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O HOMEM
E A BUSCA
DE SENTI
HELOÍSA REIS MARINO
IVO STUDART PEREIRA
LUIS ENRIQUE CARMELO (ORG.]
MILENA CAROLINA DE CASTRO
UM GUIA PARA ENTENDER
VIKTOR
FRANKL
Neste livr o o leitor encontrará artigos
sobre o tema central da obra de Viktor
Frankl: o homem e a busca de sentido.
Quatro especialistas da teoria frankliana
descrevem a importância, a aplicação
e as bases da Logoterapia e da Análise
Existencial, além de uma introdução sobre
sua vida e legado
"O ser humano não é um ser que somente
busca a satisfação das suas necessidades,
que busca o prazer ou o poder; na reali-
dade, primariamente, ele busca preencher
o máximo possível a sua vida de sentido.
Ele busca sentido e é movido, então, essen-
cialmente, por uma vontade de sentido".
"O fato de que o sentido reside no mundo
e não em nós mesmos tem tal alcance que,
na verdade, o homem não deveria pergun-
tar pelo sentido da existência, mas, inver-
samente, considerar a si mesmq como o
interrogado, sua própria existência como
o que deve ser interpretado e questionado.
Ávida lhe faz uma pergunta, cabe-lhe res-
ponder e, assim fazendo, ser responsá-
vel. Deve, por conseguinte, buscar uma
resposta para a vida, buscar o sentido da
vida; esse, todavia, precisa ser achado, e
não inventado. O homem não pode sim-
plesmente 'dar' um sentido à vida, tem de
'experimentá-lo'".
Jesus Rizzaldo
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O HOMEM
E A BUSCA
DE SENTIDO
HELOÍSA REIS MARINO, IVO STUDART PEREIRA,
LUIS ENRIQUE CARMELO (ORG.), MILENA CAROLINA DE CASTRO
UM GUIA PARA ENTENDER
VIKTOR
FRANKL
A U S T E R
O HOMEM
E A BUSCA
DE SENTIDO
HELOÍSA REIS MARINO
IVO STUDART PEREIRA
LUIS ENRIQUE CARMELO CORG.3
MILENA CAROLINA DE CASTRO
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UM GUIA PARA ENTENDER
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Jesus Rizzaldo
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Sumár io
U m homem em busca de sentido: vida e obra
de Viktor Frankl 7
Os pilares da Logoterapia e Análise Existencial 27
D o vazio de sentido ao horizonte da responsabilidade 53
Caminhos de sentido 83
Logoterapia em poucas palavras 99
A P Ê N D I C E
Perguntas e respostas 121
Bibliografia comentada de Viktor Frankl 131
U m homem em busca de sentido:
vida e obra de Vik tor Fran kl
DescreverViktor Frankl apenas como autor de Em busca
de sentido seria limitar sua importância. Embora esta seja,
sem dúvida, sua obra mais importante e conhecida, sua
contribuição foi muito além. Só para termos ideia da importância
e reconhecimento de nosso personagem para a psicologia, em
particular, e de seu nível de reconhecimento, em geral: recebeu
ele 29 condecorações de doutor honoris causa de universidades
do mundo todo, foi convidado por mais de 200 instituições para
a ministração de cursos, congressos e palestras, e escreveu cerca
de 40 livros, que foram traduzidos para 38 idiomas, incluindo o
português, para o qual vêm sendo vertidas obras inéditas todos os
anos, devido ao crescente interesse que o fundador da Logoterapia,
considerada a Terceira Escola de Psicologia Vienense,1 suscita
onde quer que se fale a seu respeito e se apresente sua teoria.
Também vale mencionar que ninguém menos do que Madre
Teresa de Calcutá, proclamada santa no Jubileu da Misericórdia
pelo Papa Francisco e vencedora do Prémio Nobel da paz em
1979, propôs que o psiquiatra austríaco Viktor Frankl pudesse ser
reconhecido por seus trabalhos e receber semelhante honraria.
1 Sendo a primeira escola de Freud e a segunda a de Adler.
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Máquina de escrever
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Sublinhado Rabiscado
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Sublinhado Rabiscado
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Lápis
O H O M E M E A BUSCA D E SENTIDO
E por falar em paz, é ademais digno de nota o fato de que
a então República Federal da Alemanha outorgou a Viktor
Frankl a comenda da Grande C r u z com estrela de mereci
mento, por seus muitos méritos com relação à reconciliação
teuto-judaica. E até mesmo Hol lywood (EUA), com toda a
sua pompa e promessas de fama e dinheiro à larga, chegou a
sondá-lo com a intenção de transformar a história de sua vida
em narrativa audiovisual, lançando nos cinemas u m filme no
estilo de A lista de Schindler, dirigido por Steven Spielberg, o
que, porém, nunca chegou a se concretizar.
E r a u m sujeito simples, e manteve sua essência até os últi
mos dias, permanecendo no mesmo apartamento em Viena,
pequeno e sem grandes luxos — concessão esta que lhe fizeram
após a Segunda Guerra Mundial , uma vez que a antiga casa
não era de propriedade de sua família — , bem como dando
continuidade a seus atendimentos clínicos e vivendo uma vida
de entrega, doação e sacrifício. Dito tudo isto, você pode estar
se perguntando: " Q u e m foi esse homem? Quais foram as suas
contribuições para a humanidade? Quão grande podemos d i
zer que foi sua coragem?". E o que veremos a partir de agora.
Primeiros anos: medicina, Freud e Adler
Foi no famoso Café Siller, em Viena, que aos 26 de março de
1905 Elsa Frankl começoumeio e apesar de todo bem-estar e
opulência que nos rodeie (Frankl , 1984, p. 29).
Como vimos na citação de Frankl , o ser humano, quando
encontra sentido, é feliz e capaz de suportar o sofrimento. Essa
busca de sentido, essa vontade de sentido, tem algumas conse
quências — e a primeira é que, quando encontra sentido, ele é
feliz. A felicidade não é uma coisa que se busca por si mesma.
A felicidade brota espontaneamente pelo fato de se descobrir
uma razão para viver, descobrir que a vida vale a pena. Espon
taneamente se instala a felicidade, a alegria, o prazer de viver,
a realização como pessoa.
. FEL IC IDAD E
SENTIDO
Efei t o-conse q ué n c ia . CAPACIDADE DE
ENFRENTAMENTO
P E S S O A
FORÇA
MOTIVADOR A
2 . FORÇA MOTIVADORA
A segunda consequência da descoberta do sentido é a capaci
dade de enfrentar o sofrimento. Quando uma pessoa descobre
o sentido de algo a ser realizado, o valor de alguma situação, o
para quê de uma ação ou uma atitude, como efeito desta desco
berta, brota não apenas a felicidade, mas também a capacidade
de enfrentar o sofrimento. Este vislumbre de que algo vale a
pena ser realizado desperta na pessoa uma força motivadora,
O H O M E M E A BUSCA D E SENTIDO
uma força de realização, uma força de enfrentamento, a força
para viver, para realizar, a força para superar as dificuldades
e desafios, ou seja, a capacidade para enfrentar o sofrimento,
a capacidade de sofrer por esta causa. A busca de sentido é a
motivação própria, específica, da pessoa. E a dinâmica própria
do ser humano.
Só conseguimos viver porque acreditamos que pode haver
algum sentido naquilo que fazemos. Nesta busca, em algum
momento, podemos até nos equivocar, mas sempre agimos
porque buscamos algum sentido; vislumbramos a possibilidade
de um sentido na nossa ação, na conquista do nosso objetivo. Se
há um sentido, então há também uma força de enfrentamento.
3 . S ER E DEVER-SER
O que mais ocorre quando se busca sentido? Quando buscamos
sentido, nos encontramos num campo de tensão entre dois po
ios,18 dois aspectos do ser: o que sou e o que devo chegar a ser.
Cria-se como que um arco de tensão em nossa vida: caminha-se
de uma situação atual para uma situação que pode ser transfor
mada num sentido construtivo. Tendemos sempre para o que
podemos vir a ser, para o nosso dever-ser. Caminhamos para ser
melhores, para crescermos, para o nosso desenvolvimento, para
o que somos chamados a ser. Esse arco de tensão é a própria
dinâmica espiritual. Nos sentimos tensionados para a realização
do nosso próprio desenvolvimento. È a vontade de sentido que
move a nossa vida enquanto humana.
18 Frankl, 2016a, p. 132.
OS PILARES DA LOGOTERAPIA E ANÁLISE E X I S T E N C I A L
Chegando a este ponto de nossa reflexão, podemos dizer
que esses são aspectos essenciais do ser humano enquanto pes
soa: a autotranscendência e a busca de sentido. Somos livres e
capazes de ir além de nós mesmos para buscarmos o sentido
da nossa vida, da nossa existência. Não buscamos somente a
nossa satisfação, o prazer, ou um alívio de tensões. Quanto
mais propósito de prazer alguém tenha, mais esquivo será. O
princípio do prazer anula a si mesmo, diz Frankl . 1 9 O prazer
nunca é a meta, antes é efeito colateral por termos alcançado
uma meta. Se perseguimos a felicidade em si, perdemos de
vista a razão para ser feliz e a felicidade desaparece.
A tensão, ao contrário, vitaliza a busca e faz com que todo
o nosso ser se empenhe quando vislumbramos algo a realizar,
alguém a encontrar, uma atitude a tomar.
O ser humano busca o sentido não para aliviar uma tensão
ou para recuperar o equilíbrio. O ser humano não está i m
pulsionado para buscar o sentido, mas sim se orienta para o
sentido e é atraído pelos valores.
A autotranscendência é a dinâmica própria da vontade
de sentido que move a pessoa para além de si mesma, que a
ordena e a orienta para o mundo. O dinamismo espiritual da
pessoa é um dos seus atributos humanos mais essenciais, uma
vez que a arranca de uma vida meramente impulsiva e fecha
da, em função de si mesma. Situa verdadeiramente a pessoa
na sua existência — sempre original e aberta —, num campo
de tensão entre o seu ser e o seu dever-ser. Frankl denomina
esse movimento espiritual transcendente de "noodinâmica".
A dinâmica do nous, do espírito.
Nesta busca de sentido, participa sempre a liberdade do ser
humano, pois a realização de sentido sempre implicará a toma
da de uma decisão. E a Logoterapia trata de uma "vontade de
19 2011,p.48.
O H O M E M E A BUSCA D E SENTIDO
sentido" porque existe uma "diferença fundamental entre ser
conduzido por um instinto e lutar pela realização de algo".20
Sentido da vida: o aspecto objetivo da existência
1 . O Q U E É O S E N T I D O
A vida tem sentido. Tem-no sempre. E m todas as circunstân
cias. " A vida nunca cessa de abrigar um sentido". Este é mais
u m pilar da Logoterapia fundamentado na observação que se
pode fazer no dia a dia da vida das pessoas.
O ser humano está sempre orientado e ordenado para algo
que não é ele mesmo; seja u m sentido que tem de cumprir,
seja outro ser humano com quem ele se encontra. E m uma
ou outra forma, o fato de ser pessoa aponta sempre para mais
além de si mesmo, e esta transcendência constitui a essência
da existência humana.2 1 O sentido é a meta última para a qual
se dirige a vontade livre do ser humano.
Sob o aspecto existencial, não podemos falar de um sentido
universal para a vida, u m sentido único para todas as pessoas.
Não podemos prescrever ou impor u m sentido para ninguém.
Quando refletimos sobre o sentido, estamos analisando aquela
experiência de descoberta que cada pessoa faz na sua vida, de
que sua vida vale a pena, de que existe uma razão para viver.
Trata-se, portanto, de uma experiência existencial pessoal.
Assim, neste contexto, a questão não seria qual é o sentido da
vida, mas o que é o sentido.
O sentido não é uma mera categoria intelectual ou con
ceituai; ou uma invenção pessoal ou atribuição subjetiva de
significado, que corresponderia a uma criação de cada um.
20 Frankl, 201 l , p . 59.
21 Frankl, 2016a, p. 136.
OS PILARES DA LOGOTERAPIA E ANÁLISE E X I S T E N C I A L
O sentido é para ser encontrado e não para ser criado, insiste
F r a n k l . 2 2
Como realidade objetiva, que transcende o próprio sujeito,
e facultativa, que envolve a liberdade humana, o sentido aponta
não apenas para o "ser que é", mas também para um dever-ser
ou u m "poder-ser"; desse modo, ele é captado por u m tipo de
antecipação espiritual, pela intuição.23
E m outras palavras, o sentido sempre se refere àquilo que
a pessoa é "chamada a ser" na vida e também naquele instante
que não se repete: "Realmente, a explicada existência humana,
como algo de único e irrepetível, encerra uma vocação (Appell,
apelo, chamada) para realizar as suas possibilidades únicas, que
não se repetem".
2 . DESCOBERTA DE SENTIDO
Viktor Frankl, em um dos seus livros, refletindo sobre a questão
do sentido da vida, afirma: " O sentido da vida é a própria vida" . 2 4
Para que possamos compreender essa frase de forma concreta,
pensemos num exemplo: quando alguém faz aniversário, quase
sempre se realiza uma festa, ou seja, comemoramos a data. E
"co-memorar" significa fazer memória juntos. Se comemora
mos o aniversário de uma avó que completa 80 anos, fazemos
memória juntos da vida dessa pessoa, dos bons momentos
que ela experimentou e fez os outros experimentarem. C o
memoramos suas conquistas, suas realizações, tudo o que ela
construiu: filhos, netos, bisnetos etc. O u seja, comemoramos
a realização das possibilidades que a própria vida trouxe, que
a vida lhe ofereceu.
Mas e quando comemoramos o aniversário de uma crian
ça de u m ano? O que comemoramos, se ela viveu muito
pouco ainda? Celebramos, sem dúvida, seu nascimento,mas
22 2011,p.87;2019,p.30.
23 Frankl, 2017, p. 77.
24 2019, p. 291.
O H O M E M E A BUSCA D E SENTIDO
comemoramos, principalmente, o fato de que ela, tendo
vida, traz no seu ser inúmeras possibilidades de realização.
Manifestamos nosso desejo de que ela possa realizar, descobrir
muitas coisas, superar as dificuldades, alcançar conquistas.
O u seja, comemoramos o que ela pode " v i r a ser". Pois, pelo
fato de ser, a criança é, potencialmente, mais do que ser: ela
pode v i r a ser. E essa possibilidade também constitui a sua
vida. Assim, sobre a afirmação acima, Frankl explica que
nesta frase a palavra " v i d a " está colocada duas vezes, com
significados diferentes. N o primeiro, trata-se da vida como
nos é dada. Nossa dimensão psíquica, nosso temperamento, as
características de nossa personalidade, nossas aptidões, nossas
possibilidades físicas, tudo o que compõe o que recebemos
geneticamente e na relação com o meio. Recebemos a vida
como u m dom. Mas nossa vida não se restringe apenas ao que
nos é dado, não somos apenas faticidade. N a segunda vez, a
palavra vida significa a vida como tarefa, como missão, pois
esta também faz parte de nós. Isso significa que, enquanto seres
espirituais, também somos constituídos pelo que podemos v i r
a ser; significa que carregamos potencialidades, possibilidades
de realização que podem se tornar reais em cada circunstância
da nossa vida. A vida tem sentido porque podemos fazer algo
com o que nos foi dado como dom. Porque somos chamados
a realizar algo. Portanto, o sentido da vida está na própria
vida. Está na própria história, está nas possibilidades da nossa
existência. O sentido da vida reside na descoberta de como
posso dar minha resposta diante do meu próprio contexto,
diante daquilo que é próprio da minha história, da minha
existência, das minhas possibilidades. Reside na realização
destas possibilidades. O sentido da vida reside, portanto, na
própria vida. Mas não está somente naquilo que recebi: está
naquilo que posso responder, naquilo que posso fazer com
aquilo que recebi. E posso fazer algo porque sou um ser l ivre,
autotranscendente, responsável.
OS PILARES DA LOGOTERAPIA E ANÁLISE E X I S T E N C I A L
F r a n k l 2 3 costumava citar em seus livros e conferências três
perguntas fundamentais elaboradas pelo Rabino H i l l e l , que
viveu 2 m i l anos atrás, e que nos ajudam a fazer essa reflexão
a respeito do sentido da vida: "Se não sou eu que faço, quem
o fará? Se não faço agora, quando o farei? E se fizer só para
m i m , quem sou eu?".
3 . O S E N T I D O É R E L A T I V O A C A D A P E S S O A
"Se não sou eu que faço, quem o fará?", remete à nossa unicida
de. Somos seres únicos, irrepetíveis. Nunca existiu, nem nunca
existirá, outra pessoa como nós. Ninguém vai poder viver nossa
vida por nós. Ninguém poderá escrever nossa história no nosso
lugar. Somos chamados à vida e só nós podemos responder a
esse chamado. Só eu posso viver minha vida de forma única
e irrepetível, com tudo aquilo que recebi. Sou um ser único
e irrepetível. Se não faço, se não respondo, se não dou minha
resposta pessoal, essa página da minha vida fica em branco,
ninguém vai poder dá-la por m i m . A medida que descubro
minha unicidade — e também minha responsabilidade, pois
descobrir minha unicidade significa descobrir que posso dar
minha resposta — , também me dou conta de que a vida vale
a pena. Vale a pena viver por aquilo que só eu posso e devo
realizar, para deixar minha marca, minha assinatura, realizar
a minha missão pessoal. Cada pessoa, entretanto, precisa fazer
sua descoberta pessoal. Não podemos falar, neste contexto, de
u m sentido universal, que sirva a todos. Só podemos falar do
sentido pessoal, do sentido singular, que cabe a cada pessoa
descobrir e realizar. O sentido é relativo a cada pessoa.
Quando damos nossa resposta, em cada possibilidade, o que
acontece? Estamos trazendo, do reino das possibilidades, uma
delas para ser realidade na nossa vida. Quando o ser humano
dá sua resposta, quando concretiza algo, diz sim para a possibi
lidade, traz uma possibilidade para a realidade — realidade da
25 2011,p.73.
O H O M E M E A BUSCA D E SENTIDO
sua vida, da sua existência. E quando ele realiza algo, faz isso
de uma vez para sempre. Nada pode ser apagado da sua vida,
da sua história. E daí decorre sua responsabilidade por aquilo
que constrói com sua vida.
4 . O S E N T I D O É R E L A T I V O A C A D A SITUAÇÃO
"Se não faço agora, quando o farei?" nos remete ao fato de que
o sentido da vida, além de pessoal, também muda de momento
a momento — remete-nos à unicidade de cada momento da
vida. Precisamos, a cada momento, descobrir o sentido, fazer a
descoberta de qual é a melhor resposta a dar em cada circunstân
cia. U m a resposta que não pode ser qualquer uma. Precisamos
descobrir o que a vida pede de nós em cada situação. Mas para
descobrir isso, precisamos ir além de nós, nos abrir ao que nos
rodeia. Se estivermos fechados em nós, não nos daremos conta
de qual é o sentido da situação que estamos vivendo. O sentido
se desvela em cada situação de nossa vida. Assim:
Toda pessoa humana representa algo de único e cada u m a
das situações da sua v ida , algo que não se repete. C a d a missão
concreta de u m h o m e m depende relativamente deste 'cará
ter de algo único ' , desta irrepetibilidade. E por isso que u m
h o m e m só pode ter, e m cada momento , u m a missão única; e
é assim, precisamente, que esta peculiaridade do que é único
comunica a tal missão o caráter de absoluto.2 6
5 . O S E N T I D O É O B J E T I V O E N O S T R A N S C E N D E
E por f im, quando o Rabino H i l l e l pergunta: "Se fizer só
para m i m , quem sou eu?", a pergunta nos remete à nossa
autotranscendência: se viver somente em função de m i m , de
forma egocêntrica, buscando somente a satisfação de minhas
necessidades, os meus interesses, não estarei vivendo o que é
próprio da minha humanidade, da minha essência.
26 Frankl, 2016a, p. 105.
OS PILARES DA LOGOTERAPIA E ANÁLISE E X I S T E N C I A L
E por que o ser humano precisa ir além de si para descobrir
o sentido? Porque o sentido é objetivo, é algo que nos trans
cende. Está fora de nós. Está além da nossa subjetividade. O
sentido não é uma ideia, não é só uma meta, u m propósito
que posso definir. O sentido está relacionado com o que a vida
espera de m i m . E precisamos ir além de nós para descobri-lo.
Dizendo de outra forma, o sentido está além da mera satisfação
das nossas necessidades, da nossa busca egocêntrica. O u seja,
ele existe na concretude e nas situações objetivas da vida. Está
além da dinâmica do nosso psiquismo, do nosso ego; enfim,
o sentido nos transcende.
6 . S E N T I D O DA VIDA, MISSÃO E IDENTIDADE PESSOAL
Descobrir a própria vida como missão, em cada instante s in
gular, possibilita o conhecimento do seu ser insubstituível e
confere à vida o "valor de algo único". A descoberta do sentido
desperta na pessoa o reconhecimento de sua identidade pessoal
e de uma missão própria. A missão é o lugar por excelência do
encontro e da realização do sentido. Somente no cumprimento
das "missões pessoais", sempre concretas e específicas, se pode
alcançar os valores e realizar o sentido vinculado a cada situação
e, em última instância, o sentido da própria vida.
E m vista disso, Frankl (2022) esclarece que existe u m duplo
aspecto do caráter de missão da vida humana:
A . U m aspecto de incumbência, de tarefa:27 somos chamados
a responder à exigência objetiva e concreta de cada situação.
Essas exigências ou tarefas são sempre objetivas, porque v i n
das do "mundo de fora"; são sempre singulares e irrepetíveis,
porque sempre relativas a cada pessoa e situação; por f im, elas
se apresentam mesmo à pessoa numa concretude e exatidão
absoluta, como "uma missãoespecífica".
27 Frankl, 2022, p. 57; 2016a, p. 104.
O H O M E M E A BUSCA D E SENTIDO
Só na medida e m que nos entregamos, nos sacrificamos e nos
abandonamos ao m u n d o e, a partir dele, às incumbências e
exigências que se in t roduzem e m nossa v ida , só na medida
e m que nos importa o m u n d o de fora e os objetos, mas não
nós mesmos ou nossas próprias necessidades, só na medida e m
que c u m p r i m o s as incumbências e exigências e realizamos
sentido e valores, só nessa medida realizamos a nós mesmos . 2 8
B . U m aspecto de dom: o encontro consigo mesmo, o co
nhecimento das capacidades e valores, a atualização das próprias
possibilidades, a descoberta e realização do que pode chegar
a ser, também acompanham a descoberta de sentido na vida.
O conhecimento e o cumprimento das próprias possibilidades
são obtidos não diretamente, como f im da tarefa, mas como
efeito da realização do sentido no cumprimento da missão.
Se quero chegar a ser o que posso, tenho que fazer o que
devo. Se quero chegar a ser eu mesmo, tenho que c u m p r i r
c o m incumbências e exigências concretas e pessoais. Se o
h o m e m quer chegar a seu eu, a seu si mesmo, o caminho
passa pelo m u n d o . 2 9
O conhecer-se e realizar-se a si mesmo exige, paradoxal
mente, a saída de si mesmo — a autotranscendência — em
direção a algo (ou alguém) além de si; exige o encontro com
o sentido da vida, sempre único e irrepetível, que desemboca
na descoberta da própria missão, da missão de cada instante e,
em última instância, da missão da existência inteira. "Recebe
mos a identidade como uma graça, se, esquecendo-nos de nós
mesmos, nos entregamos a uma missão. Se perdemos de vista
nossa missão, também perdemos nossa identidade".30
Descobrir o caráter de missão da própria vida, nos orien
tando para os sentidos a serem realizados nas incumbências
28 Frankl, 2017, p. 105.
29 Frankl, 2017, p. 105.
30 Frankl, 2022, p. 22.
OS PILARES DA LOGOTERAPIA E ANÁLISE E X I S T E N C I A L
concretas e pessoais, se afigura ao ser humano como uma
exigência irrenunciável para a autorrealização, para a saúde e
a felicidade na vida.
Algo nos espera na vida e precisamos despertar para isso. A
vida espera algo de nós, e algo na vida, no futuro, nos espera.
