse período pouco se alteram em relação aos par tidos do início do século. Apenas agregam uma varanda e um pequeno jar dim à habitação, como fronteira entre o público (rua) e o privado (o lar). Mais uma vez é a mulher responsável por criações como essa, pois é nessa zona de transição, devidamente vigiada, que podem acontecer os primeiros pas- SOS de um namorinho de portão. Assemelhando-se às vilas, também encontramos ainda na primeira me- tade de nosso século um particular modo de morar: os apartamentos para ganho. São edificações geralmente de dois pavimentos, com poucas uni- fig. 9 dades, construídas, em muitas ocasiões, imigrantes es-28 29 panhóis. Compõem-se de moradias compactas, exceção feita a uma unidade um membro da família Fig. 10 em especial, que geralmente possui garagem e dependências de emprega- até que a plenitude e a morte coincidissem um dia reconstituição exemplares a o que aconteceria diversas dos e destina-se ao proprietário, que mora no conjunto e assume funções de de qualquer jeito "síndico" de um condomínio inexistente como pessoa jurídica, já que não mas eu prefiro abrir as janelas promove eleições nem possui convenção, sendo composto pelos "inquilinos- para que entrem todos os insetos 17 condôminos" Até os anos 60, pouco se inovou no modo de morar. Mansões neocolo- Independentemente da globalização que atinge aqueles expostos aos niais nos anos 20, casas art déco no Estado Novo, dividindo as atenções com meios de comunicação, existe ainda um Brasil original, que perpetua sua cul- a proliferação de edifícios de apartamentos com suas notáveis portarias, tura, grande demais para sucumbir diante das imposições externas e capaz 17 VELOSO, Ca 1981, residências modernas dos anos 50, com seus jardins projetados, de nos oferecer subsídios suficientes para sua plena compreensão. Capaz 18 escondidos e garagem em destaque. ainda de influenciar ou capitanear uma nova marcha, que de uma forma brasileiro. 1995 Na década de 70 o mercado aproveita as condições desumanas das gran- nossa tentamos apresentar para vocês. 19 des cidades e investe na propaganda de novos programas de habitação: 1977 apartamentos com "varandas", os condomínios fechados, agregando uma Estamos nos construindo na luta para amanhã como uma nova civilização, mestiça e tropical, orgulhosa de si mesma. diversidade de facilidades para o usuário, isolando-o do contato com o resto Mais alegre, porque mais sofrida. Melhor, porque incorpora em si mais da cidade "ame-o ou Afinal, "ninquém segurava este se- Mais generosa, porque aberta à convivência com todas as raças e todas as culturas gundo a propaganda oficial. E porque assentada na mais bela e luminosa província da Terra 18 Segurança, conforto e lazer ainda não eram suficientes. Sofisticando ainda mais os programas, os anos 80 assistiram a expansão dos flats, onde o usuá- Navegar é preciso Viver não é preciso. 19 rio só teria o trabalho de in e vir, às vezes em transporte exclusivo, oferecido pela administração do empreendimento.. Casas-grandes, casas térreas, sobrados, palacetes, vilas, apartamentos, conjuntos habitacionais, condomínios horizontais, condomínios verticais, flats (fig.10) enfim, várias formas de morar, porém todas guardando inter- relações semelhantes, mesmo com o passar do tempo, deixando entrever que a sociedade brasileira tem uma face. Esta pode ser compreendida com clareza se percorrermos os corredores de nossas residências e observarmos que a família é o seu principal fator gerador. Sim, eu poderia abrir as portas que dão pra dentro percorrer correndo corredores em perder as paredes aparentes do edifício penetrar no labirinto fig. 10 o labirinto de labirintos dentro do apartamento.. Sim, eu poderia em cada quarto rever a mobilia em cada um matar30 31 Fig. 11 o espaço sombreado 3 regiões de clima temperado bem mais que em sua correspondente na casa Fig. 12 Casa do Padre da varanda propicia um recanto em Cotia, São Paulo do agradável ao repouso, mesmo de chácara fluminense ou de outras regiões onde a insolação tropical é XVII. Aqui, região de clima nas horas mais quentes do dia. A A R A N D A mais intensa. temperado, parede da varanda precisa receber 13 Recomposição de Os estudiosos de arquitetura sempre encontram nas regiões meridionais, Fachada de Casa-Grande Pernambucana do século A noite é um mistério como as do levante, o uso de um abrigo colocado do lado externo das ha- região de clima tropical, que eu finjo compreender guardando semelhanças bitações: a galeria mouresca, a logia italiana e a varanda brasileira aqui Fazenda do Capão do sentado nas varandas representada. É muito natural que com uma temperatura que atinge às esperando o amanhecer. 20 20 Trecho da música vezes 45° de calor, sob um sol insuportável durante seis a oito meses por de Almir Sater e Paulo Simões, incluida no CD Festivais vol 2. ano, o brasileiro tenha adotado a varanda nas suas construções; por isso Independentemente de sua importância climática, muito relevante em re- encontra-se, embora muito simplesmente construída, até nas habitações giões de clima tropical como o Brasil, a varanda, rural ou urbana, é o princi- mais pobres. 21 (fig. 11) pal elemento filtrante do exterior permeando apenas o que interessa à inti- midade da família 21 Jean Baptiste Nas regiões temperadas, a parede externa precisa ser aquecida para libe- Viagem pitoresca e história Seja a varanda ou o alpendre elemento de proteção contra o sol, a chuva, Brasil, tomo p. 200-201 rar à noite o calor estimulante contra o intenso frio (fig.12). Nas outras ou ainda simplesmente um terraço, posto privilegiado de vigília, descanso ou regiões, dá-se o inverso; o alpendre afasta o calor, representado pelo exces- contato com o sol, evoca relações ancestrais, transformando-se mesmo em de sol. Além do mais, em uma sociedade rigorosamente estruturada, o objeto de desejo. alpendre, como área de transição, efetua o trabalho de receber o elemento Este espaço, romântico, aconchegante ou coloquial, intrinsecamente asso- socialmente exterior que fica limitado ao espaço fronteiro, que faz as vezes ciado a tradições, torna-se fundamental pelas razões climáticas, pois cria o de tribunal. É ainda, principalmente, um espaço de vigilância, lazer e filtro em indispensável colchão de sombras que impede o aquecimento das paredes relação que podem a permissão de entrar (fig. 13). perimetrais da casa. Razões evidentes elevam a altura de seus frechais em Agora, lá no alpendre, sinhá Miloca tirou da caixa de madeira o crochê interrompido sem a mão mirrada, e retomou ponto com uma laçada nervosa. Dr. Lustosa, depois de os últimos números do constitu- cional que de S. lhe mandara Dr. Sotero dos Reis, deixou os jornais ao fig. 1332 33 Fig. 14 Fazenda do Capão do pé da cadeira de balanço e a Com uma progressiva aproximação com a Europa e com a chegada do Fig. 16 Bispo, no Rio de Janeiro do cabeça no espaldar de palhinha romantismo, a varanda afirma-se definitivamente, intimamente associada ao século onde a varanda há uma desempenha papel de alongando a vista para a porteira jardim inglês, de clara influência oriental, através de um longo espaço alpen- vida amenizador climático, vigilia e furtivos filtro da fazenda. 22 drado que vem denunciar os discretos progressos da família patriarcal, agora Fig. 15 A casa apresenta, no abrindo-se ao público (fig.15) final do século um extenso corredor externo lateral, Enfim, trata-se do colchão de an fresco e sombra, transição, uma diminuindo um pouco a expansão da casa coberta, porém não fechada, própria da vigilância senho- Com a independência e a cultura do café, uma crescente urbanização con- privacidade de locais antes até mesmo a olhares rial e do contato com a natureza, como na Fazenda do Capão do Bispo, onde duz os valores antes restritos em termos familiares a uma vagarosa abertura. indiscretos. a generosa e sombreada varanda, disposta em estratégica posição sobre a público então é socialmente "bem-vindo" mais que isso, estimulado a colina, propicia o descanso e o ócio atento (fig. 14). os saraus literários ou musicais. corredor-alpendre serve de guia Já numa das alas do terraço que se prolongava numa galeria larga, com sua abóbada de berço... de 22 Os tambores de São Luis. p. 52. Enquanto nos exemplares rurais o alpendre ou a varanda é constante em todo o período colonial, nas cidades tal fato não ocorre. Pelo menos à vista 23 HOLANDA, Gastão A breve jornada de D. dos transeuntes, pois esse próprio elemento arquitetônico volta-se para o Rio de Janeiro: José Olympio, 1985. 90. quintal, para os fundos, criando uma área de convívio de família, distante de olhares curiosos de passantes. Mesmo em algumas edificações religiosas mais antigas podemos notar o tal componente, como os encontrados na capela de Santo Antônio, edifício do século XVII no Planalto Paulista, na Capela de Nossa Senhora da Ajuda, em Cachoeira, Bahia, ou ainda na igreja de Nossa Senhora do Monte Serrat, em Salvador. Nas residências de influên- cia neoclássica, o alpendre retrai-se ou é anulado. Pode aparecer, sem o mesmo uni- verso de funções, um pátio colunado, à maneira de um claustro. jardim é submeti- do a um uso mais intenso, como cenografia ou lazer, freqüentemente utilizado pa- ra valorizar a arquitetura.34 35 Fig. 17 Residências geminadas a casa, revelando espaços antes invioláveis ao olho curioso exterior. antigo de louça, nos pilares do portão da entrada, e outros detalhes equiva- 7 Tris de Policarpo para aluguel, partido usual de e longo corredor patriarcal, a espinha dorsal.da casa, margeado pelas alcovas, lentes. A casa ficava ao centro do terreno; elevava-se sobre um porão 64. habitação para classe média republicana. também acontece do lado de fora, misto de varanda e circulação (fig. 16). tinha um razoável jardim na frente, que avançava pelos lados, pontilhados de Nele, a família do segundo reinado e da turbulenta fase inicial da Re- bolas multicores; varanda; um viveiro, onde pelo calor os pássaros morriam pública dá os seus saraus, vê namorar as suas filhas, permite que se saia do tristemente. uma instalação burguesa, no gosto nacional, vistosa, cara, gabinete onde se lê e fuma para ouvir um piano e uma voz a entoar polcas, pouco de acordo com o clima e sem conforto. No interior o capricho domi- mazurcas ou valsinhas, um brejeiro ou um saltitante nava, tudo obedecendo a uma fantasia barroca, a um ecletismo desespe- burguês urbano, o fazendeiro que mora permanentemente na cidade e a rador. Os móveis se amontoavam, os tapetes, as sanefas, os 18 As cidades bras classe média que, se expandindo, ocupa os subúrbios e bairros ligados pelos do inicio do século XX 24 Scottisch: no sua "europeização" aportuguesamento da forma meios de locomoção modernos bondes e trens já não se mais em Ao visitar São Paulo em 1904, o presidente francês Clemenceau teria afir- cenário da Cen inglesa, encontramos xote. de Talvez mangas de camisa diante do público, vestidos com simplicidade. Seguindo os mado, segundo comentários de jornais da época: "a cidade de São Paulo é velada o remetent 25 Corta-jaca: passo tradicional domente: "Temperatura do samba-de-roda e ritmo refinados hábitos europeus, em público impõe-se discrição. Intimidade, só tão curiosamente francesa sob alguns aspectos que, durante toda uma se- centigrados 'não no presente nas músicas de princípios do século XX. em muita intimidade... mana eu não me lembro de ter tido a sensação de que estava no es- l'(trad. dos autores). uma Paris ou Long E olecletismo avançando até as primeiras décadas do século XX popula- O aspecto urbano do Rio de Janeiro também é totalmente influen- tropical. 26 o termo é utilizado por Luciano Pateta, no texto riza essas propostas. Na fusão do ecletismo com o nouveau, vê-se o al- ciado pela cultura francesa (fig. 18). "Considerações sobre o ecletismo na pendre, ou corredor alpendrado, transformar-se em varandas de gosto histo- A década de 20 é turbulenta e plena de efervescência intelectual. Um mo- Ecletismo na arquitetura brasileira, p.13. entaladas ao longo dos panos de paredes ou ainda nos diversos mento de aparente crise e ruptura que se transforma, em 1930, em crise e pisos. Seus adornos e detalhes, caracterizados pelas referências históricas, acomodação. Radicalismo, aguçamento de tensões políticas, conflitos ideo- criam efeitos de beleza, nem sempre de plena adequação ao clima. lógicos, busca de raízes e identidades. Crise do ecletismo duplamente carac- Este momento aponta para uma intensa europeização das nossas princi- terizada: a do edifício capitalista a exigir uma nova abordagem tecnológica pais cidades: abertura das grandes avenidas e de boulevares, arrojados pla- pela sua complexidade e a do partido plástico da casa. Surge o movimento nos, saneamento básico. No primeiro quartel do século XX, a casa brasileira, refletindo o gosto familiar dominante, torna-se submissa às propostas ecléti- cas, européias, civilizadas e refinadas (fig. 17). A extensa publicidade que o fato tomou atingiu o palacete de real grandeza, onde morava seu compadre Coleoni. Rico com os lucros das empreitadas de construções de prédios, viúvo, o antigo quitandeiro retirara- se dos negócios e vivia sossegado na ampla casa que ele mesmo edificara e tinha todos os remates arquitetônicos do seu gosto pre- dileto: compoteiras na cimalha, um imenso fig. 17 monograma sobre a porta da entrada, dois fig. 1836 37 Fig. 19 Residência "missões A família de classe média, comprometida com os valores de Observamos que essa presença consagra a varanda e reflete uso inten- 29 Trecho da espanholas", partido popularizado partir dos anos estabilidade, ganha a vida nos serviços profissionais liberais cujo contingente que todos fazem desse espaço, situado preferencialmente na frente das Gonçalves. 