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>RY H ROBERT MI McKEE & THOMAS GERACEPortuguese Language Translation copyright 2021 by Novo Mercado Escola de Marketing Copyright c 2018 by Robert McKee and Thomas Gerace All Rights Reserved. Publisher Rodrigo Simonsen Projeto gráfico Gustavo Piqueira e Samia Rex Editoração Carol Vapsys e Kaique Xavier / Casa Rex Tradução Paulo Sette-Câmara Preparação Pedro Valadares Revisão Eduarda Rimi Marketing Fabio Marques Redação Graziela Simões Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada ou reproduzida - em qualquer meio ou forma, seja mecânico ou eletrônico, gravação nem apropriada ou estocada em sistema de bancos de dados, sem a expressa autorização da editora Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) McKee, Robert Storynomics : marketing baseado em histórias no mundo pós-propaganda / Robert McKee e Thomas Gerace : tradução Pedro -- Santos, SP : Título original: ISBN 978-65-995213-3-1 1. Comunicação 2. Consumidores 3. Marketing 4. Marketing - Administração 5. Publicidade Gerace, 21-76375 CDD-658.802 Índices para sistemático: Marketing : Administração estratégica : Administração de empresas 658.802 Ellete Marques da Silva - Bibliotecária - CRB-8/9380Para Mia. Seu amor dá sentido a todas as coisas. Robert McKee Para meus pais, Ann Jones Gerace e Samuel Philip Gerace, que me ensinaram a gostar de uma boa história. Tom GeraceAGRADECIMENTOS p.9 INTRODUÇÃO A CRISE DO MARKETING p.11 PARTE 1 A REVOLUÇÃO DO MARKETING CAPÍTULO 1 PROPAGANDA, A HISTÓRIA DE UM VÍCIO p.19 CAPÍTULO 2 MARKETING, A HISTÓRIA DE UMA FRAUDE PARTE 2 A CRIAÇÃO DE HISTÓRIAS HISTÓRIAS: A ADAPTAÇÃO EVOLUTIVA À CONSCIÊNCIA CAPÍTULO 3 A EVOLUÇÃO DAS HISTÓRIAS p. 51 CAPÍTULO 4 A DEFINIÇÃO DE HISTÓRIA p. CAPÍTULO 5 A HISTÓRIA TODA p.75 CAPÍTULO 6 A HISTÓRIA CONTADA COM PROPÓSITO p. 99 PARTE 3 HISTÓRIAS NA PRÁTICA INTRODUÇÃO p. 135 CAPÍTULO 7 AS HISTÓRIAS E DIRETOR DE MARKETING CAPÍTULO 8 BRANDING HISTORIFICADO p. CAPÍTULO 9 PROPAGANDA HISTORIFICADA p. 163 CAPÍTULO 10 DEMANDA HISTORIFICADA E GERAÇÃO DE LEADS p. 171 CAPÍTULO 11 CONSTRUINDO PÚBLICO p.191 CAPÍTULO 12 VENDAS HISTORIFICADAS p.207 CAPITULO 13 NOMICS p.221 CONCLUSÃO p.227 NOTAS p. .233Agradecemos especialmente a Mia Kim por sua liderança inspirada e incansável de toda a empreitada Storynomics. Ainda estaríamos fazendo rascunhos se Mia não tivesse nos posto para trabalhar. Agradecemos a Linda Boff, da GE; a Raja Rajamannar da Mas- tercard; a Caleb Barlow, da IBM; a Jeanniey Mullen, da Mercer; a Natalie Malaszenko, da Overstock; a David Beebe, da Marriott; e a Patrick Davis, da Davis Brand Capital, que tiveram a bondade de dividir seu tempo e sua sabedoria conosco. Agradecemos também a Tricia Travaline, a Genevieve Colton, a Adam Vavrek, a Ruben Sanchez e a Dara Cohen, que trabalharam duro para que a empreitada Storynomics fosse um sucesso. Somos gratos a Marcia Friedman e a Tom Hardej, que editaram nosso primeiro manuscrito e ajudaram a manter a constância de e a Carl Rosendorf, a Ann Gerace, a Darryl Gehly, a Dan Baptiste, a Rob Murray, a Caleb Gonsalves, a Lauren Meyer, a Michael Gowen, a Kent Lawson, a Bob Dekoch, a Jim Rossmeissi, e a outras pessoas na Skyword, Boldt, and Beyond, que leram as primeiras versões do livro e deram um feedback de valor inestimável ao longo do ca- minho. E agradecemos a Jim Manzi por seu apoio inabalável e por sua crença no poder das histórias para impelir mudanças. Vou arriscar uma previsão. Quando você tiver oitenta anos e estiver num momento silencioso e pensativo, contando só para si a versão mais pessoal da história da sua vida, a versão mais compacta e significativa será a da série de escolhas que você fez. No final, nós somos nossas escolhas. Jeff Bezos, Discurso de Formatura de Princeton de 2010INTRODUÇÃO A CRISE DO MARKETING11 A CRISE DO MARKETING Olhe em volta. Está acontecendo. Os consumidores, aos milhões e milhões, estão cortando o arame farpado da mídia aprisionada por anúncios e sumindo numa floresta de assinaturas pagas e ad blockers. Nem adianta ir atrás dessas pessoas. Elas foram embora e nunca mais vão voltar. Agora olhe à frente. Não vai demorar muito para que todas as comu- nicações públicas e privadas - entretenimento, notícias, música, espor- tes, mídias sociais, buscas on-line - não tenham anúncios, deixando as laterais dos ônibus como o meio de publicidade de último recurso. Os millennials, mercado essencial composto dos que têm menos de quarenta anos, não apenas estão expulsando a propaganda de suas vidas, como ainda estão escarnecendo da própria propaganda em si, acusando suas bravatas e promessas de serem enganosas e manipula- doras, estando a um passo da microagressão. Aliás, um estudo recente revelou que, nos últimos cinco anos, o número de pessoas com menos de quarenta anos que assistem à televisão caiu 30%, ao passo que ser- viços over the top sem anúncios, como a Netflix,12 A REVOLUÇÃO DO MARKETING A saída em massa dos consumidores e a queda resultante na receita de publicidade jogaram incontáveis empresas de mídia - Tribune Me- dia, 21st Century Media, SBC Media, Relativity Media, Cumulus Media, Next Media, Citadel Broadcasting, o Sun-Times, Borders, Blockbuster, Reader's Digest, e dezenas de outras empresas multibilionárias nas lixeiras da Em 2015, 76% dos marqueteiros consultados pela Adobe afirma- ram que o marketing tinha mudado mais nos últimos dois anos do que em todas as décadas desde o nascimento da televisão. Muitos diretores de marketing juram que nunca mais vão confiar na propaganda para atrair clientes. Alguns diretores condenam as agências de publicidade por terem perdido tempo e dinheiro tentando fazer anúncios criativos no estilo daqueles do Super Bowl em vez de tentar ter efetividade de mercado. Outros culpam o ruído dos anúncios gratuitos on-line, que abafa os anúncios pagos. Outros ainda reclamam que a queda no re- torno do investimento (ROI) e o aumento dos custos fazem com que anunciar seja simplesmente caro demais. Claro que, se a propaganda subitamente trouxesse de volta as massas de consumidores das déca- das passadas, tudo seria perdoado. Quanto mais estratégias de push de bravatas e promessas per- dem força, mais os marqueteiros voltam-se para as táticas de pull de storytelling eficaz. Para servir de apoio a seus esforços, a Harvard Business Review publicou dezenas de artigos sobre o poder persuasivo das histórias tanto para a liderança quanto para o branding, uma mi- ríade de TED Talks defendeu a neurociência por trás das mensagens historificadas e autores de "como fazer" verteram dezenas e dezenas de manuais de histórias-nas-empresas com os quais daria para cobrir uma parede na Barnes & Noble. Porém, apesar do entusiasmo publicado, receios nas salas de re- união a respeito da natureza e do uso de histórias são mais amplos e mais profundos do que nunca. Volta e meia uma campanha inspirada usa uma história de maneira eficaz (por exemplo, a campanha "What's the Matter with Owen?", da GE; a "Misunderstood", da Apple; ou a "Click, Baby, Click!", da mas, no geral, o storytelling corpo- rativo continua confuso, aos gaguejos e tropeços, mais uma tendên- cia do que uma ferramenta. Isso vale não apenas para as divisões dePROPAGANDA, A HISTÓRIA DE UM 13 marketing da maioria das empresas, mas também para as agências de relações públicas e de publicidade que prestam serviços para elas. sonho do comércio movido a histórias ainda é um sonho. Com Storynomics, pretendemos transformar esse sonho em realidade. A parte 1, "A revolução do marketing", investiga o problema. Uma vez que as causas de uma crise sejam expostas, a cura fica autoeviden- te. capítulo 1, "Propaganda, a história de um vício", pergunta "o que deu errado?" e rastreia a ascensão e a queda da propaganda de Benjamin Franklin até hoje. capítulo 2, "Marketing, uma história de engano", rastreia o problema além da propaganda, chegando à raiz mestra da lógica do marketing. A parte 2, "Criando histórias", explora a solução. Os quatro capí- tulos seguintes examinam os elementos nucleares das histórias, como eles se encaixam na mente, como movem a ação do consumidor e como dispô-los para que tenham efeito. capítulo 3, "A evolução das histórias", começa com o primeiro pensamento humano e segue a evo- lução da mente até a consciência