Somos pessoas únicas e irrepetíveis. Precisamos nos dar conta
da unicidade que nos caracteriza como pessoas, pois esta:
[...] dá sentido à nossa existência e i l u m i n a e m toda sua gran
deza a "responsabilidade" pela nossa v ida e por tudo que
podemos realizar. Saber o " p o r q u ê " de nossa existência nos
ajudará a suportar quase todo " c o m o " . E a v ida está repleta
de oportunidades para dotá-la de sentido.3 1
HELOÍSA R E I S MARINO 3 5
Referências
FRANKL, V. E . La idea psicológica delhombre. Madrid: Ria lp , 1984.
. A vontade de sentido: fundamentos e aplicações da logoterapia.
São Paulo: Paulus, 2011.
. Psicoterapia e sentido da vida. São Paulo: Quadrante, 2016a.
. Teoria e terapia das neuroses. São Paulo: E Realizações,
2016b.
. Logoterapia e análise existencial. R i o de Janeiro: Editora
Forense, 2017.
31 Frankl, 2022a, p. 46.
32 Heloísa Reis Marino possui graduação em psicologia pela Universidade de
Mogi das Cruzes. Atualmente é professora da pós-graduação em Logoterapia
e Análise Existencial na Sobral (Associação Brasileira de Logoterapia e Análise
Existencial Frankliana), Universidade Católica de Salvador, Faculdade Cató
lica de Mato Grosso, Unilife Faculdade, Centro Universitário ítalo Brasileiro,
Universidade Estadual da Paraíba, Núcleo Mineiro de Logoterapia, Instituto
de Educação e Cultura Viktor Frankl. Tem experiência na área de psicologia,
com ênfase em psicoterapia.
O H O M E M E A BUSCA DE S EN T I D O
. O sofrimento humano: fundamentos antropológicos da psi
coterapia. São Paulo: E Realizações, 2019.
. Sobre o sentido da vida. Petrópolis: Vozes, 2022a.
. A vontade de sentido: conferências escolhidas sobre logoterapia.
Campinas: Auster, 2022b. (Versão com referências)
LERSCH, P. La estrutura de lapersonalidad. Barcelona: Scientia, 1971.
LUKAS, E . Logoterapia: a força desafiadora do espírito. São Paulo:
Loyola, 1986.
PINTOS, C . G . Un hombre llamado Viktor. Buenos Aires: San
Pablo, 2007.
Do vazio de sentido ao hor izonte
da responsabilidade
Introdução
O presente ensaio tem o objetivo de elaborar, a partir
de três ênfases distintas, o aporte frankliano a respeito
do vazio existencial. Nosso primeiro recorte temático
será de natureza biográfica e buscará relacionar esse complexo
fenómeno à trajetória pessoal de Viktor E m i l Frankl, numa
perspectiva a partir da qual a própria génese da Logoterapia
será evidenciada como parte de um processo mais amplo, que
amadureceu em três fases fundamentais. Realizada essa contex
tualização inicial, passaremos, no segundo momento de nosso
trabalho, à análise da visão frankliana a respeito das causas do
vazio existencial, discutindo seus condicionantes sociológicos
e refletindo sobre seus respectivos impactos na cultura e saúde
mental do século x x até a atualidade. Na terceira e última seção
de nosso trabalho, avaliaremos os traços fundamentais de uma
vida orientada ao sentido segundo a Logoterapia, buscando trazer
ao leitor os pilares do "antídoto" frankliano contra o niilismo
e o vazio de sentido.
O H O M E M E A BUSCA D E SENTIDO
1 . O " I N F E R N O DO N I I L I S M O " E A " C A U S A DO
S E N T I D O "
É impossível, ou no mínimo inadequado, abordar a questão do
sentido (e de sua aparente "falta") sem relacioná-la à biografia de
Viktor Frankl , que viveu seus noventa e dois anos (1905-1997)
inteiramente no século x x , um período de nossa história cujas
duras lições ainda parecemos não ter assimilado por completo.
Antes de tudo, devemos entender as razões pelas quais essa
problemática se tornou historicamente relevante na vida do
criador da Logoterapia. Ele costumava citar, nesse contexto,
um pensamento bastante oportuno de Karljaspers: " O homem
se torna o que é por força da causa que ele fez sua".1
Se seu ilustre colega de medicina e filosofia estiver correto,
por certo podemos assumir a ideia de que Frankl abraçou,
desde muito cedo, a "causa" do sentido da vida, a partir de
u m corajoso enfrentamento do niilismo latente na cultura,
ciência e filosofia de seu tempo. Na conceituação própria da
Logoterapia, o niilismo não seria uma postura ideológica de
negação da realidade, mas do próprio sentido da vida. 2 Já a
frustração (ou vazio)3 existencial seria a vivência pessoal desse
niilismo,4 experimentado não como mero e distanciado objeto
de reflexão filosófica, e sim como angustiante verdade pessoal.
Na fascinante trajetória do pensador vienense, identifica
mos três dimensões fundamentais desse precoce compromisso
1 Jaspers apud Frankl, 2011, p. 53.
2 Frankl, 1978, p. 187.
3 Frankl se utiliza da expressão "vácuo existencial" como conceito propria
mente logoterapêutico, isto é, como o vazio existencial compreendido à luz
de sua abordagem: "Cada vez mais pacientes reclamam de uma experiência
que eles mesmos, geralmente, chamam de 'vazio interior', e essa é a razão pela
qual eu passei a utilizar a denominação 'vácuo existencial'. Numa distinção
comparativa ao que Maslow tão bem descreveu como 'experiências de pico',
poder-se-ia conceber o vácuo existencial nos termos de uma 'experiência de
abismo'" (Frankl, 2011, p. 105). Para os propósitos deste ensaio, no entanto,
utilizaremos "vácuo" e "vazio" indistintamente.
4 Frankl, 1991, p. 73.
D O V A Z I O D E S E N T I D O A O H O R I Z O N T E D A R E S P O N S A B I L I D A D E
existencial, de modo que a questão do sentido e de sua ausência
aparecem na vida de Frankl :
1) Como drama pessoal;
2) Como questão filosófica e;
3) Como desafio clínico.
Desse modo, em suas reflexões autobiográficas, o pai da
Logoterapiarelembra que, pouco antes de adormecer em certa
noite, aos quatro anos de idade, teve uma experiência visceral
com a consciência de sua fmitude: perturbou-se com a ideia
de que ele, também, teria que morrer algum dia. A questão,
porém, não era apenas o medo da morte em si — Frankl afirma
que nunca a temeu — mas, sim, se a transitoriedade da vida não
anularia qualquer possibilidade de sentido.3 E m suma: como
conciliar a ideia de fmitude com a de uma vida com sentido?
Provavelmente, a partir desse insight "fundador", a Logoterapia
dava seus primeiros passos, vindo a confundir-se com a própria
vida do criador da Terceira Escola de Psicoterapia de Viena.
Aqui , adentramos a primeira dimensão referida acima: a
da falta de sentido como drama pessoal. Diante da pergunta
sobre como chegou à questão do sentido e como descobriu a
própria teoria, o psiquiatra vienense é bastante sincero e direto:
C r e i o que se poderia dizer que, pr imeiro , descobri m i n h a
teori a para m i m m e sm o. Costuma-se dizer que, quando
alguém funda u m sistema psicoterapêutico, o que faz, resu
midamente, é relatar seu próprio registro patológico, d e i -
x a n d o - o como registro escrito nesse sistema. Todos sabemos
que S i g m u n d F r e u d sofreu de pequenas fobias e que Al f re d
A d l e r não foi exatamente u m a criança forte e saudável. Dessa
maneira , F r e u d chegou à sua teoria do complexo de Édipo, e
Adler , à do complexo de inferioridade. D e v o dizer que não
sou n e n h u m a exceção a essa regra. Tenho consciência de que,
quando comecei a amadurecer, tive que lutar mui to contra o
sentimento de que, ao fim e ao cabo, tudo era u m completo
5 Frankl, 2010, p. 27.
O H O M E M E A BUSCA D E SENTIDO
absurdo [sinsentido]. Aque la lut a acabou se conve rtendo
em u ma d e t e r m i n a ç ão e, então, desenvolvi u m an t í d o t o
con t ra o n i i l i smo . 6
Logo se vê como a Logoterapia tem em sua génese a marca
irrecusável do niilismo vivenciado pelo jovem Frankl : " E u
preciso sabê-lo. Pois eu passei pela escola do psicologismo e
pelo inferno do niilismo".7 Assim, o primeiro Homo Patiens a se
beneficiar da Terceira Escola Vienense de Psicoterapia foi seu
próprio fundador: um estudante de medicina judeu, intelec
tualmente inquieto, de temperamento filosófico e vocação para
o ativismo social, vivendo no berço histórico da psicoterapia,
em pleno período entreguerras. O primeiro passo na sistemati
zação dos fundamentos da Logoterapia foi, reconhecidamente,
a necessidade de superar a vivência pessoal da falta de sentido:
"Porém, interiormente, primeiro tinha que superar, de uma
vez por todas, meu nii l ismo".8
Ao mesmo tempo, a segunda dimensão mencionada aci
ma envolveu a transposição conceituai dessa experiência de
superação do próprio vazio interior. Abordar o problema sob
uma perspectiva de distanciamento teórico auxiliou Frankl a
compreender e elaborar os componentes de seu "antídoto".
Essa vacina contra o desespero foi, então, sendo filosoficamente
traduzida em um sistema teórico destinado a " imunizar" o
maior número possível de pessoas, num contexto em que os
desdobramentos da frustração existencial, na visão de Frankl ,
começavam a se tornar mais clinicamente prevalentes do que
os relacionados às questões edípicas (Freud) ou de inferiori
dade (Adler).
Hoje acontece que o homem não se mostra capaz de dotar
sua vida de um sentido. Ele não está mais, como na época de
Freud, sexualmente frustrado, mas existencialmente frustrado.
6 F r a n k l , 2 0 0 0 a , p p . 9 - 1 0 , g r i f o s n o s s o s .
7 F r a n k l , 1 9 9 0 , p . 1 3 2 .
8 Frankl, 2000a, p. 10.
D O VAZIO D E SENTIDO AO H O RI Z O N T E DA RESPONSABILIDADE
E sofre menos de um sentimento de inferioridade, como no
tempo de Alfred Adler, do que de um sentimento de carência
de sentido, de "vazio existencial", como o denominei. N o
século passado, Schopenhauer ensinou que o homem oscila
entre dois extremos, a necessidade e o tédio, e hoje o pêndulo
está na segunda extremidade. N a sociedade afluente, há muito
dinheiro, não há u m objetivo de vida. As pessoas têm de que
viver, não para que viver?
Nesse ponto, devemos frisar que, durante toda sua carreira,
Frankl acreditou falar às necessidades do momento, denun
ciando, mais especificamente, esse peculiar traço patogênico
que foi exacerbado socialmente no século x x : o da negação do
sentido da vida e seus impactos na saúde mental. Assim, numa
obra originalmente lançada em 1978, afirmou:
Basta considerar a emergência e a permanência e m todo o
m u n d o do sentimento de falta de u m significado para a v ida .
Se esta é a neurose de massa dos anos setenta, posso dizer c o m
toda modéstia que seu advento e sua difusão foram preditos
por m i m já nos anos cinquenta e, mais cedo ainda, nos anos
tr inta, fornec i a sua terapia.1 0
Contudo, no início de sua jornada com a questão do sentido,
o jovem Frankl não conseguia enxergar um lugar adequado
para o vazio existencial no quadro teórico das duas abordagens
pioneiras com as quais aprendeu a técnica e a arte da psicoterapia.
Na sua visão, nem Freud nem Adler pareciam ter uma resposta
clínica que reconhecesse a autenticidade da busca humana por
sentido. Ambos os métodos sofriam do mesmo mal: o vício
do "psicologismo", que vislumbrava a totalidade do fenómeno
humano a partir de um "monadologismo" subjetivista. Sob esse
problemático olhar, toda a busca e todos os esforços humanos
remontariam aos ditames de u m sistema psíquico fechado,
9 Frankl, 1978, p. 57.
10 Frankl, 2005, p. 11.
O H O M E M E A B U S C A D E S E N T I D O
regulado sob o princípio da homeostase e cego ao "mundo
objetivo do sentido e dos valores".11
Assim, o pai da Logoterapia via-se frustrado na tentativa
de conciliar sua visão a respeito do vazio existencial com o
"preceito psicologista que enxerga no homem, apenas, os
esforços pelo apaziguamento de tensões internas, as quais
transformariam o mundo e seus objetos em meros meios de
regulação homeostática de conflitos subjetivos",12 seja no sentido
psicanalítico (demandas pulsionais) ou adleriano (exigências de
superioridade). Frankl precisava, então, acordar de seu "sono
psicologista", e o responsável por isso foi, reconhecidamente, o
filósofo alemão Max Ferdinand Scheler (1874—1928), cuja obra
forneceu ao psiquiatra vienense os elementos estruturantes para
uma visão de homem e de mundo digna dos desafios que ele
buscou enfrentar: "Por esse tempo, enxerguei definitivamente
meu próprio 'psicologismo'. Fu i totalmente sacudido por M a x
Scheler, e carregava seu livro Formalismus in der Ethik [Formalismo
na ética] como uma bíblia. Estava mais do que na hora de uma
autocrítica de meu próprio psicologismo".13
Pouco a pouco, a questão filosófica foi se transformando em
desafio clínico — a terceira dimensão da "causa do sentido"
na vida e obra de Frankl . Muito provavelmente, o pensador
vienense concordaria com Albert Carnus ao menos na identi
ficação do que talvez seria o único problema filosófico verda
deiramente sério: o do suicídio, enquanto "fenómeno l imite"
para o julgamento a respeito do valor e do sentido da vida.
E profundamente indiferente saber qual dos dois, a T e r r a ou o
So l , gira e m torno do outro. E m suma, é u m a futilidade. Mas
vejo, e m contrapartida, que muitas pessoas m o r r e m porque
consideram que a v ida não vale a pena ser v ivida .Ve jo outros
que, paradoxalmente, deixam-se matar pelas ideias ou ilusões
11 Frankl, 2014, p. 102.
12 Pereira, 2021, p. 105.
13 Frankl, 2010, p. 71.
D O V A Z I O D E S E N T I D O A O H O R I Z O N T E D A R E S P O N S A B I L I D A D E
que lhe dão u m a razão de v iver (o que se denomina razão de
v iver é ao mesmo tempo u m a excelente razão de morrer ) .
Julgo, então, que o sent ido da v ida é a mais pre me n tedas perguntas. '4
Apesar de Frankl nunca ter reduzido a complexidade do
suicídio, unicamente, à questão do sentido, para ele, a relação
entre ambas essas dimensões era clara: " O que é o suicídio,
porém, senão um não à questão acerca de um sentido da vida?".15
Mesmo nos casos em que a frustração existencial não figura
como principal "causa" da tentativa de tirar a própria vida,
a orientação ao sentido sempre atua como fator de proteção:
Pessoalmente não creio, de f o r m a alguma, que todo suicí
dio, o u seja, que toda tentativa de suicídio, seja empreendida a
partir da sensação de falta de sentido; mas m e parece certa
mente pensável que ele não seria realizado se a pessoa referida
tivesse visto u m sentido na v ida , ou talvez ainda até n u m
sofrimento. C o m o diz C . G . J u n g : " O sentido faz muito , talvez
tudo suportável". O u , para falar c o m Nietzsche: " Q u e m tem
por que viver , suporta quase qualquer c o m o " . 1 6
Isto explica seu envolvimento precoce com a questão do
suicídio e de sua prevenção. Sempre digno de nota, por exemplo,
foi seu envolvimento na organização dos chamados "centros
de aconselhamento da juventude", u m serviço de atendimento
psicológico gratuito que visava oferecer uma alternativa de
enfrentamento ao considerável número de suicídios e fugas
entre os jovens estudantes daquela Viena do final dos anos 1920.
Eugénio Fizzotti, destacado logoterapeuta italiano, publicou
uma coletânea com todos os artigos e ensaios publicados por
Frankl entre 1923 e 1942,17 ano de sua deportação aos campos
14 Carnus, 2004, p. 18, grifos nossos.
15 Frankl, 2014, p. 301.
16 Frankl, 1990, p. 26.
17 Frankl, 2000b.
O H O M E M E A BUSCA D E SENTIDO
de concentração nazistas. É curioso atestar que, dos quarenta e
um textos compilados, vinte e um deles se refiram à experiência
do aconselhamento juveni l .
Assim, podemos ver como o jovem vienense orientou sua
formação médica e filosófica para a questão do sentido e de
sua frustração, buscando sempre atuar junto àqueles pacientes
para os quais o vazio existencial representava um considerável
desafio terapêutico. Desse modo, Frankl realizou sua residência
médica em psiquiatria (1933—1937) no Hospital Steinhof onde,
por quase quatro anos, dirigiu o pavilhão 3, conhecido infor
malmente como "corredor das suicidas" (Selbstmõrderpavillorí).
Nesse período, desenvolveu uma ampla visão diagnostica e
terapêutica sobre o tema, por meio de uma casuística pessoal
que chegou a 12 m i l pacientes.18 A expertise angariada tanto
nos centros de aconselhamento da juventude quanto no Hospital
Steinhof foi fundamental, também, para a atuação de Frankl
no gueto de Theresiendstat, o campo em que passou a maior
parte de seu período de cárcere.19
Por último, mas não menos importante, tínhamos que nos
ocupar da prevenção de suicídios. E u organizei u m serviço de
informações, de m o d o que cada expressão de pensamentos ou
intenções suicidas me era trazida rapidamente. O que deve
r ia ser feito? T ínhamos que apelar para a vontade de viver ,
de seguir v ivendo, de sobreviver à prisão. Mas a coragem de
v ida , ou o cansaço da v ida , acabou, e m cada caso, a depender
somente do fato de a pessoa possuir o u não fé n u m sentido da
v ida , da sua v i d a . 2 0
Assim, após a libertação dos campos nazistas, ocorre,
em 1946, a inauguração "editor ia l" da Logoterapia, com
a publicação da obra Árztliche Seelsorge21, que apresenta —
1 8 KiingbergJr., 2001, p. 73.
1 9 Pereira, 2 0 2 1 .
2 0 F r a n k l , 2 0 2 0 , p . 1 1 8 .
21 A edição brasileira tem o título de Psicoterapia e sentido da vida (Frankl, 2003a).
D O VAZIO D E S EN T I D O AO H O RI Z O N T E DA RESPONSABILIDADE
como desdobramento das três fases analisadas aqui — a nova
abordagem psicoterapêutica ao mundo. Dessa forma, após termos
analisado o papel do vazio existencial tanto na trajetória de vida
de Frankl como na génese de sua escola psicoterápica, temos
condições de passar ao segundo momento do presente ensaio,
que abordará a visão de nosso pensador a respeito das causas
e desdobramentos desse fenómeno na contemporaneidade.
2 . As RAÍZES E FORMAS DO VAZIO CONTEMPORÂNEO
O que a ausência de sentido pode nos revelar sobre a natureza
mais íntima e fundamental dos anseios humanos? Frankl per
gunta a si mesmo, ao estilo kantiano, sobre as "condições de
possibilidade" da frustração existencial e chega à conclusão de
que, antes de tudo, o ser humano se revela ontologicamente
estruturado para buscar e realizar sentido.
Assim, a frustração existencial só pode ser compreendida
a partir do esclarecimento de um princípio motivacional: " E
a presença ubíqua do sentimento de falta de sentido pode nos
servir de indicador quando se trata de encontrar a motivação
primária, aquilo que no fundo o homem deseja".22 Estamos
falando da chamada "vontade de sentido", cuja definição
operacional seria: "nós chamamos de vontade de sentido sim
plesmente aquilo que é frustrado no homem sempre que ele
é tomado pelo sentimento de falta de sentido e de vazio" . 2 3
Portanto, compreender o vazio é entender que a busca pelo
sentido é um aspecto motivacional constitutivo do ser humano:
"Chamamos de frustração existencial — de não realização
da vontade de sentido — o sentimento de vazio existencial,
o sentimento de uma existência sem objetivo e conteúdo".24
Aceitando que a busca por sentido é inerente à condição
humana, como explicar a intensificação do fenómeno do
22 Frankl, 1991, p. 25.
23 Idem.
24 Frankl, 2016, p. 166.
O H O M E M E A BUSCA D E SENTIDO
vazio existencial no século x x ? B e m , ao contrário dos demais
animais, os seres humanos, em seu processo evolutivo, foram
alcançando, cada vez mais, uma independência específica ante a
própria programação instintiva. O animal, de certa forma, já é
sempre idêntico aos seus instintos. E m outras palavras, sem esse
nível de desprendimento frente à sua constituição pulsional, os
animais serão apenas aquilo que a dinâmica instinto-ambiente
comandar. Podemos dizer, então, que os animais e nossos an
cestrais pré-humanos sempre "sabiam" o que fazer.
Já no caso do homem, como pessoa espiritual, livre e respon
sável, a construção do seu próprio ser já é, em si, problemática.
Af inal , a partir de que critérios deve ele conduzir a própria
liberdade? Durante séculos, o ser humano encontrou abrigo
para essas questões ao abraçar a autoridade da tradição, que
ao disseminar seus valores, conferia inteligibilidade ao dever
e ao lugar de cada u m na vida e na sociedade. Contudo, con
temporaneamente, temos assistido à derrocada da legitimidade
dos valores tradicionais, que parecem ter perdido o poder de
organizar a experiência humana em comunidade. Frankl, desse
modo, sugere que o "desmoronamento das tradições seja o fator
mais importante para explicar o vazio existencial", que tende,
por essa razão, a ser mais penoso entre os jovens.2 5
Ora, a sociedade industrial tem em vista diretamente sa
tisfazer, se possível, a todas as necessidades humanas, e seu
efeito colateral, a sociedade de consumo, busca até mesmo
gerar necessidades, para poder, em seguida, satisfazê-las. A
industrialização introduz-se justamente com uma urbanização
e desenraíza o homem, na medida em que o aliena das tradi
ções e dos valores mediados pelas tradições. Compreende-se
por si mesmo que, sob tais circunstâncias, sobretudo a nova
geração tenha de sofrer do sentimento de ausência de sentido,
25 Frankl, 2005, p. 20.
D O VAZIO D E SENTIDO AO H O R I Z O N T E DA RESPONSABILIDADE
avaliação em favor da qual falam também os resultados de
pesquisas empíricas.26
A proliferação em massa do vazio existencial, que, para
Frankl , remonta à primeira metade do século x x , também
acarretaria consequências políticas em larga escala.
Se eu devesse denunciar as causasdeterminantes do vazio
existencial, diria que elas são redutíveis a u m a dupla reali
dade: a perda da capacidade instintiva e a perda da tradição.
Contrariamente ao que sucede c o m relação ao animal, n e n h u m
instinto revela o que o h o m e m precisa (muss) fazer. E ao h o m e m
de hoje nenhuma tradição diz o que deve (soll) fazer. E não raro
parece desconhecer o que efetivamente quer ( twf l J .Em virtude
disso, nele se manifesta c o m redobrado vigor a tendência de
querer apenas aquilo que os outros fazem ou de fazer apenas
aquilo que os outros querem. N o primeiro caso nos deparamos
c o m o conformismo. N o segundo, c o m o totalitarismo.27
O u seja, perdido na referência do seu dever-ser pessoal, o
indivíduo pode tornar-se presa fácil da experiência totalitária,
renunciando à sua liberdade e unicidade em favor de uma
"causa" encarnada na figura do dirigente. No conformismo,
também, o sujeito não se arrisca a honrar a própria consciência.
O que o conformista deseja é diluir-se na massa, reproduzindo
passivamente o que já vem sendo feito pelos demais. E m suma,
no totalitarismo, faço o que os outros querem que eu faça. N o
conformismo, faço o que os outros fazem. Ambas as posturas
revelam uma fuga à própria liberdade e responsabilidade.
Aqui , devemos atestar um particular alinhamento dessa
leitura frankliana com o conceito sociológico de "anomia" 2 8 ,
26 Frankl, 2014, p. 283.
27 Frankl, 1990, p. 15.
28 A discussão a respeito dos condicionantes sociológicos do vazio existencial
pode ser muito extensa. Para os propósitos deste ensaio, preferimos apenas
mencionar o conceito de anomia, pelo fato de este ter sido introduzido por
Durkheim num momento crítico para a compreensão de nosso tema — isto
é, na virada do século x i x para o século x x , em especial, no seu clássico estu
do sobre suicídio, de 1897.