20, com intensa aceitação cresce constantemente tanto no Rio de Janeiro como em São Paulo, ligado casas. Em bairros tradicionais, as famílias sentam-se à noitinha nas varandas 30 Trecho de popular, devolvendo elementos esquecidos como tradicional aos setores cafeeiros. São burocratas e funcionários. Este contingente sente- em cadeiras de metal ou de vime com o "chefe de família" fumando um dis- comum em femininas varanda contigua ao jardim. se inquieto ao escolher a plástica da sua casa. Que escolherão? radicalis- creto cigarro, ainda sem filtro. Ouve-se um piano ao fundo. A filha mais ve- roda). mo do movimento "moderno", dito racional, causa-lhe apreensão. Porém, o talvez normalista, "vestida de azul e branco, trazendo um sorriso franco neocolonial, surgido em meio a ardorosas declarações de os e um rostinho namora recatadamente um "bom partido", de estilos hispano-americanos, como californiano e o estilo "missões espa- preferência "um garotinho do colégio militar / o danado do garoto só queria nholas" aparecem associados a tendências conservadoras que permitem, em me beijar". Jardins simples, de vegetação baixa, à frente da casa, delimi- meio à crise ideológica e de identificação cultural, um porto seguro para a tando a fronteira entre a rua e o espaço doméstico, ainda proibido ao na- 28 MARIANNO FILHO, José. casa. E nessas soluções formais, o alpendre e a varanda, dotados de várias morado no início do romance (fig.19). margem do problema arquitetônico nacional, 1943, proporções, adaptam-se perfeitamente à disposição geral da residência, inte- As varandas se fazem presentes nas mansões de novos bairros ou mesmo grando-se na planta como elemento básico e perfeitamente justificável. em casas mais modestas dos subúrbios ou vilas, devolvidas à habitação, im- pondo-se ao voltar a adquirir o papel de filtro, elemento de transição, onde Na terra brasileira se implantam, sem processo algum de adaptação às situações como o namoro de portão, ou de jardim, ainda podem ocorrer em condições físicas e espirituais de nacionalidade, os estilos de terras estranhas cenário adequado. cujas características foram obtidas sob influência de fatores totalmente opos- tos aos que atuam no Quem dobrasse à esquerda encontraria logo o portão. jardim modesto jardim, onde outrora houvera uma roseira que morreu de solidão. Do jardim saía a alameda das samambaias que daria acesso à varanda. AS Em dias de domingo que os havia plenos de luz e de azul já a meio cami- 23 nho, entre as samambaias, um ouvido mais familiarizado conosco, os de lá, poderia distinguir facilmente os risos da gente. Ríamos muito naquele tempo. Da varanda, que dizer? Algumas cadeiras de vime, a mesinha que tinha um pé mais curto que os outros e dois jarrões, um em cada canto, cujas plan- tas (nunca lhes soubemos o nome) davam umas florzinhas amarelas e chei- rosas no mês de abril, para o outono. A entrada era uma apenas, pela direita, subindo-se a escada de mármore de três degraus. resto da varanda era rodeado pelo patamar onde havia, no centro, uma jardineira. Depois que último de nós ficou mais crescido e menos travesso, ali floriam gerânios. Hoje, quem me vê não diz que eu já morei numa casa onde as cotovias faziam ninho. Deus não me deixa mentir. No telhado da varanda, durante anos e anos, fig. 19 elas se hospedavam, para alegria nossa e inveja dos garotos da redondeza.38 39 31 PORTO, Sérgio (Stanislaw Quando, pela primeira vez, falou-se em demolir a casa para construir o pré- formalmente seria ótima se fosse situada na Europa, em latitude mais tem- Fig. 20 Variações do Ponte Preta). Sérgio Porto, p. 74-75. dio feio que lá está até hoje, meu primeiro pensamento foi para os ninhos perada. Não só causou um choque na opinião dos potenciais clientes, im- neocolonialismo suas respectivas varandas, das cotovias. 32 Trecho da música Três pedindo um debate mais esclarecedor das razões desta nova arquitetura, perdurando até os and apitos, de Noel Rosa, composta em 1933. Num mês de abril, de 1947, demoliram a varanda. Eu Parado na rua, como ignorou princípios básicos da arquitetura tropical. A fachada era intei- lá da calçada em frente, esperei que os operários derrubassem o último tijo- ramente "lavada", sem proteções contra sol ou Da mesma forma os 33 Arquiteto russo radicado no Brasil nos anos 20, autor do lo da última parede e voltei para o apartamento com a sensação de que, den- terraços, descobertos, impróprios para o excessivo índice pluviométrico de primeiro manifesto em defesa da arquitetura moderna, tro de mim, algo também fora São Paulo ou para regiões de forte sol. Essa casa, assim como outros proje- publicado em responsável pelo projeto da tos similares, sofreu reformas, tornando-se mais adequada ao (fig. 21). primeira casa moderna no Os anos 30 e a Revolução, seguida pela decretação do Estado Novo, em 35 Revista Projeto, Brasil, em São Paulo. 29. 1937, significam em seu conjunto a aparente solução da crise econômica, con- Nas décadas de 30 e 40, vários edifícios de apartamentos, construídos 34 Arquiteto italiano, 36 Bauhaus foi uma diretamente ligado a Mussolini duzindo ao pleno emprego, ao ufanismo do Dia da Raça e à segurança, aliás, dentro da síntese formal do art déco e destinados a dar moradia aos seg- de arquitetura, durante apogeu do fascismo. excessiva. Não mais conflitos sociais, também aparentemente. A legislação tra- mentos da classe média em expansão, admitiam varandas. A proposta, artes decorativas, funda 1919, que priorizava balhista dissolve a luta de classes sob a catarse da legislação do trabalho. porém, é diversa, pois esse tipo de varanda utilizada pela renovação da prático, apoiado na do Foi desa A família descansa; usa mais suas varandas. Estado Novo é presente ga- dos arquitetos austríacos e franceses é um segmento construtivo pelo nazismo em 1932 rantindo uma circulação segura e arejada. O Grajaú e a Urca, no Rio de Ja- mais adequado ao clima europeu (fig. 22). Mostra-se como uma espécie de 37 Referência ao PTB neiro, são bairros típicos da época, com seus toques urbanos europeizados área de transição onde o sol é bem-vindo, entrando pelas janelas em grande siglas de partidos opost ideologicamente na prontos a recolher as imagens sonoras que compõem o espaço sentimental quantidade. Uma reserva de sol e aquecimento presente em vários edifícios da casa: o apito do amolador, a sirene da fábrica. residenciais, com soluções que parecem extraídas diretamente de impor- tantes revistas européias de arquitetura. Quando o apito Na década de 50, a arquitetura moderna no Brasil amadurece suas pro- da fábrica de tecidos vem os meus ouvidos postas, apurando-as, tornando-as aceitáveis por uma grande parcela da po- eu me lembro de você 32 pulação. É o segundo pós-guerra com seu vento de progresso, com a reno- vação política da relação liberal e conflitante entre trabalhismo e país e a família parecem ter encontrado sua segurança. A casa neo- Quando a nossa família se abre ao american-way-of-life, com seus sub- colonial abre-se com suas acolhedoras varandas. E estas mostram um leque produtos de consumo de massa como o rock-and-roll, o cadillac, o chevro- surpreendente de opções compondo-se com os desenhos das fachadas. Po- dem ser entaladas, compondo retângulos ou quadrados, abertas em torreões cilíndricos ou ainda sacadas à maneira de e muxarabis (fig. 20). A partir de São Paulo faz a sua aparição o "moderno", versão quase nati- va da "máquina de morar" e das conquistas da vanguarda européia. Os par- tidos mais ortodoxos de assustam o público, tendendo a for- çar pelo seu aspecto "atual" a modernização dos espaços habitacionais. próprio cartão de propaganda desse arquiteto, enfatizando sua filiação ao ra- cionalismo italiano e ao rigor do pensamento de um demonstra essa atitude. Porém, a "casa modernista" de Warchavchik, em São Paulo, fig. 2040 41 let, o as varandas são também reavaliadas. Numa proposta Fig. 23 Tentativa de elementos tradicionais mais elaborada, o arquiteto Lúcio Costa já as havia utilizado em projetos modernos. arquiteto Costa como na residência de Roberto Marinho, no Rio de Janeiro do Barão de (1937), ou na Saavedra em Petrópolis (1942/1944), onde se em observa a filiação tradicional, muito conhecida por ele desde Fig. 24 Fachada print um dos blocos projeta seus tempos neocoloniais, nos treliçados que tão bem as carac- arquiteto Lúcio Costa Parque no Rio terizam. Varandas cobertas e sombreadas, áreas de transição onde vazada foi utilizada tropicais com rótulas e treliçados (fig. 23). elemento de proteção Nos edifícios, tímidas intervenções avarandadas. Os que con- fig. 23 Fig. 25 Fachada post tinuaram a ser feitos de acordo com as propostas da década pas- Conjunto Mendes de "Pedregulho", sada insistiram nas varandas como reservas de sol e calor. Aos arquiteto Affonso Edu adaptada à poucos, o bom senso foi exigindo que esses espaços fossem intensa. fig. 21 fechados com panos de vidro, venezianas ou cortinas por dentro 21 A casa de para amenizar seus efeitos. A partir daí, a varanda vai do Warchavchik, quando da sua inauguração (inicio dos anos edifício de apartamentos, reaparecendo na década de 70. Lúcio Costa, ao 30) posteriormente, nos anos adaptada pelas projetar nos anos 40 o conjunto do Parque Guinle, no Rio de Janeiro (fig. 24), necessidades cotidianas. reavalia de forma inteligente as áreas de transição, à maneira de Le Corbusier Fig. 22 Conjunto de na Unidade de habitação, em Marselha, utilizando vedação em cerâmica apartamentos art-déco, no Grajaú, Rio de Janeiro, onde a Affonso Eduardo Reidy, também no conjunto do Pedregulho, utiliza varanda não se mostra à proteção contra essa vedação nas áreas de transição, valorizando-as e adaptando-as ao uso tropical (fig. 25). fig. 24 Na desenvolvimentista dos anos 50 a sociedade vislumbra um país de grandes possibilidades, referendadas em sucessivas conquistas como nos esportes (Copa de 58, na Suécia), na música (Bossa Nova), no cinema (Palma de Ouro em Cannes) e na própria arquitetura com as extraordinárias obras, ainda em cons- trução, de Brasília. A varanda divide a atenção com a gara- gem, agora protago- 38 Cadillac, chevrolet e modelos de nista da fachada, mas automóveis importados, ainda utiliza materiais verdadeiras sensações nos anos 50/60. nobres como pastilhas fig. 2542 43 Fig. 26 Nesta residência coloridas, mármores, guarda-corpo dourado para escadas helicoidais, su- paulista dos anos 50 a varanda falar aparente vitória tecnológica sobre clima tropi- 27A B A televisão divide, em composição gestivas vedações com tubos coloridos em tons vivos e tetos rebaixados TELEVISÃO no Brasil en cal. Ela, portanto, está dispensada de funcionar diagonal, atenção com a pouco pouco gar em amebas com iluminação indicada em néon multicolorido, combinando de destaque nas garagem, valorizando veículo, como colchão de Além disso, é o tempo em atraindo o jardim os novos materiais. com caminhos, rampas e jardins curvilíneos, repertório que prossegue nos que a energia elétrica ainda custa pouco. A te- mentando status e sossego de anos 60 (fig. 26). levisão agora permite a família olhar para fora, A partir de porém, a sociedade brasileira aceita o moderno sem ver o mundo e dispensar um pouco a paisagem. reservas. A família agora é levada a identificando a nova casa "fun- Panos de vidro e amplos janelões serão guarne- cional" com as linhas arrojadas da arquitetura moderna brasileira, porque é cidos por pesadas cortinas de densos e escuros através dela que o futuro vai chegar mais tecidos (fig. 27). 39 NIEMEYER Forma e função na arquitetura, In Arte golpe militar de 1964, apoiado por setores em Revista, p. 57. Sou a favor de uma liberdade plástica quase ilimitada, liberdade que não de classe média e grandes empresários, busca não manter intacto esse Acacio Gil se subordine servilmente às razões de determinadas técnicas do fun- loca, desenvolveu, nos ideal americanizante como abranger a "aliança para o progresso", desen- uma arquitetura basea cionalismo, mas que constitua, em primeiro lugar, um convite à imaginação, volvimento e largo consumo. Adensam-se as cidades, aumentam as mi- emas construtivos regio baixo custo, como no às coisas novas e belas, capazes de surpreender e emocionar pelo que repre- grações internas, diminuindo a qualidade de vida nos grandes centros. ieto de Cajueiro onde foi real sentam de novo, criador; liberdade que possibilite quando desejável as Lança-se a semente da especulação imobiliária no seu sentido mais perverso, a experiência de atmosferas de êxtase, de sonho, poesia. 39 ionalização da taipa de em que a arquitetura é produzida em série por construtoras que começam a dominar o mercado utilizando a mídia como instrumento de persuasão. A arquitetura popular interpreta as formas audaciosas das galerias dos palácios de Brasília, utilizando lajes planas inclinadas com pilares retorcidos No início da década de 70, o rigor formal da arquitetura moderna arrefe- em rico formalismo, diluídas com vedações em soluções interessantíssimas, ceu, em particular nas regiões subdesenvolvidas, permitindo uma reavaliação muitas vezes interpretando os "motivos fundamental de suas fontes, que seria acentuada, sem dúvida, com a crise A varanda vai gradativamente extinguindo-se nas reflexões de muitos capitalista cujas origens são as finanças apoiadas no dólar e no petróleo. Há, profissionais, pois o aparelho de ar-condicionado é a máquina que permite a em algumas regiões, uma reorientação da arquitetura para a es- cassez e suas A casa brasileira vol- ta-se lentamente para buscar sentido e razões no desenho de cunho tradicional, valores que considera mais brasilei- ros que os de linha in- ternacionalista. Era a época de apogeu do fig44 45 No final dos anos 70, com as propostas de distensão e abertura, reatam- Fig. 28 passou se as comunicações com exterior e os ventos pós-modernos invadem o muita cenário arquitetônico, trazendo a utilização plena de cores e um discurso sim- "estilo bólico antes proscrito pelo repertório dogmático modernista. clientela. próprio ideal do "verde", da "ecologia", sugere para as varandas o sig- Fig. 29 nificado de "contato com a natureza", fortalecendo o conceito de viver me- se" nos complement explorado pela propaganda, escondendo a real intenção de aumentar o perdendo preço de mercado. A varanda perde seu sentido de vigília, controle, amenização e transição antes existentes, trocados agora por um mero complemento do setor social, nem sempre utilizado pois pendurada no edifício, expõe seus usuários ao público como manequins numa vitrine, gerando verdadeiros rituais para sua ocupação e definição de mobiliário (fig. 29). cenário dos anos 80 e 90 não altera os valores sociais da utilização desse 44 Trecho da de Belchior, espaço: a produção de status tanto para as residências unifamiliares quanto Belchior, 1977 para os edifícios de apartamentos. Espaço pouco utilizado durante a maior parte do tempo, ocupado apenas em recepções ou ocasiões especiais, quan- do pode o conforto da habitação ao convidado, propiciando, às vezes, um belo panorama de pavimentos mais elevados... fig. 28 milagre econômico, da expansão creditícia, da urbanização acelerada, da No Corcovado, quem abre os braços sou eu, 41 Trecho de música do LP Copacabana, esta semana o sou Água, terra dos ocupação intensa das periferias serranas e praianas para lazer (fig. 28). compositores intérpretes (...) No apartamento, oitavo andar brasileiros Sá, Rodrix e Muitas dessas mais recentes habitações unifamiliares começam a aban- abro a vidraça e grito, Guarabira, responsáveis pela divulgação do que se donar as formas geométricas simples, o concreto aparente, o grande pano de grito quando o carro passa: chamar vidro, as lajes planas. Enfim, o dito "moderno" está à procura de elementos teu infinito sou eu. "rock rural" plásticos que lembrem a arquitetura colonial: as telhas de capa e bica, as 42 Música de Rodrix, um dos principais sucessos da intérprete grandes varandas, as janelas de madeira de vergas arqueadas, os pisos de Elis tábuas corridas, as lajotas, talvez numa romântica tentativa de negar as gran- 43 Entrevista concedida ao jornal Rolling em des torres de vidros e concreto onde todos trabalham diariamente, não como dezembro de quando seres humanos, mas como peças que devem produzir com eficiência. Na casa, ex-Beatle John Lennon afirmava: "O sonho no seu próprio espaço, talvez esse homem não se encontre "nas torres de Não estou falando só sobre os Beatles. falando de toda cento e trinta andares/ por trás das malhas de vidro/ perdido no esquecimen- uma geração. Acabou nós precisamos eu pessoalmente to/ do futuro que eu não sei se e consiga identificar "uma casa no preciso de volta à campo/ do tamanho ideal/ pau-a-pique e sapê/ onde eu possa plantar meus chamada e, por alguns momentos, esqueça que sonho acabou".46 47 Fig. 30 Tradicional sobrado CAPÍTULO 4 Nesta composição