historiada. capítulo 4, "Definindo histórias", apresenta os componentes da forma universal e atemporal que subjaz todo o storytelling de todas as culturas. capítulo 5, "A his- tória toda", vai ainda mais fundo nos elementos das histórias, a fim de ajudar o leitor a desenvolver sua arte. capítulo 6, "A história do propósito enunciado", conduz o leitor pelo processo passo a passo de projetar a história de marketing ideal. A parte 3, "Fazendo as histórias funcionarem", transforma a so- lução em ação. Para transformar a maneira como a sua organização se conecta com seus clientes, você precisa atrelar seu marketing, seu branding, sua propaganda e suas vendas ao poder de atração das histó- rias. Os capítulos a seguir mostram como historificar todas essas qua- tro vozes. capítulo 7, "As histórias e o diretor de marketing", mostra o marqueteiro como contador-mestre, que concebe uma campanha e em seguida guia os criativos que transformam o conceito em ação historificada. capítulo 8, "Branding historificado", demonstra o uso de histórias para superar a antipatia do público às grandes empresas e conquistar afinidade de marca. capítulo 9, "Propaganda historifica- da", afirma que os anúncios funcionam melhor quando a interrupção conta uma história que prende, mantém e entretém. capítulo 10,14 A REVOLUÇÃO DO MARKETING "Demanda historificada e geração de leads", olha a maneira como pen- sar e planejar em forma de história-guia a estratégia maior de mar- keting e leva a sua empresa ao sucesso de longo prazo. capítulo 11, "Construindo um público", explica como as marcas podem integrar-se ao ecossistema digital para conquistar e ampliar público, permitin- do que as histórias que elas contam alcancem as massas. capítulo 12, "Vendas historificadas", apresenta a gama completa das opções de storytelling cara a cara do ponto de venda até a cascata viral conheci- da como boca-a-boca. capítulo 13, "Nomics", demonstra como os marqueteiros podem medir diretamente o valor de seu storytelling e comparar sua eficácia com a da propaganda tradicional. A conclusão, "O olha à frente, prevendo o impacto de mu- danças tecnológicas novas e iminentes ao uso do storytelling no marketing. Examinamos como o impacto das histórias continuará a aumentar, e como nossa capacidade de criar experiências imersivas dará um salto à frente, enquanto a forma essencial de história permanece idêntica. Justin Smith, CEO do Bloomberg Media Group, disse: "Todas as empresas dividem-se em dois mundos distintos: o segmento tradicio- nal, em dificuldades, ansiando por um passado mais simples e mais lucrativo que nunca voltará; e o segmento vibrante, empreendedor, que está reinventando o comércio bem diante dos nossos olhos". Este livro foi escrito para vocês, reinventores. Cunhamos o infi- nitivo historificar para dar nome à transformação de dados em forma de história, o adjetivo historificado para descrever dados que passaram por essa mudança, e o substantivo Storynomics para dar título às prá- ticas de negócios centradas em histórias que puxam resultados fiscais. A diferença entre dados e histórias é a seguinte: dados listam 0 que aconteceu; histórias expressam como e por que aconteceu. Dados compilam fatos por quantidade e por frequência; histórias revelam as causalidades por trás e por baixo desses fatos. Histórias eliminam irre- levâncias, concentram-se em mudanças dinâmicas e, então, reformu- lam o assunto numa estrutura que conecta acontecimentos em cadeias causais de causa e efeito, desenroladas ao longo do tempo. Storynomics extrai esse potencial enorme no mundo dos negócios. Os marqueteiros que dominarem as técnicas de storytelling vão plantar e colher uma recompensa atemporal ao inventar o futuro.5ARE ODO MAR TINGA REVOLUÇÃO DO MARKETING 20 páginas de trás dos jornais, dando aos editores uma fonte de renda nova e crucial. Os jornais que anunciavam usavam a nova renda para reduzir os custos de assinatura e, assim, vender mais jornais. Um alcance maior significava influência maior, o que, por sua vez, permitia que os edito- res cobrassem mais pelos anúncios. À medida que os clientes enchiam as lojas, os comerciantes compravam mais anúncios, os jornais pros- peravam, e o comércio enriquecia as colônias, que não paravam de crescer. Não demorou para que a propaganda transformasse tanto os jornais quanto as empresas que eles atendiam, até que os dois grupos se tornassem interdependentes. Benjamin Franklin, um dos editores de maior sucesso da época, alavancou esse modelo com uma destreza especial. Ele ensinava pes- soalmente aos líderes empresariais as minúcias do marketing impres- SO. Com as páginas de trás da sua Philadelphia Gazette enchendo-se de anúncios, o jornal rapidamente se tornou o favorito da Filadélfia. A partir desse sucesso financeiro, Franklin montou uma rede de jornais intercolonial, da Carolina do Sul a Connecticut, o que lhe valeu o título de Santo Padroeiro da Ao longo dessa era, os mercadores perceberam que, quanto mais destacado o anúncio, maior seu impacto, mas a prática padrão dos jornais empacotava a maioria dos anúncios lado a lado nas últimas páginas, com alguns artigos no meio. As empresas faziam cias com o tamanho, o desenho, a fonte e a localização na página dos anúncios, buscando novas maneiras de impactar os leitores com suas mensagens. Com o tempo, elas descobriram que a estratégia mais efi- caz era a interrupção: inserir os anúncios bem no meio do caminho dos leitores enquanto eles liam um texto. Essa técnica prende o inte- resse do leitor com um artigo e, em seguida, interrompe-o no meio da leitura com a mensagem de uma marca. A súbita intrusão no fluxo de pensamento do leitor força a mensagem da marca para dentro da consciência do consumidor. Os editores, receando incomodar seus assinantes, inicialmente re- sistiram a essa tática, mas, viciados que eram na receita da publicidade, logo fizeram dessa prática uma norma do jornalismo, obrigando os lei- tores a pular da primeira página pelos anúncios para terminar um texto.PROPAGANDA, A HISTÓRIA DE UM VÍCIO 21 Em retrospecto, logo percebemos que os instintos daqueles edi- tores do século XIX estavam certos - quanto mais interrompemos os consumidores, menos satisfazemos sua experiência geral. Desde os primeiros dias da propaganda, o cheiro do incômodo sopra entre os anúncios de interrupção e o contexto é interrompido, seja esse notícias, ficção, esportes ou outros eventos ao vivo. público simplesmente aprendeu a tolerá-lo. No fim do século XIX, as ferrovias conectavam as cidades, per- mitindo que os produtores fossem muito além dos limites da entre- ga local. As empresas correram para capturar mercados em rápida expansão, passando de campanhas locais para regionais ou nacio- nais. A Ivory Soap foi uma das primeiras marcas a lançar uma pu- blicidade realmente nacional, com uma compra inicial de anúncios de 11 mil dólares. Em 1897, o sucesso crescente aumentou o orçamento de anúncios da Ivory para 300 mil dólares. No auge, estima-se que ela tenha con- quistado uma fatia de 20% do mercado nacional. Muitas outras mar- cas reconhecidas logo a seguiram. Os jornais eram apenas o começo. No início do século XX, Gu- glielmo Marconi, inventor e empreendedor, queria usar suas patentes para controlar toda comunicação sem fio e criar um modelo de assi- naturas para o rádio. Porém, em 1906, um tratado internacional assi- nado em Berlim decretou que nenhuma pessoa, empresa ou país podia monopolizar as ondas de rádio. Os primeiros emissores, portanto, não tiveram escolha além de estabelecer a primeira mídia completamente sustentada por Tradução da imagem da página seguinte: Você só precisa de um sabão, sabão Ivory. Puro de primeira qualidade, sem ser caro, Lava qualquer coisa, Não resseca a mão, FLUTUA.22 A REVOLUÇÃO DO MARKETING You need only one soap VORY SOAP Pure_First wash Not expensive IT FLOATS No chapping anythingPROPAGANDA, A HISTÓRIA DE UM VÍCIO 23 Quando a televisão comercial começou, na década de 1940, as emissoras adotaram os métodos de propaganda de interrupção do rádio, e logo a TV se tornou a forma dominante de consumo de mídia. No ápice, as três grandes redes (ABC, NBC, CBS) alcançaram, jun- tas, cinquenta milhões de espectadores toda noite no horário nobre. Durante sessenta anos, o comercial de TV foi, para os americanos, o modo primário