O H O M E M E A BUSCA D E SENTIDO
enquanto traço característico da modernidade. " A anomia
implica o esvaziamento da referência das regras sociais que
conferem os parâmetros para uma conduta socialmente desejável,
tanto do indivíduo quanto das instituições".29 Relembrando
os trabalhos seminais de Emi le Durkhe im (1858—1917), a so
ciedade moderna se baseia bem mais numa interdependência
funcional do que em consensos morais. Assim, chega-se ao
dilema: "o poder tecnológico e a maior liberdade pessoal da
sociedade moderna vêm ao custo do declínio da moralidade e
a intensificação do risco de anomia".3 0
E m resumo, pode-se notar que para D u r k h e i m 3 1 a anomia
é uma condição endémica das sociedades modernas e é espe
cialmente ativa no setor económico em que os valores morais e
a ética estão determinados, em grande medida, pelas diretrizes
do enriquecimento capitalista. "Esta condição dá às pessoas a
sensação de u m vazio. Isto gera a percepção de perda de v a
lores, a própria vida é vista como sem sentido, e o resultado
para muitos é anomia e a autodestruição".32
Mas podemos afirmar que o vazio existencial é, em si, uma
psicopatologia? O questionamento pessoal sobre o sentido seria um
sintoma? Para Frankl, certamente, não. Trata-se, no mínimo, "de
uma manifestação de maturidade intelectual"33 não mais aceitar
passivamente os ditames da tradição como único guia possível
para o esclarecimento do próprio dever-ser. Frankl reflete ainda
que, se a frustração existencial "fosse" uma neurose, certamente
seria uma neurose "sociogênica", isto é, que apontaria para uma
etiologia sociológica, para uma sociedade "doente". Contudo,
ainda que não tenha uma natureza necessariamente patológica,
o vazio de sentido pode, sim, ser patogênico.
29 Formiga, 2012, p. 37.
30 Macionis et a!., 2010, p. 97.
31 1928a, 1928b.
32 Garcia, 2006, p. 194.
33 Frankl, 2016, p. 18.
D O V A Z I O D E S E N T I D O A O H O R I Z O N T E D A R E S P O N S A B I L I D A D E
E m outras palavras, a frustração existencial pode integrar a
etiologia de uma nova classe de neuroses proposta por Frankl :
as chamadas "neuroses noogênicas", as quais v i r iam a apre
sentar uma causa distinta das neuroses psicogênicas, visto que
se originam na dimensão espiritual (noética), não na psíquica.
Nos casos de neuroses noogênicas,34 "estamos lidando com
enfermidades psicológicas que não têm, como ocorre com as
( neuroses psicogênicas, suas raízes em conflitos entre diferentes
impulsos ou entre componentes psíquicos, tais como os assim
chamados id, ego e superego".35
Nesses termos, o psiquiatra vienense defendeu que a primeira
das cinco indicações da Logoterapia seria exatamente para os
casos de neurose noogênica, como intervenção destinada a
atacar a etiologia do transtorno: "Nessa sua primeira área de
indicação, nós podemos, portanto, ver a logoterapia como uma
terapia específica".36 Assim, cabe reforçar:
Porém, apesar de não constituir efeito de u m a neurose, o
vácuo existencial pode mui to b e m tornar-se sua causa. Nesse
caso, teremos que falar, portanto, de u m a neurose noogênica,
distinta, portanto, das psicogênicas e somatogênicas. Teremos
logo que definir a neurose noogênica como aquela que é
causada por u m conflito e m nível espiritual — u m c o n
flito ético o u mora l , como, por exemplo, o choque entre o
mero superego e a autêntica consciência (esta, se necessário
34 Nesse ponto, vale destacar o sufixo "gêníca", que aponta para uma etiologia a
partir do espiritual (ou do noético). Enfatizamos não se tratar de uma neurose
"noética" ou noológica, na medida em que, na teoria frankliana, a dimensão
espiritual não é passível de adoecimento (Frankl, 2016, p. 65). E nesse sentido
que ele esclarece: "Caso possamos falar efetivamente de neurose, precisa haver
justamente uma afecção psicofisica. Sim, toda doença é, desde o princípio e
já enquanto tal, uma doença psicofisica. Neste sentido, falamos de maneira
consciente meramente de neuroses noogênicas — mas não de neuroses noé-
ticas: neuroses noogênicas são doenças 'surgidas do espírito' — , mas elas não
são doenças 'no espírito'; não há nenhuma 'noose'; algo noético não pode
ser em si e enquanto tal nada patológico e, assim, também não pode ser nada
neurótico" (Frankl, 2014, p. 156).
35 Frankl, 2020, p. 63.
36 Frankl, 1991, p. 39.
O H O M E M E A BUSCA D E SENTIDO
for, pode contradizer e opor-se àquele). Por último, mas não
menos importante, a etiologia noogênica é formada pelo
vácuo existencial , pela frustração existencial ou pela frustra
ção da vontade de sentido ( F r a n k l , 2 0 1 1 , p. 112).
Assim, a cronificação desse vazio, a partir do estabeleci
mento de u m conflito de consciência, de u m dilema ético ou
de uma crise existencial que não encontra meios de resolução,
pode gerar o estabelecimento da neurose noogênica.37 F rankl
chega a afirmar em várias de suas obras que cerca de 20% dos
transtornos mentais38 recaem nessa nova classificação psico-
patológica. Contudo, o fato de a frustração existencial ser
apenas "facultativamente patogênica" não quer dizer que ela
não possa representar u m risco de morte ao indivíduo: "[. . .]
ela pode levar ao suicídio, a u m suicídio não neurótico".39 Esta
é a razão pela qual Frankl defendia que professores, filósofos,
37 A esse respeito, indica-se o artigo " U m Estudo Experimental no Âmbito do
Existencialismo: a Abordagem Psicométrica do Conceito Frankliano de N e u
rose Noogênica", de James Crumbaugh e colaboradores, publicado na obra Psi
coterapia e Existencialismo: textos selecionados em logoterapia (Frankl, 2020). Como
o próprio Frankl esclarece: " E é graças a James C . Crumbaugh, diretor de um
laboratório de psicologia em Mississipi, que já dispomos de um teste (o PIL
ou Purpose in Life-Test), elaborado pelo próprio Crumbaugh, com o objetivo
específico de diferenciar o diagnóstico da neurose noogênica daquele da psi-
cogênica. Após avaliar os dados com a ajuda de um computador, ele chegou à
conclusãode que a neurose noogênica constitui uma nova patologia, que su
pera o âmbito da psicoterapia tradicional não só da perspectiva do diagnóstico,
mas também da terapêutica" (Frankl, 2015, pp. 11-12).
38 Curiosamente, numa conferência publicada no relatório do Congresso da
Sociedade Alemã de Psicoterapia já em 1929, o célebre Carl Jung (1875-
1961) afirmara: "Aproximadamente um terço dos meus clientes nem chega
a sofrer de neuroses clinicamente definidas. Estão doentes devido à falta de
sentido e conteúdo de suas vidas. Não me oponho a que se chame essa doen
ça de neurose contemporânea generalizada. N o mínimo, dois terços dos meus
pacientes estão na segunda metade da vida" (Jung, 2022, p. 71). Como vemos,
contemporaneamente a Jung, Frankl deu nome e estabeleceu tratamento para
essa classe de neurose "clinicamente indefinida".
39 Frankl, 2016, p. 228.
D O VAZIO D E SENTIDO AO H O R I Z O N T E DA RESPONSABILIDADE
teólogos e outras profissões também se ocupassem de prevenir
e abordar esse vazio existencial ainda "benigno".4 0
Esse posicionamento se torna ainda mais necessário diante
da constatação frankliana de que o vácuo existencial também
estaria por trás de u m processo de "neurotização" contem
porânea da humanidade, marcada por três sintomas básicos:
"depressão, agressão e adicção". Frankl , 4 1 numa obra lançada
originalmente em 1974, põe-se a argumentar, com base em
u m sólido corpo de pesquisa empírica do período, que o au
mento, entre os jovens, das taxas de suicídio, criminalidade e
dependência química tinham a marca da frustração da vontade
de sentido. Mas o leitor pode se perguntar: será que essa leitura
ainda se mantém relevante meio século após o "diagnóstico"
frankliano?
Há uma série de elementos para pensarmos que sim. T o
memos a situação específica dos Estados Unidos,4 2 onde, desde
2014, pela primeira vez em cem anos, a expectativa de vida
ao nascer começou a diminuir. E m particular, as taxas de
mortalidade aumentaram 5,2% de 1999 a 2016 na população
de homens e mulheres brancos "não hispânicos" entre 25 e
64 anos, ao passo que, para outros grupos demográficos e
etários, tais taxas têm diminuído. Esse relevante aumento na
mortalidade para esse grupo tem sido associado ao aumento
40 Seguindo a legislação de seu país à época, o pai da Logoterapia afirmava, no
entanto, que o tratamento de neuroses — noogênicas, inclusive — deveria
competir, privativamente, ao médico.
41 2003b.
42 U m a discussão mais aprofundada sobre a crise de sentido contemporânea e
sua ressonância com o pensamento frankliano fugiria aos propósitos deste en
saio. Contudo, caberia citar, brevemente, outro importante dado de contextu
alização: " A pesquisa American Freshman rastreia os valores dos universitários
desde meados dos anos 1960. N o final da década de 1960, a maior prioridade
dos calouros era 'desenvolver uma filosofia de vida significativa'. Quase todos
declararam que esse era um propósito de vida 'essencial' ou 'muito impor
tante'. Já nos anos 2000, a grande prioridade passou a ser 'ser bem-sucedido
financeiramente', enquanto apenas 40% afirmaram que o sentido era o obje
tivo principal" (Smith, 2017, p. 15).
O H O M E M E A BUSCA D E S EN T I D O
das mortes por suicídio, abuso de drogas e doença hepática
crónica associada ao álcool.43 Esses três fatores de mortalidade
vêm se intensificando em paralelo desde 1999 e inspiraram a
criação do conceito de "mortes por desespero".44
Os economistas Case e Deaton introduziram o termo "mor
tes por desespero" porque essas mortes podem compartilhar
u m contexto de desesperança e indiferença em relação à vida.
Como Deaton testemunhou perante o Senado dos E U A , suicí
dio, uso indevido de drogas e o consumo excessivo de álcool
são todos "resultados plausíveis de processos que vêm minando
cumulativamente o sentido da v ida" . 4 5
Como Frankl também previra, o avanço e a melhoria das
condições materiais, em especial, dos países mais poderosos
economicamente não seriam, por si só, capazes de resolver os
desafios envolvidos no anseio humano por sentido. E m outras
palavras, o estabelecimento do "Estado do bem-estar" e a
consolidação da "sociedade afluente" não foram capazes de
garantir, automaticamente, uma vida de sentido a seus membros.
Raciocinando com Schopenhauer, como vimos, o pai da
Logoterapia acreditava que esses países estariam na transição da
"necessidade" para o "tédio". Aliás, tédio e indiferença seriam
as duas formas, por excelência, de manifestação do vazio exis
tencial: "Nesse contexto, enquanto o tédio significa uma perda
de interesse — interesse pelo mundo — , a indiferença designa
uma falta de iniciativa — a falta da iniciativa de transformar
algo no mundo, de melhorar algo!".46
" N a realidade das sociedades de abundância, as pessoas
tendem a sofrer mais pela ausência de demandas do que pelo
43 Chen et ai, 2020.
44 Os criadores do conceito de "mortes por desespero" contextualizam, socio
logicamente, essa tendência a partir do declínio da segurança económica, da
falta de um sistema universal de saúde e da maior disponibilidade de acesso a
opioides.
45 Idem.
46 Frankl, 2014, p. 282.
D O VAZIO D E S EN T I D O AO H O RI Z O N T E DA RESPONSABILIDADE
excesso delas".47 Os indivíduos, assim, veem-se cada vez mais
poupados de um mínimo saudável de tensão, de desafios pes
soais na construção da própria vida.
Frankl argumenta que tanto a falta de tensão quanto aquela
em excesso são, do ponto de vista logoterapêutico, igualmen
te perigosas à saúde. A sociedade da fartura vai , aos poucos,
convertendo-se em uma "sociedade do ócio". Há mais tempo
livre, porém menos percepção de sentido para a vida.
Dessa forma, diante da ausência de um tensionamento ade
quado, surge a necessidade de criar tensões artificialmente. Isso
pode ocorrer de modo saudável, como no caso do "ascetismo"
da vida esportiva, ou de modo doentio, como na rebeldia au-
todestrutiva (e, frequentemente, criminosa) de certos grupos
de jovens, como os mods, rockers e hooligans na Inglaterra dos
anos 1960.48
A tensão causada pelo sentido, por sua vez, é fonte de uma
vida existencialmente realizada.
Selye, o pai do conceito de estresse, admit iu recentemente
que "estresse é o sal da v i d a " . E u dou u m passo adiante e
declaro que o h o m e m tem necessidade de u m a tensão espe
cífica, o u seja, daquele tipo de tensão que se estabelece entre
o ser humano, de u m lado, e, do outro, o sentido que ele deve
realizar. N a realidade, se o sujeito não é desafiado por u m a
tarefa que exige o seu empenho, surge u m certo tipo de n e u
rose — a neurose noogênica . 4 9
Dito isto, torna-se mais inteligível a conclusão a que chegou
um relevante estudo de 2014,3(1 que entrevistou quase 140 m i l
pessoas em 132 países a respeito de seus níveis de felicidade
(compreendida como satisfação com a vida e afeto positivo)
e de sentido. Os indivíduos dos países mais ricos revelaram
47 Frankl, 2011, p. 62.
48 Idem, p. 63.
49 Frankl, 2005, p. 98.
50 Apud Smith, 2017, p. 29.
O H O M E M E A BUSCA D E SENTIDO
níveis de felicidade maiores do que os de regiões mais pobres.
Todavia, os resultados envolvendo o sentido se mostraram
bastante peculiares.
Lugares ricos como França e Hong Kong tinham algumas
das taxas mais baixas de sentido, enquanto as nações pobres
Togo e Níger tinham índices dos mais altos, embora suas po
pulações estivessem entre as mais infelizes do estudo. U m a das
descobertas mais perturbadoras envolvia o número de suicídios.
As nações mais ricas, ao que consta, têm taxas de suicídios
bem mais altas do que as mais pobres. A taxa de suicídios no
Japão, por exemplo, onde o P I B per capita era então de 34 m i l
dólares, era mais que o dobro que o de Serra Leoa, onde o P I B
per capita era de 400 dólares.51
Verifica-se aí que os níveis de sentido constituem amelhor
medida prognóstica para o suicídio, não os níveis de felicidade e
conforto material, como se poderia supor. É bastante provável,
assim, que a visão frankliana acerca do vazio das sociedades de
abundância ainda seja muito relevante, instigando-nos à reflexão.
Agora que elucidamos a relação biográfica de Frankl com o
vazio existencial e analisamos as raízes e formas desse fenómeno
à luz da Terceira Escola Vienense, convidamos o leitor a refletir
conosco a respeito dos traços fundamentais da visão de homem
e de mundo que sustentam o "antídoto" logoterapêutico contra
a frustração existencial.
3 . O A N T Í D O T O C O N T R A O D E S E S P E R O
O primeiro passo para uma vida de sentido se dá a partir da
compreensão do modo próprio de ser do homem no mundo.
Essa forma tipicamente humana de ser tem o nome de "exis
tência", o que implica que somos cercados, a cada situação de
vida, por possibilidades concretas que conclamam de nós uma
decisão. Esse "ser que decide" a todo momento se movimenta
51 Idem, p. 29-30.
D O VAZIO D E SENTIDO AO H O RI Z O N T E DA RESPONSABILIDADE
na vida a partir da realização dessas possibilidades, que são
"resgatadas" no reino do ser.
Essas possibilidades são a matéria-prima da nossa liberdade:
com elas, o indivíduo constrói não só o seu próprio ser, mas a
parcela da realidade que só cabe a ele. Não se trata, contudo,
de possibilidades "anónimas"! Elas só dizem respeito a você,
como se fossem "encomendadas",52 não simplesmente "dadas"
ou jogadas indiferentemente pela vida. Ninguém mais terá
as mesmas possibilidades que chegarão a você, assim como
ninguém ocupará sua mesma posição nesse reino do poder-ser.
" E m última análise, o homem torna-se aquilo que fez de si.
E m vez de ser totalmente condicionado por quaisquer condi
cionamentos, ele constrói a si mesmo".53
O fato de sermos livres, mas sempre no interior de uma
situação com possibilidades específicas, implica que, obviamente,
nem tudo está ao alcance do nosso querer. Nossa liberdade é,
necessariamente, limitada pelo atravessamento do que Frankl
chamou de "destino" (Schicksal). Este pode ser entendido como
o conjunto de fatos e circunstâncias que, ocorrendo fora do
poder de nossa decisão, condicionam nosso "ser-livre".
Assim, todos nós somos marcados pelos destinos biológico,
psíquico e sociológico. Não escolhemos nossos pais nem nossa
carga genética repleta de forças e fraquezas. Tampouco esco
lhemos diretamente nossa constituição psíquica, nosso coefi
ciente intelectual, tipo de personalidade ou inclinação a certas
psicopatologias. D a mesma forma, de saída, não escolhemos
nossa classe social, nacionalidade ou grupo étnico. Todos esses
condicionamentos atravessam e limitam, irrecusavelmente, tudo
o que podemos realizar. Como afirmou Frankl : "Somente de
maneira condicionada o homem é u m ser incondicionado".54
52 Frankl, 2003a, p. 94.
53 Frankl, 2020, p. 79.
54 Frankl, 2014, p. 99.
O H O M E M E A BUSCA D E SENTIDO
Porém nenhum condicionamento terá o poder de nos
"pandeterminar", ou seja, de eliminar completamente nossa
liberdade. Nesse sentido, não somos livres "dos" condiciona
mentos, isto é, não podemos simplesmente eliminá-los a nosso
bel-prazer. Nós somos livres, no entanto, "para uma tomada
de posição diante de todas as condições".55
Sendo assim, o destino não dá a última palavra sobre quem
somos. E le , de forma alguma, nos exime de fazer o melhor uso
possível de nossa liberdade. Mas, aqui, surge o questionamento:
como saber qual é o critério para orientar nosso "ser-livre"?
Será que ele ao menos existe?
A mera autocompreensão como ser de liberdade não " i m u
niza" ninguém contra o vazio existencial. Posso me reconhecer
livre, mas ao mesmo tempo me perder nesse horizonte de
possibilidades. Af inal , são tantos os caminhos para minha au-
toconfiguração... Por que devo realizar uma possibilidade " x "
e não a " y " ? Será que, no final das contas, tanto faz? Haveria,
para além de m i m mesmo, algum critério que venha a nortear
essa jornada de liberdade?
Nessa perspectiva, "[...] os existencialistas chegam a essa
dolorosa contradição de precisarem escolher sem qualquer
princípio de escolha, sem nenhum padrão que lhes permita
julgar se escolheram bem ou m a l " . 5 6 Essa aparente contradição
seria o "fundamento da angústia existencialista".57
Mas Frankl compreendia a situação de forma distinta.
Para ele, esses possíveis, que captamos intuitivamente, não
seriam, de forma alguma, indiferentes entre si. Na sua forma
mais imediata de compreender a si próprio, o ser humano já
entende que existe u m "critério" e que este não é fruto de suas
maquinações subjetivas, como no caso de u m sonho ou de u m
mecanismo de defesa.
55 Frankl, 2003a, pp. 40-41.
56 Foulquié, 1961, p. 50.
57 Idem.
D O VAZIO D E S EN T I D O AO H O RI Z O N T E DA RESPONSABILIDADE
Na alegoria frequentemente utilizada pelo psiquiatra v ie
nense, cada situação concreta, definida pelas possibilidades
que vêm ao meu encontro, encerra uma pergunta, algo como
uma questão de múltipla escolha. Se eu acredito que não há
u m "gabarito", ou ainda, que tenho que "inventar" a respos
ta certa, provavelmente meu senso de dever será seriamente
esvaziado: " O aumento da liberdade só será sentido como
libertação se a pessoa libertada também souber o que quer.
Af inal , ser livre sem saber 'para que' serve esta liberdade é uma
liberdade acompanhada, a longo prazo, por uma sensação de
vazio insuportável".58
Sim, nossa liberdade está, a todo tempo, em busca de u m
"para quê", de algo que a justifique para além de si mesma. Dessa
maneira, Frankl se afasta daquilo que denominou "concepção
existencialista comum", que compreenderia o ser humano como
"meramente l ivre" . Para ele, todas as nossas possibilidades já
são concomitantemente atravessadas pelo "mundo objetivo
do sentido e dos valores",59 que confere uma ordem, uma
estruturação axiológica a cada situação concreta: sabemos que
há possíveis que são mais dignos de v i r a ser do que outros.
Isso quer dizer que existe, sim, uma "resposta certa", que
apresenta u m caráter de objetividade, exatamente na medida
em que ela não se funda meramente nas minhas preferências
ou condicionamentos pessoais. Essa "resposta certa" — isto é,
a possibilidade mais axiologicamente elevada de cada situação
— é o que Frankl entendeu como o sentido concreto de nossa
existência. Esse sentido, ainda que objetivo, está sempre v i n c u
lado a um indivíduo absolutamente único e singular e à situação
absolutamente única e irrepetível em que ele se encontra.60
O sentido tem o poder de me convocar, de me atrair, de
me tirar da apatia e da indiferença, exatamente porque eu me
58 Lângle, 1992, p. 23.
59 Frankl, 2014, p. 102.
60 Frankl, 1985, p. 76.
O H O M E M E A BUSCA D E SENTIDO
compreendo, de maneira personalíssima, como responsável
diante dele. Assim, minha responsabilidade perante a vida se
traduz numa responsabilidade para realizar o sentido único de
cada situação: "responsabilidade significa sempre responsabili
dade perante u m sentido".61
Inaugura-se, aí, para além da dinâmica entre "ser e poder-ser",
o domínio do dever-ser, no qual a vida se torna inteligível como
missão absolutamente pessoal. Assim, somos a todo instante
interrogados pela vida, e faz parte de nossa condição humana
— dinamizada que é por uma "vontade de sentido"62 — a ne
cessidade de responder a ela, de realizar a "resposta correta":63
"A vida, gostaria de afirmar, é um período de perguntas e respostas
que dura enquanto durar a vida".64
Desse modo, não cabe a m i m o questionamento a respeito
do que ainda posso esperar da vida. E u é que devo reconhecer
que a vida, quando me questiona, espera algo de m i m . Eis a
"guinada copernicana" de Frankl .
O fato de que o sentido reside nomundo e não em nós
mesmos tem tal alcance que, na verdade, o homem não deveria
perguntar pelo sentido da existência, mas, inversamente, con
siderar a si mesmo como o interrogado, sua própria existência
como o que deve ser interpretado e questionado. A vida lhe
faz uma pergunta, cabe-lhe responder e, assim fazendo, ser
responsável. Você deve, por conseguinte, buscar uma resposta
para a vida, buscar o sentido da vida; esse, todavia, precisa ser
achado, e não inventado. O homem não pode simplesmente
"dar" u m sentido à vida, tem de "experimentá-lo".65
61 Frankl, 2003a, p. 55.
62 "Mas como enfrentar a doença e o mal de nossa época, que têm como raiz
uma frustração da vontade de sentido, se não adotarmos uma visão de ho
mem que conceba a vontade de sentido como princípio motivacional?"
(Frankl, 201 l , p . 201).