urbano com à esquerda temos um pavimento destinado ao sobrado em Parati, comércio e serviços e o superior A G A A G E M direita uma rua em Óbidos é possível percebe continuidade de formas e partidos e às vezes, ao alcar da vista, as mesmas perspectivas.. Camisa verde-clara calça saint-tropez combinando com o carango todo mundo 45 Trecho da música Ninguém sabe o duro que dei carango", de Carlos Imperial e Pra ter fon-fon trabalhei, Nonato Buzar, gravada por Erasmo Carlos, incluída no CD "O melhor da jovem 46 Paulo Thedim Columbia, 1994. Segundo uma campanha publicitária recente, brasileiro é apaixonado Arquitetura Civil p. 197. por carros" Não poderia ser de outra maneira desde o início da ocupação desse vasto território, considerando-se as grandes cruzando trilhas desconhe- A casa brasileira manteve-se coerente por cerca de três séculos como cidas, varando matas e subindo serras ou percorrendo esse extenso litoral. pode constatar uma análise de exemplares coloniais remanescentes em Cavalos, carros de boi, cocheiras, estábulos, coches, caleças, enfim, toda cidades como Olinda, Paraty ou Ouro Preto. Diferente em alguns aspectos uma série de meios de transporte particulares, antecipando o problema con- de tradicionais modelos portugueses, nosso modelo é mais aparentado temporâneo da ineficiência do transporte de massa e das ruas abarrotadas com a casa burguesa européia de modo geral, ou seja, residência que se de veículos. presta, na cidade, para sediar uma família cujas bases econômicas gravitam em torno de atividades como o comércio ou armazém (fig. 30). São bastante numerosas, servindo-se de grande séquito de agregados e pa- rentes menores, dotadas de grande poder econômico, o que lhes confere igual significado político. sobrado, com a progressiva ocupação dos ter- ritórios urbanos, será estreito de testada e longo em profundidade, obe- diente ao lote e às ordenações expressas nas cartas régias. "Mantém sua fachada e elevação de acordo com as prescrições que tornam as cidades brasileiras similares às principalmente no aspecto sensorial, na apreensão do espaço urbano, gerando atmosfera mais receptiva, àqueles que atravessaram o Atlântico para colonizar novas terras: edificações semelhantes, paredes caiadas, esquadrias em cores vivas, em pé-de-moleque e, principalmente ao alcance da vista. as mesmas perspectivas (fig. 31). Há, inclusive, a recomendação de impor às novas vilas "nomes das vilas mais notáveis deste reino" algumas das quais até hoje persistem como fig. 3048 49 47 Paulo Belém, Bragança, Óbidos ou Santarém, no Pará; Pombal, na Paraíba; Vi- A importância concedida à disposição dos veículos é atestada por vários Fig. 32 idem. 195. çosa, em Minas Gerais; ou Barra, na Bahia. destage viajantes, unânimes em afirmar que o brasileiro não dispensava um meio que 48 BARRETO, Paulo acesso Idem. 197. autônomo para locomover-se, o cavalo ou veículo de rodas, ou ainda a liteira, Ficará pertencendo darem gratuitamente os terrenos, que se lhes pedi- a cadeirinha, movida a braços e pernas escravos. Símbolo de posição social e rem para casas, e quintais nos lugares, que para isso se delineado; só de prestígio, contribui para bem definir as hierarquias, porque a casa asso- com a obrigação de que as ditas casas sejam sempre fabricadas na mesma bradada é um valor visual que se impõe sobre as demais, modestos edifícios figura uniforme, pela parte exterior, ainda que na outra parte interior as faça rés-do-chão. E, de sua fachada, pode surgir um veículo (fig. 32). cada um conforme lhe parecer, para que desta sorte se conserve a mesma formosura das Aqui, anda-se de carruagem. Portanto encontramos no meio da fachada 49 VAUT 44-45. uma entrada para carros, dando acesso para vestibulo, que serve ao mes- Depois de terdes determinado as fundações das sobreditas vilas na referi- mo tempo de depósito para aqueles. É ali que avistaremos igualmente a da forma, impondo-lhes os nomes das vilas mais notáveis deste reino, ou cadeirinha elegante da senhora e das moças da casa.49 (fig. 33 e 34). conservando os das referidas freguesias no caso que não sejam bárbaros: elegereis as pessoas, que há de servir os cargos delas, como se acha deter- A partir do processo que nos conduz, nos primórdios do século XIX, à minado pela nossa independência política, alguns novos valores urbanos são incorporados à casa, o que levará o acesso dos veículos a ser Ain- peso da organização patriarcal será o principal condutor para a distri- da por muito tempo será permitida, no entanto, a abertura central na facha- buição hierarquizada dos espaços internos. Atenderá, assim, à separação das da, sendo esse acesso lateral de veículos elegante e sofisticada intervenção funções, ao isolamento e conseqüente preservação da família, uma vez que o estranho ficará afastado dela. Receber, estar, lazer e trabalhar, cuidadosa- mente dispostos, diferenciados. Circulações posicionadas de maneira a faci- litar o controle e a distribuição das funções mais complexas do ponto de vista social e técnico. piso térreo compromete-se com o serviço, armazenamento e contato com o público. se localizam o comércio, o depósito, a oficina e, eventual- mente, o hóspede. Seu reflexo é imediato na fachada, fazendo surgir assim maiores vãos, largas portas e janelas indicando circulação ampla. No centro de sua composição ou apoiado numa das paredes latérais existe um longo corredor conduzindo até o pátio, onde são encontradas as estrebarias e as cocheiras. Nos sobrados magros, as lojas no térreo; nas casas mais abastadas, veículos e animais. Nos fundos, pequena horta e árvores frutíferas das quais a moradia serve-se duplamente, por um lado dos alimentos e, por outro, de agradáveis sombras arrefecendo o calor tropical, já que a cidade não oferece condições de aplacar rigor do sol pela ausência de um adequado paisagismo.50 51 Figs. 33 34 Imagens de A cidade cresce para a periferia, ocupando áreas antes consideradas rurais, Palácio Debret, atestando a Janeiro, onde exis importância social dos meios de agora "mais próximas" do centro, pela melhoria de algumas vias de ligação. nte acesso lateral para Os novos lotes são mais generosos, com jardins frontais, normalmente à los serviço. francesa, e laterais, estes de gosto inglês, permitindo a passagem do veículo para uma edícula aos fundos que o abrigará. A parte posterior do terreno continua a abrigar os quintais com suas árvores frutíferas e sombras refres- cantes sob as quais podem-se degustar as saborosas e odoríferas frutas da terra ou aqui aclimatadas. o carro, em diversas ocasiões, além do status, torna-se equipamento indis- pensável para médias distâncias com um mínimo de conforto. Sob o impacto da Revolução Industrial, as técnicas de construção modifi- cam-se, trazendo equipamentos e meios para uma nova elite urbana brasileira se estabelecer e se destacar refletindo o poder do café, incorporando elemen- tos de vanguarda da cultura européia em terras americanas. Sob o impacto dessas atitudes altera-se a casa, altera-se o lote que agora obedece a essas mu- fig. 34 que notamos no Palácio Itamaraty, no Rio de Janeiro, ou nos solares de Vassouras, no Vale do Paraíba, Estado do Rio (fig. 35). Muitas transformações significativas acontecerão especialmente a partir de 1850, sob impacto da produção cafeeira e do estreitamento das rela- ções culturais com a Europa através da melhoria dos meios de comunicação, como a implantação do paquete mensal para Paris, de tamanha regularidade que, segundo a tradição popular, foi associado ao ciclo feminino.53 52 Fig. 36 e chácaras, danças, refletindo transforma- casa, Durante as décadas seguintes e até a de 50, a ga- Fig situados na periferia dos ções e acomodações da família ragem na casa manterá sua posição discreta e submissa, refletindo a relação nos núcleos urbanos, guardam regras de conforto associadas e da sociedade. com o automóvel, que muito lentamente irá se estreitar (fig. 37). isolam ao espirito de bucolismo do chalé, no Brasil com for- A partir do segundo assistimos a uma imposição do american- corpo te influência neoclássica, e a way-of-life com a conseqüente supervalorização das novidades tecnológicas, casa de filiação eclética são que modificam alguma coisa na casa e melhoram de certa maneira o seu uso. exemplos típicos desse perío- Gradualmente, a sociedade aumenta a valorização concedida ao automóvel do (fig. 36). Ambos deixam li- (fig. 38). Na década de 50 é vencido o preconceito com relação à vres as laterais do lote bus- posição: possuir um carro dá ocorre então a libertação do veículo e da fig. 36 50 Romances de cando localização no centro garagem, especialmente em relação à casa. automóvel, mais do que sim- Azevedo do terreno, expressando um reajuste de solução espacial, visando ples extensão das pernas do brasileiro, é símbolo de sua mobilidade e liber- respectivamente de 1887 e 1890, que retratam com clareza problemas anteriores de ventilação e iluminação, decorrentes dos estreitos dade. Passou, em muitos casos, a ser um complemento sexual. veículo a vida das populações mais carentes em áreas no lotes coloniais. como alcova, extensão da casa em matéria de contatos sexuais, dos mais final do século XIX No fundo teremos as estrebarias, para as quais os veículos entram a partir "superficiais" simples "bolinações") até mesmo à consumação do ato. 51 Obras como A pata da gazela de Alencar, ou dos portões laterais, equipamento cada vez mais indispensável para as cidades póstumas de Brás que aumentam as suas áreas incorporando, como no Rio de Janeiro, re- Cubas Quincas Borba, de Machado de Assis, apresentam giões que a topografia torna distantes. A dinâmica da vida urbana fará entrar elegantes personagens que refletem esta situação. pelas janelas da "casa de pensão" ou do "cortiço" os ruídos inconfundíveis das rodas das patas dos cavalos. Nos romances de José de e de Machado de Assis, observa-se que a pressa tipicamente urbana e as distân- cias, bem como os compromissos, exigem o veículo. Ao lado, ou mesmo em seu interior, teremos a elegância e os hábitos mundanos No final do XIX, a sociedade urbana brasileira desdobra-se: abo- lição, imigração branca, República, diversificação da produção com uma gra- dativa substituição das importações feitas por um crescente segmento de produção industrial. Quando chega o veículo/automóvel, seu alojamento é o mesmo concedido à antiga carruagem, num ângulo do pátio, lá Muitas vezes a atual garagem é uma antiga cocheira. Isolada, será ainda mais submissa, uma vez que expressa um serviço pago pelo dono da casa. E, como o trabalho ainda é um estigma a garagem, envergonhada, Ela pode constituir-se, ainda, num setor da casa, abrigando o veículo embaixo, com uma pequena oficina de apoio. é branco, imi- grante, na maioria das vezes. No andar acima, ligado por escada externa, aposentos para este motorista e família completam a edícula. Refletindo raízes senhoriais não muito distantes, o serviçal e o serviço afastam-se da fig. 3754 55 Fig. 38 A partir do segundo Papai, me empresta o carro ria do consumismo fácil. antigo e simples jardim é sacrificado sob uma 39 Com sociedade valoriza precisando dele pra levar minha garota ao cinema papel do bertura de novos produtos industrializados. Rasga-se um portão e eis o novo garagem Papai, não crie problema. adquirindo futuramente à casa própria Não tenho grana para pagar um motel compartimento da casa: a garagem (fig. 40). na fachada portante quanto os Não sou do tipo que bordel Você precisa me quebrar este galho Os anos 70, com sua crescente febre de consumo, atribuem cada vez Então me empresta o carro maior valor ao automóvel. "A questão social/ industrial/ não permite/ não Papai, me empresta o carro Pra poder tirar um sarro com meu quer/ que eu ande a pé", canta Marcos Valle nos rádios dos veículos. Um automóvel só não é mais suficiente por família. Superlotam-se as ruas, con- Após o golpe militar 52 Trecho da música Papai me gestiona-se o tráfego, faltam garagens, muda a legislação que, entre outras empresta carro, de Rita Lee e de 1964, ocorre uma alterações, atrela o número de vagas oferecidas às unidades ao número de Roberto de Carvalho, gravada expansão creditícia alia- por Rita Lee no CD Rita Lee quartos. A antiga garagem de poucos veículos nos pilotis vai ocupar pavi- Acústico, 1998. da a uma expansão em mentos inteiros, às vezes mais de um, suspensos ou entrando pelo subsolo. 53 Trecho da música igual sentido da indús- de gravada pelo autor Mais do que sinônimo de status, como nos anos 50, a garagem é uma no LP tria automobilística. necessidade cada vez mais cara, pois associa-se a ela o ideal de segurança, veículo então é consi- sendo equipada nos anos com as últimas novidades elétricas e eletrôni- derado como um habi- cas contra furtos. tante da casa, o mem- bro mecanizado da fa- mília, um símbolo de poder, e felicidade. A garagem, assim, Passa para a frente da casa, antes mesmo da apreensão visual do espaço doméstico, adquirindo a importância do oratório da casa colonial (fig. 39). É ornamen- tada, requisitada, mágica. A juventude, em seu aprendizado de mundo, reúne-se nela, aprendendo os rudimentos do motor e do amor. Dentro do carro, sobre o trevo, a cem por hora Oh! Meu amor! Só tens agora os carinhos do A garagem, em certos casos, mostra um partido que comanda o restante da casa, colocando carro como objeto de adoração É muitas vezes pela porta da garagem que o chefe da família entra no lar. Deve ser mantida 1 limpa, muitas vezes com pôsteres coloridos mostrando cenas americanas ou uma paisagem européia. Simplificada, em muitos casos torna-se uma cober- tura leve sob a qual estaciona-se o veículo. É a solução adotada por muitas casas mais modestas de cujos moradores são atingidos pela eufo- fig. 3957 56 56 Dizeres que Fig. 40 Mesmo em residências Os muros elevam-se nas casas e as portarias e entradas de edifícios gra- 5 encontravam- anteriores importância concedida ao arrasa-se deiam-se, afastando o automóvel e a garagem da visão do transeunte. Este antigos capach entrada das jardim, abre-se um portão e implanta-se a garagem só pode admirar as fantásticas "máquinas" importadas novamente nos anos SETOR 57 Trecho da protegida pelos novos 90, após medidas do governo Collor, que relegou os carros nacionais à Ivan Lins Vito manufaturados de gravada por condição de carroças, em movimento ou parados nos gigantescos engar- Ivan Lins rafamentos "Eu fumo e tusso é fumaça de mesmo nos Seja bem-vindo, mas limpe os pés. 56 fins de semana ou nos feriados em que tentam da cidade grande para reatar ou estabelecer contato com valores perdidos. Entraremos no espaço do como uma visita e encontraremos, es- perando para nos receber, o setor social em ordem, limpo, com as coisas em Bem posso ver seu devido lugar, como se ali não existisse o calor da vida... 54 Trecho da música Papagaio teu menino nessa idade do futuro, de Alceu respirando o que a cidade gravada pelo autor no LP Alceu Arrumei a sala Valença vivo, vez você trouxe ele por cá já fiz tua mala Que riso bom sorriu 55 Trecho da música Cumpadre pus no corredor. Quando viu a desabar.. meu, dos compositores Eu minha vida... intérpretes Sá, Rodrix e Cumpadre meu gravada no bota a tropa na estrada Rodrix Guarabira, mulher, filho e empregada Desde os primeiros exemplares de arquitetura residencial construídos no vem pra longe do que já morreu... 