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Doenças Autoimunes e Perda da Autotolerância Doenças autoimunes são condições em que o sistema imunológico ataca componentes do próprio organismo, devido a uma perda da autotolerância imunológica . Em indivíduos saudáveis, mecanismos de tolerância imunológica impedem respostas agressivas contra células e tecidos próprios. Quando esses mecanismos falham, linfócitos autorreativos podem se ativar e provocar inflamação dirigida ao próprio corpo . Essa quebra de tolerância (o “horror autotoxicus” descrito por Paul Ehrlich) resulta em respostas imunes patológicas contra antígenos próprios, caracterizando as doenças autoimunes. Existem dezenas de doenças autoimunes identificadas, variando de condições órgão-específicas (por exemplo, tireoidite de Hashimoto, diabetes tipo 1) a sistêmicas (por exemplo, lúpus eritematoso sistêmico, artrite reumatoide). Em todos os casos, o elemento comum é a falha em manter a autotolerância, permitindo que o sistema imune agrida alvos do próprio organismo de forma crônica. Apesar de pequenas respostas autoimunes ocorrerem em pessoas saudáveis de forma controlada, normalmente o corpo possui múltiplos “freios” e “contrapesos” imunológicos para prevenir dano autoimune . Por exemplo, linfócitos T reguladores (Treg) e outros mecanismos regulatórios mantêm em cheque linfócitos potencialmente autorreativos. Somente quando há desequilíbrio nesses controles – seja por fatores genéticos, ambientais ou imunológicos – a autoimunidade se torna patogênica. Em suma, doença autoimune é a consequência clínica da perda de tolerância a antígenos próprios, resultando em lesão tecidual mediada pelo sistema imune. Tolerância Imunológica Central e Periférica (Linfócitos T e B) Para evitar autoimunidade, o organismo desenvolveu mecanismos de tolerância imunológica em duas fases: tolerância central (nos órgãos linfoides primários) e tolerância periférica (nos tecidos e linfonodos periféricos). Esses processos “educam” linfócitos T e B durante sua maturação, eliminando ou inativando clones autorreativos. Cada etapa exerce função essencial e não redundante na manutenção da autotolerância. ● Tolerância Central dos Linfócitos T: ocorre no timo durante o desenvolvimento dos linfócitos T. Inicialmente, timócitos imaturos que reconhecem moderadamente os complexos próprio-MHC com peptídeos recebem um sinal de sobrevivência (seleção positiva), garantindo que apenas células capazes de reconhecer MHC próprio amadureçam . Em seguida, timócitos que reconhecem com alta afinidade antígenos próprios apresentados no timo são eliminados por apoptose (seleção negativa). Esse processo de “deleção clonal” remove a maioria dos T autorreativos. Um fator crucial aqui é o gene AIRE (Autoimmune Regulator), que induz a expressão de diversos antígenos de tecidos periféricos no timo. Graças ao AIRE, o timo “apresenta” antígenos próprios diversos aos timócitos; linfócitos T que reagem fortemente a eles são eliminados. Deficiências no AIRE causam síndromes autoimunes graves (como a APS-1), ilustrando a importância da seleção negativa tímica . Além da deleção, evidências sugerem que alguns timócitos com reatividade intermediária a antígenos próprios podem se diferenciar em células T reguladoras naturais (Treg) no timo, contribuindo à tolerância ao sair para a periferia. ● Tolerância Central dos Linfócitos B: ocorre na medula óssea durante a maturação dos linfócitos B. Quando o receptor de célula B (BCR) de um linfócito B imaturo se liga fortemente a um antígeno próprio presente na medula, esse linfócito recebe um sinal negativo. Como resultado, ele pode sofrer deleção por apoptose ou tentar modificar seu receptor (edição do receptor), alterando a especificidade para que deixe de reconhecer o próprio . Linfócitos B que reconhecem antígenos próprios de forma persistente também podem entrar em estado de anergia (inativação funcional). Esses mecanismos asseguram que, ao saírem da medula óssea, a maioria dos linfócitos B autorreativos tenha sido eliminada ou silenciada. No entanto, a tolerância central de B não é perfeita: alguns linfócitos B autorreativos escapam para a circulação, exigindo controle adicional na periferia. ● Tolerância Periférica dos Linfócitos T: mesmo após a seleção central, alguns linfócitos T autorreativos podem alcançar a periferia. Para preveni-los de causar dano, atuam vários mecanismos periféricos de silenciamento . Um deles é a anergia clonal, em que um linfócito T ao reconhecer um antígeno próprio sem a devida coestimulação (sinalização acessória) torna-se funcionalmente inativo e incapaz de proliferar. Outra salvaguarda é a deleção clonal periférica – por exemplo, apoptose induzida por ativação: se um linfócito T é repetidamente estimulado pelo antígeno próprio, pode entrar em via de morte celular programada, eliminando-se . Além disso, existem células T reguladoras (Treg) na periferia que suprimem ativamente respostas autoimunes. As Tregs (geralmente CD4⁺CD25⁺ FoxP3⁺) liberam citocinas anti-inflamatórias (como IL-10 e TGF-β) ou agem por contato direto, inibindo linfócitos autorreativos próximos. A importância das Tregs é evidenciada por modelos em que sua ausência ou disfunção leva a autoimunidade multissistêmica . Por fim, existe o fenômeno de ignorância imunológica: alguns antígenos próprios ficam “escondidos” (sequestrados) em