63 Pereira, 2021.
64 Frankl, 2005, p. 100, itálico original.
65 Frankl, 1978, p. 34.
D O VAZIO D E SENTIDO AO H O RI Z O N T E DA RESPONSABILIDADE
O psiquiatra vienense compreende, então, o vazio existencial
como um "paradoxo", na medida em que o indivíduo que o
experimenta pode muito bem perceber-se, autenticamente,
como u m ser de liberdade, mas ainda não possuir a devida
consciência acerca de sua responsabilidade.66 Como vimos,
"Liberdade é parte da história e metade da verdade. Ser livre
é apenas o aspecto negativo do fenómeno completo, no qual
o aspecto positivo é ser responsável".67 Nesses termos, Frankl
"[...] vê na responsabilidade a essência propriamente dita da
existência humana".6 8
O papel do sentido na prevenção e promoção da saúde
mental é assim resumido por ele: " N a minha opinião, estimular
a vontade de sentido de u m homem, oferecendo-lhe possibi
lidades de sentido, é o primeiro e mais importante objetivo
da psico-higiene".69
Nessa concepção, o que se mostra mais relevante, tanto para
prevenir o vazio existencial quanto para tratar a neurose n o o
gênica, é o fortalecimento — ou a redescoberta — dessa
consciência a respeito do próprio dever-ser, o que, inclusive,
v e m , também, a " i m u n i z a r " o indivíduo contra o confor
mismo e o totali tarismo.7 0
C o m essa consciência desperta, a vida aparecerá "[...] não
mais como uma realidade, mas antes como incumbência que
nos é dada — é a cada momento uma tarefa".71
Nestes termos, em princípio, o que em geral interessa à
Análise Existencial é fazer com que o homem experimente
vivencialmente a responsabilidade pelo cumprimento da sua
66 Frankl, 2011, p. 124.
67 Frankl, 2005, p. 54.
68 Frankl, 1985, p. 98.
69 Frankl, 2020, p. 137.
70 Frankl, 1992, p. 70.
71 Frankl, 1990, p. 78.
O H O M E M E A BUSCA D E SENTIDO
missão; quanto mais o homem apreender o caráter de missão
que a vida tem, tanto mais lhe parecerá carregada de sentido
a sua vida. Ao passo que o homem sem consciência da sua
responsabilidade encara a vida como algo simplesmente dado
(Gegebenheit), a Análise Existencial ensina-o a vê-la como o
caráter de algo que lhe é encomendado (Aufgegebenheii).72
Quando nos reconectamos com nossa responsabilidade
pela vida, vemo-nos diante do horizonte de nossa missão pes
soal, que se apresenta, historicamente, sob a forma de tarefas
concretas no "aqui e agora" de nossa existência. Nesse contexto,
Lãngle assevera: "Viver com sentido significa, de maneira bem
simples, realizar a tarefa que surge num dado momento"?2 Frankl
faz equivaler as noções de "vida com sentido" e "vida com
tarefas pessoais":74 "Então essa sua vida [com o fortalecimento
da consciência] parecerá novamente ter sentido (e ter sentido
significa ter tarefas [Aufgaben])".75
Assim, ele acaba, então, por concordar com o célebre neu
rocirurgião norte-americano Harvey Cushing (1869-1939),
que teria dito que "o único modo de enfrentar a vida é ter
sempre uma tarefa a cumprir" . 7 6 E nunca há de nos faltar
uma tarefa: não há uma situação de vida que não encerre uma
possibilidade de sentido.
Cada dia, cada hora proporciona um novo sentido, e um
sentido especial espera cada pessoa. O sentido é, portanto,
sempre u m outro. Mas sempre há um, até o f im. Pois não há
pessoa para a qual a vida não prepararia uma tarefa, e não há
72 Frankl, 2003a, pp. 94-95.
73 Lãngle, 1992, p. 39.
74 " E m outros termos: o que interessa verdadeiramente é a entrega a uma tarefa,
quero dizer, a uma tarefa pessoal e concreta que se torna clara no decorrer da
respectiva Análise Existencial" (Frankl, 2015, p. 45).
75 Frankl, 1992, p. 70.
76 Frankl, 2020, p. 137.
D O VAZIO D E SENTIDO AO H O RI Z O N T E DA RESPONSABILIDADE
situação na qual a vida pararia de nos oferecer uma possibili
dade de sentido.77
Cada um de nós é o titular insubstituível da própria missão:
ninguém pode nos representar nessa jornada, e isto confere à
nossa vida o valor de "algo único". O conhecimento dessa missão
tem um valor psicoterápico e "psico-higiênico" extraordinário:
"Estamos certos em dizer que não há nada de mais apropriado
para que um homem vença ou suporte dificuldades objetivas
ou transtornos subjetivos, do que a consciência de ter na vida
uma missão a cumprir" .7 8
E m especial nas situações-limite, aquelas mais aparente
mente desesperadoras, o sentido aparece como o para-quê-viver,
quando u m querer-sobreviver se torna u m dever-sobreviver.79 Nesse
contexto, o pai da Logoterapia fala de experiências "que con
firmam até que ponto é correto e importante o que Friedrich
Nietzsche disse: "só quem tem um 'porquê' para viver suporta
quase qualquer 'como' v iver " . 8 0 Esse célebre aforismo implica
que os "comos" da vida, isto é, suas circunstâncias de destino,
por mais penosas e miseráveis que venham a ser, passam para
o segundo plano "no momento e na medida em que para o
primeiro plano passar o 'porquê'".81
Por fim, o antídoto frankliano contra o vazio existencial
se estabelece na convicção de que, enquanto houver para a
pessoa humana u m ser-consciente, deverá haver, também, u m
ser-responsável, de modo que a obrigação de realizar o sentido
"[...] não deixa o homem em paz até o último instante de
existência".8 2 F r a n k l , portanto, assume vislumbrar, nesse
breve aforismo nietzscheano, u m "lema para a psicoterapia"
(idem), entendendo que "dizer sim à vida" e tornar-se partidário
77 Frankl, 1990, pp. 46-47.
78 Frankl, 2003a, pp. 90-91.
79 Pereira, 2021.
80 Frankl, 1995, p. 123.
81 Frankl, 2003a, pp. 90-91.
82 Idem, p. 83.
O H O M E M E A BUSCA D E SENTIDO
da responsabilidade seja uma tarefa árdua, mas altamente
recompensadora.83
Mas em média as pessoas são muito preguiçosas para assumir
sua responsabilidade. E aqui a educação começa a preparação
para a responsabilidade. Certo, a carga é pesada; é difícil não
apenas reconhecer a responsabilidade, mas também declarar-se
partidário dela. Dizer sim a ela — e à vida. Mas houve pessoas
que apesar de toda dificuldade disseram sim. E se os prisioneiros
do campo de concentração de Buchenwald cantaram em sua
canção: "Nós queremos dizer sim à vida, apesar de tudo", então
eles não apenas cantaram, mas também de múltiplas formas
prestaram serviço; eles e muitos de nós da mesma forma em
outros campos. E eles o fizeram em condições indescritíveis
— sob condições exteriores e interiores das quais nós só
hoje relatamos o bastante. Não deveríamos todos, hoje, sob
condições incomparavelmente mais suaves, poder fazer algo?
Dizer sim à vida não é apenas pleno de sentido sob qualquer
circunstância — a própria vida o é — , mas também é possível
sob qualquer circunstância.
Ivo S T U D A R T P E R E I R A 8 4
Referências
C A M U S , A . O mito de Sísifo. Tradução de A r i Roitman e Paulina
Watch. R i o de Janeiro: Record, 2004.
83 Pereira, 2021.
84 Ivo Studart Pereira é psicólogo, mestre e doutor em filosofia pela Universi
dade Federal do Ceará. Autor dos livros A ética do sentido da vida (Ed. Ideiase
Letras, 2012) e Tratado de Logoterapia e Análise Existencial (Ed. Sinodal, 2021).
Como pesquisador da vida e obra de Viktor Frankl, integrou o conselho cien
tífico da Associação Brasileira de Logoterapia e Análise Existencial (ABLAE)
por duas gestões e traduziu duas obras fundamentais do pensador vienense:
A vontade de sentido:fundamentos e aplicações da Logoterapia (Ed. Paulus, 2011)
e Psicoterapia e existencialismo: textos selecionados em Logoterapia (É Realizações,
2020). Atualmente, leciona em cursos de formação e pós-graduação em L o
goterapia e atua como psicólogo no Instituto Federal do Ceará (IFCE)
D O VAZIO D E SENTIDO AO H O RI Z O N T E DA RESPONSABILIDADE
C H E N , Y ; K O H , H . K . ; K A W A C H I , I ; B O T I C C E L I , M ; W A N D E -
R W E E L E , T . J . "Religious Service Attendance and Deaths
Related to Drugs, Alcohol, and Suicide Among us Health
Care Professionals". JAMA Psychiatry, 2020.
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Caminhos de sentido
O ser humano é alguém que lança perguntas e se indaga
sobre a vida e seu sentido, sobre o valor das coisas e
sua missão neste mundo; mas é também um ser que
tem, constantemente, a experiência de ser indagado, questionado
pela própria vida. Fazer perguntas é, sem dúvida, uma marca
constitutiva da pessoa humana; mas saber captar as indagações
que a vida constantemente nos faz e respondê-las adequadamente
é o que nos coloca em marcha na direção do sentido que tanto
almejamos.
A vida para Viktor F r a n k l é como u m interrogatório,
no qual todos somos interpelados. Somos capazes de captar
tais interpelações pela nossa consciência, devendo, portanto,
respondê-las, e o fazemos sempre que agimos, tornando ato
aquilo que antes era possibilidade. E m suas palavras, "[...] e nossa
vida é, em última análise, u m interrogatório: constantemente
a vida nos pergunta, e constantemente respondemos a ela. E m
verdade, a vida é um 'perguntar e responder' muito sério".1
A partir da visão de Viktor Frankl , quero conduzi-lo pelos
caminhos que nos apontam para o sentido, ou, em termos mais
franklianos, que favorecem a descoberta do sentido: quer seja
1 F r a n k l , 2013, p . 54.
O H O M E M E A BUSCA D E S EN T I D O
o sentido das situações cotidianas, quer seja o sentido último
da nossa vida. Se é fato que todos nós ansiamos por fazer uma
experiência real e genuína com o sentido, podemos dizer que
o início deste caminho consiste em tomar consciência de que
a vida nos chama, de que algo nesta vida nos espera, e que isso
é muito mais salutar — e propriamente humano — do que
simplesmente esperar algo da vida, cobrando das situações, do
governo, dos outros e do próprio Deus, que façam algo por nós.
É inegável que todos nós, com uma certa frequência,
venhamos a nos indagar sobre o sentido da vida. Esta é uma
manifestação genuinamente humana e, por isso, constitui u m
dos três pilares da Logoterapia. T a l pilar confere à sua criação
uma concepção positiva do mundo, a partir de uma proposta
filosófica profunda e de uma honestidade intelectual descon
certante que irão afirmar categoricamente que a vida tem um
sentido e que este sentido é incondicional.
Contudo, a proposta deste capítulo é apresentar um caminho
que torne possível tal descoberta de sentido, pois, não obstante
ele ser possível, real, e até mesmo incondicional, não é uma
imposição, não se apresenta como uma realidade factual, ou
como uma espécie de destino, tal como postulado por Frankl .
E m outras palavras, ninguém é obrigado a viver uma vida com
sentido. Antes, isso se apresenta para nós como u m convite,
uma possibilidade que se torna uma realidade benéfica e que
promove o pleno desenvolvimento humano àqueles que estão
dispostos a buscá-lo, àqueles que estão dispostos a viver uma
vida valorosa, sem escapismos, sem conformismos, sem uma
busca desenfreada e neurótica pelo prazer ou pelo poder, mas
que, pelo contrário, desejam se pautar pelo sentido, caminhando
com passos firmes e largos em sua direção,a sentir as primeiras contrações:
Viktor Frankl estava prestes a nascer no f im daquela tarde
de domingo primaveril. Sua mãe era judia e descendente de
Salomão Ben Isaac, mais conhecido como Rashi , intérprete
do Talmud, e de Maharal, rabino-chefe de renome. Seu pai,
Gabriel Frankl , também de linhagem judaica, era um homem
bastante duro e fiel aos seus princípios, vindo a ser, para o f i
lho, a personificação da própria justiça. Seu lema de vida era:
"Como Deus quer, eu aceito".
N a época da Primeira Guerra Mundial , eram precárias as
condições da família Frankl , que necessitava de doações para
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U M H O M E M E M BUSCA D E S E N T I D O : V I D A E OBRA D E V I KT O R FRANKL
se manter. O próprio Viktor Frankl lembra de acordar antes
de o sol nascer para tomar lugar na fila de distribuição do pão,
e se até o início da manhã não chegasse sua vez, a mãe vir ia
para substituí-lo, de forma que ele pudesse ir para a escola sem
se atrasar. Desde o início enfrentou uma vida de privações e
insegurança.
Aos 4 anos de idade, Frankl tem um sonho bastante signifi
cativo, descrito em algumas de suas obras. Ao acordar, diz para
sua mãe que sonhou com.. . a morte. Naquele momento, pela
primeira vez ele tem a clara percepção de que a sua vida é finita
e de que algum dia morrerá. Começam a surgir em sua mente
as primeiras questões filosóficas, as primeiras dúvidas quanto
ao sentido da vida, e ele, como relata em O que não está escrito
nos meus livros, acaba por chegar à conclusão de que somente a
morte dá sentido à vida, pois somente ao percebermos a tem
poralidade e a unicidade de nossa vida é que compreendemos
a totalidade de nossa responsabilidade.
Aos 16 anos, o jovem Viktor Frankl decide cursar medicina,
altura em que conhece Sigmund Freud, de quem começa a se
aproximar intelectualmente. E m uma das cartas trocadas entre
os dois, Frankl enviou junto com ela u m manuscrito autoral
em que apresentava reflexões acerca da origem da mimica, da
afirmação e da negação, e que deixou o pai da psicanálise tão
impressionado a ponto de propor que o trabalho fosse publicado
na Revista Internacional de Psicanálise.
Nessa mesma época, Frankl tem outro sonho muito sig
nificativo: ele se vê na condição de médico, devidamente
paramentado, dentro de uma sala de atendimento. N a sala
anexa, há uma longa fila de pacientes aguardando para serem
consultados. U m após o outro, ele os vai curando, sem usar
nenhum tipo de medicamento, tão somente com o logos, isto
é, a palavra — a essência da proposta da Logoterapia.
Aos 19 anos Viktor Frankl entrou para o curso de medi
cina da Universidade de Viena e, ao longo do seu percurso
universitário, foi pouco a pouco percebendo as limitações
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Logos, que significa palavra, linguagem, discurso, é de importância absoluta na comunicação.
Tanto que o Logos próprio, individual, se torna um processo sutil que vai interferir no interlocutor.
Ele passa a sabedoria (sophia) levando a mensagem pela qual se caracteriza o comunicador.
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Lógos reúne numa só palavra quatro sentidos principais: (1) linguagem; (2) pensamento ou razão; (3) norma ou regra; (4) ser ou realidade íntima de alguma coisa. –
Logía, que é usado como segundo elemento de várias palavras compostas, indica: conhecimento de; explicação racional de; estudo de.
O lógos dá a razão, o sentido, o valor, a causa, o fundamento de alguma coisa, o ser da coisa. É também a razão conhecendo as coisas, pensando os seres, a linguagem que diz ou profere as coisas, dizendo o sentido ou o significado delas.
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da análise e obra freudianas, terminando por considerá-las
reducionistas e niilistas. Para o jovem, a imagem que Freud
tinha do ser humano era inadequada: fazia da parte o todo,
apresentando-o somente a partir de seu funcionamento psí
quico e de sua dinâmica intrapsíquica, sem considerar aquilo
que é o próprio e especificamente humano. Segundo Frankl ,
a psicanálise procura fazer o homem aceitar e se adaptar ao
que nele há de mais instintivo, pulsional e animal, sendo seu
principal objetivo a homeostase, que, resumidamente, é uma
forma de equilíbrio. Ao passo que, para Frankl , existe uma
tensão que leva o homem do ser ao dever-ser. Cada homem não
busca apenas aliviar tensões internas, satisfazendo-as; busca
acima de tudo realizar valores e encontrar o sentido da vida.
Isso é o que há de mais humano em todos nós.
Foi então que, aos 21 anos, Frankl voltou os olhos para
outro nome de peso da psicologia: Alfred Adler, o fundador da
Psicologia Individual. E m resumo: para Adler, nascemos com
uma vivência de inferioridade, um complexo, e passamos toda
a vida em incessante busca pela superação desses sentimentos
mediante ações, condutas e atitudes que sejam capazes de nos
elevar, caminhando em direção a recompensas sociais e ao re
conhecimento. Contudo, o problema é que Adler desconsidera
quaisquer gestos genuinamente humanos e autotranscendentes
(por exemplo, o amor), de modo que o ato de se dedicar a
u m outro, fazendo disto a prioridade da própria vida e a ele
entregando-se, não seria para o autor de A ciência da natureza
humana senão uma tentativa de reconhecimento e uma busca pela
superação do complexo de inferioridade. Se Freud se concentra
na vontade de prazer, o foco de Adler é a vontade de poder.
Por f im, Frankl chegará à conclusão de que este outro mestre
também é um reducionista, pois não enxerga — ou ao menos
não contempla em sua teoria — a possibilidade de o homem
realizar valores, buscar u m sentido transcendente e sair de si
mesmo, entregando-se a algo que esteja para além de si próprio.
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U M H O M E M E M BUSCA D E S E N T I D O : V I D A E OBRA DE V I K T O R FRANKL
Em busca do próprio caminho
C o m o passar do tempo, os questionamentos e divergências
entre os dois psicólogos foram crescendo, a ponto que Adler,
numa sessão pública, expulsou Frankl de seu grupo de estudos.
De personalidade forte, Adler não lidava bem com contradi
tórios ou com colegas que em suas reuniões abrissem debates
ou lançassem questionamentos. Frankl não foi o único a ser
expulso do Café Siller, local em que se reuniam os adlerianos;
meses antes dele, outros dois grandes pensadores haviam sido
expulsos: R u d o l f Allers e Oswald Schwarz. A amizade com
Allers era crescente e Frankl o considerava quase u m tutor, a
ponto de, ao concluir seus livros, sempre enviar o manuscrito
original para Allers avaliar antes de enviá-lo a editoras.
E m 1927, aos 22 anos, Viktor Frankl promoveu a abertura
de centros de aconselhamento especiais para jovens. Se sua
decisão é fruto de uma alma atenta e delicada, sua preocu
pação estava centrada na débil juventude austríaca que, cada
vez mais, recorria ao suicídio como solução para os problemas
sociais, políticos e institucionais, tão presentes neste momento
entre guerras. O sucesso foi estrondoso: em quatro anos, foram
atendidos milhares de casos de ideação e tentativas de suicídio
nesses centros de aconselhamento. Resultado? O número de
suicídios em Viena diminuiu drasticamente, e u m ano após o
funcionamento desses centros o percentualdispostos a pagar o
preço. "Obter sem pagar é u m desejo universal; mas é o desejo
de corações covardes e de cérebros enfermos".2
2 Sertillanges,2019,p.29.
CAMINHOS D E SENTIDO
Para bem compreendermos as contribuições de Frankl nesta
busca que o homem faz pelo sentido, devemos realizar uma
espécie de reviravolta, colocando-nos neste mundo não mais
como aqueles que tão somente lançam questões e esperam por
respostas, mas principalmente, e em primeiro lugar, como
aqueles que se percebem indagados e assumem a responsabili
dade, respondendo adequadamente a cada uma das perguntas
que nos são lançadas.
E aqui não está em jogo a percepção que temos acerca das
interrogações da vida, o quanto somos negligentes ou atentos
a estas perguntas, o conhecimento que temos ou deixamos de
ter acerca disso; essas realidades em nada alteram o fato de que
somos — queiramos ou não, saibamos ou não — indagados
pela vida diariamente, a cada passo que damos, a cada hora
que passa. Para Frankl , ainda que voluntariamente o homem
se decida por suprimir interiormente a voz da própria cons
ciência — consciência essa que capta o sentido presente em
cada situação — , esta continua a atuar, pois jamais pode ser
silenciada completamente.
Neste interrogatório, portanto, o chamado é a garantia, nun
ca está ausente, é sempre uma constante e uma certeza; minhas
respostas, porém, nem sempre. Estas dependem de m i m . Sou
livre tanto para enfrentar e superar os desafios da vida, como
para me decidir por sucumbir e entregar os pontos. Sou livre
para me posicionar diante do sofrimento inevitável da vida, de
maneira a vivê-lo com coragem e dignidade, ou posso optar
por me desesperar e agir de modo revoltoso, praguejando a vida
e todos a minha volta. Sou livre para realizar meus trabalhos
com dedicação, atenção e presteza, desejoso de entregar algo
de valor ao mundo ou, por outro lado, posso fazê-los com u m
profundo descaso, pensando tão somente no retorno que tal
ação me trará. O u seja, neste interrogatório chamado vida, as
perguntas nunca falham, tampouco tardam; e as respostas são
sempre pessoais. Saber como respondê-las é a diferença entre
viver uma vida autêntica ou inautêntica, com ou sem sentido.
O H O M E M E A BUSCA D E SENTIDO
Precisamos aprender e também ensinar às pessoas em de
sespero que, a rigor, nunca e jamais importa o que nós ainda
temos a esperar da vida, mas sim, exclusivamente, o que a vida
espera de nós. Falando em termos filosóficos, poder-se-ia dizer
que se trata de fazer uma revolução copernicana.
Não perguntamos mais pelo sentido da vida, mas experi
mentamos a nós mesmos como os indagados, como aqueles
aos quais a vida dirige perguntas diariamente e a cada hora —
perguntas que precisamos responder, dando a resposta adequada
não através de elucubrações ou discursos, mas apenas através
da ação, através da conduta correta. E m última análise, viver
não significa outra coisa senão arcar com a responsabilidade
de responder adequadamente às perguntas da vida, pelo c u m
primento das tarefas colocadas por ela a cada indivíduo, pelo
cumprimento da exigência do momento.3
Esta afirmação de Frankl se encontra no seu livro Em busca
de sentido,4 no qual ele relata de modo dramático sua experiência
como prisioneiro nos campos de concentração nazista. E fato que
praticamente toda a sua teoria já havia sido desenvolvida antes
de ele ter se tornado prisioneiro nos campos de concentração;
mas é neste cenário carregado de tragédias que encontramos
muitos relatos de vivências triunfais que possibilitaram a Frankl
e à posteridade ratificar o sentido incondicional da vida, com
ainda mais convicção e força probatória.
Frankl , o prisioneiro n° 119.104, nos diz em seus escritos
que, muito embora compreendesse intelectual e teoricamente
o sentido da vida, foram suas vivências ao longo de três anos
como prisioneiro que o ensinaram a fazer cada vez menos
perguntas e a responder cada vez mais à vida.
Alguns meses após sua libertação, encontramos algumas
cartas de Viktor Frankl , nas quais, de modo dramático e ex
tremamente lúcido, ele fala sobre suas responsabilidades como
3 Frankl, 2008, p. 99.
4 FRANKL .Viktor E . Em busca do sentido: edição para jovens leitores. Campinas: Aus-
ter, 2023.
CAMINHOS D E SENTIDO
sobrevivente. Vale lembrar que Frankl , neste momento, já tem
ciência de que seu pai, sua mãe, seu irmão, sua esposa e muitos
dos seus amigos e tantos outros familiares haviam morrido nos
campos de concentração. Para ele, a consciência de que ainda
deve seguir respondendo aos chamados da vida e cumprindo
fielmente seus deveres é de uma clareza desconcertante e se
apresenta para nós com u m valor testemunhal belíssimo. E m
meio ao caos, às dúvidas e ao luto, Frankl busca manter-se
fiel aos seus deveres e encontra neles o ponto de apoio de que
necessita para não sucumbir completamente:
E compreensível que, de u m m o d o geral, eu me sinta como
u m garoto que t e m de ficar detido na escola: os outros j á
part i ram, e eu ainda estou lá, tenho de terminar m e u dever, e
então poderei i r para casa.5
E outra carta na qual ele diz:
N ã o m e resta felicidade nesta v ida desde os martírios de
m i n h a mãe e de m i n h a j o v e m esposa. N a d a m e restou —
exceto a responsabilidade perante m e u trabalho intelectual,
que tenho de realizar, ainda e apesar de tudo. 6
Nesta citação percebemos uma forma específica de respon
der ao chamado da vida, que se dá por meio de uma criação,
de u m trabalho vivido como dever. E m sua teoria, Frankl nos
apresentará u m itinerário mais amplo e que contempla todas
as possibilidades humanas de realização de valor. Para ele, estes
valores são realidades concretas e objetivas que se apresentam
na vida de cada u m dos seres humanos; são realidades que nos
convocam a sair de nós mesmos, a f im de que vivamos aquilo
que é próprio da nossa essência; são oportunidades de descoberta
de sentido que, uma vez captados pela consciência do homem,
5 Frankl, 2021, p. 10.
6 Frankl, 2021, p. 10.
O H O M E M E A BUSCA D E SENTIDO
criam nele u m estado de tensão que possibilita caminhar em
direção ao dever-ser.