55 Brasil, ainda no século este setor é tratado com rigoroso ritual formal. É a área que, na ausência dos terreiros de engenho, das varandas rurais ou urbanas ou jardins, faz a transição entre o (mundo) e-o interior (doméstico). Assim deve estar organizado, refletindo para o visitante o as- seio, as posses e a disciplina da Este espaço varia em tamanho, no caso de estar restrito a um único apo- sento, ou em número de cômodos, nos séculos quando o re- ceber institucionaliza-se e formaliza-se, com a valorização dos núcleos ur- banos e do papel da mulher na sociedade, responsável direta por intrínsecas modificações no espaço de morar. Da única sala presente nos primeiros exemplares, podemos chegar a duas unidades, o e o comer. ampliando-se à medida que invadimos o sécu- lo XVIII e encontramos salas de espera, de jantar, escritórios, salas de música, bibliotecas e até salões de baile. No século XIX, é comum encontrarmos três salas contíguas no pavimento superior dos sobrados neoclássicos, fronteiras à rua, com atividades de rece- ber, dançar e servir refeições. À medida que a cidade valoriza-se e chegam produtos industrializados'em profusão, estreitam-se os laços com a Europa civilizada, aumentam os apo-58 59 sentos da área social, crescendo também o mobiliário e requintando-se a 5 1 decoração. Temos diversas salas, com destinos variados, dispostas pelas alas dos palacetes burgueses republicanos. A S A L A o século XX vai encontrar esta realidade e, à sua maneira, adota-a nas re- sidências nobres ou da classe média em ascensão. Mesmo nos primeiros edi- Mas as pessoas na sala de jantar fícios de apartamentos, esta prática da utilização de vários aposentos para o estão ocupadas em e morrer... 58 setor social mantém-se quase A sala como centro do setor social foi alvo de transformações gradati- Só na segunda metade do século XX, com a influência americana e a vas no decorrer dos séculos, não perdendo, porém, sua característica prin- obsessão pela racionalização do espaço, vamos encontrar uma compactação de muitos desses aposentos chegando-se quase à sala única dos cipal: o receber, mesmo que agregada, com o correr do tempo, ao jantar. No período colonial era principalmente o salão de visitas, localizado sem- tempos, presente nos apartamentos da classe média, ainda mantendo parte daquele ritual ancestral de receber. pre à frente e, quando no pavimento superior, era normalmente servido por uma exclusiva circulação, uma escada muitas vezes entalada numa 41 caixa, cujo acesso era comandado por uma porta de vão variável. No sécu- lo XVII era mais reduzida, alargando-se consideravelmente no século XVIII Segundo a descrição de alguns viajantes e, em particular, o engenheiro L. L. Vauthier, lá encontramos o melhor mobiliário da casa, os utensílios mais aparatosos, o único espaço doméstico onde se admitia o visitante. Entremos em uma dessas casas. É fácil. A porta da rua está aberta. No vestibulo, por onde se entra, encontra-se um negro velho, trançando um chapéu de palha. Queremos falar ao dono da casa. Ele nos conduz a uma escada reta, iluminada pelo 41 As alto, e nos precede. Em cima, a escada é fechada por uma porta vazada. gelosias muxarabis negro toca a sineta. Uma figura de mulher negra ou fortemente bronzeada elementos em breve aparece entre as grades. Depois de algumas palavras trocadas que guarnecian ou janelas com o introdutor, ela vai ver se o senhor está em casa. Passos de criança atra- coloniais primeiras décadas XIX. vessam o corredor; ouve-se farfalhar de um vestido de mulher e, depois de Possuem e associam ivacidade às uma espera mais ou menos longa, a porta se abre, enfim. Conduzem-nos à condições e sala da frente, onde o dono da casa nos espera com todo o ventilação a climas Completava-a um oratório que variava em acabamento e dimensões se- 58 Trecho Panis et gundo as posses, onde celebrava-se uma das principais atividades femini- Veloso e Gilberto gravada no nas: a oração. Janelas sacadas, quase sempre guarnecidas de rótulas e mu- CD Mutante Minha história, 1994. xarabis, permitiam ventilação e vista para exterior, mantendo a privaci- 59 cit., dade (fig. 41). p. 39.60 61 Fig 42 balcão treliçado No tempo do rei velho, como se diz no Fig. 44 com muxarabis. restringia-se Brasil para designar o que chamamos Le Bon contatos Fig. 43 A igreja, através mundo das era um Vieux Temps, as fachadas, em vez de sacadas. dos poucos espaços de traziam varandas, galerias de madeira, como encontro, de formalização das relações sociais. se vêem ainda hoje em algumas cidades do sul da França. Somente essas galerias, que são entre nós inteiramente abertas, eram, no Brasil, fechadas em toda a altura por meio de 61 TOLLENARE painéis com treliças, que se abriam como pos- civil p. 41. fig. 42 tigos ou moviam-se sobre dobradiças coloca- 62 Os ramicelos 60 op. cit. p. das na parte superior (fig. 42). As curiosas filhas de Eva podiam, assim, pelos rebuscados des 63. diversas nas interstícios da treliça, ou entreabrindo ligeiramente uma das folhas, examinar janelas, de vis decorativo, con o transeunte, sem que este pudesse, através da estreita abertura, admirar, coloridos senão em imaginação, os belos olhos negros atentamente fixados sobre ele fig 44 e as esplêndidas espáduas, cuja rica carnação a camisa deco- tada deixa expandir-se ao 60 anunciava mais gosto; percebi por terra um bordado que parecia ter sido ali atirado com A sala, no período colonial, era o espaço Assim, passamos pelo conjunto de salas de receber da destinado a os estranhos, ato de rece- cal, observamos a pequena sala social da morada urbana colonial, ou mesmo ber em casa, envolto por grande cerimonial, o grande salão do sobrado nobre setecentista, com seu mobiliário mais faus- quase ritualístico, porque os encontros da- toso, tetos estucados, além de alfaias importadas. Encontramos o mobiliário vam-se principalmente no domínio do públi- tosco, de formas rígidas dos primeiros tempos até as peças de gosto barroco, CO, do coletivo, na igreja, na praça ou na câ- muitas delas importadas, produto do fausto do ciclo do ouro. Prenuncia-se mara, justificando o papel das corporações de a implantação deste setor social que irá marcar o século XIX (fig. 45). ofício, ordens terceiras e irmandades, estas duas últimas muito importantes como ante- Com a Família Real altera-se o comportamento social. pois o receber é for- cedentes diretas de associações contempo- talecido e incentivado pela corte, gradativamente obrigando a uma mudança râneas (figs. 43 e 44). algo indesejada, mas necessária, nos arraigados hábitos patriarcais. Quando um senhor de engenho visita ou- A nova casa palaciana, ligada aos fidalgos imigrantes, introduz grandes tro, as senhoras não aparecem. dois salões de festas, papéis franceses nas paredes, parquets no piso, rodapés dias em casa de um homem muito pra- altos, bandeiras com de delicados desenhos, ferragens elegantes zenteiro e que me cumulava de amabilidades, e importadas, manufaturados importados da Abertura dos Portos e não vi a sua família nem no salão nem à (fig. 46). A casa popular ou média do primeiro reinado também acompanha, mesa. Doutra vez após o jantar, ino- conforme suas posses, todo esse novo vocabulário espacial proposto, pinadamente, à casa de um outro, cujo luxo sempre coerente com a real forma de vida de seus moradores. fig. 4362 63 Fig. 45 As funções restritas da Vale do Paraíba, com a ascensão do ciclo cafeeiro, também incorpora Fig contrastando sala colonial refletiam-se no seu lux acabamento dos reduzido simplificado esse repertório, principalmente em objetos ou peças "transportáveis", crian- oit tistas, quando vida mais intensa do antagonismo entre o requinte dos interiores e a técnica rudimentar de construção, muitas vezes em taipa de pilão, adobe ou taipa de Aqui também encontramos salas variadas para o social, que pode dividir-se entre o receber, ouvir música ou até fumar em ambiente adequado (fig 47). A partir da segunda metade do século observa-se sensível modifi- cação na relação da sala com o exterior, decorrente tanto das mudanças 63 Taipa de taipa de pilão ou adobe são materiais ou sociais como da adequação ao novo lote. A sala principal, antes fechada, 65 Sobra & ambos, vol. p. 783 técnicas utilizadas com muita abre-se para o espaço externo através de amplas e arejadas janelas, articu- fig. 46 na arquitetura 66 pintura "fingida" A matéria-prima básica lando-se com o alpendre-corredor lateral que permite comunicação direta ut desde Renascim é o barro, misturado à água e CO com nome as fibras vegetais, socado em com o jardim. Em nossa abordagem cronológica ainda podemos incluir a modificação da tro l'oeil, aquela que formas extensas (pilão), casa no final do século XIX, quando chegamos ao apogeu das importações e pro um ilusão ótica atra amassado em tramas de de dos notáveis de madeira (mão) ou disposto em blocos crus (adobe) Estávamos na sala de visitas, que dava justamente para a onde encontramos na área social, um modelo europeu transposto para o Brasil. pe trocáramos o beijo Uma janela aberta deixava entrar vento, que chalé é um excelente exemplo com seus lambrequins de madeira ou ferro, 64 Machado de ASSIS póstumas de Brás sacudia afrouxadamente as cortinas... 64 nos beirais, seu porão elevado, o ferro fundido em balcões, pilares e vigotas, 92. com seu an de clima temperado, trazendo a visão romântica de espaços ideais, bucólicos, para onde nossa imaginação é levada, desviando-se inteira- mente dos reais problemas existentes nas três últimas décadas desse século. A segunda metade do século XIX marca em nossa vida, entre outras ten- dências dignas de estudo no sentido de procurarmos parecer a mais possível, nas cidades, europeus, o desprezo por árvores, plantas e frutas asiáticas e africanas aqui já das quais muitos brasileiros foram se envergo- nhando Envergonhando-se da jaca, da manga, da fruta-pão, do dendê, do próprio saboreado às A própria pintura de alguns interiores sugeria paisagens ideais e distantes no tempo e no espaço, e encontramos cabanas rústicas ao sopé de montanhas nevadas, vulcões em erupção, um mundo de sonhos, um mundo ideal. A sala, ou salão, tanto dos chalés quanto dos grandes sobra- dos, que cada vez mais se fazem presentes, mostra o requinte das mais finas mansões européias. Fala-se come-se à francesa, veste-se à francesa, e sarau, com suas cadernetas de danças, deve prosseguir, povoando o espaço da festa com senhoritas de anquinhas, cinturas finas, longas madeixas64 65 47 Sala de fumar da ondulando sobre os-brancos ombros nus, Chácara da Hera, em Vassouras, e conjuntos de chalés procurando, numa a identificação com a ideo- Fig. 48 ferrovia provavelmente destinada a com seus vistosos vestidos deixando sur- logia de espaço dominante. A área social, porém, tão valorizada nos sobra- novos reuniões masculinas de negócios. gir vagamente as formas do colo e con- abrigand dos e residências nobres, vai aqui acontecer praticamente para constar, pois pobre, torno dos quadris. Enquanto isso, os a rua e o jardim são os principais pontos de integração. A família vai começar baratos rapazes, também com suas mangas e a colocar suas cadeiras nas calçadas, conversar por sobre as cercas dos quin- cobra lenços bordados, olhos suplicantes, per- tais, almoçar sob os floridos caramanchões, enquanto as salas vão perma- manecem aguardando um lânguido olhar necer com seu mobiliário coberto por lençóis, aguardando a visita de ceri- furtivo, ou um ligeiro toque de mãos, ou o dia especial da festa de casamento. escravo é "liberto" e as 67 José mo "um simples pouso de borboletas Senhora. p. casas sofrem sensíveis perdas no seu trabalho e manutenção cotidianos. Não ariscas", que será motivo para futuras poesias. 68 BARRETO, op. cit. há a farta mão-de-obra disponível movimentando, como energia elétrica, p. 108. pontos fundamentais da máquina de habitar. Empregados são contratados, Deu algumas voltas pela saleta, percorreu com os olhos o aposento re- quando a renda permite; porém, muitos sobrados e grandes casarões impe- parando no papel, nos móveis e adereços, como se nunca os tivesse exami- riais vão sendo abandonados, transformados em escolas, asilos, ou mesmo nado, ou indagasse se nada Passou depois a observar atentamente "loteados", ocupados por diversas famílias de poucas posses, coexistindo no as figurinhas de porcelana e outras quinquilharias que havia sobre os conso- mesmo cortiço ou los, tirando-as de seu lugar e mudando-lhes a posição. encaminhou-se ao piano que é para as senhoras como o charuto para os homens. 67 A República vai encontrar a classe alta procurando sair do urbano, com suas ruas estreitas e sujas, sem infra-estrutura básica. Novos Mas a cidade cresce, a ferrovia alonga seus tentáculos e povoa áreas-antes palacetes são construídos na periferia do primitivo núcleo já comprometido. desconhecidas: os São Paulo e Rio de Janeiro, na primeira década do século XX, são excelentes exemplos dessa situação e, no antigo Distrito Federal, vamos observar, inclu- Desde anos que ele a habitava e gostava da casa que ficava trepada sobre sive, a intencional valorização de áreas de praia da cidade, para onde a classe uma colina, olhando a janela de seu quarto para uma ampla extensão edifi- média em ascensão se dirige, ocupando as praias do Russel, Flamengo e cada que ia da Piedade a Todos os Santos. Vistos assim do alto, os subúrbios têm a sua graça. As casas pequeninas, pintadas de azul, de branco, de oca, engastadas nas comas verdes-negras das mangueiras, tendo de permeio, aqui e ali, um coqueiro ou uma palmeira, alta e soberba, fazem a vista boa, e a falta de percepção do desenho das ruas no panorama um sabor de confusão democrática, de solidariedade perfeita entre as gentes que as habitam; e trem minúsculo, rápido, atravessa tudo aquilo, dobrando à esquerda, inclinando-se para a direita; muito flexível nas suas grandes vérte- bras de carros, como uma cobra entre pedrouços (fig. 48). 68 Os modelos considerados nobres são reproduzidos e interpretados. En- contramos nossas casas populares e vilas operárias com suas casas ecléticas66 67 Fig 49 Urbanização da área Botafogo, onde vai ser executada uma avenida, a Beira-Mar, com grandes e status. Seus espaços, então, são bem Fi Aumenta o núme do de Janeiro requintados jardins e praças (fig. 49). resolvidos com plantas de áreas fle- osentos a altura da com a construção da Av. Beira- formulação Mar seus jardins, durante a xíveis e cuidadosamente integradas ao torna-se complex administração acumulam peças Na véspera tinhamos passado a noite no Flamengo.. E não tardou que se restante da residência, arranjos em re- outros bens Aqui, o possui afastassem da janela, onde eu fiquei olhando o mar, pensativo. 