para conhecer novos produtos. COMO os CONSUMIDORES DESCOBREM NOVAS MARCAS E PRODUTOS % de respondentes Julho de 2013 58% Propaganda de TV 61% 54% Amigos e família 53% 54% Internet 68% 50% Lojas de varejo 43% 31% Propaganda em revistas 36% 25% Sites de redes sociais 36% 22% Entretenimento 26% (programas de TV / filmes) 21% Mala direta 20% 18% Newsletters de e-mail 26% 13% Editoriais em revistas 19% 12% Blogs 15% 4% Celebridades 7% 3% Newsletters de texto 8% 5% EUA Média global Nenhum dos anteriores 3% Fonte: Ipsos OTX A televisão superou todas as outras mídias por combinar alcance de massa, um meio visual rico para mensagens e a atenção garantida na te- do Os marqueteiros despejaram cada vez mais dinheiro maior levisão público. com o passar do tempo, criando uma demanda cada vez por um inventário de anúncios.24 A REVOLUÇÃO DO MARKETING E, com esse gasto, o vício em anúncios foi ficando mais forte as empresas de mídia eram insaciáveis. Elas começaram a pôr cada vez mais anúncios em cada hora de transmissão para aumentar suas re- ceitas e seus lucros. Na década de 1950, a propaganda respondia por quatro minutos de tempo de exibição por hora. Na década de 1970, tempo de comerciais tinha dobrado. Porém, com o crescimento da TV a cabo, na década de 1980, e, depois, com a internet aberta, no começo da década de 1990, os públicos fragmentaram-se e os valores de anún- cios para programas individuais começaram a cair. As redes e canais a cabo sustentados por anúncios correram para proteger suas rendas, empurrando ainda mais propaganda para um público cada vez menor. Em 2011, os canais a cabo estavam passando anúncios numa propor- ção de quase um minuto para cada CONSUMIDORES RESISTEM Em 2006, porém, novas tecnologias apareceram para ajudar os consu- midores a evitar os anúncios. O TiVo, dispositivo de gravação de vídeo, anunciava sua capacidade de "pular trinta segundos" como um bene- fício-chave. Os provedores de cabo logo lançaram o video sob deman- da (VOD), para que os assinantes pudessem evitar os anúncios com toda facilidade. Um estudo da Associação de Anunciantes Nacionais e da Forrester Research mostrou que os marqueteiros viram a adoção desses serviços com um pessimismo nervoso. 70% dos anunciantes pesquisados achavam que os DVRs e o VOD "reduziriam ou destrui- riam a efetividade" do anúncio tradicional de trinta Em 2006, a Advertising Age previu o seguinte: "Quando o uso de DVRs atingir trinta milhões de lares nos EUA, o que é esperado nos próximos três anos, quase 60% dos anunciantes dizem que vão gastar menos em anúncios convencionais de TV; desses, 2% cortarão seus orçamentos em pelo menos 25%". A revista Time reportou que, de 2009 a 2013, o custo médio de um comercial de TV de trinta segundos em horário nobre caiu 12,5%. Quando a queda nos preços dos anúncios reduziu as receitas nas redesPROPAGANDA, A HISTÓRIA DE UM VÍCIO 25 sustentadas por esses, elas puseram ainda mais anúncios, embora a um custo menor por cada um, em seus programas. Em fevereiro de 2015, o Wall Street Journal noticiou que os canais de cabo estavam su- tilmente acelerando a ação em cada hora de transmissão para gerar mais tempo para os WSJ citou um executivo de um estú- dio dizendo: "O negócio está totalmente fora de controle. trabalho dos atores está sendo realmente prejudicado, porque os programas es- tão sendo feitos assim". Para continuar a capturar a receita dos anúncios, as empresas de mídia fizeram experimentos com novas opções, transferindo conteúdos para serviços como o YouTube para que pudessem pre-roll os anún- cios que apareciam antes de vídeos curtos.8 Na Hulu, eles recaíram nos antigos hábitos, reciclando o mesmo modelo cansado de anúncios de interrupção que um dia funcionara na TV aberta. De qualquer jeito, os marqueteiros ao menos podiam garantir que os espectadores viam os anúncios, porque seus parceiros de mídia impediam que você aceleras- se o vídeo para pulá-los. GASTOS TOTAIS COM ANÚNCIOS NO MUNDO INTEIRO, 2015-2020 (valores em dólares americanos) $ 724.06 $ 687.19 $ 642.86 $ 591.07 $ 550.51 $ 513.56 7.4% 8.8% 5.5% 7.2% 6.9% 5.4% 2015 2016 2017 2018 2019 2020 Gasto total com anúncios % mudança Nota: inclui digital (desktops, laptops, dispositivos móveis e outros dispositivos conectados à internet), anuários, revistas, jornais, outdoors, rádio e TV Fonte: eMarketer, set. 2016A REVOLUÇÃO DO MARKETING 26 Essas novas capacidades, porém, trouxeram um preço. Em 2013, 0 custo de anúncios on-line direcionados tinha ultrapassado da pro- paganda na TV, porque os pre-roll no YouTube e os de interrupção no Hulu garantiam os espectadores, e a entrega on-line permitia um di- recionamento mais poderoso de Em 2016, projetou-se que os marqueteiros tenham gasto a soma re- corde de 605 bilhões de dólares em propaganda no mundo inteiro, o gasto com anúncios digitais superou pela primeira vez o gasto com anúncios de TV, com os orçamentos continuando a transferir-se para Facebook e para E projetou-se que a propaganda con- tinuaria a crescer, embora mais devagar, em 2017, com as empresas de mídia, novas e velhas, continuando a trabalhar para encontrar novas maneiras de interromper os consumidores em nome dos marqueteiros de marcas, ao mesmo tempo em que recusam aos espectadores a me- lhor experiência Porém, uma coisa importante mudou. A REVOLTA DOS CONSUMIDORES Embora a internet, no começo, tenha conectado o planeta e oferecido velocidade suficiente para os consumidores navegarem e lerem artigos, as conexões não eram rápidas o bastante para uma entrega de vídeo con- Até mesmo vídeos curtos do YouTube precisavam de algum tempo para pré-carregamento, a fim de não pararem durante a reprodução. Porém, em 2005, a adoção da banda larga doméstica superou a in- ternet discada nos Estados Unidos. Com essa conexão mais rápida, veio algo que mudou jogo para os consumidores: a possibilidade de escolher. Considere a Netflix, lançada inicialmente como serviço de assina- tura de DVDs em 1999, competindo com a Blockbuster e com outras lojas de aluguel de Com a adoção da banda larga agora em escala, a Netflix lançou em 2007 um serviço novato de streaming, oferecendoPROPAGANDA, A HISTÓRIA DE UM 27 aos consumidores a possibilidade de assistir a uma pequena seleção do catálogo em seus laptops. Um ano depois, a empresa lançou o serviço em consoles de jogos e em set-top boxes que permitiram às pessoas ver a Netflix com facilidade nas TVs da sala de estar. Os primeiros consumidores da empresa adoravam ter acesso ins- tantâneo e gostavam de ver seus filmes favoritos, e depois séries de TV, completamente sem anúncios. Eles estavam satisfeitos por pagar uma simples assinatura, de cerca de dez dólares por mês, para assistir ilimitadamente. A Netflix investiu as receitas das assinaturas no cres- cimento do seu catálogo, acrescentando de forma constante filmes e depois séries de televisão, as quais a empresa licenciava de parceiros da mídia número de assinantes disparou. No quarto trimestre de 2016, a Netflix ultrapassou 93,8 milhões de assinantes, eclipsando o alcance das redes de TV aberta e dos canais a A empresa está se expan- dindo em velocidade acelerada, acrescentando mais de dois milhões de assinantes todo mês em países do mundo inteiro. NETFLIX À BEIRA DE UM GRANDE MARCO Número de assinantes da Netflix no fim de cada período respectivo 98.74m 93.80m 100m 74.76m 49% 47% 80m 57.39m 40% 60m 44.35m 32% 33.27m 40m 51% 23.53m 68% 60% 53% 20.01m 20m 12.27m 9.39m 7.48m 2012 2014 2015 2016 Q1 '17 o 2011 2013 2007 2008 2009 2010 Estados Unidos Internacional *Números de assinantes dos EUA de 2007 a 2010 incluem assinantes de DVDs Fonte: NetflixA REVOLUÇÃO DO MARKETING 28 receitas crescentes de assinantes dão à Netflix uma poderosa As competitiva. Para expandir e manter sua base de assinantes, a in- a empresa arma tomou emprestado o modus operandi da HBO e House começou of Cards vestir em programação original. Séries da Netflix, como falaram da Orange is the New Black, criaram enlouquecidos Wall que Street Journal plataforma e on-line e off-line. Em janeiro de 2016, o bilhões de dó- noticiou: "Com... um orçamento de conteúdo de cinco do pratica- lares para este ano, a Netflix está disposta a pagar mais que mente qualquer canal de TV local ou serviço de Em retrospecto, parece simples. A Netflix voltou ao mesmo