O homem, para Frankl , "nunca é, mas se torna". E u m ser
que deve se fazer pelo caminho, deve se colocar neste inter
rogatório que é a vida, comprometendo-se a afinar cada vez
mais sua consciência a f im de captar de modo cada vez mais
eficiente este chamado e desenvolver este hábito de sempre
responder adequadamente, tornando-se, portanto, responsável.
E nesta jornada existencial o que deve estar em jogo é: en
curtar a distância entre os poios do "ser" e do dever-ser, entre
aquele que hoje eu sou e aquele que eu devo me tornar. "Chega
a ser o que só tu podes ser", este é u m imperativo frankliano,
e segundo o autor é u m caminho possível e que deve ser bus
cado por todos nós. Para tanto, se faz necessário a realização
das possibilidades, destes valores tais como postulados pelo
médico austríaco.
O homem, efetivamente, assemelha-se a um escultor que
trabalha com cinzel e martelo a pedra informe, de modo que
a faz adquirir forma pouco a pouco. É como se o homem fosse
modelando o material com que o destino o brinda: ora criando,
ora experimentando vivências ou sofrendo, o homem procura
"arrancar" valores da vida "a golpes", para transformá-los o
quanto possível em valores criadores, vivenciais ou de atitude.7
E m suma, para Viktor Frankl há três modos de caminhar
mos para nosso dever-ser e para a descoberta do sentido da nossa
vida; e cada um destes aponta para algo ou alguém que não o
próprio indivíduo. Para ele:
A o declarar que o ser h u m a n o é u m a criatura responsável e
precisa realizar o sentido potencial de sua v ida , quero sal ien
tar que o verdadeiro sentido da vida deve ser descoberto no
m u n d o , e não dentro da pessoahumana ou de sua psique,
como se fosse u m sistema fechado. C h a m e i essa característica
constitutiva de " a autotranscendência da existência h u m a n a " .
7 Frankl, 2010, p. 110.
CAMINHOS D E SENTIDO
E l a denota o fato de que o ser humano sempre aponta e se
dirige para algo ou alguém diferente de si mesmo — seja u m
sentido a realizar o u outro ser humano a encontrar. Quanto
mais a pessoa esquecer de si mesma — dedicando-se a servir
a u m a causa ou a amar outra pessoa — , mais humana será e
mais se realizará.8
Vejamos cada um destes valores.
I . Valores criativos
Cada ser humano é único e irrepetível e, como tal, traz
características, capacidades e talentos de criação que são
únicos. Deste modo, sempre que atua no mundo dando uma
resposta ativa, pessoal e que se dá na concretude do dia a dia,
o homem enriquece o mundo trazendo para este algo que
antes não existia e que outrem jamais seria capaz de realizar.
Não que outros não possam fazer coisas parecidas ou repro
duzir ações aparentemente idênticas às nossas, entretanto,
as nossas criações não são apenas realidades materiais, mas
ações com intencionalidade, realizadas por uma pessoa, não
apenas algo, mas algo feito por alguém. Aquilo que se faz é
u m dado objetivo, mas quem o faz e o modo como o faz é o
que confere valor à ação. Deste modo, cada ser humano traz
esta capacidade de criar no mundo algo novo, e sempre que
o faz deixa impressa a sua marca.
Este valor de criação não se restringe apenas aos nossos
trabalhos profissionais, mas envolve também nossos trabalhos
habituais, nossas ações cotidianas, repetitivas, aparentemente
simples e banais. Na medida em que o homem compreende o
chamado que a vida está lhe fazendo naquela situação específica
e responde — criando, atuando no mundo, dando algo de
si — , ele caminha em direção ao sentido e à humanização.
8 Frankl, 2008, p. 135.
O H O M E M E A BUSCA D E SENTIDO
Certa vez, na cidade de Calcutá, na índia, um repórter
observava o modo afetuoso e dedicado com que Madre Teresa
cuidava das feridas purulentas de um leproso. Profundamente
admirado, e ao mesmo tempo estarrecido, ele disse à Madre
num tom de desabafo:
— E u não faria isso nem por todo o dinheiro desse mundo.
E de modo sereno a Madre lhe respondeu:
— E u também não.
A motivação da Madre estava em outro lugar; ela estava
respondendo adequadamente ao chamado que a vida — de
modo pessoalíssimo — lhe fazia. E l a foi capaz de encontrar no
seu "ofício" de freira uma oportunidade concreta de realizar
também diversos valores criativos. V i u naquele homem, naquela
ferida, uma oportunidade de servir, de oferecer algo de si, de
amar, de colocar-se à disposição, de consolar aquele que sofre
e de amar ao seu Deus. Entendeu que poderia simplesmente
lavar feridas, passar pomada, enrolar faixas, e assim encerrar
mais um dia tendo vivido seu ofício e cumprido, de modo
frio, mecânico e processual suas atividades habituais, ou que
poderia realizar aquela ação colocando-se inteiramente naquele
ofício, com atenção, carinho, compaixão e sem desejos egoístas.
Estava lá para servir, e o que fazia não era por dinheiro ou
fama, mas por amor. Para esta Madre, sua motivação religiosa
lhe permitia tocar o extraordinário mesmo em meio às ações
ordinárias. B e m se poderia aplicar ao seu ofício a frase de
outro santo, contemporâneo seu: "Diante de Deus, nenhuma
ocupação é em si mesma grande ou pequena. Tudo adquire o
valor do Amor com que se realiza".9
O valor dos nossos trabalhos, das nossas ações neste mundo,
não se dá por conta daquilo que fazemos, mas antes pelo modo
como fazemos e perante quem fazemos. U m a mesma ação pode
ser vivida de modo egocêntrico ou autotranscendente. Posso
9 Escrivã, 2016, p. 166.
CAMINHOS D E SENTIDO
realizar meus trabalhos por pura ambição ou, em meio a eles,
encontrar uma oportunidade de realizar valores criativos,
desejoso de enriquecer o mundo, de servir aos meus e de dar
algo de m i m mesmo.
[...] o que importa não é, de m o d o algum, a profissão e m que
algo se cr ia , mas antes o m o d o c o m o se cr ia ; que não depende
da profissão concreta c o m o tal, mas s i m de nós fazermos valer
no trabalho aquilo que e m nós há de pessoal e específico,
confer indo à nossa existência o seu "caráter de algo ú n i c o " ,
fazendo c o m que nossa ação adquira, assim, pleno sentido.1"
Há um relato interessante no qual Frankl irá discorrer sobre
o trabalho das enfermeiras. O que elas fazem neste trabalho?
Fervem seringas, despejam e lavam os urinóis, ajudam doentes
a levantar-se e a deitar-se e realizam muitas outras atividades
protocolares, que podem ser vividas de modo bem mecânico
e impessoal. Todavia, é no momento que uma enfermeira se
decide a fazer algo para além de suas meras obrigações e passa
a agir de modo pessoal — por exemplo, achando uma palavra
de ânimo e consolo para u m paciente em estado grave — que
consegue encontrar, naquele trabalho profissional, uma "opor
tunidade para dar sentido à vida. Só que esta oportunidade,
qualquer profissão a dá, desde que o trabalho respectivo seja
retamente compreendido".11
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.12
10 Frankl, 2010, p. 160.
11 Frankl, 2010, p. 161.
12 Fernando Pessoa, Poesia, Lisboa: Assírio & Alv im, 2000 [1933], p. 130.
O H O M E M E A BUSCA DE SENTIDO
2. Valores vivenciais
Se antes falávamos sobre a importância das nossas ações, de uma
resposta mais ativa da pessoa que é capaz de agir neste mundo,
transformando-o e enriquecendo-o, agora somos convidados a
olhar para outra capacidade que trazemos, que é a de acolher o
mundo, receber aquilo que nele há de bom, belo e verdadeiro,
como quem contempla e se enriquece mediante uma vivência
passiva: "Onde tudo quanto o homem tem que conquistar, em
geral, mediante u m agir, lhe cai do céu, por assim dizer".1 3
Estes valores vivenciais nos recordam que nem tudo vem
da força do nosso braço ou é fruto do nosso trabalho. Muitas
realidades que nos enriquecem e nos promovem foram realizadas
por outros, sem a minha participação, sem mérito algum da
minha parte. Nesse sentido, a beleza, a arte e a natureza que
me cercam são exemplos de transcendentais que me convocam
à contemplação e que, quando valorados e apreendidos, tornam
minha vida mais plena de significado. Observe que belíssimo
e elucidador este exemplo de Frankl :
Imagine-se que u m h o m e m , amante da música, está sen
tado na sala de concertos e que, precisamente no instante
e m que lhe soam aos ouvidos os compassos mais tocantes da
sua sinfonia predileta, sente aquela forte c o m o ç ã o que só se
exper imenta perante a beleza mais pura. Suponha-se agora
que, nesse momento , alguém lhe pergunta se a sua vida t em
u m sentido; a pessoa assim interrogada não poderá deixar de
responder que valeria a pena viver , mesmo que fosse só para
experimentar a vivência desse doce instante.1 4
Nesta categoria de valor, o homem faz a experiência de ser
amado. Ao abrir-se para o mundo, torna-se capaz de captar
algo de realmente belo e genuíno que o toca, promove e ele
va. O sorriso de uma criança, u m entardecer no campo, uma
13 Frankl, 2010, p. 172.
14 Frankl, 2010, p. 82.
CAMINHOS DE SENTIDO
música de harmonia inefável, uma pintura em tela que surge
como u m portal e o conduz para um lugar distante e cheio de
significados, u m momento de oração que lhe traz como que
u m antegozo do céu, u m olhar amoroso que fita os olhos da
pessoa amada e faz tremer — de alegria e assombro — cada
fibra do seu corpo. Todas essas são situações diante das quais
se torna possível realizar este tipo específico de valor.
Esta nossa entrega aos valores e vivências faz-nos lembrar
de quem nós somos e qual é nosso chamado neste mundo. Sãorealizações de valor que favorecem a tomada de consciência
acerca do meu dever-ser. Segundo Frankl , alguém que porven
tura estivesse sentado num f im de tarde num ônibus e tivesse
diante dos seus olhos u m pôr do sol soberbo, ou ainda que
tivesse próximo de si u m aroma agradabilíssimo e mui sutil de
uma acácia em flor e, mesmo assim, decidisse por continuar
lendo seu jornal ou entretido consigo mesmo — fechado para
o mundo que o cerca — e não fizesse a real experiência de
se entregar a esta possível vivência da natureza, poderia ser
classificado como u m ser "esquecido do seu dever".
Para que haja a realização destes valores se faz necessário que
o homem saia de si mesmo, seja capaz de ir além de si próprio.
O fato de estarmos diante de uma vivência mais passiva não
faz com que estejamos fadados a receber estes impactos do
mundo: sem uma abertura e uma resposta livre e pessoal, toda
a realidade exterior não passa de meros estímulos sensoriais
— cor, luz, brilho, sons, gestos —, que não encontram cor
respondência em meu ser. Neste caminho de sentido, cabe ao
homem apresentar-se à vida como alguém disposto a receber,
a acolher e a acatar aquilo que de valor há no mundo.
Eis um belíssimo relato de Frankl sobre o poder de arreba
tamento que u m valor vivencial pode ter, ainda que a situação
ao redor seja dificílima e que estejamos fisicamente abatidos:
O u t r a vez, à noi t inha, estávamos estendidos no chão de terra
do barracão, mortos de cansaço, o prato de sopa na mão,
O H O M E M E A BUSCA D E S EN T I D O
quando entrou u m companheiro correndo e mandou-nos
depressa para a área de chamada da t u r m a , apesar de toda
a nossa fadiga e do frio lá fora, só para não perdermos u m a
visão magnífica do pôr do sol. V i m o s , então, o ocaso i n c a n
descente e tenebroso, c o m todo o hor izonte tomado de
nuvens mult i formes e e m constante transfiguração, de f a n
tásticos perfis e cores sobrenaturais, desde o azul cobalto até
o escarlate sangue, contrastando pouco mais abaixo c o m os
desolados barracos cinzentos do campo de concentração e a
lamacenta área onde é feita a chamada dos prisioneiros, e m
cujas poças ainda se refletia o céu incandescente. E alguém
e x c l a m o u , após alguns minutos de silêncio, arrebatado: " O
m u n d o poderia ser tão be lo ! " . 1 5
E m um de seus célebres textos, Lavelle nos apresenta, de
modo belíssimo, uma experiência humana que está em pro
fundo acordo com aquilo que nos fala Frankl ao apresentar tal
categoria de valor. A leitura deste trecho pode ser, a depender
do leitor, uma realização de valor vivencial, uma pequena ma
nifestação epifânica de uma verdade que, em alguns momentos
da nossa vida, conseguimos tocar, sentir, e que agora parece
ser manifestada em palavras, pela pena deste douto homem:
Há na vida momentos privilegiados e m que parece que o
universo se i l u m i n a , que a nossa vida nos revela sua s ignif ica
ção, que queremos o destino mesmo que nos coube c o m o se
nós mesmos o tivéssemos escolhido; depois o universo volta
a fechar-se, tornamo-nos novamente solitários e miseráveis,
j á não caminhamos senão tateando n u m caminho obscuro
onde tudo se torna obstáculo aos nossos passos. A sabedoria
consiste e m salvaguardar a lembrança desses momentos f u g i
dios, e m saber fazê-los reviver e fazer deles a trama da nossa
existência cotidiana e, por assim dizer, a morada habitual do
nosso espírito (Louis Lavel le ) .
15 Frankl, 2008, p. 58.
CAMINHOS D E SENTIDO
3. Valores atitudinais
Há na vida, contudo, momentos em que parece que não nos
restam muitas possibilidades, não estando ao nosso alcance re
alizar valores criativos ou ainda vivenciais. O que restaria, por
exemplo, a uma pessoa acamada que permanece por meses num
leito de hospital, deitada, sem ver a luz do dia e sendo tomada
por fortes dores? O u ainda a uma pessoa, terrivelmente injus
tiçada e que agora não conta mais com "boa fama", dinheiro,
carreira e amigos? O u a um homem enlutado que acabou de
perder seus entes queridos num acidente? E não só estas situações
extremas, mas aquelas mais pessoais e dolorosas que todos nós
carregamos, aquelas contrariedades do dia a dia, aqueles limites
físicos que possuímos, aquelas perdas irreparáveis que insistem
em doer. Quando nada mais parece ser passível de mudança,
o que nos resta? Para Frankl , resta-nos ainda mudarmos a nós
mesmos! Estes são os valores que são realizados a partir de uma
atitude adequada que a pessoa toma ante um destino imutável.
Este mundo não é só marcado pelos belos pores do sol ou
pelos talentos humanos vividos como criação, mas também
pelo elemento da dor, da culpa e da morte; estas são realidades
diante das quais devemos nos posicionar. Como diz Frankl ,
não há entre nós u m único ser humano que possa dizer que
nunca falhou, que nunca sofreu e que não irá morrer.
Pois bem, ensina-nos o psiquiatra austríaco que neste cami
nho pelo sentido há sempre a possibilidade de nos depararmos
com limites e sofrimentos, com destinos imutáveis e perdas
irreparáveis. Entretanto, não têm essas realidades a última
palavra; não precisam, portanto, ser vividas como obstáculos
intransponíveis, pois diante de cada u m deles pode o homem
tomar uma atitude.
De cada uma dessas tragédias da vida (dor, culpa e morte)
pode o homem extrair o melhor: a dor inevitável pode tornar-se
uma conquista e ser vivida como uma realização humana;
a culpa, por sua vez, pode ser vivida como uma tomada de
O H O M E M E A BUSCA D E SENTIDO
consciência dos meus erros que merecem reparo, como u m
sinete que me lembre de minhas debilidades e falhas, bem
como uma oportunidade para que eu mude para melhor; e a
presença certa da morte pode se tornar u m incentivo para que
eu viva uma vida mais atenta, intensa e valorosa.
Ainda que não esteja sob o meu controle sofrer ou simples
mente deixar de sofrer, está sob minha responsabilidade decidir
de que modo sofrerei, podendo cair no desespero ou caminhar
em direção ao sentido. Na clássica equação de Frankl temos:
Desespero — sofrimento - sentido
No entanto, esta mesma realidade trágica — o sofrimento
— pode tornar-se uma vivência triunfal se, com as minhas
atitudes, me decidir a fazer disto u m sacrifício; não mais so
frendo como um desesperado, mas buscando fazer da minha
dor uma entrega, uma oferta, certo de que posso sofrer por
amor a algo ou alguém.
Sacrifício = sofrimento + sentido
Deste modo, chegamos à conclusão de que não é o sofrimento
a causa de nossas "dores" existenciais, mas sim a dúvida acerca
do seu significado: " O homem está preparado para arcar com
qualquer sofrimento, desde que possa ver um sentido nisso".16
A mesma dificuldade que pode se apresentar para nós como
pedra de tropeço ou de perdição, pode também ser vista como
u m meio de elevação, de grande crescimento pessoal e de uma
experiência com o sentido da vida.
O u a vida tem um sentido e este sentido é preservado até
o f im e independe das situações ou já não é possível falar em
sentido algum. Frankl relata que por vezes escutava alguns
prisioneiros se indagarem sobre se ir iam sair ou não com vida
16 Frankl, 2021 p. 188.
CAMINHOS D E SENTIDO
daquele campo de concentração, caso contrário — segundo
eles — todo aquele sofrimento teria sido em vão. Frankl , ao
contrário, irá dizer que a questão não pode ser formulada nes
tes termos, mas sim da seguinte forma: será que tem sentido
todo este sofrimento? Caso contrário, sair ou não com vida
já não faz sentido algum. E conclui dizendo: " U m a vida cujo
sentido depende exclusivamente de se escapar com ela ou não
e, portanto, das boas graças de semelhante acaso, uma vida
dessas nem valeria a pena ser v iv ida" . 1 7
Esta categoria de valor lembra-nos que é possível que vivamos
com dignidade nossos sofrimentos e com valentianossa ruína
e que, deste modo, realizemos aquilo que há de mais humano,
assumindo uma atitude positiva e de elevação mesmo em meio
às maiores dificuldades e tragédias da vida.
Frankl irá comparar o valor da atitude com a árvore que,
no interior de uma floresta densa e não podendo se expandir
na horizontalidade, pode ainda expandir-se verticalmente,
crescendo para o alto. Assim acontece com o homem: ainda
que a vida o aperte a tal ponto que ele não possa mais realizar
valores criativos ou vivências — expandindo-se neste mundo
com suas conquistas, trabalhos, amores etc. — , ele pode ain
da crescer interiormente, aceitando o sofrimento inevitável e
fazendo da aparente tragédia uma vivência triunfal.
" H o m e m , atreva-te a sofrer". Esta é a convocação que o
pai da Logoterapia nos faz. Af inal , como ele mesmo vai dizer:
"a vida é paixão!".
Diante do sofrimento, devemos evitar toda atitude de es-
capismo, covardia e vitimização. Porém, vale ressaltar que, ao
se referir ao sofrimento, Frankl o faz sempre tendo em vista
aquilo que é da ordem do inevitável; não há alusão alguma a
um tipo de masoquismo, uma busca desnecessária pelo sofri
mento. Nem escapismo, mas atrevimento. U m a atitude corajosa
e propriamente humana de alguém que se sabe limitado e que
17 Frankl, 2021 p. 188.
O H O M E M E A BUSCA D E S EN T I D O
está disposto a responder ao chamado da vida, mudando a si
próprio quando já não pode mudar algumas situações. Não
se trata, portanto, como vimos, de perguntar pelo sentido da
vida, uma vez que somos nós os indagados. Neste caminho
pelo sentido, o que devemos é, nas palavras de Frankl : "Dizer
S I M à vida, apesar de tudo".
Luís E N R I Q U E C A R M E L O P A U L I N O
Referências
E S C R I V Ã , J . Sulco. 4. ed. São Paulo: Quadrante, 2016.
F R A N K L , V. E . Psicoterapia e sentido da vida. Fundamentos da logote
rapia e análise existencial. 5. ed. São Paulo: Quadrante, 2010.
. O sofrimento humano: fundamentos antropológicos da psi
coterapia. São Paulo: É realizações, 2019.
, Em busca de sentido: um psicólogo no campo de concentração.
31. ed. Petrópolis: E d . Vozes, 2008.
. O que não está escrito nos meus livros. São Paulo. É re
alizações, 2010.
. A vontade de sentido: fundamentos e aplicações da logoterapia.
2. ed. São Paulo: Paulus, 2013.
. A falta de sentido: um desafio para a psicoterapia e a filosofia.
1. ed. Campinas: Auster, 2021.
L A V E L L E , L . A intimidade espiritual. Campinas: Vide Editorial ,
2023.
S E R T I L L A N G E S , A . D . A vida intelectual. Campinas: Kírion, 2019.
Logoterapia em poucas palavras
A Logoterapia fala às necessidades do momento!
— Viktor Frankl'
Aobra de Viktor Frankl pode ser considerada um verda
deiro tratado de humanidade por retratar o ser humano
naquilo que há de mais sublime em sua natureza e que
o identifica enquanto ser vivente. Embora seja categorizado pela
ciência como um ser que pertence a um reino, uma espécie,
uma raça, isso não expressa a totalidade da sua existência, uma
vez que lhe é própriauma tridimensionalidade, que o apresenta
como um ser B I O P S I C O E S P I R I T U A L .
Pensar o ser humano na sua essência exige uma compreensão
da sua totalidade, que se apresenta em três dimensões, distintas
no modo de ser, mas integradas e indivisíveis, que não podem
ser apartadas e nem somadas a nada. A visão antropológica da
Logoterapia apresenta um organismo biopsíquico, que integra
corpo e alma (psique), mas essa unidade ainda não expressa a
totalidade de seu ser, e Frankl é bem categórico em relação
a isso ao dizer que: " A totalidade do homem pertence a u m
1 Frankl, 201 l , p . 10.
O H O M E M E A BUSCA D E SENTIDO
terceiro elemento — essencialmente, o espiritual".2 Sua visão
de pessoa apresenta o ser humano completo, naquilo que o
diferencia dos outros seres viventes, que é a espiritualidade.
Dessa forma há uma unidade entre as dimensões biológica,
psíquica e noética (ou espiritual). O u seja, u m organismo bio
lógico que constitui o homem e revela órgãos e sistemas que:
sustentam a vida humana em pleno funcionamento; trabalham
em harmonia (bem sincronizados); regem os batimentos car
díacos, a circulação, a respiração; capazes de metabolizar os
alimentos; filtrar as impurezas; produzir energia para a nossa
sobrevivência. Juntamente a esse organismo biológico, temos o
cérebro, dotado de sua anatomia e "soberania" por ser o grande
maestro, que rege os movimentos do corpo, os estímulos e as
respostas do sistema nervoso, capaz de perceber o que acontece
ao nosso redor, captar perigos e lutar ou fugir de situações de
risco. E le também rege com maestria os sentidos: visão, fala,
audição, vias olfativas e sensoriais — por meio deles experi
mentamos o mundo. Além disso, o cérebro possui a capacidade
de regeneração a partir da neuroplasticidade.
Na dimensão psíquica, são desenvolvidas as capacidades de
atenção, memória, linguagem, controle das emoções e senti
mentos. A partir dela brotam as reações instintivas, os desejos,
as necessidades de afeto, proteção e segurança. Muitas vezes o
psiquismo se serve do biológico para se desenvolver, tendo em
vista que para apreender a realidade, emitir uma opinião ou
tomar uma decisão, precisa contar com as capacidades cerebrais
ativas. Por esse "modo de funcionar" é possível perceber o que
Frankl denomina de Paralelismo Psicofísico. Ao observar o
funcionamento biopsíquico é possível notar claramente uma
ação direta de uma dimensão sobre a outra, embora caminhem
paralelamente e possuam funções que são próprias de cada uma.
E m muitos momentos, elas se fundem, coexistindo ao ponto
de ser impossível mensurar o que emana de uma ou da outra.
2 Frankl, 2019, p. 112.
LOGOTERAPIA EM POUCAS PALAVRAS
Esse fenómeno não acontece na dimensão noética. E m
contraposição ao paralelismo das dimensões biológica e psí
quica, existe o que Viktor Frankl denominou de Antagonismo
Psiconoético. E próprio da dimensão noética algumas reali
dades ontológicas que vão na contramão do modo de ser do
organismo biopsíquico. Não existe u m "lugar" onde possamos
localizar aquilo que é próprio desse modo de ser: o modo de
ser humano. Para Frankl , ser humano significa ser para "além
de s i" . A existência aponta realizações que estão para além da
satisfação das necessidades, para além da materialidade da vida.