69 lação às circulações, às escadarias, aos status, ascensão às varandas. As salas co- ecletismo está a pleno vapor, não apenas na preocupação formal dos mandam a composição do setor de re- detalhes da fachada como também no mobiliário e em peças de uso, em que da casa. Espaços multifacetados encontramos o art fazendo-se presente, com suas curvas femini- pela execução de seus traçados, elas 69 Machado de póstumas de nas e sensuais, decorando e criando um novo espaço. Na planta percebemos revelam grande preocupação pelas Cubas Casmurro, p. uma recodificação de valores, pois o escravo não mais existe e o fluxo da re- características espaciais e 71 admite sidência deve ser reestruturado. con de compor "de Aumentam também em número, 70 Art foi um estilo par procurando ins surgido no final do século Ainda encontramos grandes salões, porém as circulações vão diminuir em atingindo quantidades surpreenden- ob no meio circundante como uma tentativa de ser entorno. Um o racionalismo da era da extensão e a cozinha vem para próximo da sala de jantar, valorizada agora tes, que acabam "batizadas" por co- ma expoentes desse máquina da engenharia com o per em arquitetura apreço por uma bela forma, como espaço social. Não devemos nos esquecer de uma certa insistência na res ou estilos que as compõem, nem o Frank Lloyd defendido pela Escola de Belas- Propagou-se por toda a utilização de modelos de mais de um pavimento, principalmente nas classes sempre com uso definido, mas su- Europa, adquirindo nomes média e alta, criando um fluxo ou filtro vertical, e principalmente conferindo gerindo a qualidade pela quantidade regionais. (fig. 50). Cada residência é individualizada e, mesmo com um eventual vocabu- lário repetido, cada modelo é diferen- fig. 50 te. Cada cômodo também procura individualizar-se, apresentando cará- ter particular, aproximando-se das propostas do A habitação popular, no entanto, persiste com seus valores, alterando muito pouco o repertório na parte social. A década de vinte entra trazendo consigo a discussão formal e estética de um mundo em ebulição. As transformações por que passa a moderna ar- quitetura mundial chegam timidamente ao Brasil, recebidas apenas por ele- mentos da elite. Se por um lado essas idéias têm o seu eco contido é bem verdade por outro buscam-se fontes de inspiração de caráter con- ceitualmente menos cosmopolitas e mais nacionalistas, americanas por extensão. As casas apalacetadas francesas, remanesgentes ou persistentes da belle époque, comecam a perder terreno para um movimento que valoriza arquitetura68 69 Fig. 51 gosto neocolonial A velha casa tradicional, investigam materiais, sociedade, clima e, em algumas ocasiões, transformam Fig. 52 não se restringiu apenas a do Solar mas também aos com seus beirais, arcos abati- essas informações em bons projetos. do movime interiores respectivo um projeto mobiliário, resgatando formas dos, varandas, elementos da Solar Monjope, construído por José Mariano Filho nos anos vinte, é um adequação do século XVIII. arquitetura religiosa, enfim, o excelente exemplo da apropriação desses valores. A própria setorização da referências com uma neocolonial, começa a ganhar casa nos remete ao modelo colonial, porém nessa mesma planta já encon- um bosque Lagoa consistência, invade o curso tramos a busca do conforto numa completa (quarto, de arquitetura e é recebida de saleta, vestiário, banheiro, varanda) e uma tentativa de racionalizar os braços abertos pela grande serviços pela aproximação de setores interdependentes. Tudo sem o burguesia que começa a con- prazer de morar, de desfrutar uma varanda-alpendre ou um frondoso pomar 72 SANTOS, Paulo sumir o novo estilo em suas entre a casa e a lagoa (fig. 52). Quatro séculos de arquitetura, 1981, p. 102. mansões, escolas, hospitais, clubes, igrejas. Aproveita-se, A casa brasileira não poderá ser senão a nossa velha casa patriarcal, com inclusive, uma importante in- o largo de telhões de faiança, os alpendres floridos, as grandes salas arte brasileira, fluência de revistas america- quadrangulares, os velhos oratórios onde nossas mães fizeram suas súplicas, do Grande nas, que nos apresentam ver- os grandes sofás de alvenaria sob a ramada das está coletad margem do são própria deste período: o Mission Style ou "california- publicada no" (fig. 21). Algumas alte- rações vamos encontrar nes- sas plantas em relação às an- teriores: a valorização dos espaços internos, um mobiliário requintado, re- descobrindo modelos do século XVIII, grandes varandas em arcos, terraços, pérgulas em alguns modelos, pátios internos (fig. 51). A área social conti- nuará no térreo, já com banheiro social, enquanto o setor íntimo irá para o pavimento superior e o serviço encontrará lugar junto ao quintal, que abriga N o alojamento dos empregados. No terraço diante da lagoa Rodrigo de Freitas, junto da casa admirável que debruça sobre a cenografia espetacular de uma das mais impres- sionantes paisagens do Rio, crepitava, enorme, a tradicional fogueira de S. João, cujas rubras línguas de labaredas lambiam, coleantes, o an puro da noite linda... 72 Diferente do pensamento de alguns autores, o movimento não foi uma simples busca formal. Encontramos uma sucessão de textos e pesquisas que fig. 5270 71 Figs. 53A B Em algumas Enfim, ser moderno, A nossa arquitetura deve ser apenas racional, deve basear-se residências brasileiras, a partir dos anos foi adotado o vinte, significava prezar o nacionalis- apenas na lógica, e esta lógica devemos opô-la aos que estão gosto que, de mo e a tradição e, apesar das pro- procurando por força limitar na construção algum alguma forma, perpetuava a influência européia ou "bom postas "modernizadoras" encontra- do proprietário. das neste período, esse vocabulário A casa, então, geometriza-se Espaço e equipamentos tam ganha significado e se expande por bém são geometrizados. Warchavchik inova a plástica arquite- toda a década, chegando mesmo tônica com seus volumes. Tais propostas encontram certa resis- aos anos quarenta, já com versão tência para espaço doméstico, uma vez que a família julga-se fig. A Fig Interior da Casa popular, recebendo reflexos da então moderna, porém nunca ao ponto de adotar, abruptamente, modificações projetada por Warch no início dos emergente indústria cinematográfica não assimiladas pelo seu sagrado e contido universo. Essas propostas com um novo 74 Robert desen geométrico para arquiteto (1886-1945) americana. Era o imaginário coletivo racionais abrem a sala com vãos guarnecidos por esquadrias de vidro e ferro Neste espaço cujas obras, através de revistas que resgatava seus valores do fundo importados. Diante do tórrido sol tropical nas janelas das salas, estas são pro- mode a pesada cortina especializadas, exerceram pode em espaço esc grande influência na arquitetura da memória, contrapondo-se ao tegidas com pesadas cortinas de tecido, gerando, por vezes, um ambiente produzida no Brasil partir de ecletismo vigente. sufocante (fig. 54). Nas diversas publicações de arqui- Alguns artigos são publicados em jornais e revistas. Reforça-se a polêmi- tetura existentes nos anos vinte tam- ca, porém o neocolonialismo tem o domínio do gosto vigente, mantendo seu fig. B bém percebemos, pelo lado dos mais prestígio praticamente "europeizados" ainda alheios a qualquer manifestação nacionalista, o gosto Sob o pretexto irrisório de que ela é mais barata do que todas as outras, dos bungalows e residências "normandas" profusamente adotadas, con- 75 festo do arquiteto que lhe fazem concorrência, os jovens arquitetos, que por comodismo abraçaram o estilo radica no Brasil Gregory ferindo sempre um an "erudito" ao seu proprietário, diferente das posturas procuram por todos os meios empurrá-los ao governo... 76 chik, publicado em 1925 grande As plantas, como definição de espaço, pra- nos caminhos da ticamente perpetuam os valores então adotados. Apenas alguns novos ele- No final dos anos 20 já percebemos uma novidade, a sensação americana moderna. "Arte Revist n. 5. mentos decorativos vão estar presentes: uma lareira, um tapete importado, que propõe mudar a cabeça e o comportamento da classe média sedenta de 76 FILHO, uma luminária européia, ou mesmo uma paisagem romântica presente num novidades e lucro: um novo investimento que é oferecido mais como negó- Marg do problema arqui nacional, 1943 tapete ou quadro nas paredes, além da falsa estrutura de madeira das cio do que uma nova opção de espaço para habitar o sky-scraper, arra- p. 15 fachadas (fig. 53A e B). nha-céu no Brasil, que surge em São Paulo e no Rio de Janeiro e começa a Quase simultaneamente esboça-se uma corrente modernista numa linha apresentar suas agulhas nas grandes capitais, espalhando-se por cidades racional, não comprometida com o referencial humano, não visando ao res- menores, trazendo a sensação de progresso. A versão popular, gate de escala exceto a da razão, do frio domínio da lógica, e essencialmente poucas unidades, também se faz presente com o mesmo objetivo: o lucro. mecanicista, endeusando a o espaço limpo, asséptico, à ocupa seu espaço nos bairros periféricos. visto como o arauto da sofisticada elegância do futuro. Os Há restrições: "mora-se em cortiços verticais", alguns comentam; "é escritos de Le Corbusier e de outros arquitetos começam a chegar através das mesmo que favela", dizem outros... Mas é lucrativo, pois o proprietário de revistas avidamente lidas pelos jovens arquitetos fundamentando a corrente um tradicional palacete, talvez até em dificuldades econômicas, pode ganhar moderna brasileira, em oposição ao ensino acadêmico ministrado pela Escola sua unidade habitacional no andar escolhido (bem alto, de preferência) e, de Belas-Artes, à qual era agregado curso de arquitetura. além disso, conseguir dois ou mais apartamentos para renda. Os negócios72 73 Fig. 55 Edificio de 55 são realizados, e já encon- acompanhando a elite, que irá fortalecer esse novo voca- apartamentos, comum a a partir dos anos cortando o tramos a década de 30 com bulário, essa nova moda de horizonte das principais cidades suas habitações verticais A de 30 vai apresentar uma mudança considerável multifamiliares cortando a no panorama político-econômico da sociedade, introduzindo Fig. 56 Uma mesma setorização num programa linha do horizonte novos valores que, mesmo não sendo verdadeiros, tentam aparentemente onde apenas "modernidade" do de nossas cidades tropicais. demonstrar um grupo consumidor voltado para o futuro. É o elevador faz ligação e permite "gigante adormecido que se no dizer dos políticos da fig. 57 o acesso essas casas Era natural que ho- época. As classes acreditam, e todos são compradores em mens quisessem construir o potencial dos novos utensílios, dos novos edifícios, represen- em São tantes de uma burguesia não mais ligada à terra, mas a proces- Foi uma luta... maior edi- SOS industriais em aparente e franca ascensão. fício da América do Sul. As habitações abastadas já apresentam seu vocabulário mo- Vejam bem: não só do Bra- derno. Ocasionalmente, no final da década, já notamos a ga- 77 Olhai os sil, mas da A-mé-ri-ca do ragem, o local para o veículo importado que sorrateiramente lirios do campo. p. 103. fig. 58 Sul. 77 começa a ocupar os ideais de consumo do homem da época. 78 Segundo Paulo F Santos, alguns profissionais alemães Os valores sociais permanecem quase os mesmos: o setor social, formal, Fig foram fundamentais para o E as plantas? Não encontramos nenhuma modificação substancial em re- desenvolvimento do concreto destinado às visitas, com todo o rebuscamento decorativo e mobiliário à popul armado no Brasil: Hennebique e lação às utilizadas nas residências de então. Podemos mesmo dizer que en- européia, hábitos franceses de receber e, não raro, a jovem senhorita, talvez Riedlinger, em cujo escritório ingressou Baungart, responsável contramos casas empilhadas com o mesmo organograma, a mesma postura normalista, declame um dos clássicos franceses e toque algo ao piano para por algumas obras importantes e como o patriarcal e escravocrata, apenas dispostas umas sobre as outras, e não lado os convidados. serviço continua ainda com o mesmo an senhorial, A Noite o prédio do a lado, como era tradicional, necessitando agora da ajuda do modes op. p. 87 modificado, às vezes, por uma governanta. Os hábitos americanos, tão co- jardins. elevador (figs. 55 e 56). 79 muns após a Segunda Guerra, ainda estão embrionários, penetrando via ci- op. cit. concreto armado vai comecar a ser valorizado por calcu- nema, influenciando subliminarmente a opinião listas alemães radicados no principalmente após a Pri- E os subúrbios? Continuam em franca efervescência ao longo das fer- meira Guerra, com propostas de vencer grandes com seus casarões assobradados, residências "achalezadas", peque- vãos e grandes Os edifícios Martinelli, em São Paulo, nos Já encontramos regiões em que a classe média, afastada de e A Noite, no Rio de Janeiro, ilustram significativamente este áreas onde a especulação começou a os imóveis, constrói suas re- período. sidências "missões espanholas" (figs. 57 e 58) ou Não en- contramos garagens, mas temos grandes quintais, árvores frutíferas, jardins, Operários passavam com carrinhos de mão cheios de ar- ruas arborizadas. As varandas sempre presentes, onde as jovens, ao da gamassa, despejavam-nos sobre uma rede de finas vigas de tarde ou nas tardes de domingo, flertam, disfarçadamente, com um séquito ferro, que pareciam nervos simétricos daquele 79 de admiradores, incansáveis nos passeios pelas ruas. Casa simples, porém hospitaleira. Vizinhança amistosa, sempre pronta a colaborar ou reavivar rixa Os interiores dos melhores apartamentos oferecem o mes- antiga. As vilas, que já encontrávamos no princípio do século, ganham força fig. mo luxo das grandes casas e, mais uma vez, é a classe média, e povoam as ruas suburbanas, diferentes das vilas operárias, criadas ou soli-74 75 59 rádio passa a ser o citadas pelas fábricas. São meio de ligação com o mundo franceses, já quase tradicionais. A moradia também recebe essas influências, Fig. 60 saudosos fins de tomar-se ponto de vilas populares de casas principalmente quanto ao seu funcionamento: era a casa patriarcal procu- mais distantes, convergência das atenções da de fato, em principalmente após os miúdas com pouca testa- rando ser a máquina americana utilitária, fenômeno sem respaldo necessário locais das anos primeiramente nas grandes ou em salas, depois nas copas. Por ele da e exíguo terreno, po- para persistir. Ficamos restritos a uma sala ligada diretamente à cozinha, ou antos de nossa chegam as noticias rém com seu espaço cole- "verdadeiras" mundo a jardins de inverno; mas consagra-se, principalmente, o edifício de aparta- através das tivo, sempre aproveitado mentos. Nos grandes centros, o piano na sala vai ser substituído pela radiovi- pelos compadres nos jo- trola e pelos discos de 78 rotações, que começam a trazer para o Brasil a músi- gos de carta, ou pelas ca norte-americana. Podemos até afirmar que a década de 40, principalmente fig. 59 madres nos eternos vai- o pós-guerra, foi muito mais uma preparação, uma transição, para a verdadeira véns e mexericos. Salas simples, pouca mobília, porém o rádio já começa a revolução do que as duas décadas posteriores iriam apresentar. despontar como companheiro inseparável, em torno do qual toda a família 81 do arquiteto Os edifícios de apartamentos já têm sua posição Mesmo em concediac Hugo Segawa, se reúne para ouvir as novas, nem sempre agradáveis: a decretação do Estado publicada revista Projeto n. áreas nobres, em bairros de elite, já encontramos sua presença alterando o 104, 80 da música Gente humilde, de Chico Buarque, Novo, a Segunda Guerra Mundial e outras notícias que chegam diretamente tradicional perfil das casas existentes. No Rio de Janeiro, encontramos um Garoto Vinicius de Moraes, aos lares mais rapidamente que antes (fig. 59). gravada por Chico Buarque no excelente exemplo de edifícios de apartamentos no Parque Guinle, projeta- arte de Chico dos por Lúcio Costa, inclusive adotando o modelo duplex, visando a uma São casas simples com cadeiras na classe de maior poder aquisitivo 81 (fig. 25). e na fachada escrito em cima que é um lar. Pela varanda flores tristes e baldias como a alegria que não tem onde encostar. 