mode- midiático de assinaturas que estimulou os primeiros jornais. Porém, lo de cair na tentação da propaganda, que teria posto os incenti- em financeiros vez da empresa contra os desejos dos clientes, a plataforma vos manteve os dois alinhados. A empresa comprometeu-se a entregar a melhor experiência de entretenimento possível para os clientes, e isso significava não interrompê-la com anúncios. Os clientes responderam transferindo seu tempo diante da tela para a Netflix. Em fevereiro de 2017, a CNBC noticiou que os espectadores conso- mem 116 milhões de horas de programação todo dia, completamente sem Do ponto de vista de um marqueteiro, são 116 milhões de horas todos os dias em que os clientes desaparecem, só por causa da Netflix. Esse serviço de streaming inspirou uma indústria. A HBO Now e a HBO Go, serviços over the top16 lançados pela HBO em 2015, levaram a audiência apenas para Game of Thrones para mais de 25 milhões de pessoas em Spotify tinha cinquenta milhões de assinantes sem anúncios para seu serviço premium de música em março de 2017, depois de ter somado vinte milhões de assinantes no ano A Apple conseguiu 27 milhões de assinantes para seu serviço de mú- sica sem anúncio nos seus primeiros dois anos de operação, e estava acrescentando mais de um milhão de assinantes por YouTube introduziu uma opção sem anúncios em setembro de 2015. Até a Hulu, rival da Netflix, que lançou um serviço competitivo de streaming um ano depois, viu a luz. A Hulu foi criada como joint ven- ture entre a 21st Century Fox, a NBCUniversal e a Walt Disney Co. Ao contrário da Netflix, a Hulu foi estabelecida para levar o modelo tra- dicional de propaganda em TV aberta para a internet. A Hulu cobravaPROPAGANDA, A HISTÓRIA DE UM 29 uma assinatura mais barata e exibia comerciais para os usuários antes e durante a programação. Porém, em junho de 2015, o mercado tinha se pronunciado. A au- diência do Hulu era de nove milhões de pessoas, meros 14% da au- diência total da Neflix naquele momento. A Hulu anunciou que estava considerando suas opções. Três meses depois, a Hulu capitulou e lançou um serviço sem anúncios, por apenas dois dólares a mais por mês. A empresa mandou um bilhete aos antigos assinantes, agradecendo por eles terem mos- trado o caminho à Hulu, e convidando-os de volta, dessa vez para uma experiência sem anúncios. hulu Thanks for canceling Thomas, On 07/03/14, you did something for which we'll be forever grateful You canceled your Hulu subscription. Tradução: Hulu Obrigado por cancelar Thomas, de julho de 2014, você fez algo pelo que seremos da eternamente Em 3 gratos você cancelou sua assinatura Hulu.A REVOLUÇÃO DO MARKETING 30 A CBS aprendeu uma lição semelhante. Em novembro de 2014, ela lançou o All Access, um serviço por assinatura over the top que in- cluía anúncios de interrupção. Em agosto de 2016, a empresa capitulou frente à demanda dos consumidores e começou a oferecer uma versão sem anúncios por apenas quatro dólares a mais por FUNDO DO POÇO: DECLÍNIO DA MÍDIA TRADICIONAL Em 22 de janeiro de 1996, o New York Times chegou à internet, ofere- cendo a leitores do mundo inteiro acesso às notícias na noite de sua publicação. A circulação dos jornais americanos caiu 37% entre 1990 e 2015, à medida que os consumidores migraram para a internet, com a queda mais rápida no número de assinantes acontecendo em CIRCULAÇÃO PAGA DE JORNAIS DIÁRIOS NOS ESTADOS UNIDOS ENTRE 1985 E 2016 (em milhares) 65.000 60.000 55.000 50.000 45.000 40.000 35.000 30.000 '85 '86 '87 '88 '89 '90 '91 '92 '93 '94 '95 '96 '97 '98 '99 '00 '01 '02 '03 '04 '05 '06 '07 '08 '09 '11 '12 '13 '15 Ano Fonte: Editor & Publisher, AAM; Pew Research Center c Statista 2017 Informações adicionais Estados Unidos; Editor & Pew Research Center 1985 a 2016PROPAGANDA, A HISTÓRIA DE UM VÍCIO 31 Em 2006, os marqueteiros reconheceram a tendência. Ao longo dos quatro anos seguintes, eles reduziram pela metade o gasto com anúncios, gasto esse que, desde então, cai todos os anos. Os jornais responderam cortando custos e sacrificando muito conteúdo adorado por seus assinantes. RECEITA DE ANÚNCIOS DE JORNAL DAS VERSÕES DIGITAL E IMPRESSA Receita anual em bilhões de dólares americanos 60 1.5 2 50 1.2 2.7 3.2 40 3.1 30 2.7 3 46.7 474 46.6 3.2 42.2 3.4 3.4 3.5 Digital 20 34.7 24.8 22.8 20.7 18.9 17.3 16.4 Impresso 10 o 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 Fonte: Newspaper Association of America (até 2013), (2014) PEW RESEARCH CENTER A conexão lenta protegeu as emissoras por algum tempo. Os mais con- sumidores permaneciam cativos se queriam assistir a programas alto. longos. Hoje, porém, o fenômeno Netflix está cobrando um preço A audiência da propaganda tradicional de TV começou um rápido em A propaganda de TV está começando a ir pelo caminho do vez jornal meno- à medida que os marqueteiros adaptam-se a audiências cada sentida res 23 Uma queda nos gastos com anúncios, emis- primeiramente para as nos impressos em 2007, começou a martelar as soras de TV emA REVOLUÇÃO DO MARKETING 32 MUDANÇA NO TEMPO GASTO VENDO TV TRADICIONAL trimestres) POR FAIXA ETÁRIA (Ao vivo + VOD + DVR, com base nos segundos 65+ 10% 5% 50-64 0% -5% 35-49 US POP. A -10% -10% 2-11 -15% -15% -20% -25% 25-34 -30% 12-17 -31% -35% 18-24 2010 2011 2012 2013 2014 2015 MUDANÇA NAS HORAS GASTAS VENDO TV TRADICIONAL POR MÊS POR FAIXA ETÁRIA (Ao vivo + VOD + DVR, 2° Trim. 2015 X 2° Trim. 2010) 18 3 -16 -15 -18 -36 -42 -46 P2+ 65+ 50-54 35-39 25-34 18-24 12-17 2-11PROPAGANDA, A HISTÓRIA DE UM VÍCIO 33 CEGUEIRA PARA BANNERS E BLOQUEIO Contudo, a revolta dos consumidores contra a propaganda não se li- mita à adoção de serviços de streaming de vídeo e de música. Desde 2008, os marqueteiros monitoram um fenômeno chamado de cegueira para banners, no qual os leitores de uma página da web literalmente olham em volta dos anúncios quando visualizam uma página. Estu- dos de monitoramento dos olhos, que usam tecnologia para monitorar qual parte de uma página da web os usuários efetivamente veem, fo- ram os primeiros a identificar o fenômeno. Um estudo da Infolinks verificou que, "depois que lhes era pedido para recordar o último anúncio visto, apenas 14% dos usuários conse- guiam dizer o nome da empresa, da marca ou do produto, sugerindo que as empresas estão desperdiçando milhões de dólares em anúncios de que os consumidores não se George Brett Estudos de monitoramento dos movimentos dos olhos mostram que os leitores ignoram anúncios34 A REVOLUÇÃO DO MARKETING E aí as notícias ficaram piores ainda para os marqueteiros. Em se- tembro de 2015, a PageFair e a Adobe anunciaram que 198 milhões de pessoas estavam usando programas de bloqueio de anúncios em seus dispositivos desktop no mundo inteiro. O estudo verificou que a adoção de bloqueios de anúncios está crescendo 41% Um mês depois, a Apple introduziu um upgrade no iOS que permitia que os dispositivos móveis da empresa também pudessem usar bloqueadores de anúncios. O estudo estimava que 41,4 bilhões de dólares em anún- cios seriam bloqueados no mundo inteiro em 2016. Uma nova frente tinha sido aberta na revolta popular contra a interrupção e contra a manipulação emocional. CRESCIMENTO GLOBAL DO BLOQUEIO DE ANÚNCIOS bloqueio de anúncios continua a aumentar, apoiado pelas altas taxas de crescimento vistas em 2013 e em 2014 Usuários globais ativos por mês de software de bloqueio de anúncios (desktop) 181M 121M 54M 39M 30M 21M Jul 2009 Jul 2010 Jul 2011 Jul 2012 Jul 2013 Jul 2014 Jan 2010 Jan 2011 Jan 2012 Jan 2013 Jan 2014 Jan 2015 o que se verificou: Globalmente, uso de bloqueadores de anúncios cresceu 41% ao ano Trim. 2014 2° Trim. 2015) Em junho de 2015, havia 198 milhões de usuários mensais ativos para as principais extensões de navegadores que bloqueiam anúnciosPROPAGANDA, A HISTÓRIA DE UM VÍCIO 35 rápido declínio na propaganda de interrupção criou uma crise que atingiu primeiro as empresas de mídia. À medida que os consu- midores ignoram, bloqueiam e pagam para evitar a propaganda, as marcas começaram a cortar os orçamentos destinados a ela. A queda resultante em receitas publicitárias deixou os modelos de negócios da mídia de cabeça para baixo. A segunda fase da crise vai atingir marcas em praticamente to- das as indústrias. Os marqueteiros, dependentes da propaganda en- quanto maneira primária de