E o próprio nome adotado pelo criador da Logoterapia, nous
(espírito), aponta para uma realidade transcendente. Se essa
dimensão espiritual reúne o que é "propriamente humano",
podemos concluir que o nosso modo próprio de ser pessoa é
ser pessoa espiritual. Assim, nessa dimensão estão os recursos
necessários para que a pessoa seja capaz de enfrentar as adver
sidades, posicionar-se frente aos destinos biológicos, psíquicos
e sociais, e se colocar acima das adversidades, das doenças, dos
traços de temperamento e caráter, da herança genética, das
vulnerabilidades do ambiente, das carências e das inclinações
pessoais. Também encontra-se a liberdade para tomar decisões,
fazer escolhas e contrariar-se quando necessário, pois ser livre
não é somente decidir pelo que é mais agradável ou satisfatório,
mas também ser capaz de se opor aos próprios desejos e neces
sidades. A responsabilidade e a consciência também estão nessa
dimensão espiritual, bem como as inquietações existenciais que
nos colocam no caminho da busca pelo sentido.
Aquilo que é especificamente humano, isto é, experienciado
apenas pelo ser humano em sua existência, encontra-se nessa
dimensão, que antagoniza com o nível biopsíquico. Frankl
adotou essa expressão para exemplificar que há uma contra
posição: de u m lado temos as dimensões biológica e psíquica,
e do outro a dimensão noética, cada qual com seu modo de
ser no mundo.
O H O M E M E A BUSCA D E SENTIDO
-••
DIMENSÃO BIOPSIQUICADIMENSÃO NOÉTICA (ESPIRITUAL)
Fa c t u a l = f at o , aqu i lo q ue nos fo i " dado" , seja
por herança g enét i ca, seja pela ed ucação ,
pelo am b i en t e em q ue v i vem o s.
Facu l t at i va = passa por d eci sõ es e esco lhas.
Sem p r e p o d em o s esco lher e decid i r so b re as
co isas e sob re nós m esm o s.
Cap t a sen si v el m en t e/ at r avés dos sen t i d os Cap t a i n t u i t i vam en t e/ o n t o l o g i cam en t e
Co n d i ci o n ad o / Fa da d o-a-ser l i v r e / Vi r - a- ser
Im p u l si o nad o In t enci o nad o
Fu n çõ es veg et at i vas e sensi t i vas In t el i g ênci a, Vo n t ad e e Resp o n sab i l i d ad e
Im an en t e Tr an scen d en t e
Existem realidades que revelam o que de fato é S E R H U
M A N O , que apontam para o que é transcendental, ou seja, para
além das características físicas e das necessidades psíquicas. A
espiritualidade constitui a existência e confere ao homem a pos
sibilidade de agir com intencionalidade e ordenar sua vontade a
algo mais elevado do que a própria imanência. É próprio desse
"modo de ser" espiritual captar as possibilidades de realização
de sentido, agir de forma livre, responsável, autotranscendente,
consciente, se relacionar (ou não) com Deus, viver a fé, cultivar
a esperança, expressar a criatividade, rir de si mesmo, suportar
o sofrimento, renunciar, perdoar, ser capaz de amar e de dizer
" s i m " à Vida em todas as circunstâncias. Isso é S E R H U M A N O !
Eis uma das maiores belezas da Logoterapia: essa compreensão
elevada da pessoa humana, que brilhou aos olhos de Frankl ,
que de forma genial a apresentou ao mundo por meio da sua
Análise Existencial.
Vale ressaltar que a Logoterapia, embora deixe as portas aber
tas para o diálogo com a transcendência, não é uma abordagem
religiosa, mas humana e existencial, pois respeita a unicidade
e os valores de cada pessoa, inclusive das que escolhem ter
u m relacionamento com Deus ou praticar uma religião. Para
Frankl , "a elevação do humano só pode ser alcançada se a
LOGOTERAPIA E M POUCAS PALAVRAS
transcendência da existência humana for evidenciada".3 Ao nos
referirmos à espiritualidade descrita por Frankl , isto significa
que essa abordagem nos insere na condição de humanos e não
de divinos. Frankl reconhece o que é humano no homem e
no-lo apresenta como uma antropologia, de forma que possamos
não somente conhecer, mas também viver a nossa humanida
de. Para vivê-la, precisamos nos apropriar de "quem somos"
e adquirir certos "domínios" que podem ser alcançados por
qualquer pessoa, de qualquer idade e em qualquer tempo, desde
que se deixe guiar pela consciência a "bússola" que nos guia
nessa busca. A Logoterapia é para o "homem comum". Essa
afirmação comprova que não precisamos ser grandes estudiosos
para compreender essa visão de pessoa e de mundo, uma vez
que todo ser humano é capaz de captar de forma intuitiva as
possibilidades de realização de sentido. A todo ser humano é
dada a condição de perceber o "br i lho" do sentido e colocar-se
a caminho da realização.
Poderíamos, neste momento, nos demorar em muitos es
tudos sobre Viktor Frankl e a Logoterapia, porém os capítulos
anteriores já contemplam uma bela fundamentação teórica que
nos leva a compreender os pilares sobre os quais Frankl esta
beleceu sua obra e os caminhos para a descoberta do sentido,
a partir da realização de valores, bem como as consequências
de buscas niilistas e hedonistas, que fazem o homem experi
mentar o vazio.
Para concluir essa obra, apresentamos a L O G O T E R A P I A E M
P O U C A S P A L A V R A S a f im de fazermos memória dos conceitos
franklianos, de forma que sua compreensão sobre o ser h u
mano se amplie e consolide sua vida a partir dessa experiência
com o sentido. Definir palavras e conceitos e saber explicá-los
é importante, mas experimentar esses significados é o que
nos possibilita, de fato, tornar real o chamado de sermos
"logoviventes".
3 F r a n k l , 2 0 1 9 , p . 3 3 3 .
O H O M E M E A BUSCA D E SENTIDO
Como podemos compreender a EXISTÊNCIA?
U m a das maiores responsabilidades que temos enquanto pes
soas humanas é realizar a nossa existência, e isso implica numa
tarefa existencial de cuidar do nosso corpo, do psiquismo e
da nossa espiritualidade, pois o corpo é o "instrumento de
manifestação" da pessoa espiritual. É através do organismo
biopsíquico que a existência se revela, conquista seu espaço
e se apresenta ao mundo. Assim, temos u m modo próprio de
"existir" no mundo: somos pessoas espirituais. Dessa forma,
somos convidados constantemente pela vida a nos elevar da
nossa condição biopsíquica e nos colocar acima das nossas l i
mitações, fraquezas e necessidades. A existência humana tem
um movimento próprio que é "para fora", ou seja, existência
deriva de "ek-sístere", sair de si, " i r além" de si mesmo.
Considerando que "existimos no mundo" que repleto de
sentido e de outros seres humanos, de acordo com Frankl 4 po
demos nos encontrar e perceber as possibilidades (e realizá-las)
— fazer a vida acontecer!
A existência é a vida realizada, o que no tempo presente
é vivido por nós e eternizado na história. São as vivências
que, uma vez experienciadas, não há nada que as faça "desa-
contecer", pois passam a ser parte da nossa história, de quem
somos, da nossa existência. Para reconhecer sua existência no
mundo, basta olhar para trás, para seu passado. Faça o seguinte
exercício: anote num papel o dia, mês, ano e horário exatos
em que está lendo este capítulo. E m seguida, olhe para a sua
vida, faça uma retrospectiva dos trabalhos realizados, dos livros
estudados, dos relacionamentos amorosos, das amizades, dos
locais em que residiu, das coisas que lhe trouxeram alegria,
das experiências que lhe marcaram profundamente (boas ou
ruins), dos brinquedos que você tinha, das férias, dos passeios,
dos presentes e ausentes na sua história. Faça memória de quem
você foi, uma retrospectiva de hoje até o dia da sua concepção
4 Frankl, 201 l , p . 45.
L O G O T E R A P I A E M P O U C A S P A L A V R A S
— quando houve o milagre da vida. O útero da sua mãe foi
sua primeira casa, e do seu nascimento até hoje você passou
pela experiência de crescer e obter consciência do mundo a sua
volta, mas talvez por alguns momentos tenha se esquecido de
olhar para sua existência. A partir dessa experiência, espero que
tenha se encontrado, e que sua vida " v i v i d a " lhe dê a certeza
de quem você " é " !
Certa vez, Frankl afirmou que "a melhor forma de ser é ter
sido",5 ou seja, conforme "somos", existimos! Podemos para
frasear o filósofo René Descartes na sua famosa frase "penso,
logo existo" afirmando de maneira frankliana: "Sou, logo
existo!". Existimos, e quem existe " É " — e isso nos bastaria
se não fôssemos seres "inacabados", que precisamos a todo
instante nos fazer, (re)fazer e fazer o mundo acontecer a cada
momento. Cabe a nós, que fomos feitos humanos, continuar
a obra da criação e fazer crescer a humanidade por meio de
vivências intrínsecas a nós. Para Frankl , 6 " O homem não tirou
de si o possível, o máximo", e como Deus criou o homem e
descansou no sétimo dia, desde então "compete ao homem
fazer-se a si mesmo". E aqui estamos, tensionados pela vida, no
caminho do ser ao dever-ser, para realizar a "missão-existencial"
que nos foi dada: tornar real a vida!
Conforme tornamos real o que existe como potência, a vida
acontece e a cada nova possibilidade realizada, mais potências
são atualizadas e mais a vida é concretizada! A realidade nos
torna pessoas de verdade, pois deixamos de habitar u m mundo
inexistente para existir de forma concreta, como seres livres,
responsáveis e autotranscendentes, cujo "modo próprio de
existir" é espiritual.
5 Frankl, 2003, p. 124.
6 Frankl, 2019, p. 148.
O H O M E M E A BUSCA D E SENTIDOQual a relação entre EXISTÊNCIA e ESSÊNCIA?
Podemos pensar a essência como algo que fundamenta todas as
existências. Existimos para "algo" — a vida é uma tarefa, uma
missão que nos é dada assim como a existência. Recebemos
a incumbência de realizar, e passamos grande parte da vida
buscando descobrir o que nos cabe única e exclusivamente
entregar ao mundo. E m uma das obras de Amadeu Cencini ,
filósofo e u m grande estudioso da pessoa humana, ele diz que
"a vida é u m bem recebido, que tende a se tornar u m bem
doado", e essa frase pode nos ajudar a compreender a vida como
missão. Recebemos uma "tarefa existencial" junto com a Vida!
O que nos foi "dado" para que pudéssemos "nos doar"? Essa
pergunta pode nos ajudar a compreender o sentido da nossa
existência. Recebemos a vida como dom (um presente), mas
não sem as incumbências: torná-la u m presente e "ser presen
te" na vida das pessoas com as quais convivemos. É preciso
reconhecer em nossa existência alguns dons e talentos que
recebemos, pois além de serem "presentes", nos possibilitam
realizar as "entregas" que a vida espera em cada momento.
Quanto mais "entregamos", mais a nossa existência vai sendo
revelada, não somente para o mundo, mas também para nós
mesmos. A nossa identidade existencial se revela e descobrimos
quem somos quando servimos àquilo para o qual fomos criados.
Ao falar sobre a essência, Frankl 7 nos diz que "o que conta
é o preenchimento do sentido e a efetivação do valor", ou seja,
"a realização no plano existencial". Para que a existência se
realize nesse mundo é preciso encurtar a distância entre o existir
e a finalidade para a qual existimos. Quando descobrimos esse
"para quê" da vida, há u m resplandecer de esperança que nos
invade e promove aquela sensação de que estamos no caminho
certo, na estrada que nos leva para perto daquilo que nascemos
para ser e que pode nos conduzir à verdadeira felicidade.
7 Frankl, 1978, p. 30.
LOGOTERAPIA E M POUCAS PALAVRAS
N Ã O E X I S T E F E L I C I D A D E L O N G E D A E S S Ê N C I A ! É necessário
empreender esforços na intenção de aproximar a existência
da essência, pois quanto menor essa distância, mais realização
pessoal, mais força para dizer sim à vida, mais capacidade de
suportar o sofrimento, mais plenitude. Sempre que caminha
mos na direção do sentido, encurtamos distâncias. Quando a
existência se dirige para a essência, surge a possibilidade de
u m "encontro", o mais genuíno dos encontros, que conduz o
homem ao ápice da realização e da felicidade, que é o encontro
C O m O S E N T I D O D A V I D A .
Como seria a experiência de encontrar o SENTIDO DA
VIDA?
A experiência de encontrar o Sentido da Vida transforma o
coração do homem, faz com que encontremos a alegria ver
dadeira e que tenhamos forças para suportar as dificuldades.
A forma como respondemos aos chamados da vida pode nos
direcionar (ou não) para o "encontro" com o sentido. Q u a n
do nossas respostas visam o bem do outro e somos movidos
pelo amor, quando não deixamos o egoísmo dominar nossas
atitudes ou quando o amor-próprio não se reveste de caridade
nas nossas ações, podemos afirmar que temos uma motivação
autotranscendente. Esse direcionamento nos proporciona rea
lização e felicidade. Caso contrário, nosso fazer se torna vazio,
tanto quanto o nosso coração, e resulta em sofrimento. Assim,
é possível percebermos a intenção da ação no resultado em
quem age. Se resultar em cansaço, desânimo ou esgotamento,
precisamos rever nossas "motivações".
O Sentido é uma experiência de " E N C O N T R O " ! Existe e se
revela na própria vida, ou seja, para encontrá-lo precisamos
olhar para nossa história, nossas realizações e as entregas que
fazemos ao mundo. É quando a vida confirma que "nascemos"
para realizar tal coisa, ou quando temos a sensação de estar
no lugar certo (o "nosso lugar" no mundo), ou ainda quando
O H O M E M E A BUSCA D E SENTIDO
realizamos algo exigente, que nos consome, mas não somos
consumidos pelas circunstâncias. Dessa forma, fazemos porque
"deveríamos" fazer; encontramos sentido quando sabemos qual
o nosso papel e nossa consciência grita: "Se não eu, quem?".
Podemos pensar num "encontro" como o que está relatado na
Bíblia quando após o nascimento de Jesus, sua mãe foi cumprir
os preceitos da época e apresentar o seu bebé, recém-nascido,
no Templo. Lá estava o velho Simeão, u m profeta, a quem
Deus revelou que não morreria sem antes ver o Cristo. N o
momento que Simeão tomou o menino nos braços, suspirou e
disse: "Porque os meus olhos viram a vossa salvação".8 Por meio
desse "encontro", Simeão viveu a experiência de "contemplar
de perto" o Sentido, e no cumprimento do seu dever diário,
experimentou uma grande realização existencial, a ponto de
dizer que já estava pronto para morrer, pois A Q U E L A E X P E R I Ê N C I A
L H E F E Z V A L E R A V I D A . 9 Alguns encontros são muito valiosos,
e exigem certos "investimentos"... Custam tempo, renúncias,
sacrifícios, custam a coragem de morrer para si mesmo, de
sofrer, se arriscar, de esperar, de acreditar... Custam a coragem
de amar! E podemos "pagar" o preço, pois na medida que nos
"custam", também nos realizam, pois nos colocam diante da
F E L I C I D A D E e do S E N T I D O D A V I D A !
Se a vida tem um Sentido, COMO PODEMOS
ENCONTRÁ-LO?
A vida possui u m sentido incondicional que não se perde em
nenhuma circunstância. Cada pessoa, situação e sentido são
únicos. O sentido existe, independentemente da nossa vontade,
mas para ser "encontrado", depende dela, pois somos livres
para intencionar nossa vontade na direção dessa busca. Não
podemos criar sentido, mas descobri-lo e realizá-lo.
8 L c 2 , 3 0 .
9 Referência a L c 2 ,22-35.
LOGOTERAPIA E M POUCAS PALAVRAS
Para isso, contamos com a nossa consciência, que está para
a busca de sentido, assim como o coração está para bombear
o sangue do nosso corpo, ou como os rins estão para filtrar as
impurezas do nosso organismo e eliminá-las. A questão é que
como o encontro com o Sentido da Vida é uma experiência
existencial, não existe u m órgão no corpo humano que seja
biopsiquicamente responsável por nos ajudar nessa busca.
Considerando essa realidade ontológica frente à busca de
sentido, Frankl nomeou a consciência como o "ÓRGÃO DE
SENTIDO", pois ela nos ajuda a captar de forma intuitiva as
possibilidades de valor inerentes a cada situação. A consciência
nos faz captar o sentido de cada momento e é definida pelo
neuropsiquiatra vienense como "a capacidade de procurar e
descobrir o sentido único e exclusivo, oculto em cada situa
ção".10 E l a nos coloca diante das possibilidades de realização
de valor que dirigem nossa existência ao Sentido, e que se
realizam por meio do trabalho, quando oferecemos ao mundo
algo que criamos com os talentos e habilidades que recebemos.
Essa troca acontece por meio das experiências interpessoais e
de amor, no cuidado com o outro ou quando enfrentamos os
sofrimentos inevitáveis da vida mudando a nós mesmos, diante
de situações que não mudam.
E quando não se conhece o Sentido da Vida?
Encontrar o sentido é descobrir "para quê" viemos ao mundo
e o que "devemos" realizar com o que somos. Para Frankl :
C a d a ser h u m a n o é único e m sua essência (sosein) quanto
e m sua existência (dasein) [...] é u m indivíduo particular c o m
suas características pessoais únicas, experimentado n u m c o n
texto histórico único, n u m m u n d o e m que há oportunidades
e o b r i g a ç õ es especiais reservadas somente a ele ( F r a n k l ,
2020, p. 63 , gri fo nosso).
10 Frankl, 1985, p. 68.
O H O M E M E A BUSCA D E SENTIDO
Cada pessoa possui em sua própria vida o sentido da sua
existência. A o considerarmos as chamadas "obrigações espe
ciais" a que Frankl se refere, concluímos que para encontrar
o sentido é precisocumprir com nossos deveres. O próprio
Frankl orienta uma pessoa que desconhece o Sentido da Vida,
ou ignora ou não percebe as possibilidades de realização de
sentido a incumbir-se de sua "primeira e imediata missão",
que é: "descobrir a própria missão e avançar resolutamente ao
encontro com o Sentido da Vida" . 1 1
Para encontrar o Sentido da Vida, é preciso passar pelo
sofrimento?
Não é necessário passar pelo sofrimento para encontrar o Sen
tido da Vida, mas situações como essa podem nos colocar no
caminho do Sentido. Sofrer é uma realidade humana, e em
algum momento da vida todos passaremos por adversidades,
por dores ou contrariedades. Não podemos fugir dessa verdade!
Porém, o medo de enfrentar o sofrimento faz com que algumas
pessoas tentem fugir dessas situações, e com isso, se enfraqueçam
ainda mais, pois não adquirem a capacidade de sofrer.
Diante das dificuldades, uma pessoa pode adquirir a ca
pacidade de sofrer e se fortalecer para enfrentar a Vida. A
antropologia frankliana apresenta o ser humano como alguém
dotado de uma capacidade de suportar as situações mais adversas
da vida, e que mesmo diante do sofrimento inevitável pode
posicionar-se, ir além de si mesmo e realizar valores. O homem
é o único ser capaz de sofrer e de transformar as experiências
dolorosas em realizações, pois tem uma capacidade espiritual
de confrontar as situações e tomar distância delas, pois é u m
ser livre e responsável.
Cada pessoa decide como enfrentar o sofrimento: ou
vitimizar-se, culpando a tudo e a todos pelos desgostos, ou
adotar uma postura digna diante das próprias dores e sofrer
11 Frankl, 2003, p. 92.
LOGOTERAPIA E M POUCAS PALAVRAS
com dignidade e paciência, com a cabeça erguida, sem se en
vergonhar, pois sofrer requer coragem! E a Vida nos convida
a muitos atos de coragem: " A T R E V E - T E A S O F R E R ! " . Frankl
completa dizendo: "Somente por esse caminho nos aproxi
maremos da Verdade e não pelos caminhos da fuga e do medo
ao sofrimento".12
A pessoa que "carrega sua cruz", que busca o sentido e
realiza valores, enfrenta as situações difíceis e amadurece com
essas experiências. "Situações extremas levam o homem tanto a
alcançar a liberdade interior, quanto a maturidade. Elas consti
tuem uma prova de maturidade, um E X P E R I M E N T U M C R U C I S " , 1 3
e conforme a postura que adotamos ("abraçar a cruz" ou "fugir
da cruz") , poderemos (ou não) realizar sentido por meio do
sofrimento. Assim, podemos enfrentar e sofrer com amor, ou
nos desesperar diante das situações difíceis — é simplesmente
uma questão de escolha.
S + S = S = Sofrimento com Sentido = S A C R I F Í C I O .
S - S = D = Sofrimento sem Sentido = D E S E S P E R O .
F r a n k l 1 4 nos ensina que diante do sofrimento, devemos ser
como as árvores em uma floresta: quando a floresta é muito
densa, as árvores não conseguem crescer horizontalmente,
então, crescem para o alto. Podemos aplicar esse conhecimento
na vida: quando passamos por situações difíceis, dores e sofri
mentos, quando nos sentimos limitados ou pressionados pelas
adversidades, é preciso nos lançar para o A L T O ! Corações ao Alto!
Como "ser livre" diante de tantas realidades que não
escolhemos?
Ao pensarmos na liberdade, é preciso considerar a afirma
ção de Bernardo de Claraval, um grande filósofo, estudioso
12 Frankl, 1978, p. 243.
13 Frankl, 1978, p. 241, grifo nosso.
14 Frankl, 1978, p. 239.
O H O M E M E A BUSCA D E SENTIDO
do livre-arbítrio: "a escolha é um primeiro movimento da
liberdade".15 Pela liberdade da vontade, o homem pode escolher
entre "consentir voluntariamente" ou entregar-se ao "apetite
natural", sendo esse último uma característica que o assemelha
aos animais irracionais.
A todo instante, do acordar ao adormecer, escolhemos o que
vamos comer, vestir, estudar, com quem vamos nos relacionar,
quem seremos e escolhemos até mesmo não escolher. A vida é
feita e refeita por meio das escolhas que fazemos! " O homem é
u m ser que sempre decide, e que traz consigo as possibilidades
de descer ao nível do animal, ou se elevar à vida do santo".16
Diante desse grande ensinamento de Frankl , surge outra re
flexão: "Será que estamos sendo H U M A N O S ? " .
A liberdade é uma E X P R E S S Ã O D A N O S S A H U M A N I D A D E , e
coloca-nos existencialmente no lugar onde devemos estar:
"ao nível do santo". Frankl usa desse exemplo para clarificar
nossa compreensão, pois ao consentirmos com essas inclinações
sub-humanas, deixando a impulsividade dominar nossos pensa
mentos e decisões, o que expressamos são reações emocionais:
deixamos de agir com a razão para (re)agir irracionalmente —
"descemos ao nível do animal". Enquanto agirmos de modo
especificamente humano, expressamos maturidade e nossa
existência ganha altura e, consequentemente, nos colocamos
na estatura de "homens" e não de homúnculos.
A boa notícia é que sempre podemos escolher, mesmo
diante das realidades que nos são dadas pela vida: temos u m
nome que não escolhemos, viemos ao mundo em uma família
que não escolhemos, herdamos traços genéticos e temos uma
constituição biopsíquica que não escolhemos, assim como não
escolhemos passar por uma doença ou perder pessoas queridas.
São muitas as realidades que não passam pelo nosso crivo, das
quais, segundo Frankl , não somos "livres de", mas sempre
1 5 Claraval, 2 0 1 3 , p. 1 0 .
16 Frankl, 2019, p. 317.
LOGOTERAPIA E M POUCAS PALAVRAS
somos "livres para", isto é, livres para escolhermos quais ati
tudes tomar diante do que nos foi "dado" pela vida. Ainda
conforme Frankl :
Se quiséssemos definir o h o m e m , teríamos que caracterizá-lo
como o ser que vai se libertando daquilo que o determina
(enquanto tipo determinado biologicamente, psicologica
mente e sociologicamente). N u n c a o h o m e m se confunde
c o m a sua facticidade. E u m ser que decide, porque é s e r - l i
vre ( F r a n k l , 2003 , p. 1 2 1 , grifo nosso).
E como "SER LIVRE" diante daquilo que escolhemos?