80 (fig. 60) A evolução dos acontecimentos do final dos anos 30 apresenta um Brasil caminhando em direção aos países do eixo de nítida inspi- ração fascista. A própria arquitetura "oficial" gerenciada pelo Estado, repre- sentada pelos edifícios ministeriais construídos no Rio de Janeiro, como o Ministério da Fazenda, do Trabalho, da Guerra e da Educação, demonstra o caráter monumental de um Estado todo-poderoso, paternal, onipresente, representante de um governo autoritário. Os fatos se alteram; pressões e manobras internacionais, favores, dívidas e um turbilhão de acontecimentos desviam a rota original e rompem o na- moro Brasil-Europa, colocando-nos de flerte com capital Seria o início de um duradouro romance cuja relação de dominação ainda permanece segundo seus padrões iniciais, sem previsão para encerramento. Os anos 40 vão encontrar a sociedade brasileira verdadeiramente fascina- fig. 60 da pelo american-way-of-life, abandonando, em grande parte, seus hábitos76 77 61 Interiores dos anos 50 Os conjuntos habitacionais também uti- onde predomina mobiliário caria um verdadeiro compromisso, pois o pretendente, tipo forma lizam o edifício para camadas mais pobres da na sala de estar, estaria a casa. curvilinea policromia. população, substituindo as casas pelos apar- Grandes conjuntos habitacionais são produzidos, al- tamentos, alterando sensivelmente os hábitos guns revolucionários como projeto, comprometidos, no dos usuários. Estes, em alguns casos, voltam entanto, pelo Citemos o exemplo do conjunto Men- ao local de origem ou se reúnem nas ruas, em des de Morais, no Pedregulho, Rio de Janeiro, do arqui- festas, promovidas pelos moradores, reviven- teto Affonso Eduardo Reidy. Procurando interpretar mo- do tradições arraigadas da cultura delos estrangeiros, ele propôs razoável solução funcional 82 estilo de mobiliário inglês do século XVIII, para abrigar funcionários de baixa renda da prefeitura, reproduzido industrialmente no Anos 50. país volta à normalidade de- Brasil nos anos 50, com grande não levada a bom termo por falta de maior ajustamento aceitação popular. mocrática. Pluripartidarismo. diretas social (fig. 62). Trata-se de uma unidade de vizinhança, 83 tipo de móvel com legítimas. Vargas de novo no poder, agora eleito. A televisão é lançada no constituindo-se de apartamentos simples e duplex, esco- prateleiras gavetas. mercado nacional, importada, para poucos, ainda sem o poder das décadas la, creche, jardim de infância, mercado, posto médico, quando vai arrebanhar milhões de espectadores num efeito lavanderia, além de equipamentos desportivos como catártico. A juventude internacional, principalmente a americana, debate-se quadras e piscina. Apesar das constantes observações fig. 62 tentando a malha estreita dos costumes através do rock-and-roll, sobre as pesquisas preliminares, estas não foram sufi- do cinema e da indumentária. No Brasil, efervescência política nacionalista. cientes para consolidar a.utopia modernista de "arquite- Grandes campanhas mobilizam a opinião pública: Petrobras, Eletrobras, tura ou projeto foi comprometido pelo remessa de lucros, os debates no Clube Militar. uso, gerando construções hoje ociosas ou destinadas a 62 Nossas habitações procuram novo caminho quanto ao aspecto formal e ao finalidades diferentes da original, com prejuízo inclusive da segurança de Morais gosto moderno, com fachadas retilíneas, formas geométricas simples, janelas apresen seus de correr e principalmente no final da década, a garagem começa a com- Carmen a engenheira responsável pelo cálculo, co-autora in- baixa por este novo vocabulário. As grandes casas são verdadeiras mansões telectual e viúva do autor do projeto, acusa o descaso do poder público res- 84 Algu "hollywoodianas", com grande hall, e um sofisticado living-room com mo- geração ponsável por sua manutenção, opinião compartilhada por muitos dos antigos Corbusie biliário requintado, grandes jogos de sofás ou summiers pés-de-palito, luminá- de que moradores. inclusive rias, uma sala de jantar com sua grande mesa e seus outros acompanhantes, do Ainda no Rio de Janeiro, a Zona Sul da cidade, principalmente Copa- em estilo chippendale bar iluminado, a cristaleira, a enfim, toda cabana, torna-se um verdadeiro sonho para aqueles que procuram status, 85 Este a moda ditada pelas revistas estrangeiras, ou reproduzidas nas similares na- projeção, mudança de vida. E a especulação imobiliária, já bastante fortale- arquitetur cionais. modelo dominante se espalha para a classe média, estabelecendo Guedes cida, encarrega-se de tornar o sonho realidade e transforma a área praiana, Mendes gosto vigente com compartimentos pintados em cores diferentes, paredes com Moutinho ainda com alguns sobrados à beira-mar, num verdadeiro labirinto de Garna barras em tinta a óleo e um parquet decorado no piso (fig. 61). cios, um canyon de concreto armado, com habitações, ou melhor, aparta- ou abando A varanda continua presente, marcando a geração dos namoricos em mentos conjugados de quarto-e-sala. Enfim, verdadeiros cortiços verticais 86 VELHO casa, sempre vigiados pela família e protegidos pela sombra de uma coluna, como comenta Gilberto cujo objetivo era atrain a população antropólog pelo vão da escada ou mesmo um arbusto mais elevado do pequeno jardim Utopia urb sedenta da imagem da "Princesinha do Mar", vendida em cartões-postais, ocupação que separava ligeiramente a casa da rua. A transposição desse limite signifi- anos 60. cinema e música.78 79 63 Reconstituição do Copacabana, teose do plano de metas, e continuada com a afirmação da juventude re- o "grand canyon apartamento conjugado, Princesinha do Mar irreverente chamado de "IK" volucionária que se desenhava: beatniks, a lambreta, o rock-and-roll, os das grandes pelas manhãs tu és a vida a rios de automóvel (janela e kitchenette), idealizado para poucos por cantar Beatles, os Rolling Stones, a pílula anticoncepcional, o Cinema Novo, a con- .ainda contrasta questões sociais, teve o uso drasticamente e à tardinha o sol poente sagração da televisão e, finalmente, maio de 68 na França, Vietnã, movi- a calma dos e horizonte ainda visive deixa sempre uma saudade na mento hippie lançando raízes e sementes que perdurariam... por que não pelo perfil gente. dizer até hoje? orgulho da indústria nacional é sentimento imposto à po- pulação. automóvel é feito e distribuído no Brasil e vai passar a ser símbo- A grande burguesia aí residente, em seus grandes apartamentos apala- lo de status (fig. 66). cetados, à feição de antigas residências, simplesmente ignora essa invasão ou 87 música de João de Barro Alberto Ribeiro, inicia o processo de ocupação de áreas ainda não exploradas, acompanhan- a questão social, industrial, exaltando beleza daquela praia do Rio de do o eixo litorâneo da cidade, como por exemplo Ipanema e Leblon, no Rio não permite, não quer que eu ande a pé 88 de música compo de E como são esses conjugados? Um único compartimento: sala- na vitrine um Mustang cor-de-sangue. por Valle Paulo Valle quarto-jantar, associado a dois cubículos denominados "cozinha" e "ba- criticando os No Brasil, a década de 60 deve ser dividida em dois períodos distintos: a valor de consumo da class nheiro", ocupados por várias pessoas (fig. 63). As ruas se tornam estreitas para tanta gente e tanto veículo, e os antigos fase pré-1964, quando ainda persistem alguns ideais sociais, considerados de edifícios não apresentam número de vagas necessárias para a crescente frota de automóveis, pois no final da década, no governo Juscelino Kubitschek, a indústria automobilística inicia sua escalada no mercado interno (fig. 64). Nos subúrbios, ainda há uma calma aparente: poucos edifícios, ruas arbo- rizadas, jogos de bola, brincadeiras infantis (fig. 65). As residências podem aproveitar parte de seus jardins para abrigo do veículo usado, recém-adquirido para um passeio com a família nos fins de semana. As casas, com sua sala única ou dupla, seus lustres de metal e mó- veis tipo "palito", aguardam as festas de fim de ano, os aniversários ou os casamentos, para mais uma vez resistirem ou sucumbirem de vez às influên- cias externas. Depois dos "50 anos em 5" passados na metade final da década de 50, na gestão Juscelino Kubitschek, sobrevém a euforia dos anos 60, iniciada com a inauguração de Brasília, a nova capital, o "Orgulho Nacional", apo-80 81 Fig. Os automóveis zero esquerda; e o período pós- ções da habitação, mas uma estimativa média, um padrão que deve ser pro- 90 Trecho da música Blue sonho de consumo, Riviera, de Rodrix E agora bricados" no Brasil, 1964, quando há um novo duzido em série. Guarabira, 1973, gravada pelos ruas dos principais autores no LP Rodrix e estado autoritário, de exce- Os edifícios abandonam as varandas e utilizam as esquadrias de alumínio centros Guarabira, EMI-Odeon, GORDINI ção, posicionando-se pater- com grandes panos de vidro. Preocupam-se com a garagem (ainda para nalisticamente perante a poucos moradores) e o playground, além de hall social sofisticado. nação como grande protetor As casas devem como elemento fundamental a garagem, de preferên- e responsável pela solução cia à vista da rua, pois carro, como a bela casa moderna projetada por um dos problemas existentes. Na profissional liberal, ou mesmo construída por algum mestre-de-obras expe- 89 não faça a arquitetura, os ecos de riente, é um símbolo de ascensão social. Se possível, ela deve apresentar dois guerra "Poder da Flor" eram de ordem de lia eram muito significativos pavimentos, mesmo se terreno permitir aproveitamento horizontal, sendo uma pacifista inicial do hippie, antes de a para que ainda nessa década o térreo utilizado para garagem e escada de acesso ao pavimento nobre, ao violência ecrudescer. pudéssemos observar hall conjugado a uma ampla sala envidraçada, contígua a uma grande varan- veis transformações, que da. Nos terraços parcialmente cobertos, a juventude se reúne ao som do iriam acontecer nos anos 70. rock-and-roll de Jerry Lee-Lewis, Chuck Berry, Billy Halley ou as baladas de Grande parte da juventude nacional, influenciada e massificada pouco a Neil Sedaka na vitrola, aumentando a temperatura com cuba-libre, enquan- pouco pela cultura estrangeira, começa a década ainda "transviada" e ter- to o hi-fi prossegue. Se o rum acabar, um pouco de cachaça substitui cuba- mina esses anos já pensando em make love, don't make war e no flower libre por um Na madrugada, os rapazes mais velhos dos hippies, sendo paulatinamente despolitizada, aculturada e trans- enchem as ruas com ronco dos carrões, enquanto, em algumas lambretas formada em instrumento de consumo. sem saia, os jovens de blusões James Dean, com grandes topetes e belas meninas de rabo-de-cavalo nas garupas, procuram alguma outra festa ou mes- Os anos 60 vieram reafirmar o sucesso dos edifícios de apartamentos, que mo um passeio pela praia, programa apenas para as mais travessas ou "per- passam a ocupar regiões suburbanas, descaracterizando an de didas", na opinião das conservadoras senhoras que marcharão com Deus bairros outrora sossegados, com ruas arejadas e ausentes de trânsito inten- pela liberdade, após golpe de 64. so, como o Grajaú, no Rio de Janeiro, com seus jardins e ruas arborizadas, A gente já era uma barra protegendo de sombra as residências unifamiliares. no tempo rock no Blue Riviera, O ideal da casa própria é incentivado, surgindo as companhias de finan- a gente já era ciamento, os sistemas financeiros e as cadernetas de poupança, apoiando as no tempo do Blue incorporadoras particulares, que nem sempre cumprem seus contratos e pra- Você com seu rabinho-de-cavalo Me contando que a sua mãe zos à risca, abarrotando os cofres do estado com o capital empregado pela Não lhe deixava população. Na garupa da lambreta pra dançar Quase que se constrói o mesmo número de casas e apartamentos nesse No Blue período, e já percebemos que esse novo espaço impessoal será do através da escolha da con da tinta para os interiores, decoração retirada final da década, quando ainda persiste a esperança de mudança signi- de revistas nem sempre especializadas, luminárias adquiridas em lojas da mo- ficativa no panorama político nacional, vai encontrar parte da juventude as- da, pois já não há mais projeto do espaço necessário para as múltiplas fun- sistindo a seus filmes no Studio Paissandu, no Rio de Janeiro, e exportando a83 67 A televisão imagem do intelectual- mudou, que a moda muda Trecho da música A consagrada em preto e contestador para todo o A roda é triste, a roda é muda de Chico Buard sua transmissão a cores. Em volta da televisão (...) no LP Chica Bual ganhando ainda mais destaque país. na sala ou até mesmo um Os namorados aposento especial. A explosão das ações na dispensam seu namoro Nos anos 70 algumas velas seus protagoni bolsa de valores, o tricam- Quem quer riso, quem quer choro nam-se Icones da peonato mundial, tudo le- Não faz mais esforço, não tional, como jovem eriorano interpretado va a uma euforia nacional E própria vida Cuoco em Selva Ainda vai sentar sentida dra, que vem do fortalecendo as esperanças na-se donc de estaleir Vendo a vida mais vivida nordestino Tarcis dos campeões do mundo Philco Super Luxo Color 18. Que vem da em Coração alado ce na carreira ainda Aestrela das 18 polegadas. diante do milagre brasi- Vera Fischer; procurando limpa leiro, diante de um país Com a facilidade do crédito e a expansão da indústria nacional, será pos- me do pai, em Pai vim pars A simples novo Showcolor com Block Matrix as cores mais mais que pra frente "nin- udio jogado sível destinar, para alguns segmentos sociais, uma TV para cada membro da uma uma no meu em Irmãos Corag vai BOU mais mais 000 controles automáticos minha não guém segura este país" Ah meu estão eté família, com programação disponível a cabo ou parabólicas, em mais de cem Pseudônimo do Por nisso, BOU um a todo vapor, segundo a especialmente para canais, a partir dos anos 80. Porto propaganda tendenciosa Com suas propagandas e, mais do que tudo, suas novelas com seus Autarquia criada em Conhece Super Color um de mais um governo au- golpe militar, com com code heróis simples, humildes, sofridos, que vêm do interior e depois das prova- etivo principal de fig. 67 toritário. plano nacional de ções e sublimações têm seu valor reconhecido, são bem-sucedidos, num em- itação A As grandes cidades, pra- polgante final essa "máquina de fazer doidos" (como diria desvio das originais ticamente tomadas pela expansão imobiliária, inchadas, sem infra-estrutura, Stanislaw Ponte incentiva a ilusão do "sul maravilha" edibilidade da instituir começam a crescer ocupando áreas a Baixada Fluminense, no As favelas proliferam, não apenas nos morros, mas onde houver espaço e foi extinta em 1986 Rio de Janeiro, a periferia de São Paulo, o entorno de Belo Horizonte, as mercado de subtrabalho disponível. Surgem as propostas de habitações po- cidades-satélites de Brasília, a