conectar-se com seus clientes, de repente não conseguem alcançá-los. Suas marcas já estão despontando para o anonimato, mas muitos diretores de marketing ainda não perceberam. A CRISE DE MARKETING Durante três séculos, a maioria das empresas usou a mesma aborda- gem para alcançar, adquirir e reter consumidores: elas anunciaram para eles. A abordagem era simples e constante. Os marqueteiros identificavam as histórias no noticiário e no entretenimento de que seus clientes mais gostavam e então interrompiam essas histórias com anúncios que descreviam seus produtos e serviços. Ao mostrar esses anúncios repetidamente a clientes em escala, eles construíam uma percepção de marca crescente. Se criassem anúncios que se conecta- vam emocionalmente com os clientes, a percepção de marca se torna- va afinidade de marca. A crise da propaganda hoje também criou uma crise sem prece- de dentes no marketing. A propaganda era um método comprovado alcançar públicos desde que Benjamin Franklin publicava até jornais. pagam Quando os consumidores bloqueiam e ignoram anúncios, e para evitá-los, os marqueteiros têm de correr para encontrar um vão novo ser jeito de alcançar seus clientes. Marcas que não se conectarem superadas por marcas desafiantes que descobrirem o segredo.2 MARKETING, A HISTORIA DE UMA FRAUDEA HISTÓRIA DE UMA FRAUDE 37 Os consumidores não apenas têm à interrupção, como tam- bém detestam ser manipulados. Nas primeiras décadas da propaganda, o boca a boca era lento, permitindo que vendedores de panaceias falassem o que quisessem impunemente... até que, é claro, os consumidores, nauseados com suas curas, expulsavam-nos da cidade aos pontapés. Com o telégrafo e depois o telefone ricocheteando reputações pelo país afora, mercadorias falsas deram lugar a produtos mais confiáveis, e afirmações falsas passaram às bravatas e promessas convencionais que ainda enchem os anúncios contemporâneos. Os elixires de hoje prometem dentes mais brancos, cinturas mais finas e menos rugas, tudo garantido por "estudos de laboratório". Em suma, o marketing ficou mais honesto, mas não tão honesto que os consumidores de hoje acreditem no que quer você lhes diga. Num mundo de fluxo de informação imediato e global, afirmações exageradas e de baixo desempenho saem pela culatra. Os consumi- dores comparam as promessas do marketing com sua experiência noA REVOLUÇÃO DO undo real e, quando elas não batem, eles zombam das marcas que anipularam com resenhas cáusticas dos produtos, tuítes públicos sts no Facebook. Com décadas de promessas falsas, os marqueteiro os consumidores para desconfiar da propaganda. Batty For Your Health ASTHMA SINCE 1002 For the temporary relief of paroxysms of asthma EFFECTIVLY TREATS: ASTHMA. HAY FEVER. FOUL BREATH ALL DISEASES OF THE THROAT. HEAD COLDS. CANKER SOURS BRONCHIAL IRRITATIONS NOT RECOMMENDED FOR CHILDREN UNDERMARKETING, A HISTÓRIA DE UMA FRAUDE 39 Você pode verificar isso por conta própria. Desde a década de 1960, a comScore/ARSgroup afere a eficácia da propaganda medindo seu impacto na "fatia de escolha" 27 Hoje suas pesquisas verificam que a propaganda em geral está rapidamente perdendo efeito e, quando dirigida aos millennials, ela é praticamente inútil. os DOIS TIPOS DE FRAUDE DE MARKETING Historicamente, os marqueteiros impeliram as vendas por meio de dois tipos de pretextos, um racional e outro emocional. Este capítulo olha cada uma dessas abordagens, por que elas funcionaram no pas- sado e por que falham hoje. 1. Comunicação racional A teoria clássica do marketing traz a seguinte premissa: os seres huma- nos tomam decisões racionalmente e, diante de uma escolha impor- tante, juntam fatos relevantes, pesam alternativas, e então escolhem a melhor opção. Assim, para convencer os consumidores, apresente suas afirmações de maneira factual, lógica, científica. Tradução da imagem ao lado: Cigarros de asma do Dr. Batty Para a sua saúde Desde 1802 Para o alívio temporário dos paroxismos da asma Trata com eficácia: Asma, rinite alérgica, mau hálito Todas as doenças da garganta, aftas, irritações bronquiais Não recomendados para crianças de menos de 6 anos.40 A REVOLUÇÃO DO MARKETING Essa é a teoria. Na realidade, aquilo que a propaganda vende como lógica é, na verdade, retórica. A retórica imita a ciência ao apresentar indícios e tirar uma conclusão, mas a diferença é que a ciência pesa to- dos os indícios, tanto contra quanto a favor de um teorema; a retórica enviesa seu raciocínio, apresentando apenas os indícios que apoiam seu argumento, ao mesmo tempo em que ignora ou refuta cada deta- lhe que o contradiga. Em outras palavras, a ciência busca a verdade; a retórica, a vitória. O marketing, na essência, é um fórum público para o debate retórico, uma plataforma para convencer o consumidor de que as características de um produto superam as de outro. O anúncio clássico da Ivory executa com perfeição esse método. A Procter & Gamble (P&G) ofereceu um sabão de lavar roupa em barra que flutuaria em vez de afundar no tanque. Os marqueteiros explica- vam a vantagem no anúncio: ele poupava o tempo e a frustração das pessoas que, de outro modo, teriam de procurar no fundo de um tan- que turvo o sabão de algum concorrente. Outros sabões talvez limpas- sem melhor (afinal, esse é o propósito do sabão), mas a Ivory, é claro, não mencionava isso. Você se lembra de onde aprendeu a usar a persuasão retórica? A ar- gumentar usando a lógica indutiva e dedutiva? Foi escrevendo redações no sétimo ano da escola. Lembra da sua aula de silogismo daquela época? "Todos os reis são altos. Ele é rei. Logo, ele é alto." No caso do sabão Ivory: "O melhor sabão flutua. Nosso sabão flutua. Logo, nosso sabão é o melhor." Por exemplo: os marqueteiros business-to-business com cia acrescentam uma lista de características do produto para o cliente poder comparar com o que é oferecido pela competição. Com regula- ridade infalível, o produto do marqueteiro tem a melhor pontuação emMARKETING, A HISTÓRIA DE UMA FRAUDE 41 todas as características da lista, ao passo que o produto do competidor nem sequer pontua. Impressionante. Quando o esperto comprador prospectivo examina a tabela, ele sabe duas coisas: 1. foi a própria empresa que selecionou apenas aquelas categorias em que sua marca tem melhor pontuação; 2. as categorias em que o produto teve pontuação pior do que a da concorrência ficaram de fora da lista. Hoje, mais do que nunca, o marketing que se vale de argumentos retóricos provoca ceticismo na mente do consumidor e uma atitude negativa em relação a seu produto ou serviço. Isso não é o mesmo que dizer que as pessoas desconfiam de todos os fatos, só dos fatos usados para convencer alguém numa venda. E que essa desconfiança afeta diretamente aquilo que elas estão dispos- tas a pagar pelo que está sendo vendido. Dan Ariely, professor da cátedra James B. Duke de Psicologia e Economia Comportamental da Fuqua School of Business e diretor do Center for Advanced demonstrou esse ceticismo num experimento com interessados em comprar aparelhos de som. Ariely comparou como dois grupos de audiófilos respondiam a um sistema de som. Os membros de um grupo leram o que achavam ser uma rese- nha do fabricante, e o segundo grupo leu exatamente o mesmo mate- rial, mas acreditou que fosse da Consumer Reports. Escreve ele: Todos os participantes levaram meia hora ouvindo uma composi- ção de J.S. Bach e avaliando aparelho de som. Quão fortes eram os graves? Quão límpidos eram os agudos? Os controles eram fá- ceis de usar? Havia alguma distorção no som? E, por fim, quanto eles pagariam pelo sistema? A verdade é que os participantes gostavam do som muito mais isenta se lhes fosse dito que a informação que estavam lendo vinha da 407 Consumer Reports. Eles também pagariam, em média, cerca de42 A REVOLUÇÃO DO MARKETING dólares pelo sistema, bem mais do que os 282 dólares oferecidos aqueles que liam a brochura do A desconfiança em relação por à retórica de marketing é tão arraigada que interfere na nossa percep- ção dos produtos mesmo no caso da experiência Se a lógica indutiva da retórica entrega resultados de marketing subotimizados, por que as empresas ainda recorrem a ela? Primeiro, por causa da escola. Fomos ensinados a começar uma redação com uma tese de abertura: "Vou provar isto". Depois, en- fileirando argumentos, nós Por fim, escrevíamos uma conclusão: "Provei isto". Hoje usamos o mesmo formato no trabalho. Uma apresentação de PowerPoint é apenas uma redação de escola com efeitos especiais. Segundo, por causa do prestígio da ciência. Líderes empresariais buscam planejamento e tomada de decisões com base na ciência, para ter previsibilidade e precisão. Muito bem. Mas, na verdade, os negó- cios não são uma ciência. Apesar do acesso a vastos conjuntos de da- dos, as decisões de marketing sempre pedirão tanto instinto quanto estratégia. Os problemas fundamentais nunca mudam: como capturar a atenção, mantê-la e recompensá-la; em suma, como deixar as pes- soas ligadas, não desligadas. 