locais imunoprivilegiados (olhos, cérebro, testículos, etc.), onde linfócitos não os encontram facilmente. Assim, linfócitos autorreativos podem simplesmente nunca se ativar por falta de exposição ao antígeno. Em conjunto, anergia, deleção, supressão por Tregs e ignorância mantêm a tolerância periférica e evitam autoagressão . ● Tolerância Periférica dos Linfócitos B: os linfócitos B autorreativos que escapam da medula também enfrentam controles periféricos. O principal é a dependência de cooperação dos linfócitos T auxiliares (CD4⁺) para completa ativação de células B. A maioria das respostas de anticorpos requer que um linfócito T reconheça o mesmo antígeno (ou parte dele) e forneça sinais de estímulo à célula B. Se um linfócito B reconhece um antígeno próprio mas não encontra um linfócito T auxiliar correspondente (porque os T específicos foram eliminados ou são tolerantes), essa célula B permanece inativa ou anérgica . Dessa forma, a tolerância dos linfócitos T impõe tolerância “indireta” às células B. Ademais, células B que reconhecem antígenos solúveis em baixa concentração contínua podem se tornar anérgicas na circulação. Há também deleção periférica de B – por exemplo, análoga à deleção de T, células B autorreativas podem morrer por apoptose se muito estimuladas sem os sinais apropriados. Outro fator: durante respostas imunes normais, as células B sofrem hipermutações somáticas em seus genes de anticorpos para aumentar a afinidade; esse processo pode gerar novas especificidades autorreativas em células B inicialmente inofensivas . Nesses casos, mecanismos de controle (falta de T helper ou atividade de células B reguladoras produtoras de IL-10) ajudam a prevenir a autoimunidade mediada por anticorpos. Em resumo, a tolerância periférica de linfócitos B envolve anergia, falta de cooperação de T helper e regulação ativa, garantindo que autoanticorpos patogênicos não sejam produzidos em grande quantidade. Resumindo: a tolerância central (no timo e medula óssea) elimina ou edita linfócitos autorreativos durante sua geração , enquanto a tolerância periférica (em linfonodos, baço e tecidos) silencia ou suprime quaisquer linfócitos autorreativos remanescentes . A falha em qualquer dessas etapas – por mutações genéticas ou influências ambientais – pode permitir o desenvolvimento de respostas autoimunes e, consequentemente, doenças autoimunes. Fatores Desencadeantes das Doenças Autoimunes As doenças autoimunes tipicamente resultam de uma combinação de predisposição genética e fatoresdesencadeantes ambientais, num contexto de desregulação imunológica. A etiologia é complexa e multifatorial . Alguns dos principais fatores associados incluem: ● Fatores Genéticos: a suscetibilidade a autoimunidade é em parte hereditária. Estudos epidemiológicos mostram maior concordância de doenças autoimunes em gêmeos idênticos em comparação a fraternos, bem como agregação familiar de casos . Polimorfismos em múltiplos genes imunes podem conferir risco – especialmente genes do Complexo Principal de Histocompatibilidade (MHC). Por exemplo, certos alelos de HLA de classe II estão fortemente associados a doenças autoimunes: HLA-DRB1 com artrite reumatoide (compartilhando o chamado “epítopo compartilhado”), HLA-B27 com espondilite anquilosante e artrites relacionadas, HLA-DQ2/DQ8 com doença celíaca, entre outros . Essas variantes influenciam a apresentação de antígenos próprios e a seleção de linfócitos, predispondo à perda de tolerância. Além do MHC, mutações monogênicas raras ilustram vias críticas: mutação em AIRE causa síndrome poliglandular autoimune (falha de tolerância central); mutação em FOXP3 causa IPEX (síndrome de poliendocrinopatia imune ligada ao X, por falta de Tregs); mutações em FAS causam síndrome linfoproliferativa autoimune (defeito de apoptose de linfócitos) . Assim, o patrimônio genético do indivíduo define um terreno mais propício ou resistente à autoimunidade. Importante: mesmo indivíduos geneticamente susceptíveis geralmente necessitam de um gatilho ambiental para deflagrar a doença. Genética e ambiente interagem para quebrar a tolerância imunológica. ● Fatores Infecciosos: infecções podem iniciar ou agravar doenças autoimunes por diversos mecanismos. Um clássico é o mimetismo molecular, em que proteínas de um microrganismo contêm epítopos semelhantes a proteínas humanas; a resposta imune contra o patógeno acaba reagindo cruzadamente com tecidos do hospedeiro. Exemplo: após infecção por estreptococo do grupo A, alguns pacientes desenvolvem febre reumática, porque anticorpos contra a proteína M do estreptococo atacam tecidos cardíacos devido à semelhança antigênica. Outro mecanismo é a ativação policlonal por superantígenos microbianos (como toxinas de Staph. aureus), que estimulam amplamente linfócitos T/B, incluindo clones autorreativos adormecidos . Há também a ativação bystander: durante uma infecção, a inflamação intensa pode ativar células imunes vizinhas mesmo que não reconheçam diretamente o patógeno, podendo “acordar” linfócitos autorreativos passantes. Além disso, infecções e inflamação podem lesar tecidos e causar necrose, liberando antígenos sequestrados que normalmente não eram expostos ao sistema imune . Essas novas fontes de antígeno próprio podem iniciar autoimunidade (por exemplo, trauma ocular severo expondo proteínas do olho pode desencadear uveíte autoimune