região alagada próxima ao Recife. São áreas pulares, os conjuntos habitacionais do Banco Nacional da a com povoamento anterior, com crescimento desenfreado na década de 70 "erradicação" das favelas. Alguns bairros tradicionais dos grandes centros devido à atração que os grandes centros urbanos vão exercer sobre as regiões são descaracterizados, fazendo com que sua população mais abastada pro- mais pobres, já com a total colaboração do fortalecimento dos meios de cure novas áreas de moradia. Os edifícios, grandes construções de muitos comunicação, sendo a televisão o principal veículo de venda de ilusões. Este andares, tomam seu lugar definitivo nos grandes centros, tentandó recupe- eletrodoméstico, agora também em cores, vai ocupar, cada vez mais, lugar rar alguns valores do passado como o retorno às varandas, ou balcões, aque- de destaque no espaço da sala da classe média ou até mesmo um les pequenos balanços de lajes que "vendem" a imagem do contato com a aposento especial para sua utilização, uma sala de TV, em camadas mais natureza (fig. 68). Os equipamentos sofisticam-se: salas de jogos, saunas, abastadas (fig. 67). ciclovias, bosques, jardins, piscinas, verdadeiros clubes que originarão o con- domínio do final da década de 70. homem da rua As residências da classe média procuram melhorar sua fachada ou trocar Fica só por teimosia a pintura de seus interiores por revestimentos mais modernos. As grandes Não encontra companhia Mas pra casa não vai, não residências novas saem do burburinho da cidade e procuram áreas mais ame- Em casa a roda nas e nobres, perto de parques, montanhas ou mesmo do mar. Outro fato84 85 Fig. 68 Os novos Quando não for possível encontrar a satisfação cotidiana dos e empreendimentos imobiliários sofisticam suas necessidades psíquicas, as duas classes mais abastadas, sufocadas pelos oferecendo conforto a preços, por vezes, cios de apartamentos ou residências menores nos grandes centros, irão pro- curar espaços para ocupar durante fins de semana, feriados e a classe média através de esforços econômicos e com ajuda dos sistemas de crédito; a classe alta simplesmente adquirindo à vista. E, não raramente, encontramos famílias com residências de veraneio em outros municípios próximos do grande núcleo urbano em que normalmente moram e trabalham. Fechamos a década de 70 com a perspectiva de horizontes nebulosos no panorama econômico do país, porém o Estado promete solução e afirma que é um momento de transição, quando todos devem o sistema ecológico está totalmente comprometido com rios poluídos (Tietê e Paraíba do Sul), florestas devastadas (Parque de Itatiaia), baías com sua paisagem totalmente mutilada (Baía de Guanabara). Fala-se nas megalópoles e per- cebemos que São Paulo e Rio de Janeiro caminham para lá. fim da déca- da vai encontrar a especulação imobiliária ainda em franco desenvolvimento, demolindo, devastando, criando loteamentos, condomínios, edifícios, onde a qualidade de vida é insinuada e não realizada. Grandes conjuntos habita- cionais elitizados são agora construídos (condomínios horizontais e verticais), estratificando as classes sociais e dirigindo as relações pessoais. São ver- dadeiras cidadelas muradas, vigiadas, dotadas de toda a proteção para que os de fora não se habilitem a entrar e os de dentro não sejam incen- tivados a sair, pois pretende-se que todas as suas necessidades sejam ali sa- fig. 68 tisfeitas: a moradia, o repouso, a alimentação, a diversão, o estudo, e apenas o trabalho possa ser realizado no exterior, sendo os moradores até trans- também vai influenciar o caráter das novas residências e alterar antigos va- portados em ônibus especiais, se assim o desejarem (fig. 69). lores: a segurança. As grandes casas modernas das décadas anteriores, As perspectivas da década de 80 não se apresentam alvissareiras, pois com muros baixos, ou simples grades, vão fechar suas paredes, uma crise econômica, política e moral se abate sobre o país. Sequer pode- suas garagens, escamotear seus bens. As novas edificações já apresentam mos falar em dissolução de costumes, subversão de valores ou contes- grandes muros, portões fechados, sistemas eletrônicos de segurança, que tação do establishment, pois percebemos em quase todas as classes so- variam dos simples interfones e campainhas aos sofisticados sensores e cir- ciais e faixas etárias um movimento represado que começa a eclodir na cuitos fechados de TV. A moradia ainda vai representar status para a elite campanha pelas eleições e a classe média, porém revestida de todo um sistema de proteção como A preocupação predominante com corpo um verdadeiro culto, a defesa desse próprio status. interiorização do a "couraça" cada vez mais consistente colo-86 87 ca as pessoas numa relação quase formal. A habitação vai refletir esses Na casa, poucas alterações de interiores, incorporando algumas novi- Fig. 69 A partir dos anos "novos" hábitos de viver, e o setor social, em muitas ocasiões, vai até dades, vão se fazer notar. As funções acumuladas incorporam mais uma: o amplia- a oferta de de luxo onde, localizar-se exteriormente à própria residência: as salas de festas, as chur- trabalhar em casa, realizado por profissionais liberais ou prestadores de além equipamentos de serviço lazer, a segurança é rasqueiras, as salas de jogos, as piscinas. Os "hóspedes" cumprem seu pa- serviços, que utilizam um novo protagonista, presente cada vez mais no pel; o anfitrião também representa o seu, e o contato social foi estabele- cotidiano das pessoas: microcomputador, individualizando cada vez mais o cido, sem intimidade, como no período colonial. ex-social-homem. A classe média, arrochada em seus salários por uma deliberada política governamental, ainda almeja a casa própria, porém se apresenta cada vez mais insolvente, não podendo arcar com o aumento abusivo das presta- ções do Sistema Financeiro da Habitação, totalmente alheio ao real "au- mento" dos salários. É necessário oferecer, por parte dos agentes imobi- liários, não apenas atrativos físicos, conforto, lazer, facilidade nas novas edificações, mas principalmente condições de saldar as dívidas. Em mea- dos da década, vamos encontrar verdadeiro estoque de casas e aparta- mentos aguardando compradores como espelho do momento, que apon- ta para a hiperinflação. Os sucessivos planos econômicos aplicados nos últimos anos criam uma legião de usuários atônitos, com perspectivas duvidosas de investimento. A construção civil, como outros campos de trabalho, sofre retração, e mais uma vez aumenta déficit habitacional, agravado com a extinção do BNH. E o setor social? Espacialmente pouco mudou em relação ao modelo dos anos 50. nas um novo mobiliário, um equipamento mais moderno e um caminho para uma individualização do social, criando-se um espaço híbrido, acu- mulando funções repousar/estudar/receber, que vai ocupar o antigo quarto, agora nesses tempos de viagens para o ego. Frustrando as expectativas, as eleições diretas não ocorrem em 1984 e indiretamente são eleitos Tancredo Neves e José Sarney, presidente e vice, respectivamente. Misteriosamente, Tancredo adoece na véspera da posse, falecendo um mês depois, levando José Sarney à presidência e país a um grande gover- no provinciano, chocando da serpente, de Mello. A construção civil estagnou devido aos altíssimos índices inflacionários e à inadimplência.88 89 CAPÍTULO 6 95 6.1 botões Erasmo 0 S E T 0 QUARTO Roberto N I M 0 canto Nos macios amantes se dão, Ao abordarmos setor social, tornou-se necessário recorrer, com fre- travesseiros soltos, a valores externos à residência, já que aquele setor funciona com fil- roupas pelo chão, tro dessas influências, decodificando-as para o uso doméstico. braços que se abraçam, bocas que murmuram Ao entrarmos no setor íntimo, estamos penetrando em desconhecido uni- palavras de amor, verso velado, preconceituoso, repleto de símbolos e tabus raramente revela- enquanto se dos a visitantes, elementos estranhos ao seio da família. No setor íntimo, o quarto não vai apresentar mudanças significativas nos Os próprios nomes dos aposentos básicos que constituem este setor, quar- três primeiros séculos da colonização brasileira. Quanto à área íntima (sim- to e banheiro, carregam, até hoje, significados ambíguos que podem mesmo ples repouso, sono, convívio ou sexo), a casa tradicional patriarcal sempre foi gerar olhares espantados, risos abafados ou sorrisos marotos se pronuncia- muito rigorosa como observamos desde as casas de Olinda, passando pelo dos indevidamente em locais e horários inadequados.. século XVIII até depois do advento do neoclassicismo. Afirmando o conceito Também aqui podemos evoluir da sombria e abafada alcova colonial, isolacionista e privativo do a planta patriarcal entalava a alcova den- com urinóis e jarras como banheiro, aos aposentos do século XIX, de re- tro do corpo da casa, fosse na residência urbana ou rural. Na cidade, a exigüi- quintado mobiliário, ou aos verdadeiros cenários de culto ao corpo do final do XX. dade do lote referendava essa posição, permitindo apenas aberturas nas ex- tremidades, em salas ou Vamos principalmente esses dois componentes, não esquecendo, Em lotes mais generosos podemos encontrar janelas nesses aposentos, quando oportuno, de revelar seus desdobramentos. porém voltadas para pátios internos, referendando o ideal de privacidade. Não nos esqueçamos de que, para adentrarmos nesse setor, são neces- De certa forma também respondia-se às imposições climáticas, porque sários o convite e a autorização da família, pois trata-se de desvendar, por ve- exposto ao sol tropical, ao calor e à luminosidade intensa, o homem branco zes, os mais recônditos segredos, às vezes revelado num retrato na parede ou elabora para si um horário bastante flexível com largos períodos entregues num camafeu esquecido por sobre o toucador. ao sono ou ao repouso. A alcova é o local onde ele se sente à vontade para desempenhar tais "tarefas" mesmo não pode na ardente América, no Rio de Janeiro, por exemplo, onde o brasileiro deixa a mesa no momento em que a atmosfera, já aquecida por seis ou sete horas de sol, estende sua influência abafadora até o âmago das habitações. brasileiro com a boca abrasada pelos esti- mulantes temperos e literalmente queimada pelo café fervendo, já semi- desvestido, procura, quase em vão em seus cômodos, a sombra e o descan- pelo menos durante duas ou três horas; adormecendo afinal, banhado de suor, acorda lá pelas seis horas da tarde, quando principia a viração. 9690 97 Residências particulares Essa alcova geralmente é um aposento de forma quadrangular, dotado de mesmo espelho em que elas se 70 Acesso ao boudoir no início do século porta voltada ocasionalmente para a circulação principal, sem janelas, en- da Marquesa de Santos ainda existentes no Rio de miram?.. de te aproveitares das Janeiro, situadas na Av. Pedro 293, São e na quanto o quarto, ainda sombrio, apresenta janelas guarnecidas por rótulas e mil comodidades e das mil su- Marquês de S. Vicente, 225. escuros. Normalmente sem forro, as telhas-vãs da cobertura da alcova per- perfluidades que formigam no do "boudair" respectivamente, ambas Marquesa de Santos, abertas à mitem aeração satisfatória. Sombria, permite um relaxamento completo e toucador de uma moça? num quarto "closet" dos dias facilita o sono profundo. Sua disposição na planta, geralmente perpendicu- sou eu que to digo; ali lar às circulações, indica a distribuição associada ao corredor que é a espinha acharás banhas e pomadas na- dorsal da circulação da casa. Raramente apresenta grandes dimensões, res- turais de todos os países, óleos tringindo-se às necessárias ao repouso e à oração, com escasso e tosco mo- aromáticos, essências de formo- biliário, normalmente compreendido, nos primeiros tempos, por cama, apa- sura de todas as qualidades, rador e uma cadeira dispostos pelos cantos (fig. 5). águas cheirosas, pós vermelhos Joaquim Manu Poucas vezes existe um armário ou guarda-roupa, substituído eventual- para as faces e para os lábios, de A moreninha. p. mente por baús ou canastras, depositários da pouca indumentária baeta fina para esfregar o rosto vel, decorrente de contida vida social. e as pálidas, escovas A partir do princípio do século XIX, com a imposição e a popularização do e escovinhas, flores murchas e outras vidro em guilhotinas encaixilhadas, o escuro, que é uma vedação, será man- pois quatro moças entraram no quarto... tido, porém as janelas vão rasgando as paredes, transformando as alcovas depois que todas as quatro se miraram, compuseram cabelos, enfeites em quartos. Além do vidro, teremos modificações: o quarto, segundo as ca- e mil outros objetos que estavam todos muito em ordem... 98 racterísticas neoclássicas, comunica-se com um boudoir, ou quarto de trocar- se, uma saleta, conforme observamos no solar da Marquesa de Santos ou na É no setor íntimo do chalé tradicional e na construção de filiação eclética casa de Grandjean de Montigny 97 (figs. 70 e 71). que já se incorpora um senso mais aperfeiçoado, embora intimista, adequa- espaço íntimo no Brasil, conforme avança o século incorpora mui- do ao processo de abertura da família patriarcal influencia- tas lições de bem viver das elites do século precedente, porém o faz à sua da por valores europeus que induzem a vida social. A maneira, e o quarto areja-se. Com a presença da corte é que vamos encon- janela saudavelmente faz sua comunicação com o lote ar- trar uma maior valorização desse compartimento, que agora vai acompanhar borizado e ajardinado, terminando com a reclusão oriental a sofisticação do restante da habitação: surgem o quarto de vestir, os tou- da mulher, permitindo o devaneio do romantismo ao fazê- cadores, o quarto de banho, um equipamento de melhor qualidade tanto la fitar a natureza livre que a circundava, ou mesmo a pai- material quanto formal, pois a Revolução Industrial consegue colocar no mer- sagem recriada de um jardim. Nessa linguagem espacial cado produtos em larga escala. Os quartos se abrem um pouco mais, pois já encontramos vários acessos para quarto. Teremos um vamos encontrar na segunda metade do século verdadeiras "reuniões" femi- pelo alpendre-corredor, (fig. 16) e outro que se fará por ninas nesse compartimento. uma circulação interna, através de portas alinhadas em fila para a qual se abrem todos os quartos a partir da sala. A Augusto, uma feliz! vai vestir-te no gabinete das moças. privacidade ainda está sujeita a policiamento, representa- Mas que espécie de felicidade achas tu nisso? da pela porta de ligação presente entre quartos, partido pois tu deixas passar uma tão bela ocasião de te mirares que por muito tempo se fará presente (fig. 72).92 93 72 Os aposentos Já era sol alto quando Seixas ouviu mexer na maçaneta da porta que, de Ainda no início do século XX, não é incomum encontrarmos belos lençóis apresentam portas de intercomunicação, sugerindo a seus aposentos, comunicava para o interior da bordados nos enxovais das noivas com a hoje curiosa fenda no local apropria- constante vigilia, principalmente sobre sexo do para a relação sexual, evitando o "contato impuro dos Nesse final de século, com as diversas tendências estilísticas que invadem Com o ingresso no novo século e a adoção parcial dos vocabulários reno- o gosto republicano, esse espaço vai ser tratado como setor social, com todas vados do art nouveau e do prosseguimento do ecletismo, teremos um apri- as inovações que o restante da habitação vai receber. Vamos mesmo precisar moramento formal do íntimo. Agora não é mais o gás que ilumina as noites; anexar ao quarto de dormir uma verdadeira antecâmara não apenas para a no quarto teremos a iluminação elétrica. Há um empenho cada vez maior em guarda do vestuário, composta de várias peças, mas para próprio vestir, ato personalizar-se aposento, adequando-se mobiliário e decoração. Pouco a 99 José complexo, um verdadeiro quebra-cabeça de composição de pequenos deta- p. pouco, porém, os hábitos de vestir alteram-se, mobiliário muda com a in- lhes, tanto para o homem quanto para a mulher. fluência da moda e o quarto volta, praticamente, a acumular suas funções 100 José p. 171. primitivas de repousar, vestir e fazer amor, principalmente nos modelos mais Vou ter a satisfação de o instalar em seus novos aposentos. Aqui é o seu compactos de habitação agora construídos em larga escala nas cidades em gabinete de trabalho, ali é toucador; deste lado do jardim fica quarto de desenvolvimento, destinados a abrigar a classe média em franca expansão. banho, e uma saleta de fumar, com entrada independente para receber seus Em alguns exemplares já encontramos a presença do banheiro, agora in- amigos. 