2. Comunicação emocional No coração de uma filosofia criativa eficaz, está a crença de que nada é mais poderoso do que uma intuição da natureza humana, de quais com- pulsões movem um homem, de quais instintos dominam sua ação, ainda que suas palavras com muita frequência camuflem aquilo que realmente o motiva. Bill Bernbach Depois da Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos explodiram de otimismo. Os lançamentos de produtos dispararam, o ro de espectadores de TV foi ao céu e o anúncio de TV rapidamen- te se tornou o jeito mais poderoso de influenciar os fre- Porém, à medida que cada vez mais comerciais engarrafavam as quências, afirmações e contra-afirmações embotavam o julgamento do consumidor. Qual pasta realmente era a melhor para branquear os dentes?MARKETING, A HISTÓRIA DE UMA FRAUDE 43 A agência Doyle Dane Bernbach (DDB) prosperou, porque Bill Ber- nbach e seus sócios foram pioneiros numa nova conexão com os con- sumidores. A DDB afastava os clientes de elogios retóricos às caracte- rísticas dos produtos. Em vez disso, ela pôs de lado as óbvias questões éticas e dirigiu fortes apelos emocionais diretamente aos desejos e às necessidades do consumidor. Segundo uma biografia, Bernbach falava aos clientes "...não sobre propaganda, mas sobre a arte da persuasão. Para persuadir o consumi- dor, os criadores de anúncios precisavam tocar os instintos básicos e imutáveis das pessoas seu 'impulso obsessivo de sobreviver, de ser admirado, de ter sucesso, de amar, de cuidar dos 30 primeiro passo para dominar a manipulação emocional é per- ceber que só existem duas emoções primárias: prazer e Cada uma delas, porém, existe em muitas variedades: positivas e sentidas com profundidade, como felicidade, paz, amor, alegria, e também as delícias sensoriais da beleza e do conforto, em contraste com as nega- tivas profundas do pesar, da ansiedade, angústia, medo, solidão, junto com aflições físicas, que vão de dores de dente a enxaquecas. No ca- pítulo 6, veremos como o marketing historificado move as emoções profundas do consumidor, mas, para manter esse capítulo equilibrado, vamos nos concentrar na superfície dos sentimentos físicos. dói. Um No nível sensorial, algo ou traz uma sensação boa ou drin- que pode deliciar suas papilas gustativas ou provocar repulsa nelas. Porém, se a experiência é apenas sensorial, por que sentimos mais prazer quando olhamos uma obra de arte autêntica do que uma có- Se a percepção sensorial fosse a mesma, por que a emoção que sentimos diante de Noite estrelada, de Van Gogh, é muito mais profun- da do que o sorumbático exame de uma falsificação? Como explica Paul Bloom, professor de psicologia e ciência com- portamental em Yale, em seu livro How Pleasure Works ["Como como o pra- zer "o que é mais importante não é o mundo sofrimento) assim que se apresenta aos nossos sentidos. Antes, o gozo (ou coisa tiramos de algo deriva daquilo que achamos que aquela condicionada Bloom afirma somos essencialistas. Nossa resposta é é por nossas crenças que a respeito do que as coisas realmente são, de qual sua naturezaA REVOLUÇÃO DO MARKETING 44 Em 2008, os pesquisadores do Caltech estudaram a relação entre preço do vinho e o quanto as pessoas gostavam dele. Os voluntários do estudo receberam vinhos com preços de dez, 35, 45 e noventa dólares a garrafa. Primeiro, eles compararam a garrafa de 35 com a de 45 dólares, e depois a de dez com a de noventa dólares. Nos dois casos, os partici- pantes disseram que os vinhos mais caros eram mais gostosos do que os mais baratos. Mais ainda, a lacuna de prazer que eles reportaram era maior quando eles comparavam as garrafas de dez e de noventa dólares. Na verdade, as garrafas de dez e de noventa dólares continham exatamente o mesmo vinho. Pesquisadores anteriores tinham descoberto a relação entre preço alto e percepção de alta qualidade e acharam que era só es- nobismo. Porém, o estudo do Caltech usou um dispositivo de ima- gem por ressonância magnética funcional para observar a ativida- de cerebral dos voluntários. As imagens revelaram que, quando os participantes bebiam aquilo que julgavam ser um vinho mais caro, a região do cérebro ligada ao prazer Não era esnobismo. Eles efetivamente tinham mais prazer com os vinhos que eles jul- gavam ser mais caros. mesmo se aplica à dor física. Na Universidade Harvard, Kurt Gray e Daniel Wegner administraram choques elétricos aos partici- pantes de um estudo. estudo juntou 48 cobaias com uma dupla num cômodo à parte que tinha a opção de tocar um tom audível para eles ou administrar um choque elétrico. Gray e Wegner separaram os participantes em dois grupos. No primeiro, dizia-se aos participantes que a dupla tinha escolhido dar-lhes um choque e, instantes depois, eles recebiam uma descar- esco- ga. No segundo, dizia-se aos participantes que a dupla tinha eles lhido tocar o tom sonoro, mas, então, como que por acidente, também recebiam um choque elétrico. A mesma voltagem era usada nos dois grupos. A descoberta: os participantes que acreditavam que tinham re- cebido um choque intencional sentiam os choques de maneira acredi- mais dolorosa, e a dor permaneceu ao longo do estudo. Aqueles que se tavam que os choques não eram intencionais sentiam menos dor e recuperavam maisMARKETING, A HISTÓRIA DE UMA FRAUDE 45 Tanto para o prazer quanto para a dor, o sentido da percepção, e não da experiência sensorial isolada, determina quanto prazer ou dor as pessoas sentem. Como prazer e dor são grandes motivadores, criar essas experiências num anúncio prometia ser a ferramenta mais po- derosa do marketing. Porém, infelizmente, essa intuição se mostrou falha nas técnicas de sedução e coerção. A sedução incita alguém a fazer algo com a pro- messa do prazer; a coerção convence-os a agir com a ameaça de dor. Veja só o anúncio na página a seguir: olhando para ele, o sabor da cerveja Budweiser faz alguma diferença? sexo vende. o medo também vende. Os anúncios políticos coagem com o medo de ataques terroristas e de perder o emprego, a assistência de saúde, a renda. As empresas de segurança doméstica coagem com imagens de arrombadores usando um pé de cabra na sua janela. As empresas de tecnologia transformam ameaças de hackeamentos, de vírus e de roubos de dados em Táticas que visam emoções compensam desde que Bill Bernbach defendeu a revolução dos "Mad Men". 38 Assim, por que não ficar com a tradição? Por que não? Porque hoje essas tramoias não apenas fracassam, como ainda As pessoas com dinheiro para gastar sido expostos são con- a sumidores de mídia bem-informados. Depois farejar a sedução de terem dezenas de milhares de comerciais, elas conseguem quase dois terços dos millennials usam programas de bloqueio anúncios e a coerção antes que a logomarca apareça na tela. por isso de que para tirar os manipuladores das suas vidas.40 que resta? Se a manipulação emocional deixa as pessoas como você com retórica lhes parece empulhação, crise raiva pode se e se conectar a persuasão com seus clientes? Como pode resolver sua de marketing?46 A REVOLUÇÃO DO MARKETING HISTÓRIAS Histórias são equipamentos para viver. Kenneth Burke Advogamos uma solução que tem dezenas de milhares de anos, 0 modo de comunicação que melhor se encaixa na mente, que melhor conecta uma mente com outra, que envolve a clareza de uma men- sagem racional num pacote emocional e a entrega de um jeito que prende: histórias. Uma história bem contada captura nossa atenção, mantém-nos em suspense e compensa com uma experiência emocional significativa. Emocional, porque temos empatia pelos personagens; significativas, porque as ações do nosso protagonista trazem