no olho contralateral – oftalmia simpática). Diversos agentes infecciosos específicos têm sido associados a doenças autoimunes (vírus Epstein-Barr no lúpus e esclerose múltipla; Porphyromonas gingivalis em artrite reumatoide pela citrulinação de proteínas; vírus Coxsackie B no diabetes tipo 1, etc.), embora nem sempre a causalidade seja direta. Em resumo, infecções podem atuar como “gatilhos” ao provocar inflamação e fornecer os sinais de coestimulação que quebram o estado de tolerância de linfócitos autorreativos previamente inofensivos . ● Fatores Ambientais e Tóxicos: além de infecções, outras exposições ambientais estão implicadas. O tabagismo é um dos fatores de risco mais consistentes para autoimunidade – por exemplo, aumenta em várias vezes o risco de artrite reumatoide em suscetíveis , possivelmente por induzir modificações como citrulinação de proteínas pulmonares (gerando novos autoantígenos) e por promover um estado inflamatório crônico. Radiação ultravioleta (UV) em excesso pode precipitar ou agravar lúpus eritematoso sistêmico, pois danifica células da pele liberando autoantígenos nucleares (como DNA e histonas) e alterando a resposta imune. Substâncias químicas e fármacos também podem influenciar: por exemplo, exposição a sílica associou-se a esclerose sistêmica; certos medicamentos podem induzir lúpus fármaco-induzido (como hidralazina, procainamida) ou fenômenos autoimunes hemolíticos. Toxinas e poluentes ambientais têm sido estudados pela possível capacidade de alterar funções imunes ou causar modificações pós-traducionais em proteínas próprias, tornando-as imunogênicas. Dieta e microbiota intestinal são fatores emergentes: mudanças no microbioma (flora bacteriana) intestinal ou oral podem desequilibrar a tolerância oral e sistêmica, contribuindo para doenças como artrite reumatoide e doenças inflamatórias intestinais . Por exemplo, disbiose intestinal pode promover respostas autoimunes através de permeabilidade intestinal aumentada ou apresentação de antígenos microbianos miméticos. ● Fatores Hormonais: diferenças de gênero nos padrões de autoimunidade sugerem um papel importante dos hormônios. Aproximadamente 80% dos pacientes acometidos por doenças autoimunes são mulheres. Doenças como lúpus eritematoso sistêmico, tireoidites autoimunes e artrite reumatoide são 2 a 10 vezes mais frequentes no sexo feminino . Acredita-se que o estrogênio e outros hormônios sexuais modulam a resposta imune – o estrogênio em particular tende a promover imunidade humoral e respostas Th2, podendo exacerbar autoanticorpos, enquanto níveis androgênicos mais altos (nos homens) podem ser protetores. Mulheres frequentemente relatam mudanças na atividade de doenças autoimunes conforme ciclos hormonais, gravidez ou menopausa, reforçando essa ligação. Por exemplo, lúpus pode agravar durante gestação (quando estrogênios e prolactina estão elevados) e melhorar pós-parto. Já a artrite reumatoide frequentemente melhora durante a gravidez (quando o ambiente imunológico tende a ficar mais tolerogênico) e piora após o parto. Assim, hormônios e fatores ligados ao sexo influenciam a perda de tolerância, embora os mecanismos exatos (receptores hormonais em células imunes, regulação de genes imunológicos pelo estrogênio, etc.) ainda estejam em estudo . ● Estresse e Fatores Neurológicos: o estresse físico ou psicológico intenso pode afetar o eixo neuroendócrino e o sistema imune, potencialmente desencadeando ou agravando autoimunidade. Situações de estresse liberam hormônios (cortisol, adrenalina) que, em curto prazo, modulam a imunidade. O estresse crônico, porém, pode desequilibrar respostas imunes e está correlacionado com início ou flares de condições autoimunes em alguns estudos. Embora difícil de quantificar, pacientes frequentemente atribuem o surgimento de sintomas autoimunes a eventos de vida estressantes. Em resumo, predisposição genética (como alelos HLA de risco) fornece o “terreno”, enquanto fatores ambientais/infecciosos atuam como “gatilhos” que iniciam a autoimunidade em indivíduos susceptíveis. Fatores hormonais e outros moduladores podem influenciar a gravidade e a incidência, explicando padrões epidemiológicos (ex.: maior incidência em mulheres). Todos esses elementos convergem para o rompimento da autotolerância imunológica e estabelecimento da resposta autoimune patogênica. Tipos de Hipersensibilidade (I, II, III e IV): O termo hipersensibilidade refere-se a respostas imunes exacerbadas, desreguladas ou inadequadas, que resultam em dano tecidual mesmo na ausência de uma ameaça real. Ou seja, o sistema imune reage de forma desproporcional a antígenos inócuos (como no caso de alérgenos) ou próprios (como nas doenças autoimunes). ● Tipo I – Hipersensibilidade Imediata (IgE-mediada, “anafilática”): caracteriza-se por uma resposta rápida (em minutos) mediada por anticorpos IgE específicos contra um antígeno (alérgeno) . Pessoas atópicas produzem IgE em resposta a antígenos normalmente inócuos(poeira, pólens, alimentos, veneno de insetos, medicamentos). O IgE fixa-se à superfície de mastócitos (no tecido) e basófilos (no sangue) através de receptores Fcε. Na reexposição ao alérgeno, este se liga ao IgE de membrana, desencadeando a degranulação celular com liberação de mediadores pré-formados (ex.: histamina, triptase) e síntese de novos mediadores lipídicos (prostaglandinas, leucotrienos) e