Somos livres diante de quaisquer situações, sejam as que nos
agradam, sejam as que não percebemos como boas. Agir de
forma livre diante da vida vai exigir uma aceitação da realidade,
tal como ela se apresenta, pois será necessário deixar de "brigar"
com as circunstâncias e abandonar a mentalidade hedonista que
nos domina e produz uma inculturaçâo de que "ser l ivre" é fazer
tudo o que quero, como quero e na hora que quero. Essa falsa
ideia de liberdade produz um enfraquecimento da vontade e
faz com que as pessoas se acorrentem numa busca exagerada de
satisfação de necessidades, que pode resultar em vazio existencial.
No livre-arbítrio a liberdade se opõe à necessidade: "o
necessário deve ser visto como oposto ao voluntário".17 Para
Frankl , necessidade e liberdade também não estão no mesmo
plano. Ao contrário, a liberdade ultrapassa e se sobrepõe à ne
cessidade. Ainda para Frankl , só há o livre-arbítrio quando o
homem "reage como pessoa espiritual a umfactum psicofísico".18
Para que uma pessoa se mantenha fiel diante de uma decisão
é preciso fortalecer a vontade. O consentimento é o coman
do espontâneo da vontade, e onde há vontade, há liberdade.
A vontade, por sua vez, é o movimento da razão, que coman-
17 Claraval, 2013, p. 34.
18 Frankl, 2019, p. 208.
O H O M E M E A BUSCA D E SENTIDO
da os sentidos e os apetites. Assim, em "livre-arbítrio" temos
" l ivre" , que se refere à vontade, e "arbítrio", que se refere à
razão. "Qualquer coisa que desejamos pela vontade vem acom
panhada da razão." 1 9
Segundo Bernardo de Claraval , 2 0 há uma grande diferença
entre o "não poder fazer" e o "poder não fazer", pois nesse
último está contida a liberdade da vontade, quando a pessoa
escolhe livremente sua atitude diante das situações da vida.
Quando conseguimos educar nossa vontade, surge uma força
moral quenos ajuda a seguir firmes nos propósitos e escolhas
que fazemos na Vida. Dessa forma, chegamos mais perto da
quilo que podemos ser.
É possível, ao homem, viver de maneira autotranscendente?
É próprio da existência humana viver de maneira autotrans
cendente. Conforme os ensinamentos do pai da Logoterapia,
a existência não é somente intencional, mas também transcen
dente. " A autotranscendência é a essência da nossa existência".21
Para compreender melhor essa definição de Viktor Frankl , é
preciso ter claro que aquilo que é "essencial" é imprescindível,
é obrigatório, é fundamental. Assim sendo, pode-se presumir
que não há possibilidade de u m existir propriamente humano
sem a presença da autotranscendência.
Quando falta ao homem a capacidade de sair de si mesmo
e ele se fecha de maneira egoísta nas próprias necessidades,
quando ele se coloca como o centro do universo ou até mesmo
de sua própria existência, buscando apenas seus interesses, sem
u m mínimo movimento de abertura, é possível afirmar que a
existência está se declinando, assumindo u m lugar mais baixo
no podium dos seres viventes. O egoísmo é u m movimento
do psiquismo que invade impulsivamente a alma, solicitando
19 Claraval, 2013, p. 27.
20 Ibid.,p. 13.
21 Frankl, 2011, p. 67.
LOGOTERAPIA EM POUCAS PALAVRAS
que ela se curve diante da busca de si mesma. Essas buscas de
sordenadas de si afastam o ser humano daquilo que é essencial
para uma vida saudável, sã e santa, rebaixando-o a u m nível
sub-humano, assemelhando-se a um animal irracional.
Agir de maneira autotranscendente nos coloca na direção
de realizações e de pessoas a quem podemos dedicar cuidado,
atenção, gestos de carinho e solidariedade. Existem movimentos
existenciais que nos dirigem às necessidades dos outros, que nos
impelem a entregar, através das nossas competências e habilida
des, generosidade ao mundo. Tais "movimentos existenciais"
são provenientes de uma noodinâmica, uma força que gera em
nós a capacidade de renunciar (a nós mesmos) para nos dedicar
a algo ou a alguém, para servir e abrir mão da necessidade de
ser servido, para amar e abrir mão da necessidade de ser amado,
para oferecer e oferecer-se sem esperar nada em troca.
A vida humana tem por essência essa abertura, e tudo
que provoca fechamento aumenta a desumanização. O
contrário também é válido: tudo que eleva o ser humano e o
coloca no lugar que nasceu para ocupar (de P E S S O A ) , devolve a
humanidade ao homem. Joseph Ratzinger, um grande filósofo
do nosso tempo e conhecedor da pessoa humana, identificou
em seus estudos que "é a abertura para o todo e para o in f in i
to que faz com que o ser humano seja humano. O homem é
homem porque se ultrapassa infinitamente a si mesmo, e por
isso, é tanto mais homem, quanto menos fica fechado em s i " . 2 2
Quanto mais autranscendente, mais livre, mais responsável,
mais amável, mais elevado, M A I S H U M A N O !
Existe um caminho para encontrar o SENTIDO-ULTIMO
DA EXISTÊNCIA?
Enquanto pessoas humanas, somos dirigidos para algo que está
fora de nós, e a grande força motivadora da nossa existência é
22 Joseph Ratzinger, Introdução ao cristianismo: preleções sobre o símbolo apostólico.
São Paulo: Herder, 1970, pp. 108-109.
O H O M E M E A BUSCA D E SENTIDO
a vontade de sentido. Essa força nos coloca no caminho da
busca por algo transcendente, que não se pode tocar, comprar
ou guardar. Somos humanos e existe algo material em nossa
constituição que podemos mensurar e sentir. A humanidade
passa pela materialidade, temos um corpo que, embora seja u m
"instrumento de expressão" da nossa pessoa espiritual, apresenta
necessidades que são orgânicas, fisiológicas e basais. Há em nós
u m psiquismo que também apresenta necessidades de afeto e
segurança, que expressa desejos (por vezes inconcebíveis) que
se convertem em sintomas e doenças pelo corpo.
Assim como os instintos que nos impulsionam na busca pela
satisfação de nossas necessidades, estas existem e nos constituem.
A questão é que não estamos limitados a isso. Existe algo nos
seres humanos que clama por realizações mais elevadas (e não
me refiro a voar em balões ou subir em arranha-céus), que
elevam nossa alma àquilo que nos aproxima da nossa essência.
Ao tratar da essência da existência, F r a n k l 2 3 afirma que é pos
sível viver essa abertura de maneira autêntica a partir de ideais
e valores. O autor define valores como "situações universais
de sentido". Ainda que o sentido seja único, assim como as
pessoas, existem situações que são comuns, "que nos levam a
afirmar a existência de sentidos que são partilhados entre os
seres humanos".24 Trabalhar ou praticar uma religião são exem
plos de situações universais de sentido, realidades através das
quais as pessoas se unem para tornar real experiências humanas
que lhes são valiosas, pois tanto o trabalho quanto a religião
oferecem ao homem a possibilidade de se encontrar com o
Sentido da Vida. Conforme Frankl , para trabalhar é preciso
de algumas habilidades e competências pessoais e profissionais
para executar determinadas tarefas, enquanto para viver uma
religião é preciso ter fé.
23 Frankl, 201 l , p . 69.
24 Frankl,201 l , p . 7 3 .
LOGOTERAPIA E M POUCAS PALAVRAS
A Logoterapia não é uma abordagem religiosa, porém Frankl
era u m homem religioso que mantinha u m relacionamento
de intimidade com Deus. Embora médico neuropsiquiatra,
a ciência não lhe cegou a ponto de fazê-lo desconsiderar a
importância da fé na vida humana. Seu doutorado resultou na
obra A presença ignorada de Deus, em que ele detalha estudos
importantes sobre a experiência religiosa e a vivência da rel i
giosidade. Praticar uma religião não apagou a ética e o respeito
à sua profissão, e não fez da sua abordagem uma prática teísta.
Frankl elaborou orientações precisas sobre o tema, tendo em
vista que a Logoterapia tem como finalidade a cura médica
das almas e visa promover saúde mental, enquanto a religião
busca a salvação das almas. Para ele "a logoterapia deve estar
disponível para todo e qualquer paciente, e ser aplicável nas
mãos de qualquer médico, não importando se sua visão de
mundo é teísta ou agnóstica".25
Somos pessoas que buscamos sentido, e o que nos dirige ao
Sentido da Vida é a força que chamamos de vontade de sen
tido. Entretanto Frankl diz que existe u m "Sent ido-Ult imo"
da existência, u m sentido que só pode ser encontrado por
quem acredita na transcendência. Dessa forma, se existe u m
"Sentido-Ultimo", existe uma "vontade de sentido última", que
nos dirige a esse sentido, que Frankl identificou como sendo
a religião. "A religião é especificamente o mais humano de
todos os fenómenos humanos, que é a vontade de sentido. A
religião, de fato, pode ser definida como a realização de uma
vontade de sentido últ ima". 2 6
Para encontrar o Sent ido-Ult imo ou "Suprassentido",
Frankl nos diz que é necessário a experiência da fé. Para ele,
" A fé num sentido último é precedida pela crença em u m
Ser-último: pela crença em Deus" . 2 7 Além disso, afirma que o
25 Frankl, 2011, pp. 178-179.
26 Frankl, 1992, p. 89.
27 Frankl, 201 l,p. 181.
O H O M E M E A BUSCA D E SENTIDO
homem religioso tem mais facilidade de encontrar o sentido
da vida, pois não vivência a existência apenas como tarefa,
mas com vistas à transcendência. Ele se relaciona pessoalmente
com Aquele que o incumbiu da missão e vivência sua missão
pessoal como uma incumbência divina.
O Sentido-Ultimo escapa totalmente a uma mera compreen
são intelectual; o conhecimento não pode levar o homem a tal
resposta, pois, para isso, precisa da fé. "Podemos não conhecer
esse suprassentido, mas é preciso acreditar nele".28
Em poucas palavras...
Somos capazes de compreender a existência e encontrar o Sen
tido da Vida mesmo sem o conhecimento da teoria frankliana.
Podemoschegar a ser quem devemos ser sem passar por processos
terapêuticos infindáveis ou nos graduar para isso. Existe uma
"sabedoria do coração" que nos ajuda a captar as possibilidades
de realização de sentido e cumprir o que a vida espera de nós,
seja por meio de u m trabalho que realizamos, seja através do
amor que experimentamos quando nos permitimos encontrar
com outras pessoas, ou ainda quando precisamos encontrar
em nós forças para enfrentar as dificuldades e desafios da vida,
pois viver é exigente!!!
Certa vez, Frankl disse que a experiência de encontro com
o Sentido da Vida pode acontecer até mesmo por meio da
leitura de um livro — e aqui temos um livro. Temos, ainda,
o legado de uma vida que enfrentou o sofrimento, que foi fiel
aos chamados, que viveu, amou e cumpriu sua missão com
responsabilidade, que cuidou das pessoas, e nos ensinou a
cuidar também. Que se encontrou com o Sentido e nos ajuda
a encontrar também!
U m a das grandes riquezas da antropologia frankliana é que
ela é uma abordagem de V I D A , acessível a todos que se deixam
"encontrar" por ela e que se colocam em busca da felicidade
28 Frankl, 2010, p. 63.
LOGOTERAPIA E M POUCAS PALAVRAS
verdadeira. A Logoterapia é uma abordagem otimista e realista,
e seu criador foi u m homem que trabalhou incessantemente
para que tivéssemos acesso a esses conhecimentos e pudéssemos
dispor desse grande legado na realização da nossa missão.
Que esse T R A T A D O D E H U M A N I D A D E , O legado que Viktor
Frankl deixou ao mundo por meio da Logoterapia e da Análise
Existencial, ajude a elevar sua compreensão sobre a P E S S O A
H U M A N A . Mais que um mistério a ser desvendado, é uma obra
a ser contemplada e que pode ser vista por todos, a partir da
nossa existência, da nossa V I D A !
M I L E N A C A R O L I N A B O C C H I D E C A S T R O 2 9
Referências
C L A R A V A L , S. B . Opúsculo sobre o livre-arbítrio. Campinas: E c -
clesiae, 2013.
F R A N K L , V. E . A vontade de sentido: fundamentos e aplicações da
logoterapia. São Paulo: Paulus, 2011.
. A presença ignorada de Deus. São Leopoldo: Sinodal;
Vozes: 1992.
. O que não está escrito nos meus livros. São Paulo: E R e
alizações, 2010.
. O sofrimento humano: fundamentos antropológicos da psi
coterapia. São Paulo: E Realizações, 2019.
. Psicoterapia e existencialismo: textos selecionados em logo
terapia. São Paulo: E Realizações, 2020.
29 Milena Carolina Bocchi Castro é psicóloga, especialista em Logoterapia e
Análise Existencial frankliana, pela Universidade Católica D o m Bosco
(UCDB/MS) e em psicologia hospitalar e da saúde, pelo Centro de Estudos
e Pesquisa em Psicologia e Saúde (CEPPS/SP) . Trabalha com a Logoterapia
aplicada à formação humana e académica, como professora em cursos de pós-
-graduação no Centro Universitário Católico Italo-Brasileiro (UNIÍTALO/SP) e
Instituto EM ROTA, e com supervisão (individual e em grupos) em Logoterapia
clínica e Análise Existencial.
O H O M E M E A BUSCA D E SENTIDO
. Psicoterapia e sentido da vida. São Paulo: Quadrante, 2003.
R A T Z I N G E R , J . Introdução ao cristianismo: preleções sobre o símbolo
apostólico. São Paulo: Herder, 1970.
I 20
A P Ê N D I C E
Perguntas e respostas1
121
Pergunta: C o m o o h o m e m trabalha para a autotrans
cendência, em contraste c o m a autorrealização?
Resposta: Não desejo rebaixar o conceito de autorrealização.
Mantenho contato com Abraham Maslow e admiro-o muito.
Ambos concordamos que a autorrealização é algo excelente. No
entanto, a autorrealização só pode ser obtida na medida em que
um homem cumpre o sentido de sua vida, realiza o sentido único
de cada situação única da vida. Então, a autorrealização ocorre
de modo automático e espontâneo, por assim dizer, enquanto
seria destruída se tentássemos obtê-la diretamente, por meio da
intenção direta. A autorrealização depende do cumprimento de
um sentido, sendo um efeito deste, não um objetivo.
Pergunta: O senhor diz que o sentido é inerente a u m a
situação e, portanto, distinto dos valores?
Resposta: E u diria que os valores são sentidos universais e, por
serem sentidos gerais, aliviam a condição humana. Orientados
por valores universais, não somos obrigados a tomar decisões
1 Extraído de Frankl, A falta de sentido: Um desafio para a psicoterapia e a filosofia.
Campinas, SP: Auster, 2021.
O H O M E M E A BUSCA D E SENTIDO
existenciais o tempo todo. E m última análise, o homem está
encontrando e cumprindo sentidos, guiado — e às vezes também
desencaminhado — por sua consciência finita. A consciência é
criativa, na medida em que um homem pode descobrir que o
sentido revelado pela consciência contradiz quaisquer valores
gerais ou universais. Então ele cria u m novo valor, porque o
sentido descoberto por meio da consciência criativa de hoje
torna-se o valor universal de amanhã.
Pergunta: Seu conceito de sentido por meio do sofri
mento não dá origem ao risco de masoquismo?
Resposta: Não há risco de masoquismo, porque o senti
do — o sentido potencial — só pode ser obtido mediante o
sofrimento indispensável, inescapável e inevitável. Carregar
desnecessariamente a cruz do sofrimento no caso de um câncer
operável, quando o alívio da dor está disponível, não constitui
u m sentido. Isso seria puro masoquismo, não heroísmo. A me
lhor diferenciação que encontrei entre sofrimento inevitável
e necessário — que pode ser transformado em uma conquista
significativa — por um lado, e sofrimento evitável e desne
cessário — que não produz nenhum sentido — , por outro, foi
em u m anúncio de u m jornal de Nova York. O anúncio estava
escrito em alemão, mas u m amigo americano o traduziu para o
inglês. Redigido em forma de poema, o texto dizia o seguinte:
Aguente, com calma, sem desatino,
aquilo que à alma impôs o destino.
O u seja, o sofrimento inevitável deve ser suportado com
coragem e, portanto, transformado em uma conquista humana
heróica:
Aguente, com calma, sem desatino,
aquilo que à alma impôs o destino,
Mas nos percevejos dê uma lição:
Peça ajuda ao Sr. Simão.
PERGUNTAS E RESPOSTAS
Pergunta: Sua visão da dimensão noológica não implica
que o psiquiatra não seja competente para administrar
a terapia existencial na dimensão noológica?
Resposta: Não é verdade. A tarefa atribuída aos psiquiatras é
tornar um sintoma clínico transparente em relação à dimensão
superior, a dimensão intrinsecamente humana e, portanto, é
tarefa do psiquiatra tratar a neurose noogênica. Particularmente,
essa é a missão dele numa época como a nossa, em que, como
diz o famoso psiquiatra católico alemão, Viktor von Gebsattel,
os homens estão migrando do padre, pastor e do rabino para
o psiquiatra. O psiquiatra de hoje tem a missão de substituir
o sacerdócio, desempenhando o papel de "médico sacerdote".
Ninguém pode dizer: "Essas pessoas estão com problemas
existenciais, filosóficos ou espirituais; não queremos lidar com
esse tipo de problema. Melhor elas procurarem um padre. Se
não forem religiosas, não é problema meu". Essas pessoas vêm
nos procurar e temos que dar tudo de nós. Não se trata de uma
convicção pessoal. Há até um parágrafo na constituição da maior
associação médica do mundo, a Associação Médica Americana,
que afirma que um médico, quando não é capaz de curar u m
paciente ou mesmo trazer alívio à sua dor, tem o direito e até
a obrigação de tentar oferecer algum consolo. Portanto, essa
área ainda pertence ao domínio da profissão médica.
Pergunta: Duas pessoas perguntaram se eu tive contato
c o m o rabino Leo Baeck.
Resposta: Conheci o Rabino Leo Baeck em u m campo de
concentração. Foi mais do que u m contato; foi um verdadeiro
encontro. A partir daí, mantive contato próximo com ele. O
rabino foi convidado a escrever um capítulo sobre os limites
entre o judaísmo e a psicoterapia numa enciclopédia de teoriada
neurose e psicoterapia, de cinco volumes, que editei com V. E .
von Gebsattel e J . H . Schultz, de Ber l im. Enquanto trabalhava
no manuscrito, o Rabino Baeck veio a falecer em Londres e,
portanto, não pôde completar sua tarefa.
O H O M E M E A BUSCA D E SENTIDO
Pergunta: Existe u m lugar para a religião em sua teoria?
Resposta: Não pode haver lugar para a religião numa escola
ou teoria psiquiátrica, precisamente por causa da diferença de
dimensão. A única coisa que pode ser exigida de uma abordagem
psiquiátrica é que ela seja deixada aberta para uma dimensão
superior. A psiquiatria não é u m sistema fechado. A psiquiatria
deve permanecer aberta, para que não seja feita uma injustiça
com o paciente religioso, que deve ser compreendido em
termos intrinsecamente humanos, em vez de se tornar vítima
de uma abordagem reducionista da neurose e da psicoterapia.
Se não por outro motivo, o Juramento de Hipócrates, que
tive que fazer quando tirei o diploma de médico, obriga-me a
disponibilizar a Logoterapia para todos os pacientes, incluindo
o paciente agnóstico, e para todos os médicos, inclusive o mé
dico ateu. A psicoterapia pertence à medicina, pelo menos de
acordo com a legislação austríaca, de modo que o Juramento
de Hipócrates é aplicável à psicoterapia, incluindo a Logote
rapia. Portanto, devo estar disponível para todo e qualquer ser
humano em sofrimento.
Pergunta: O senhor acredita que o h o m e m pode su
perar o desespero sem u m Deus ou u m a orientação
religiosa pessoal?
Resposta: Aquilo em que eu pessoalmente acredito não
importa. E u falo em nome de uma escola chamada Logotera
pia, a qual defendo. A Logoterapia busca saber, não acreditar.
A decisão final, a decisão mais pessoal a favor ou contra uma
Weltanschauung ou filosofia de vida religiosa, cabe ao paciente,
não ao médico. A Logoterapia não tem as respostas, mas é uma
educação para a responsabilidade, e, portanto, o logoterapeuta
não corre o perigo — como em todas as escolas psiquiátricas
— de tirar a responsabilidade dos ombros do paciente por tal
decisão. Ele tentará fazer com que o paciente tome uma decisão
por conta própria.
PERGUNTAS E RESPOSTAS
Pergunta: C o m o o senhor explica o conceito de Deus?
Resposta: Evidentemente, como logoterapeuta, como psiquia
tra, não posso explicar. E seria muito arriscado tentar explicá-lo.
U m exemplo apropriado foi dado por Sigmund Freud em uma
carta endereçada ao grande e famoso psiquiatra suíço, Ludwig
Binswanger, criador da Daseinsanalyse. Freud disse que, durante
toda a sua vida, restringiu sua visão ao porão e ao térreo do
edifício, ou seja, a uma dimensão inferior. Essa imagem não tem
nada de degradante, pois não implica nenhum julgamento de
valor. Trata-se apenas de envolver e "humanizar" a dimensão
menos inclusiva ao adicionar a dimensão intrinsecamente h u
mana. Portanto, Freud estava ciente da limitação de sua visão,
e não foi reducionista ao dizê-lo. E le só se tornou vítima do
reducionismo de sua época quando continuou sua primeira
frase, dizendo: "Creio também que encontrei u m lugar para a
religião nesse edifício, nesse porão, ao dispor dela em termos dé
uma neurose coletiva da humanidade". Nesse único momento,
mesmo um génio como Freud não pôde resistir totalmente à
tentação do reducionismo.
Pergunta: O senhor queria que seu últ imo símbolo
fosse uma cruz?
Resposta: Não sei se você sabe, mas não sou cristão. Este
diagrama, por acaso, é em cruz, mas não me importo que seja
uma cruz. E , além disso, visto em termos de ensinamentos
ontológicos dimensionais, eu teria que dizer que, numa d i
mensão superior, esse "acaso" da cruz pode ter um sentido
mais profundo ou superior.
Pergunta: C o m o o senhor neutraliza o vazio existencial?
C o m o o senhor dá u m sentido ao paciente?
Resposta: Apesar de minha insistência em que não damos sen
tido, devemos conduzir o paciente ao ponto em que ele encontre
o sentido por si mesmo, porque o sentido deve ser encontrado,
não dado. Não damos sentido, nem atribuímos sentido às coisas
ou acontecimentos, como se a realidade fosse apenas u m teste
O H O M E M E A BUSCA D E SENTIDO
projetivo. A realidade não é uma tela neutra sobre a qual proje-
tamos nossos pensamentos baseados no desejo ou expressamos
nossa constituição interior ao atribuir.sentidos. Não podemos
dar sentidos de uma forma arbitrária. Dar sentidos é como dar
respostas. E m última análise, existe apenas uma resposta para
cada pergunta, apenas uma solução para cada problema e, da
mesma forma, apenas u m sentido para cada situação, o sentido
correto, o sentido verdadeiro. A realidade não é uma mancha
de Rorschach, na qual projetamos nossos desejos como forma
de expressão, mas sim uma figura oculta, cujo sentido deve
mos descobrir. Af irmei que dar sentidos é como dar respostas.
Gostaria de explicar essa ideia contando algo que aconteceu
há alguns anos num campus teológico. Os presentes na plateia
receberam cartões, onde deveriam escrever suas perguntas em
letra grande de imprensa. U m teólogo recolheu os cartões e,
ao passá-los para m i m , retirou u m deles do maço. Perguntei
por quê. E le explicou:
— É uma pergunta absurda. Veja: " D r . Frankl , como o
senhor interpreta 600 em sua teoria da existência?".
Olhei para ele e disse:
— Desculpe-me, eu l i de uma maneira diferente: " D r .
Frankl , como o senhor interpreta G O D [Deus] em sua teoria
da existência?".
Eis um teste projetivo não intencional, não concordam?
Afinal , o teólogo leu "600" e o neurologista leu " G O D " . F iz u m
slide com esse exemplo e utilizei-o como teste projetivo com
meus alunos americanos na Universidade de Viena. Mostrei-lhes
o slide e pedi-lhes que votassem no sentido correto. Por incrível
que pareça, nove alunos disseram " G O D " , outros nove disseram
"600" e quatro alunos oscilaram entre as duas interpretações.