intuições sobre a natu- reza humana. A própria palavra história confunde muitos marqueteiros. Alguns, por exemplo, usam as palavras conteúdo e história como se fossem in- tercambiáveis. Porém, como descobriremos, isso é a mesma coisa que confundir a tinta dentro da lata com uma obra-prima na parede. Muitas pessoas que, por terem visto e ouvido histórias a vida toda, podem facilmente criar uma. Isso é a mesma coisa que achar que você pode compor música porque já foi a concertos. Muitas pessoas ouvem a palavra história e imaginam um conto narrado para as crianças na hora de dormir ou bravatas trocadas en- tre cervejas num bar. Essas são histórias, de fato, criadas apenas para entreter. Do outro lado do espectro, grandes histórias têm o poder de mudar a maneira como a humanidade enxerga a realidade. Verdades historificadas construíram civilizações e religiões seguidas por bilhões de pessoas. Romances como A cabana do pai Tomás criaram movimen- tos políticos que abriram o caminho para a guerra. Séries de TV como Tudo em família e Will & Grace denunciaram o preconceito e prepara- ram o caminho para a justiça LGBT. E, como demonstraremos na parte 3, graças ao marketing historificado, marcas inovadoras podem con- tar histórias que alteram a maneira como seus consumidores veem o mundo, e podem disparar na frente da competição ao fazer isso. Em suma, as histórias são a TI definitiva. I no sentido de que con- tar histórias exige informação - um conhecimento amplo e profundoMARKETING, A HISTÓRIA DE UMA FRAUDE 47 da natureza humana e de sua relação com os âmbitos social e físico. T no sentido de que uma história bem-contada demanda uma execu- ção habilidosa de sua tecnologia interior, de seus mecanismos de ação e reação, das mudanças de carga de valor, dos papéis, dos conflitos, dos pontos de virada, da dinâmica emocional e muito mais. Uma ha- bilidade serve de base à arte. A estrutura de uma história, como veremos no capítulo seguinte, é intrínseca à mente humana. Por que, então, precisamos aprender esse ofício? Contar histórias não é natural? No mesmo sentido, as crian- ças conseguem desenhar com pauzinhos. Desenhar também é natu- ral? Sim, as duas coisas são, mas, para chegar à excelência, escritores e pintores vão além do instinto, fazem experimentos e dominam sua habilidade do zero. Depois de séculos de dificuldades, a matemática da perspectiva, por exemplo, enfim foi descoberta pelos artistas do Renascimento que queriam aperfeiçoar o Realismo. Desde então as escolas de artes ensi- nam essa técnica, porque, se fôssemos esperar que os jovens pintores descobrissem sozinhos os segredos da perspectiva, eles levariam suas carreiras inteiras para atingir o que podem aprender num único curso. A maioria, aliás, nunca descobriria. Analogamente, uma forma molda a história e uma habilidade entende- executa a contação. Se você estudar a técnica das histórias, como rá como prender, manter e recompensar a atenção do público, refinar essas fazem os melhores filmes, romances e peças. Se você marca e seus pode construir laços de lealdade entre sua - como fizeram a Apple, a Red Bull, a Dove e a GE -, a sua marca, como clientes. capacidades, E, por fim, se você dominar o marketing historificado assim essas, será conhecida no mundo inteiro.PAR TE HISTÓRIAS: A ADAPTAÇÃO EVOLUTIVA À CONSCIÊNCIACRI HIS TORI AS3 A EVOLUCAO DAS HISTORIAA EVOLUÇÃO DAS HISTÓRIAS 51 alvo de toda estratégia de negócios é a mente humana, esse motor biológico construído pela evolução para constantemente criar e con- sumir A comunicação historificada não é apenas mais uma técnica de vendas, mas a chave para capturar, engajar e recompensar a atenção do cliente. Como mostraram repetidas vezes as pesquisas, quando o marketing historifica suas mensagens, os consumidores es- cutam. Na era da distração, a atenção conquistada e mantida é o ativo mais valioso do Para deixar clara a capacidade única que as histórias têm para capturar e manter a atenção do público, este capítulo esboça a evo- lução das histórias desde o primeiro dia. O que se segue é uma saga especulativa que se estende por centenas de milhares de anos e mis- tura múltiplas interpretações científicas de fósseis numa aventura em três atos que começa com o nascimento da consciência. Ela cresce quando a mente batalha para sobreviver e atinge seu ponto alto com o triunfo do pensamento historificado.52 A CRIAÇÃO DE ATO 1: PRIMEIRO PENSAMENTO HUMANO Os sistemas nervosos de bilhões e bilhões de criaturas evoluíram para uma capacidade cada vez maior ao longo de centenas e centenas de milhões de anos. Então, cerca de dois a três milhões de anos atrás, mu- danças planetárias importantes forçaram os sistemas nervosos cen- trais dos bípedes antropoides a acrescentar massa cerebral, cinzenta e branca, a uma taxa média de um milímetro a cada três mil A parte mais dianteira do córtex pré-frontal, conhecida como Área 10 de Brodmann, fica bem atrás da testa. Durante a evolução humana, suas seis camadas corticais expandiram-se de forma colossal, tanto em tamanho quanto em reticulação, forçando o crânio a ficar largo e alto. Com o tempo, mutação a mutação, o telencéfalo hominídeo ga- nhou um litro inteiro de massa e ficou tão tumescente, tão complexo estruturalmente, com suas cem bilhões de células tão interconectadas, que o cérebro, tensionado ao máximo, irrompeu com o primeiro pen- samento humano: eu sou. De súbito, a consciência silenciosa de "eu" transformou um cére- bro numa mente, e fez, de um animal, um humano. Animais reagem a objetos a sua volta, mas o cérebro humano fez de si mesmo um objeto. A consciência, na verdade, dividiu-se em duas.44 A autoconsciência é como uma esquizofrenia branda. Quando você olha para dentro de si e matuta o pensamento "seu idiota!" quem está zangado com quem? Quando você está contente consigo, quem dá um tapinha nas costas de quem? Quando você fala sozinho, quem ouve? Como funcionam essas transações interiores? Mais ou menos assim: por trás da sua mente ativa, no fulcro irre- dutível da sua humanidade, uma percepção observa cada pensamento da sua e ato seu. Esse "eu" nuclear é, por assim dizer, o "proprietário" subjetivo mente. Como se olhasse por um prisma interior, esse "eu" destaca uma versão de si mesmo, e então observa esse seu "eu" pensar, exterior, positiva e ou negativamente, tentando mudar seus escolher agir no mundo. "eu" nuclear então julga pensamen- tos e seu comportamento. estranha que A observação natural de si mesmo quanto persistente. do "eu" nuclear, Essa por noite, mais quando pareça, é tantoA EVOLUÇÃO DAS HISTÓRIAS 53 nhar, você se tornará uma plateia autoconsciente de um único mem- bro, observando a si mesmo agir nos seus sonhos como se você fosse um ator num filme estranhamente irrealista. Desperto, você está fazendo isso agora. Se você fosse perguntar a si mesmo "quem sou eu?", um sentido de "eu" se levantaria do âmago do seu ser. Essa percepção de mo" paira atrás da sua consciência de primeiro plano, observando seus pensamentos despertos, observando você ler isto, e reparando em como você Não se dê ao trabalho de virar-se e olhar. Você não pode olhar a si mesmo dentro de si, mas você sabe que "eu" está sempre ali, sempre atento, sempre olhando.45 Quando a consciência de si invadiu a primeira mente humana, ela trouxe consigo uma súbita e aguda sensação de isolamento. custo da autoconsciência é uma vida passada essencialmente sozinho, a uma certa distância de todas as outras criaturas vivas, inclusive as outras criaturas humanas. Com aquele primeiro momento "eu sou" primordial, a mente não apenas se sentiu só, mas também aterrorizada. Afinal, a autoconsciência trouxe outra descoberta, ainda mais assustadora, es- pecífica da humanidade: o tempo. primeiro ser humano subitamente viu-se sozinho e à deriva no rio do tempo. ATO 2: SEGUNDO PENSAMENTO HUMANO Na esteira de "eu sou", veio o segundo pensamento humano: ...e algum dia meu tempo no tempo vai acabar. Não muito depois do nascimento da autoconsciência, a consciência do tempo inundou a mente huma- na, trazendo com ela o pavor. medo é uma emoção que sentimos quando não sabemos o que vai acontecer; o pavor é a emoção que nos domina quando sabemos o que vai acontecer e não há nada que pos- samos fazer para impedir. E um pavor é certo: nossos dias vão parar como