citocinas pró-inflamatórias . Esses mediadores causam vasodilatação, aumento da permeabilidade vascular, broncoconstrição, produção de muco e recrutam células inflamatórias (como eosinófilos e linfócitos Th2) para os tecidos . Clinicamente, as reações do tipo I incluem as alergias atópicas – rinite alérgica, asma alérgica, dermatite atópica – e anafilaxia sistêmica. Por exemplo, em uma alergia alimentar ou a picada de abelha, a pessoa sensibilizada pode desenvolver urticária, edema de lábios, sibilos brônquicos e hipotensão poucos minutos após a exposição (anafilaxia). As manifestações atópicas, como rinite e asma, refletem a ação local dos mediadores (histamina causando coriza e espirros na mucosa nasal; leucotrienos causando broncoespasmo nos pulmões). Portanto, a hipersensibilidade tipo I é uma reação imediata desencadeada por IgE e mastócitos, com sintomas alérgicos clássicos. ● Tipo II – Hipersensibilidade Citotóxica Mediada por Anticorpos: envolve anticorpos IgG ou IgM dirigidos contra antígenos presentes na superfície de células ou na matriz extracelular do próprio paciente. Quando esses anticorpos se ligam ao alvo, formam complexos imunes fixados nas células, os quais ativam mecanismos efetores que causam destruição ou disfunção celular. Diferentemente do tipo III, aqui os imunocomplexos são formados in situ na membrana celular . Os principais mecanismos lesivos são: ativação do complemento (levando à lise celular ou opsonização e fagocitose pela deposição de C3b) e citotoxicidade mediada por células dependente de anticorpo (ADCC, pela qual células NK reconhecem a porção Fc do anticorpo ligado à célula-alvo e induzem apoptose). Exemplos clássicos de tipo II incluem: anemias hemolíticas autoimunes e púrpura trombocitopênica imune (anticorpos contra células sanguíneas levam à sua destruição); síndrome de Goodpasture (autoanticorpos contra membrana basal glomerular e alveolar causam nefrite e hemorragia pulmonar); febre reumática (anticorpos pós-estreptococo reagem com cardíacos); e certas doenças endócrinas como tireoidite de Hashimoto (anticorpos contra antígenos da tireoide levam à destruição da glândula) . Também reações a medicamentos podem ser tipo II: por exemplo, penicilina pode se ligar à membrana de eritrócitos formando um neoantígeno, e anticorpos contra essa combinação causam hemólise. Além de citotoxicidade, anticorpos do tipo II podem causar disfunção celular sem necessariamente destruí-las – e.g., na miastenia gravis, autoanticorpos bloqueiam receptores de acetilcolina na junção neuromuscular, causando fraqueza; na doença de Graves, autoanticorpos estimulam indevidamente o receptor de TSH na tireoide, causando hipertireoidismo. Assim, a característica unificadora do tipo II é: anticorpos IgG/IgM dirigidos a componentes celulares ou teciduais do hospedeiro, provocando dano ou alteração funcional nesses alvos . ● Tipo III – Hipersensibilidade por Imunocomplexos: neste tipo, o dano tecidual é mediado por complexos imunes antígeno-anticorpo circulantes que se depositam em vários tecidos, desencadeando inflamação local . Ou seja, diferente do tipo II, os anticorpos do tipo III não estão fixados diretamente a células, mas sim formam agregados solúveis com antígenos solúveis. Quando esses imunocomplexos ficam grandes ou numerosos, podem se precipitar e depositar na parede de vasos sanguíneos, membranas sinoviais, glomérulos renais e outros locais filtrantes . Lá, ativam o sistema complemento e recrutam leucócitos (especialmente neutrófilos), liberando enzimas e radicais livres que lesam os tecidos adjacentes. As manifestações geralmente aparecem dias após a exposição ao antígeno, quando os complexos se formam em quantidade ótima (existe um intervalo de 4–10 dias típico para reações sistêmicas tipo III). Exemplos: a doença do soro clássica, que ocorre quando proteínas estranhas (ex.: soro antitoxina) induzem formação de imunocomplexos circulantes – o paciente desenvolve febre, artralgias, erupção cutânea e glomerulonefrite cerca de 1–2 semanas após receber o soro, devido aos depósitos de complexos nos vasos e glomérulos. Outro exemplo é a reação de Arthus, um fenômeno local: após injeções repetidas de antígeno (vacina, por exemplo) no mesmo local, altos níveis de IgG formam complexos locais que causam uma vasculite cutânea (edema, hemorragia e necrose no local da injeção em 4–8 horas). Muitas doenças autoimunes sistêmicas envolvem hipersensibilidade tipo III, pois autoanticorpos formam complexos com antígenos próprios nucleares ou de outros tecidos e depositam-se: o lúpus eritematoso sistêmico (LES) é prototípico, com imunocomplexos DNA-antiDNA depositando nos rins (lúpus causa nefrite por imunocomplexos) . A própria artrite reumatoide tem componente de tipo III – o fator reumatoide (IgM anti-IgG) e anticorpos anti-CCP podem formar imunocomplexos que agravam a sinovite. Outras condições tipo III incluem vasculites como poliarterite nodosa (em parte causada por complexos com antígenos virais, ex. hepatite B) e glomerulonefrites pós-infecciosas (ex.: nefrite após infecção estreptocócica, por depósitos de complexos antígeno-estrepto/anticorpo nos glomérulos). Portanto, a marca do tipo III é a inflamação mediada por imunocomplexos circulantes depositados, com ativação do complemento e infiltração neutrofílica levando a danos nos tecidos afetados. Tipicamente