100 corporado à residência, resultado da melhoria dos equipamentos sanitários disponíveis no mercado. Não é rara, ainda no século XIX, a perpetuação de um hábito ancestral Estamos na década de 20 e tanto na casa neocolonial, tão em moda, de utilizar-se quartos separados, independentes, mesmo para o casal. quanto na residência ainda de gosto eclético e mesmo na casa modernista próprio contato social que muitas vezes regula o matrimônio faz com que do final da década, o quarto permanece, como espaço, o intercurso sexual seja uma obrigação para ambas as partes, muitas vezes Podemos apenas comentar alterações quanto ao seu posicionamento em marcado com antecedência, sugerindo a utilização de traje apropriado relação à planta, ao rígido organograma colonial. Já encontramos, desde a para tal fim. década de 10, o partido do quarto principal ou do casal implantado à frente da habitação, junto à sala principal, revelando status ou grau hierárquico de seus ocupantes. O próprio mobiliário deve "combinar" com a sala principal, sendo colocado à mostra através do artifício de deixar-se a porta do quarto ligeiramente aberta. Essa disposição em termos de fluxo ou circulação é insatisfatória, pois en- contramos cruzamentos desnecessários com superposição de função dos demais compartimentos, pois a sala transforma-se em passagem entre o mo e o serviço, mesmo entre íntimo e íntimo, como, por exemplo, quarto- banheiro este único, nesse período, comprometendo até mesmo a pri- vacidade de seus ocupantes (fig. 73). Percebemos que, apesar de ser uma solução discutível quanto ao bom funcionamento da residência, esse partido perpassa décadas e, mesmo nos anos 60 em construções mais simples, executadas por mão-de-obra ou94 95 Fig. 73 Neste modelo de "profissionais" não especializa- Temos desenvolvimento da arquitetura moderna e de sua produção residência de classe média dos anos 50 é possível perceber-se dos, vamos encontrá-lo presente, doméstica. Os processos mecânicos e racionais incorporam-se ao gosto dos o cruzamento de fluxo social, comprometendo a colocando o valor social do com- profissionais liberais, novos comerciantes e empresários urbanos, a quem privacidade. partimento ou de seus usuários as imposições do modernismo cativam e atraem. É o período em que o Fig. 74 Com a popularização acima do próprio conforto da ha- de materiais de construção arrojo dos nossos calculistas permite à casa incorporar alguns saltos for- mais banheiros são bitação. malísticos. Porém, o quarto não apresentará nenhuma modificação sensí- incorporados à habitação, consolidando gosto pelas Apenas no final da década de vel. Será amplo na maioria das vezes, com grandes janelas, móveis pro- suites. 50, quando a euforia de Brasília duzidos em série e geometrizados, oferecidos pelos grandes magazines a permite maiores aos arquite- preços interessantes e normalmente em conjuntos. aparelho de ar-condi- tos, consegue-se setorizar mais "cionado virá em socorro dos seus habitantes, permitindo contrabalançar no uma vez a habitação, criando-se quarto a ampla quantidade de luz e aquecimento que se abatem prove- uma compacta zona íntima, com niente da excessiva exposição desse aposento aos raios solares, já que suas fig. 73 quartos, banheiros, às vezes pe- esquadrias utilizam o alumínio e o vidro, sem considerar, na maioria das quena sala, com relativa indepen- vezes, padrões corretos de orientação, decorrente de lotes estreitos e do dência do setor maior aproveitamento dos terrenos em busca de maiores lucros. É o início social. Ainda uma do processo de especulação imobiliária, com verbas oriundas de caderne- vez é a classe alta, tas de poupança e sistemas financeiros implantados pós-64. a ideologia domi- As alterações não ocorrem nas dimensões do aposento, mas nas suas nante, que adota funções. Os demais quartos da residência também começam a alterá-las, esses valores, pas- pois, além das atividades tradicionais, vão adotar uma inovação: servirão sando-os, paula- como "sala de estar", ou "sala de visitas" particular para o ocupante às de- daquele espaço, procurando criar uma área social Esse fato vai se mais classes. Um tornar muito mais palpável em habitações menores e principalmente nos fato de significa- apartamentos, onde a superposição de função dos compartimentos, diante tiva importância da de espaço disponível, vai cada vez mais se fazer presente. vem completar es- A década de 70, bem como o início dos anos 80, vem apenas ratificar as fig. 74 se quadro na década de 60: a pos- considerações expostas, pois, como mencionamos, o crescimento desen- sibilidade de utilização de mais de um banheiro com a freado das cidades, a especulação imobiliária, a necessidade de construir inclusão, talvez em definitivo, de um modelo que já havia se delineado ante- mais, e não melhor, reduzem cada vez mais as áreas utilizadas dos com- riormente sem muita aceitação a composta do quarto conjugado a partimentos, inversamente proporcionais ao aumento de suas funções. banheiro privativo e pequena saleta, à feição dos partidos utilizados nos Hoje, para várias camadas da população, o quarto é sala de visitas, hotéis de classe. As casas abastadas, projetadas por arquitetos e publicadas escritório, sala de estudos, local de trabalho e, ocasionalmente, lugar de nas revistas especializadas, adotam imediatamente essa solução, acoplando descanso e do amor. um banheiro ao quarto do casal, conferindo-lhe a privacidade merecida e A diminuição do espaço útil, inversamente proporcional a esse aumento necessária (fig. 74). de atividades, requer malabarismos na concepção dos novos interiores,96 97 Fig. 75 quarto recebe um com propostas inovado- Figs. 76A mais novo micro- ras de design de mobiliá- quarto computador. uma "unid rio, de preços nem sem- de trabalh pre acessíveis a camadas mais baixas da população. Como, se na desordem do armário embutido, 101 Trecho da música Eu te meu paletó enlaça o teu vestido amo de Tom Jobim Chico e o meu sapato ainda pisa Buarque, no LP Vida, no 101 de Buarque, fig. 102 Trecho da música Pela Armários embutidos, com camas também embutidas, móveis especiais para Internet, de Gilberto Gil o computador, que passa a ser o novo hóspede e parte integrante do aposento, incluída no CD gente veio de Gilberto Gil, às vezes ferramenta de trabalho ou de estudo de quem, em tempos de 103 Trecho da música Esses Internet, não precisa de casa sequer para fazer compras (fig. 75). garotos, de Ivan Lins Vitor Martins, incluída no LP Nos dias de hoje, de Ivan Lins, Criar meu web site Fazer minha home-page Com quantos gigabytes Se faz uma jangada Um barco que veleje Que veleje nesse informar(...) Eu quero entrar na rede pra Nas grandes casas e nos novos apartamentos de luxo, procura-se amenizar essa mistura de Encontramos as saletas contíguas, a afirmação dos banheiros privativos e, algumas vezes, oferece-se a varanda individual, valores que passam a ser símbolo de bem-morar (fig. 76 A e B). Em situações particulares ainda é possível "personalizar-se" o quarto, conferindo a este aposento algo da personalidade de seu habitante, de sua atmosfera de cumplicidade e realização dos sonhos mais ocultos. Na cama entre braços e agrados corria os mares em um veleiro solta nos braços de seu homem tatuado pra quem mostrava o corpo fig. 76 B99 Fig. 77 Os escravos 6 2 casas urbanas. despejo desses barris se fazia nas praias. Eram barris velhos 105 Casas responsáveis pelo transporte dos despejos domésticos para que às vezes estouravam de podres, emporcalhando os escravos, seus car- no Brasil, In BANHEIRO Arquitetura civil p. 23. nos vazadouros regadores, e empestando as ruas com sua 105 (fig.77). estabelecidos, ou simplesmente 106 Casa-Grande & em praias, rios ou lagoas. Não adianta ninguém da familia pedir para entrar Na área rural, menos importante ainda é a presença desses compartimen- Gregório Poemas escolhidos. pp. 285- pois não pretendo nenhum dos meus hábitos tos, pois a velha tradição de usar matinho" tem sua aplicação literal, 286 modificar ratificando o hábito de "defecar longe de casa", clara herança indígena, A minha mãe diz que tá apressada segundo Gilberto Freyre Fica falando que tá por um triz Também o hábito do banho, compatível com o clima quente dos o que é que eu faço 104 Trecho da música Cantando Se é no banheiro que eu me sinto não é usual, e não raro encontramos críticas ao seu uso. no de Eduardo incluída no CD Eduardo Dusek Minha história, 1994. espaço destinado à higiene vai apresentar uma evolução curiosa no con- Lavar a carne é desgraça em toda parte do norte, texto brasileiro que varia da sua quase inexistência, sempre associado ao porque diz que dessa sorte "sujo", profano, ao aposento de destaque, muitas vezes símbolo de status perde a carne o sal, e graça. de seu "dono" e se vós por esta traça Além da mudança social, é importante associar essas transformações às lhe tirais ao passarete o a graça, e cheirete significativas modificações ocorridas na mão-de-obra, em materiais e técni- um pouco a dúvida topa. cas construtivas que muito contribuíram para Se me quereis dar a sopa, a sedimentação desse estado de dai-me com todo o sainete... As primeiras habitações praticamente não As damas que mais lavadas apresentam esse compartimento no seu inte- costumam trazer as peças, rior, e muito raramente encontramos espaço si- e disso se prezam essas milar em quintais e exteriores. Há substituição são damas mais da área pelo "banheiro nas formas de urinóis e outros recipientes, normalmente des- De que serve pois andar lavando antes que mo deis? pejados em vazadouros ou barris que são car- lavai-vos, quando sujeis, regados no final da tarde pelos "tigres" para e porque vos o ensaio, rios, mares ou regiões alagadas, próximo do depois de foder assentamento urbano. mas antes não o Como sabe toda gente mais velha, de- Embora seja constante a surpresa ou mesmo o espanto do brasileiro con- nominavam-se 'tigres', em Per- temporâneo em relação a essa falta de banho, não devemos esquecer que há nambuco e no Rio, os barris uma tradição européia muito rígida quanto a esses hábitos que até hoje per- com excremento dos mora- sistem. Gilberto Freyre comenta: "Em contraste com tudo isso é que sur- dores dos sobrados e das preende aos primeiros portugueses e franceses chegados nesta parte da fig. 77100 101 Fig 78 uma espécie América um povo ao que parece sem mancha de sífilis na pele; e cuja maior Fig. 79 produtos de cadeira disponível dentro de delícia era o banho de rio. Que se lavava constantemente da cabeça aos quartos ou na qual pelos fund um urinol sob o Ou ainda: os alunos eram obrigados a banhar os pés nas quartas assento, permitindo um certo conforto ao exonerar bexiga e e sábados e a tomar banho geral uma vez por semana." intestinos aflitos Uma pesquisa publicada em 1989 num dos semanários mais influentes da constata essa distância mantida pelos europeus em relação ao corporal. artigo indica que, na França, cada cidadão consome cinco sabonetes por ano, três frascos de xampu de 230 ml e 2,5 tubos de dentifri- cio. Ainda revela que 25 por cento dos franceses "se lavam" todos os dias pela manhã e três por cento dificilmente lavam os cabelos. 108 Casa- Vários motivos levaram a essa estranha aversão pelo banho praticada pe- grande & senzala. p. 113. los europeus, principalmente devido a aspectos morais e religiosos, ignoran- 109 p. 418. do recomendações elementares à saúde corporal. 110 Esta pesquisa foi publicada na revista L'Evenement du Jeudi, maio de comentada Na Europa, como se sabe, não se acredita muito em banheiros e banhos cadeira onde é possível, sob o assento, colocar-se um urinol (fig. 78). A hi- pelo jornal o por Any em geral. Nada melhor para o moral de um brasileiro abatido por não per- Bourrier, Banho: um estigma giene era feita com panos molhados ou umedecidos, posteriormente lavados passado limpo, 14 mai ao Primeiro Mundo do que banheiros europeus, porque, e reaproveitados, devido à do material ainda contando com a Segundo p com exceção dos bons hotéis e residências modernas, as tradição ou folclore dos sabugos e palhas de milho. 111 RIBEIRO João Contribuição para uma podem ser A ausência de material adequado, como tubulações, peças de ferro esmal- banheirologia, o 11 abr. p.7. (...) Espero que, com estas informações, tenha dado uma modesta con- tado ou louças, que só entrariam no mercado nacional no século XIX, após a tribuição para uma postura nacionalista e patriótica em relação aos nossos abertura dos portos aos europeus, também, o banheiros, provavelmente os melhores do mundo. desleixo destinado ao setor de higiene na habitação. A água deveria ser transportada por aguadeiros, de fontes ou chafarizes nem sempre próximos, Devido ao nosso processo coloni- em quantidade suficiente para o uso diário. Com a chegada desses novos zador, que associou igreja e homens de materiais, começa-se a valorizar, ou melhor, utilizar devidamente a toilette e, pouca informação, esse hábito foi in- pouco a pouco, mais uma vez, das classes mais ricas às mais pobres; o "quar- corporado pelos imigrantes europeus tinho". "casinha", "privada", antes localizados nos fundos dos aqui instalados nos primeiros tempos e quintais, sobre fossas fétidas sem água corrente, começam a se aproximar da muito lentamente se modificou. residência, acoplando-se às cozinhas, compondo uma única área que deve Já que não existe tal hábito, o apo- possuir tubulação de esgotos, pisos e paredes laváveis e abastecimento de sento destinado a este fim não existe, água localizado. Ainda hoje encontramos muitas habitações que mantêm sendo adaptado em quartos e alcovas essa tradição oitocentista (fig. 79). através de tinas e jarros para trans- Os hábitos se alteram após a chegada da corte ao Brasil, em 1808, não porte e coleta de água. Eventualmente pela higiene do europeu, mas pelas influências dos novos materiais e a va- fig. 78 encontramos uma retreta, espécie de lorização da vida social, que já requer maior preocupação com o corpo. Não