um relógio sem corda. Antes da autoconsciência, os ancestrais no Plioceno, assim como todos os animais, viviam no conforto corpóreo de um presente perpétuo. Porém, quando o senso de "eu sou" separou a autoconsciência de seusA CRIAÇÃO DE 54 instintos primais, visões de um futuro doloroso abriram caminhos na recém-cunhada mente humana.46 Mais ainda, a mente descobriu que não apenas o futuro é duvidoso, mas também não se pode confiar nas superfícies de pessoas e de coisas; que nada é o que parece. que parece é o verniz sensorial daquilo que vemos, daquilo que ouvimos, do que as pessoas falam, do que as pessoas fazem. o que é se esconde atrás do que parece. Porque a verdade não é o que acontece, mas como e por que o que acontece ocorre. Sem a ciência e sem a religião para explicar as causalidades não vistas da vida, a mente subitamente auto- consciente deve ter se agitado, confusa, com o caos, os enigmas, a falta de sentido e a brevidade que tornavam a vida impossível de ser vivida. A mente teve de encontrar um jeito de encontrar sentido na ATO 3: A MENTE QUE PRODUZ HISTÓRIAS Foi aí que a história veio em socorro. Gene a gene, a seleção natural implantou os mecanismos mentais da produção de histórias no nos- DNA. Como diz David Buss, produzir histórias mecanismo psicológico evoluído, um conjunto de procedimentos dentro do or- ganismo projetado para pegar uma fatia específica de informação e transformá-la por meio de regras de decisão num output que anterior- mente ajudou com a solução para um problema adaptativo. Um meca- nismo psicológico existe nos organismos atuais porque, na média, ele levou à solução bem-sucedida de um problema adaptativo específico dos ancestrais daquele organismo". No caso dos seres humanos, pro- blema era o caos e o medo da morte. Os mecanismos de historificação da mente funcionam da seguin- te maneira: ao longo do dia, o corpo absorve milhões de bits de estí- mulos sensoriais crus. Em algum lugar abaixo do nível da consciência, a mente examina toda essa massa e impõe regras de decisão que se- param o relevante do irrelevante. Ela ignora 99% de todos os dados e concentra-se naquele 1% que chama a atenção. E o que chama a atenção? A mudança. Enquanto as condições permanecem seguras e constantes, prosseguimos na vida normal, mas,A EVOLUÇÃO DAS HISTÓRIAS 55 assim que a mudança chega, subitamente estamos sob ameaça ou sur- preendidos pela boa sorte. Nos dois casos, reagimos. Os sistemas sub- conscientes de sobrevivência começam a funcionar dentre eles, o principal é a produção de histórias. Instantaneamente, o "eu" nuclear provoca a mente para historificar esse acontecimento. cérebro flexiona seus músculos historificantes na Área 10 de Brodmann. Nela, o passado flui para o futuro à medida que a mente re- corda eventos pregressos e projeta resultados possíveis. A mente com- para acontecimentos anteriores de tipo similar com sua experiência atual, de modo que ela saiba o que fazer agora e o que fazer no futuro caso aquilo algum dia aconteça de novo.49 A mente, é claro, não converte cada mudança banal em histórias. Na verdade, a evolução nos ensinou a nos concentrarmos em mudan- ças significativas e dinâmicas. pensamento historificado interpreta cada acontecimento segundo seu valor nuclear. Na criação de histórias, porém, a palavra valor não se refere a monoconceitos como sucesso, verdade, lealdade, amor ou liber- dade. Essas palavras nomeiam apenas meio valor. Acontecimentos dinâ- micos afetam nossas vidas não como singularidades, mas como binários de carga de valor positivo ou negativo. Eles fazem nossa vida girar em torno de experiências de sucesso/fracasso, verdade/mentira, lealdade/ traição, amor/ódio, certo/errado, rico/pobre, vida/morte, perda/ganho, coragem/covardia, força/fraqueza, empolgação/ tédio, e muitos mais. Valores bombeiam o sangue que dá vida às histórias. Para que um evento seja significativo, a mente precisa pressentir que a carga de ao menos um valor passou por uma mudança. motivo é óbvio: se a carga do valor em questão numa situação não muda, o que acontece é uma atividade trivial, sem nenhuma importância. Po- rém, quando a carga de um valor muda de positiva para negativa, ou vice-versa (por exemplo, de amor para ódio ou de ódio para amor; de ganhar para perder ou de perder para ganhar), o acontecimento tor- na-se significativo e as emoções fluem. Como uma história bem-con- tada envolve a contação com valores emocionalmente carregados, seu sentido fica marcado em nossa É por isso que um evento ficcional pode ser mais memorável do que um acontecimento real. Histórias bem-contadas implantam padrões56 A CRIAÇÃO DE de comportamentos possíveis como se fossem as lembranças periências reais. Esses padrões tornam-se matrizes para ações de ex- Os valores confusos da vida real com frequência tornam os cimentos esquecíveis, ao passo que a clareza e a força de uma aconte- emocional fictícia cimentam-nos na memória como um potente ponto carga de referência futuro.5 Para entender a vida, a mente produtora de histórias junta tecimentos carregados de sentido ao longo do tempo, acon- e unindo-os por causa e efeito. Ao fim da história, o sentido é não os nas entendido racionalmente, mas também sentido ape- A forma de história, no que tem de mais simples, é a seguinte: na abertura da contação, a vida do personagem principal, segundo a expressão de seu valor nuclear (felicidade/tristeza. por exemplo), está em relativo equilíbrio. Porém, algo acontece que perturba equilíbrio e muda decisivamente a carga daquele valor nuclear num esse sentido ou noutro. Ele pode, por exemplo, apaixonar-se (positivo) e desapaixonar-se (negativo). personagem então age para restaurar o equilíbrio da vida e, a partir daquele momento, numa sequência de acontecimentos, conectados por causa e efeito, move-se ao longo do tempo, progressiva e dinamicamente, alterando o valor nuclear de positivo para negativo, de negativo para positivo, e daí por dian- te. No o acontecimento final da história altera a carga do valor nuclear de maneira absoluta, e a vida do personagem retorna ao equilíbrio. o domínio da mente em evolução da percepção historiada deu- -lhe o meio de simplificar o dilúvio avassalador da atualidade na forma uma realidade gerenciável, eficiente, de tamanho Seus e estruturados em histórias impuseram ordem, unidade sentido processos de a uma existência caótica. discordante, sem sentido. Graças ao pensamento historiado, a humanidade aprendeu a sobreviver com propósito e Como disse Kenneth Burke, as histórias nos equipam paraA EVOLUÇÃO DAS HISTÓRIAS 57 AS OITO CAPACIDADES QUE ANIMAM AS HISTÓRIAS A fim de historificar o pensamento, a mente desenvolveu e aperfeiçoou oito poderosas faculdades. Quando usadas em concerto, elas interco- nectam nossas impressões das pessoas, dos lugares e das coisas espa- lhadas pelo nosso passado, presente e futuro no conjunto coerente que chamamos de realidade. 1. Autoconsciência: a capacidade de distinguir o "eu" subjetivo e nuclear da mente de seu "eu" objetivo e público e de observar o "eu" exterior como se fosse uma personalidade separada. A autoconsciência, como notamos acima, veio com o pri- meiro pensamento humano. Embora o tempo altere o "eu" ob- jetivo, o "eu" nuclear sente que vive inalterado e fora do tempo. Mesmo assim, "eu" também percebe que não pode existir sem seu "eu" objetivo, e por isso teme sua perda. Com o tempo, o pensamento historificado remoldou a percepção, e a mente encontrou sentido na existência e na crença na vida após a morte. Com o propósito de um lado, e a imortalidade de outro, a humanidade enfim assumiu seu lugar no tempo. 2. Consciência do outro: a capacidade de olhar no fundo dos olhos de outra pessoa e pressentir nela uma consciência muito pare- cida com a sua própria. Com a percepção do outro, sua mente infere que o que quer aconteça dentro dela também acontece dentro da mente dos que outros. Uma forte consciência do outro torna-se empatia uma combinação de identificação e de intuição tal que, quan- do algo acontece com outra pessoa, você sente como se tivesse acontecido com Para o contador de histórias, a percepção do outro guia as a criação dos personagens que fazem as escolhas e realizam ações que levam a cabo a história. 3. Memória: a capacidade de guardar e de recordar as experiências.