vemos vasculite, artrite e nefrite nas manifestações, pois vasos, juntas e rins são alvos clássicos de deposição de complexos. ● Tipo IV – Hipersensibilidade Tardia (Mediada por Células T): é uma reação de imunidade celular, independente de anticorpos, mediada por linfócitos T sensibilizados que reconhecem antígenos e orquestram uma resposta inflamatória demorada (de 24–48h até dias) . Existem dois subtipos principais: reações de hipersensibilidade tardia clássicas mediadas por células T helper CD4⁺ (Th1 e Th17), e reações citotóxicas mediadas por linfócitos T CD8⁺. No tipo IV clássico (Th1/Th17), após a sensibilização inicial, uma reexposição ao antígeno faz com que linfócitos T previamente sensibilizados sejam recrutados ao local e liberem citocinas (como interferon-gama, IL-2, TNF-α) que ativam macrófagos, neutrófilos e outras células efetoras . Esses fagócitos ativados causam lesão tecidual por enzimas e radicais livres, além de formar granulomas em casos de estímulo persistente. É o mecanismo de, por exemplo, teste tuberculínico (PPD) positivo – onde linfócitos T sensibilizados contra proteínas do Mycobacterium tuberculosis causam um endurecimento e vermelhidão na pele 48h após a injeção do antígeno (reação de Mantoux). Outro exemplo é a dermatite de contato (como a alergia a hera venenosa, níquel, látex): moléculas haptênicas penetram a pele, ligam-se a proteínas e tornam-se antigênicas; linfócitos T causam reação inflamatória local após 1-2 dias, resultando em eczema pruriginoso. Já as reações tipo IV mediadas por linfócitos T citotóxicos CD8⁺ envolvem destruição direta de células que exibem o antígeno (por exemplo, em certas rejeições de transplante e na patogênese do diabetes tipo 1, em que CD8⁺ destroem células beta pancreáticas). No geral, as reações de hipersensibilidade do tipo IV tendem a atingir o pico horas ou dias após o contato com o antígeno, daí serem chamadas de “tardias” ou retardadas . Exemplos notáveis incluem: tuberculose e sarcoidose (granulomas formados pela resposta Th1 persistente contra antígenos difíceisde eliminar), rechazo crônico de transplantes e múltiplas doenças autoimunes mediadas por células T (esclerose múltipla – autoimunidade contra mielina do SNC; diabetes tipo 1 – contra ilhotas pancreáticas; artrite reumatoide – componente de resposta de células T na sinovial). Reações cutâneas a fármacos como Steven-Johnson e DRESS também envolvem imunidade celular (muitas vezes CD8⁺) dirigidas contra células da pele . Assim, a hipersensibilidade tipo IV resume-se a linfócitos T sensibilizados causando inflamação e lesão tecidual de forma retardada, sem participação direta de anticorpos . Artrite Reumatoide: Sintomas, Fisiopatologia e Imunologia A artrite reumatoide (AR) é uma doença autoimune sistêmica que se manifesta principalmente como uma poliartrite crônica, simétrica e erosiva, afetando várias articulações periféricas. É uma das doenças reumáticas autoimunes mais comuns, com prevalência ~1% e predomínio no sexo feminino (proporção mulher:homem de cerca de 3:1). A AR ilustra muitos conceitos de autoimunidade e hipersensibilidade discutidos anteriormente, combinando autoanticorpos e imunidade celular na sua patogênese. Sintomas e Quadro Clínico: Classicamente, a artrite reumatoide inicia insidiosamente com dor e inchaço articular em articulações das mãos e punhos, frequentemente acompanhados de rigidez matinal prolongada (> 1 hora) que melhora ao longo do dia. As articulações acometidas geralmente são simétricas em ambos os lados do corpo – por exemplo, envolvimento de ambas as articulações metacarpofalângicas (dedos das mãos) e punhos. Qualquer articulação sinovial pode ser afetada, mas as pequenas articulações das mãos, punhos e pés são tipicamente as primeiras. O paciente pode relatar dificuldade para mover as mãos pela manhã (devido à rigidez), além de dor e edema nas articulações envolvidas. Ao exame, as juntas estão edemaciadas, dolorosas, com calor e limitação de movimento; a inflamação crônica pode levar a deformidades ao longo do tempo. Sintomas sistêmicos também são comuns em AR ativa: mal-estar, fadiga vespertina, fraqueza, perda de apetite e febrícula podem acompanhar a doença , refletindo a natureza inflamatória sistêmica. Em alguns casos a doença começa de forma aguda, em dias, imitando um quadro infeccioso, mas na maioria é subaguda e progressiva. Com a progressão da artrite, a destruição articular leva a deformidades características. Uma das mais típicas é o desvio ulnar dos dedos, em que os dedos das mãos desviam-se em direção ao lado do dedo mínimo devido ao dano nas articulações metacarpofalangeanas e nos ligamentos de suporte. Outras deformidades incluem dedos em pescoço de cisne (hiperextensão da articulação interfalangeana proximal e flexão da distal) e dedos em abotoadura (boutonnière) – resultantes do desequilíbrio tendinoso causado pela erosão articular. Com o comprometimento ligamentar, pode haver subluxações e instabilidade articular; por exemplo, instabilidade atlanto-axial na coluna cervical em casos avançados. Nódulos subcutâneos reumatoides (nódulos firmes, não dolorosos, frequentemente sobre proeminências ósseas como cotovelos) são uma manifestação extra-articular clássica, embora não apareçam no início da doença. Pode ocorrer também síndrome do túnel do carpo (compressão do nervo mediano por sinovite no punho) e cistos de Baker (cisto poplíteo decorrente de efusão no joelho) . Deformidades fixas podem se desenvolver rapidamente em doença não controlada, levando a significativa perda de função. Figura: Mão de paciente com artrite reumatoide de longa data, exibindo desvio ulnar dos dedos e deformidades articulares. Essas alterações resultam da destruição da cartilagem, erosão óssea e frouxidão ligamentar decorrentes da inflamação crônica na AR. Em estágios avançados, as mãos podem apresentar subluxações das articulações e atrofia muscular interóssea, contribuindo para dificuldade em realizar tarefas diárias. O tratamento adequado e precoce com medicamentos antirreumáticos pode prevenir ou minimizar essas deformidades, reforçando a importância do diagnóstico precoce. Fisiopatologia e Processos Imunológicos: A AR é prototípica de uma doença autoimune mediada por imunocomplexos (tipo III) e imunidade celular (tipo IV). O alvo primário é a membrana sinovial que reveste as articulações. Acredita-se que, em indivíduos geneticamente predispostos (por exemplo, portadores de certos alelos HLA-DRB1 com o “epítopo compartilhado”), um fator ambiental (como tabagismo ou infecção periodontal crônica por Porphyromonas gingivalis) desencadeie uma resposta autoimune contra antígenos articulares. Uma hipótese é que proteínas articulares sofram modificações pós-traducionais (como citrulinação de peptídeos), tornando-se “estranhas” ao sistema imune e desencadeando produção de autoanticorpos (como anti-peptídeo citrulinado, anti-CCP) . Na fase inicial, células imunes começam a infiltrar a sinóvia articular. Linfócitos T CD4⁺ (principalmente do subtipo Th1 e Th17) infiltram o tecido sinovial e reconhecem algum antígeno local (ainda não definido com precisão; pode ser colágeno tipo II ou proteína citrulinada). Esses linfócitos secretam citocinas como IFN-γ, IL-17, TNF-α e IL-1, recrutando e ativando macrófagos e outras células . Macrófagos e células da sinóvia ativadas produzem mais citocinas pró-inflamatórias (TNF-α, IL-1, IL-6, IL-8, GM-CSF) e enzimas que perpetuam a inflamação e causam dano tecidual . A sinóvia normal, que é fina, prolifera e se torna uma membrana espessa e hiperplásica chamada pannus. Este pannus cheio de células inflamatórias invade a cartilagem e os ossos adjacentes, liberando proteases e osteoclastos ativadores que erodem o osso subcondral e destruem a cartilagem articular . Dessa forma ocorre a lesão estrutural progressiva: erosões ósseas nas margens articulares e destruição da cartilagem levam à instabilidade e deformidade articular. Um componente marcante da AR é a produção de autoanticorpos. As células B ativadas na membrana sinovial se diferenciam em plasmócitos que secretam anticorpos, entre eles o Fator Reumatoide (FR) – geralmente uma imunoglobulina (IgM) dirigida contra a porção Fc de IgG – e os anticorpos anti-CCP (contra peptídeos citrulinados cíclicos). Esses anticorpos formam imunocomplexos com seus antígenos (FR forma complexos IgM-IgG, anti-CCP se liga a proteínas citrulinadas) dentro da articulação e na circulação . Os imunocomplexos depositados na sinóvia e vasos sinoviais ativam complemento, atraindo mais leucócitos e amplificando a inflamação local (um mecanismo de hipersensibilidade tipo III). Apesar de presentes em muitos pacientes, é importante notar que cerca de 20% dos casos de AR podem ser “soronegativos” (sem FR ou anti-CCP detectáveis) e ainda assim terem artrite erosiva – indicando que fatores celulares também são críticos. Dentro da articulação inflamada, encontramos: sinoviócitos transformados (semelhantes a fibroblastos agressivos), grandes quantidades de macrófagos, linfócitos T CD4⁺ dominantes e alguns linfócitos B/plasmócitos. No líquido sinovial, um infiltrado de neutrófilos (60-80% das células) está presente , os quais fagocitam imunocomplexos e liberam enzimas lisossômicas que contribuem para a destruição da cartilagem. As citocinas-chave da AR – TNF-α, IL-1, IL-6 – provocam sintomas sistêmicos (febre, perda de apetite, fadiga) e articulares (destruição tecidual). O TNF em particular tem efeito central, estimulando a produção de enzimas destrutivas pelos sinoviócitos e a diferenciação de osteoclastos que corroem os ossos adjacentes. Tanto que terapias anti-TNF (como infliximabe, adalimumabe) conseguem suprimir dramaticamente a atividade da doença, evidenciando o papel desse mediador . Em resumo, a artrite reumatoide envolve uma reação autoimune crônica no compartimento articular, em que linfócitos T ativados e autoanticorpos levam a uma cascatainflamatória mediada por citocinas e imunocomplexos. O resultado é uma sinovite proliferativa (pannus) que destrói cartilagem, osso e ligamentos das articulações, causando dor, deformidade e perda de função . Processos de hipersensibilidade do tipo III (imunocomplexos IgM-IgG depositados) e tipo IV (infiltrado de células T e macrófagos produtor de citocinas) atuam em conjunto na patogênese. Clinicamente, além do acometimento articular, a AR pode ter manifestações extra-articulares imunomediadas: nódulos reumatoides, vasculite sistêmica (pequenos vasos), pleurite/pericardite, síndrome de Sjögren secundária (xerostomia e xeroftalmia), entre outras – todas refletindo a natureza sistêmica autoimune da doença. O manejo da artrite reumatoide envolve medicamentos anti-inflamatórios e imunomoduladores (vide próxima seção) para controlar a inflamação, prevenir dano articular e melhorar a qualidade de vida do paciente . O entendimento de sua fisiopatologia autoimune permitiu terapias alvo, como os anti-TNF-α, anti-IL-6 e moduladores de células B (rituximabe), que revolucionaram o tratamento, comprovando na prática clínica a importância desses mediadores inflamatórios identificados na pesquisa básica. Mecanismos de Ação: Corticosteroides vs AINEs O controle farmacológico da inflamação e dos sintomas imunológicos na prática médica frequentemente envolve dois grandes grupos de anti-inflamatórios: os corticosteroides (esteróides) e os anti-inflamatórios não esteroides (AINEs). Ambos reduzem a inflamação, porém atuam por mecanismos bem distintos e têm indicações e perfis de efeitos colaterais diferentes. A seguir detalhamos como cada grupo age no nível molecular: Corticosteroides (Antiinflamatórios Esteroidais) Os corticosteroides (como prednisona, metilprednisolona, dexametasona) são análogos sintéticos do hormônio cortisol, produzidos nas glândulas adrenais. Eles exercem potentes efeitos antiinflamatórios e imunossupressores modulando a transcrição de genes em células do sistema imune. O mecanismo de ação dos glicocorticoides pode ser resumido em: inibição da síntese de mediadores pró-inflamatórios e aumentO de fatores antiinflamatórios dentro das células imunológicas . Após administração, os corticosteroides entram nas células e se ligam a receptores de glicocorticoide citoplasmáticos. Esse complexo receptor-esteróide transloca-se para o núcleo, onde se liga a regiões regulatórias de DNA influenciando a transcrição gênica. Os efeitos genômicos principais incluem: ● Inibição da Fosfolipase A2: Os corticosteroides induzem a produção de proteínas inibitórias, como lipocortina-1 (annexina-1), que bloqueiam a enzima fosfolipase A2. Com isso, impede-se a liberação do ácido araquidônico dos fosfolipídeos de membrana . O ácido araquidônico é o precursor de prostaglandinas e leucotrienos, importantes mediadores da inflamação. Ou seja, ao inibir a fosfolipase A2, os esteróides suprimem a geração de todos os eicosanoides inflamatórios (prostaglandinas, tromboxanos via ciclooxigenase; e leucotrienos via lipoxigenase). Isso reduz vasodilatação, edema, dor e recrutamento leucocitário mediados por esses lipídios inflamatórios. ● Inibição de Fatores de Transcrição (NF-κB e AP-1): Os glicocorticoides estimulam a expressão de IκB-α, que é um inibidor citoplasmático do fator nuclear κB (NF-κB). Com mais IκB, o NF-κB permanece inativo, e assim há redução na transcrição de diversas citocinas pró-inflamatórias (IL-1, IL-2, IL-6, TNF-α, GM-CSF, etc.) e de enzimas inflamatórias como COX-2 . Além de NF-κB, os receptores de glicocorticoide podem interagir diretamente com o fator AP-1 (ativador protein-1), bloqueando também a expressão de genes de citocinas e metaloproteinases. Na prática, isso significa que células imunológicas sob efeito de corticóide produzem menos citocinas sinalizadoras de inflamação (diminuindo a ativação e recrutamento de leucócitos) e menos enzimas que gerariam mediadores inflamatórios (ex: inibição da indução de NO sintetase e COX-2 diminui óxido nítrico e prostaglandinas inflamatórias) . ● Efeitos Celulares e Outros Mediadores: Corticosteroides também causam redistribuição de leucócitos: promovem a saída de linfócitos da circulação para órgãos linfóides, levando a linfopenia relativa no sangue; também reduzem a extravasação de neutrófilos para os tecidos inflamados (embora aumentem sua contagem no sangue por “desmarginação”). Induzem apoptose de células T ativadas e eosinófilos, contribuindo à imunossupressão. Adicionalmente, estabilizam membranas de lisossomos e diminuem a liberação de enzimas teciduais; reduzem a expressão de moléculas de adesão endoteliais, dificultando o recrutamento de neutrófilos e monócitos ao foco inflamatório. Todos esses efeitos somados resultam em uma marcada redução da resposta inflamatória. Em suma, os corticosteroides agem em múltiplos pontos da cascata inflamatória: inibem a gênese de mediadores (eicosanoides, citocinas) e a função efetora das células imunes. O resultado é diminuição do edema, do calor, do eritema e da dor no local inflamado, além de efeitos imunossupressores sistêmicos importantes . Devido a essa forte ação, corticosteroides são indicados para inflamações intensas e sistêmicas, como em exacerbações de doenças autoimunes (artrite reumatoide grave, lúpus), crises asmáticas, rejeição de transplantes, etc. Em contrapartida, seu uso prolongado traz diversos efeitos adversos (síndrome de Cushing, osteoporose, diabetes, maior suscetibilidade a infecções), refletindo justamente sua potente modulação fisiológica. AINEs (Antiinflamatórios Não Esteroidais) Os AINEs constituem um grande grupo de fármacos (ibuprofeno, diclofenaco, naproxeno, aspirina, cetoprofeno, etc.) usados principalmente para alívio de dor, febre e inflamação de grau leve a moderado. Diferentemente dos corticosteroides, os AINEs não agem na expressão de citocinas ou genes imunes, mas sim bloqueiam enzimas-chave da via do ácido araquidônico, especialmente as ciclo-oxigenases (COX) . Assim, atuam de forma mais restrita na cascata inflamatória, principalmente reduzindo a síntese de prostaglandinas. O mecanismo fundamental: A maioria dos AINEs é inibidor competitivo ou irreversível das enzimas COX-1 e/ou COX-2 (também chamadas de prostaglandina G/H sintase). A COX converte o ácido araquidônico em prostaglandina G2 e H2, passos iniciais para formar vários eicosanoides: prostaglandinas, prostaciclina (PGI2) e tromboxano A2 . Ao inibir COX, os AINEs impedem a formação dessas prostaglandinas e tromboxanos finais. ● As prostaglandinas (PGE2, PGD2, PGF2α) são mediadores que causam vasodilatação, aumento da permeabilidade vascular (edema) e sensibilizam terminações nervosas à dor (hiperalgesia). PGE2 também atua no hipotálamo induzindo febre. Portanto, ao reduzir prostaglandinas, os AINEs promovem efeito anti-inflamatório, analgésico (para dores inflamatórias) e antipirético. Por exemplo, a PGE2 é responsável pela sensibilização à dor e febre; bloqueá-la reduz a dor e a febre do paciente . ● A prostaciclina (PGI2) é produzida pelo endotélio e causa vasodilatação e inibição da agregação plaquetária, enquanto o tromboxano A2 (TxA2) é produzido por plaquetas e causa vasoconstrição e agregação plaquetária . Os AINEs tradicionais inibem ambas COX-1 e COX-2, reduzindo tanto PGI2 quanto TXA2. Já os AINEs seletivos para COX-2 (como celecoxibe) poupam a COX-1 (constitutiva nas plaquetas e estômago) e focam na COX-2 (induzida na inflamação). Isso teoricamente manteria a proteção gástrica (mediada por prostaglandinas da COX-1) enquanto trata a inflamação . Contudo, a inibição seletiva de COX-2 diminui a prostaciclina endotelial mas não o tromboxano plaquetário (COX-1 das plaquetas ainda ativa), o que pode predispor à trombose – por isso AINEs seletivos COX-2 foram associados a maior risco cardiovascular . Em termos práticos,ao inibir COX e prostaglandinas, os AINEs aliviam os quatro sinais da inflamação: reduz rubor e calor (menos vasodilatação), reduzem tumor ou edema (menos permeabilidade capilar) e atenuam dor (menos sensibilização de nociceptores). Também abaixam a febre (menos PGE2 no hipotálamo). Essa ação explica sua ampla utilidade em condições como artrites, lesões musculoesqueléticas, cefaleias, cólicas menstruais (as prostaglandinas causam contrações e dor uterina) e estados febris. Entretanto, como as prostaglandinas também exercem funções fisiológicas protetoras, a inibição pelas AINEs traz efeitos colaterais previsíveis. Por exemplo, prostaglandinas gástricas (via COX-1) protegem a mucosa do estômago – com AINEs, a diminuição de PGE2 gástrica leva a risco de gastropatia e úlceras. Prostaglandinas renais regulam perfusão glomerular – AINEs podem prejudicar a função renal em suscetíveis. AINEs não seletivos também inibem tromboxano nas plaquetas (ex: aspirina inibe irreversivelmente TXA2 via COX-1), causando efeito antiagregante plaquetário – benefício em prevenção cardiovascular com aspirina em baixa dose, mas podendo gerar sangramentos. Já os inibidores seletivos de COX-2, como citado, têm menos efeito gástrico mas podem alterar o equilíbrio PGI2/TxA2 e aumentar risco de eventos trombóticos . Em síntese, AINEs atuam principalmente bloqueando a via da ciclo-oxigenase do ácido araquidônico, suprimindo a produção de prostaglandinas e tromboxanos envolvidos na inflamação, dor e febre . Eles não suprimem a resposta imune adaptativa de forma ampla (como corticoides fazem), sendo portanto menos eficazes em condições autoimunes severas, porém mais seguros para uso prolongado moderado. Corticosteroides, por outro lado, agem amplamente na cascata inflamatória imunológica, reduzindo citocinas e células efetoras, o que os torna muito potentes para controlar inflamações intensas, porém com maior risco de efeitos adversos sistêmicos . Frequentemente, usa-se AINEs para controle sintomático da dor e inflamação leve/moderada (ex: nas artrites ou lesões agudas), enquanto corticoides são reservados para inflamações graves, autoimunidade ativa ou para “indução de remissão” até que outras terapias de base façam efeito. Ambos os grupos ilustram estratégias distintas de interferir no processo inflamatório: os AINEs bloqueando enzimas geradoras de mediadores e os corticoides regulando a expressão gênica de múltiplos mediadores e células no sistema imunológico. Referências: As informações apresentadas foram embasadas em literatura imunológica e farmacológica atual, incluindo dados do Manual MSD (Merck) , artigos de revisão em imunologia clínica e diretrizes médicas recentes. As reações de hipersensibilidade foram descritas conforme a classificação de Gell-Coombs , e os mecanismos terapêuticos conforme as bases farmacológicas dos medicamentos. Este conteúdo visa consolidar conceitos-chave de autoimunidade e imunopatologia para estudantes de medicina de forma didática e integrada. Doenças Autoimunes e Perda da Autotolerância Tolerância Imunológica Central e Periférica (Linfócitos T e B) Fatores Desencadeantes das Doenças Autoimunes Tipos de Hipersensibilidade (I, II, III e IV): O termo hipersensibilidade refere-se a respostas imunes exacerbadas, desreguladas ou inadequadas, que resultam em dano tecidual mesmo na ausência de uma ameaça real. Ou seja, o sistema imune reage de forma desproporcional a antígenos inócuos (como no caso de alérgenos) ou próprios (como nas doenças autoimunes). Artrite Reumatoide: Sintomas, Fisiopatologia e Imunologia Mecanismos de Ação: Corticosteroides vs AINEs Corticosteroides (Antiinflamatórios Esteroidais) AINEs (Antiinflamatórios Não Esteroidais)