O que desejo transmitir a vocês? Que apenas uma interpre
tação da pergunta era correta: a forma como eu a entendi. E
o que isso significa? Que cada situação da vida envolve uma
pergunta, u m chamado; e devemos tentar descobrir seu senti
do. Agora vocês podem entender como chego à definição de
PERGUNTAS E RESPOSTAS
sentido. Sentido é aquilo que entendemos quer pelo homem que
questiona, quer pela vida que levanta questões incessantemente:
questões existenciais, a serem respondidas existencialmente
por meio da tomada de decisões. Essas decisões, contudo,
não podem ser tomadas de modo arbitrário, pois é necessário
haver responsabilidade. O u seja, nossa resposta é u m chamado
da vida ou daquela entidade suprapessoal chamada Deus, que
está por trás da vida fazendo perguntas. Nossa resposta deve
ser u m ato existencial responsável; nossa resposta é ação, não
intelecto ou razão.
Pergunta: Q u a l é a sua solução para acabar com o vazio
existencial e como ela se relaciona c o m o sentimento
religioso?
Resposta: Falei de sentidos a serem encontrados e afirmei
claramente que o sentido não é algo que pode ser dado à vida
do paciente, muito menos por u m médico. Há pouco tempo,
Redl ich e Friedman publicaram u m livro no qual, infelizmen
te, eles rejeitam a Logoterapia, dizendo que se trata de uma
tentativa de dar sentidos aos pacientes. Como vocês podem
ver, ninguém está isento de ser mal interpretado, mesmo por
pessoas que recebem cópias de seus escritos durante anos, nas
quais se lê: " O sentido não pode ser dado; o sentido não deve
ser dado por u m médico; o sentido deve ser encontrado pelo
próprio paciente". Se vocês acham que foi u m logoterapeuta
que afirmou ter as respostas prontas, estão enganados. Não
foi u m logoterapeuta, mas uma serpente no Paraíso que disse:
" E u digo às pessoas o que é errado e o que é certo, o que tem
sentido e o que não tem sentido".
E m suma: o que deve ser feito por u m jovem, por exemplo,de suicídio — que
crescia assustadoramente — chegou a zero.
A magnânima iniciativa deste jovem médico teve tão grande
êxito, que outros lugares da Europa — os quais, assim como
Viena, sofriam as consequências do vazio existencial e u m
aumento da taxa de suicídios — adotaram o mesmo modo de
intervenção terapêutica. Cidades como Praga, Zurique, Berl im,
Frankfurt, e autoridades de países como Hungria, Polónia,
Iugoslávia e Lituânia entraram em contato para que Frankl
pudesse expandir seus centros de aconselhamento pela Europa.
A quantidade de casos atendidos e a experiência acumulada
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Conjunto de pensamentos recorrentes
O H O M E M E A BUSCA D E SENTIDO
nestes anos preparam o jovem psicólogo para as grandes missões
que vir iam pela frente.
Aos 25 anos, em 1930, Frankl terminou o curso de me
dicina e, em 1936, recebeu sua dupla titulação, tornando-se
especialista em neurologia e em psiquiatria pela Universidade
de Medicina de Viena.
Assumiu, em 1940, a direção da clínica neurológica do Hos
pital Rotschild, instituição mantida pela comunidade judaica do
país, na qual permaneceu por três anos, não poupando esforços
para desenvolver sua metodologia de trabalho. Acompanhou
de perto cada um dos 12 m i l pacientes que, ao longo destes
três anos, deram entrada em seu departamento. Foram anos de
uma altíssima dedicação ao trabalho, numa carga horária da
ordem do incomensurável, tendo Frankl morado no hospital
durante boa parte do tempo em que ali atuou. Nesta função,
atendia mulheres com tendências suicidas ou que já haviam
atentado contra suas próprias vidas.
Vale destacar que, nesse mesmo período, Frankl conse
guiu salvar a vida de muitos judeus, pacientes cujos diag
nósticos ele alterava, fazendo-os deixar de ser considerados
"incuráveis" e, assim, impedindo que fossem mandados a
campos de concentração nos quais seriam exterminados. Ele
e seu amigo Potzel desconsideravam as cláusulas processuais
impostas no hospital pelas autoridades nazistas de tal modo
que acabavam por sabotar a eutanásia dos doentes mentais,
assinando atestados médicos em que classificavam de afasia,2
por exemplo, a esquizofrenia e a melancolia. Deste modo,
em vez de caminharem para a morte, estes pacientes eram
direcionados para o asilo — local que havia sido destinado
para estes tratamentos ambulatoriais.
2 Afasia é uma disfunção que faz com que o paciente tenha dificuldade de se
comunicar adequadamente. A capacidade de expressão do paciente é afetada,
passando a ter dificuldades de ler, escrever, falar, compreender ou repetir a
linguagem.
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Lápis
U M H O M E M E M BUSCA D E S E N T I D O : V I D A E OBRA D E VIKTOR FRANKL
Entre o dever e o destino
Apesar das perseguições e leis discriminatórias que, desde 1938,
a comunidade judaica da Áustria vinha sofrendo duramente,
Frankl casou-se em 1941 com a bela T i l l y Grosser, enfermeira
que conquistou seu coração nos corredores do hospital em que
trabalhavam. Tiveram, porém, de se casar às pressas pois o ca
samento entre judeus logo seria definitivamente proibido em
todo o território austríaco, então anexado ao Terceiro Re ich .
É fato documental que T i l l y e Frankl foram os últimos judeus
a se casarem num cartório em Viena.
Ainda em 1941, a Frankl foi concedido um visto para sair
de Viena e fugir para os EUA. Viu-se diante da oportunidade
de abandonar a Áustria num momento de guerra, caos e per
seguição a seu povo, e de inúmeros convites para ensinar em
universidades estrangeiras. A possibilidade de fugir não fez
senão pôr dúvidas morais em sua cabeça: aceitar a proposta
corresponderia a abandonar seus pais, seu trabalho e os muitos
pacientes que dele dependiam. No entanto, a escolha que, para
a maioria, parecia óbvia, para Frankl se tornou um motivo de
sofrimento a mais, colocando-o num impasse terrível. Af ina l ,
não podia ele simplesmente fugir, salvar a própria pele e deixar
tudo aquilo para trás.
Dois motivos, então, o convenceram de que o melhor a
se fazer era permanecer em Viena. O primeiro foi u m sonho
profético que tivera: v i u uma fila de pacientes psicóticos se
encaminhando para uma câmara de gás. Visão esta que o fez
sentir uma profunda compaixão, capaz de levá-lo a unir-se
a elas para lhes oferecer todo o apoio mental necessário, algo
incomparavelmente mais dotado de sentido, nas palavras de
Frankl , do que ser apenas mais um psiquiatra em Manhattan.
O segundo motivo está atrelado à seguinte dúvida: devia
ele sacrificar a família pela causa à qual havia se dedicado toda
a vida, ou devia sacrificar a causa em prol de seus pais? Diante
desse impasse, entrou na catedral de Santo Estevão em busca
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Segunda Guerra Mundial - 1 de set. de 1939 – 2 de set. de 1945
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Entre 11 e 13 de março de 1938, a Alemanha nazista anexou o país vizinho, a Áustria. Este evento ficou conhecido como a Anschluss.
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O H O M E M E A BUSCA D E SENTIDO
de uma resposta divina. Ao sair, caminhou até a casa de seus
pais, onde se deparou com u m pedaço de mármore sobre o
aparelho de rádio. Pegou-o na mão, sentiu ligeira estranheza e
perguntou o que era aquilo. O pai lhe respondeu que era parte
da tábua que continha os Dez Mandamentos, recolhida por ele
mesmo dentre os escombros da sinagoga de Viena, que havia
acabado de ser posta abaixo pelos nazistas. Na pedra, havia
uma letra gravada em hebraico, letra esta presente apenas no
quarto mandamento: "Honra a teu pai e a tua mãe e tu estarás
na terra prometida".3 Isto bastou para que Frankl decidisse ficar
em sua terra natal, deixando caducar o passaporte americano.
O discernimento havia chegado ao f im, pois em seu peito
agora habitava uma certeza, que fora vivida até suas últimas
consequências e coroada com as mais doces promessas divinas.
Tragédia e esperança
E m 1942, Viktor Frankl e seus familiares foram conduzidos
como prisioneiros para o gueto de Theresiendt, na então Tche-
coslováquia. Neste primeiro campo de trabalho forçado, Frankl
assistiria ao falecimento de Gabriel, seu pai, acompanhando-o
em seus últimos momentos de vida e confortando-o em seu
leito de morte. Gabriel morreu de pneumonia, agravada pela
fome, aos 81 anos. C o m esse acontecimento, F r a n k l teve
pela primeira vez aquela sensação que o psicólogo americano
Abraham Maslow chamaria de "experiência culminante". Ele
havia feito sua parte e ficado com o pai até o último momento.
Cumpriu-se assim o quarto mandamento, em seu sentido mais
profundo, pleno e perfeito.
E m Theresienstadt, Frankl foi designado para a seção de
cuidados ambulatoriais e, juntamente com Leo Baeck, u m fa
moso rabino reformista alemão, iniciaram um ciclo de palestras
e sermões com o intuito de levantar o ânimo e encorajar os
prisioneiros. Podemos encontrar num dos cartões de anúncio das
3 E x 20,12.
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U M H O M E M E M BUSCA D E S E N T I D O : V I D A E OBRA D E V I K T O R FRANKL
palestras de Frankl , preservado até os dias atuais, uma anotação
com os seguintes dizeres:que não consegue ver nenhum sentido na vida, pelo menos
não imediatamente? Ele deve estar ciente de que essa condição
chamada vazio existencial não é um sintoma neurótico. E m
vez de ser motivo de vergonha, é um motivo de orgulho, uma
conquista humana. E , sobretudo, uma prerrogativa dos jovens
O H O M E M E A BUSCA D E SENTIDO
não admitir como natural a existência de u m sentido inerente à
vida, mas antes esforçar-se, aventurar-se, questionar e desafiar
o problema do sentido da existência. E uma conquista da qual
devemos nos orgulhar, não uma neurose da qual devemos nos
envergonhar. Se for uma neurose, é uma neurose coletiva,
uma neurose da humanidade. Mas se o jovem tem a coragem
de fazer tais perguntas, ele também deve ter a paciência para
esperar o sentido aparecer. E até esse momento, se ele cair no
vazio existencial, esse sentimento abismal — essa experiência
de abismo, em alusão à experiência do penhasco, tão l inda
mente elaborada por Abraham Maslow — , se necessário, ele
deve dizer a si mesmo: "Esta terrível experiência é exatamente
o que Jean-Paul Sartre descreve tão belamente em sua obra
O ser e o nada". Dessa forma, ele consegue colocar distância
entre essa terrível experiência e ele mesmo. Exis tem dois
fatores principais que caracterizam e constituem a existência
humana. O primeiro é a autotranscendência, o fato de que o
homem está sempre indo para além de si mesmo, buscando u m
sentido a cumprir, outros seres a encontrar. O segundo fator é
o autodistanciamento, a capacidade intrinsecamente humana
de elevar-se acima do nível dos dados somáticos e psíquicos,
acima do plano em que u m animal se move e ao qual ele está
ligado. O homem não é totalmente livre; o homem não está
livre de condicionantes. A liberdade do homem é uma liberdade
finita, não uma liberdade isenta de condições; sua liberdade
reside na possibilidade de posicionar-se como quiser em relação
a quaisquer condições que possam surgir.
Quando o Prof. Huston C . Smith me entrevistou sobre essa
questão da liberdade humana, eu disse:
— O homem é determinado, mas não é pandeterminado.
Então, o Prof. Smith disse:
— D r . Frankl , o senhor, como professor de neurologia e
psiquiatria, certamente está ciente de que existem fatores e
condicionantes aos quais o homem está vinculado.
Respondi:
PERGUNTAS E RESPOSTAS
— B e m , Dr . Smith, o senhor está certo. Sou neurologista e
psiquiatra e, como tal, sei que o homem está, em grande parte,
condicionado, sujeito a condições biológicas, psicológicas e
sociológicas. Mas além de atuar em dois campos — neurologia
e psiquiatria — , também sobrevivi a outros quatro campos
— de concentração —, o que me permite testemunhar que o
homem, por incrível que pareça, também é capaz de superar
mesmo as piores condições, inclusive aquelas de um campo
como o de Auschwitz.
Palestra proferida em 30 de junho de 1966 no Auditório
Horace Mann da Universidade de Columbia, patrocinada
pelo Centro Internacional de Estudos Integrados.
A P Ê N D I C E
Bibliografia comentada de
Vik to r Fran k l1
í . Em busca de sentido
Esse livro é essencial para conhecer a Logoterapia, uma vez
que a abordagem frankliana não se desvincula da vida do au
tor. Escrito logo após o f im da Segunda Guerra Mundial , Em
busca de sentido retrata as experiências de Viktor Frankl como
prisioneiro nos campos de concentração. O autor validou na sua
própria vida as forças especificamente humanas provenientes
da dimensão noética, dentre elas a liberdade interior, pois em
uma realidade em que lhe tiraram tudo, só lhe restou a sua
existência ("nua e crua") e a certeza de que a vida esperava algo
dele no futuro. U m a verdadeira lição de liberdade e esperança
diante do sofrimento, e uma certeza: é possível dizer " S I M À
V I D A , A P E S A R D E T U D O " .
1 Gentilmente elaborada pela Professora Milena Carolina Bocchi de Castro.
O H O M E M E A BUSCA D E SENTIDO
2. O que não está escrito nos meus livros — Memórias
Por meio desse livro, Viktor Frankl eternizou pontos impor
tantes da sua história, experiências valorosas que não estão
contidas em outras obras. Relata de forma madura detalhes da
sua infância, a relação com sua família, com os amigos, com a fé
e com a medicina. O livro foi escrito na comemoração dos seus
90 anos — e nos faz caminhar pela vida desse homem que foi
fiel aos seus valores e a sua missão. É uma leitura fluida e com
capítulos curtos, que enfatizam as vivências do autor mais do
que promovem fundamentação teórica e conceituações. U m a
autobiografia narrada de forma madura, consciente e presente.
No auge dos seus 90 anos, Frankl nos apresenta a beleza de se
fazer história em todas as fases da vida.
3. Sobre o sentido da vida
O livro ressalta o sentido e o valor incondicional da vida e os
muitos sofrimentos vivenciados por Frankl como prisioneiro
nos campos de concentração. E le chamou essas vivências
permeadas por dores físicas e psíquicas de experimentum crucis.
E m uma época em que o mundo precisava de reconstrução
material e espiritual e os homens precisavam se reconhecer
livres novamente, Frankl propõe alguns recursos espirituais,
como A L I B E R D A D E , A R E S P O N S A B I L I D A D E E A E S P E R A N Ç A , para
resgatar a Humanidade dos homens.
4. A vontade de sentido — Fundamentos e aplicações da
logoterapia
U m a das obras mais didáticas e bem fundamentadas da an
tropologia frankliana! Apresenta com clareza os conceitos da
Análise Existencial: liberdade da vontade, vontade de sentido,
sentido da vida, autotrancendência, ontologia dimensional,
consciência. Encontramos também explicações sobre as téc
nicas da Logoterapia e suas aplicações, pois Frankl ilustra os
BI BLI O G RA F I A COMENTADA D E V I KT O R FRANKL
ensinamentos com vários casos dos seus pacientes. Traz uma
compreensão importante sobre o lugar da Logoterapia entre as
outras abordagens e o papel do logoterapeuta. U m livro prático,
orientado à prática clínica da Logoterapia e aos atendimentos
pela Análise Existencial.
5 . O sofrimento humano — Fundamentos antropológicos
da psicoterapia
Nessa obra Viktor Frankl apresenta o ser humano a partir do
que é mais especificamente humano: a liberdade, a responsa
bilidade, a busca pelo sentido e a possibilidade de encontrar-se
com o sentido último da existência. O livro é uma reedição
do título Fundamentos antropológicos da psicoterapia e u m verda
deiro compêndio de espiritualidade, em que Frankl define
"quem é o homem", qual sua essência, sua potência e suas
buscas existenciais. Nos últimos capítulos, encontram-se as
mais belas compreensões sobre o sofrimento humano, além de
aprendermos sobre a força de resistência do espírito humano e
sobre ampliarmos nossos conhecimentos sobre as capacidades
de sofrer e amar. Além disso, há um belíssimo encontro com
o homo-paties e com a sua humanidade, a f im de ajudar muitas
pessoas a enfrentarem as adversidades da vida.
6. Psicoterapia e sentido da vida
Esse livro é conhecido como a "Bíblia" da Logoterapia. E exce
lente para que possamos compreender e contemplar de maneira
geral a obra frankliana. O primeiro manuscrito se perdeu no
campo de concentração, mas quando obteve sua liberdade,
Frankl dedicou-se novamente a escrever essa riqueza que alcança
tantas vidas, revelando a presença do sentido. Frankl apresenta
de forma muito concisa o sentido do trabalho, o sentido do
sofrimento e o sentido do amor. E um livro completo que
descreve a Logoterapia desde as motivações iniciais do autor
até as questões atuais que levam a humanidade a se afastar do
O H O M E M E A BUSCA D E SENTIDO
sentido e buscar o prazer, a se afastar da felicidade por pequenos
momentos de satisfação. Apresenta a cura médica das almas e
muitos outros pontos fundamentais para a formação teórica e
prática do logoterapeuta.7. A vontade de sentido: Conferências escolhidas sobre
Logoterapia
Essa obra é necessária para a compreensão da visão antropológica
de Frankl , pois nos contempla com o texto As dez teses sobre
a pessoa humana, além de trazer outras conferências proferidas
pelo autor na sua peregrinação pela expansão da Logoterapia.
Trabalha a questão da temporalidade e da transitoriedade da
vida, e oferece-nos uma excelente visão sobre os fundamen
tos da Análise Existencial para a compreensão das questões
especificamente humanas e sua relação com as patologias da
nossa época.
8. Um sentido para a vida — Psicoterapia e humanismo
Nesta obra, Frankl trabalhou a aplicação da Logoterapia em
diversas áreas do conhecimento, e trouxe uma novidade que
é a aplicação da sua abordagem nos esportes. Trouxe também
alguns relatos de atendimentos clínicos, uma compreensão do
cenário atual (visão de mundo) e uma certeza: uma grande
convocação à responsabilidade.
9. Teoria e terapia das neuroses
U m a leitura obrigatória para os profissionais que desejam tra
balhar na área da saúde e que já tenham certo conhecimento
da teoria frankliana. O autor entrega-nos, por meio desse livro,
sua visão médica acerca das neuroses, psicoses e orienta muito
a postura do profissional diante do seu paciente. A leitura é
complexa, permeada de termos específicos da Medicina, e
exige u m certo conhecimento dos funcionamentos biológicos
BIBLIOGRAFIA COMENTADA D E V I K T O R FRANKL
e psíquicos do corpo humano. Nele Frankl também vai nos
apresentar seu "credo psiquiátrico", que professa u m olhar h u
manizado para o tratamento, e atesta que o valor da sua prática
profissional, enquanto médico, não está em tratar doenças, mas
sim em cuidar das pessoas que adoecem!
10. A presença ignorada de Deus
U m livro que nos coloca diante de realidades transcendentes,
uma vez que para Frankl a verdadeira profundidade está nas
alturas. Ele experimentou na vida a dimensão religiosa, i n
telectual, artística e trouxe a noção de transcendência. Além
disso, nessa leitura você vai conhecer alguns valores de Viktor
Frankl , que desde sempre elencou a dignidade da pessoa h u
mana em primeiro lugar, assim como a religiosidade, a fé e o
encontro com o Sentido último da existência. Frankl diferen
ciou de forma muito clara o papel da psicoterapia e o papel da
religião, e mesmo que a pessoa não professe uma religião ou
não acredite em Deus, ela pode se encontrar com o Sentido.
O Sentido existe e está para ser encontrado! Deus existe, e se
deixa encontrar, mesmo que ignorado. Essa leitura vai elevar
sua compreensão sobre as realidades humanas transcendentes!
11. A falta de sentido: Um desafio para a psicoterapia e a
filosofa
U m dos grandes sofrimentos enfrentados no nosso tempo é o
vazio existencial que provém da falta de sentido. As pessoas
passaram a buscar cada vez mais o prazer e se escravizaram
nas pequenas satisfações da vida. Esse movimento de busca é
divergente do movimento próprio da nossa existência, uma
vez que que Frankl nos ensinou que devemos buscar o sentido,
e como resultado dessa busca, encontramos a realização e a
felicidade. Nessa obra, Frankl nos apresenta a realidade acerca
das frustrações existenciais e dos sofrimentos que são provo
cados pelo próprio homem quando ao invés de se dirigir ao
O H O M E M E A BUSCA D E S EN T I D O
sentido, busca a satisfação por si mesma. Além disso, apresenta
as consequências dessas buscas ensimesmadas que culminam
nas neuroses coletivas da atualidade.
Obras sobre Viktor Frankl:
1. O mínimo sobre Viktor Frankl (Luis Enrique Paulino Carmelo)
A partir deste livro temos o olhar de u m especialista sobre
a vida de Viktor Frankl . Interessante observar que no prefácio
do livro O que não está escrito em meus livros podemos refletir
sobre u m ensinamento do próprio Frankl , que nos convoca à
responsabilidade quando diz que mais importante do que es
crever u m livro, é "viver uma vida, a qual se possa contar num
livro" . Eis aqui a missão do professor Luis Enrique: contar-nos
um pouco dessa vida inenarrável que foi a vida do pai da L o
goterapia, uma vida digna de ser contada, lida e imitada!
2. Tratado de logoterapia e análise existencial: Filosofia e sentido da
vida na obra de Viktor Frankl (Ivo Studart Pereira)
Eis uma leitura que apresenta muito bem o T R A T A D O D E
H U M A N I D A D E de Viktor Frankl , e que, por contemplar com
tamanha maestria os principais conceitos e fundamentos da
obra, foi nomeada com o melhor título que poderia ter. Dr .
Ivo Studart foi impecável ao reunir na sua obra ensinamentos
contidos em diversos livros de Frankl . Isso ajuda o leitor a
avançar no conhecimento e compreensão da Logoterapia de
uma forma íntegra. Além da exímia fundamentação, o autor
fez uma contextualização histórica importante, situando a L o
goterapia no universo das abordagens existentes. Dr . Ivo apre
sentou, à luz da filosofia, a antropologia frankliana e elucidou
as relações do homem consigo mesmo, com o mundo e com
a transcendência. U m verdadeiro tesouro em forma de livro!
"É in egável que todos n ós, com u ma cer ta
frequên cia, ven h a m os a n os in d agar sobre
o sen t ido da vid a. Es ta é u ma m an ifestação
gen u in a m en te h u m a na e, p or isso, con s-
t i t u i um dos t r ês p i la r es da Logot e r a p ia ".
" A b u sca de sen t ido é a m ot iva ção p r óp r ia,
específica, da pessoa. É a d in âm ica p róp r ia
do ser h u m a n o ".
"Fa zer pergun tas é, sem dúvida, u ma m ar ca
con s t i t u t iva da pessoa h u m a n a; m as saber
ca p t ar as in d a ga ções que a vid a con s t a n-
t em en te n os faz e r esp on d ê- las a d eq u a d a-
m en te é o que n os coloca em m a r cha na
d ir eção do sen t ido que t an to a lm e ja m os".
"Cer ta vez, F r a n kl d isse que a exp er iên cia
de en con t ro com o Sen t ido da Vi d a pode
acon t ecer a té m e s mo p or m eio da le i t u ra
de um l ivr o — e aqui t em os um l ivr o " .
E m ú l t im a a n á l is e, o h o m em n ão d eve p e r gu n t ar
q u al é o s e n t ido de s ua v i d a, m as r e co n h e cer q ue é
a v ida q ue l h e es tá p e r gu n t a n do is s o.
— Vik t o r Fr a nk l
Ao ser q u es t ion a do sob re como n e u t r a l i zar o va zio e x is t e n-
c ia l, Vi k t o r F r a n kl r esp on d eu: "Ap esar de m i n ha in s is t ên cia
em que n ão dam os sen t id o, d evem os conduzir o p a cien te ao
p on to em que ele encontre o sen t ido p or si m e s m o, p or que o
sen t ido deve ser en con t r a d o, n ão d a d o" ( F r a n k l, 2 0 2 1). E s se
é o p a p el da Logo t e r a p ia, a b or d a gem p s ico t er a p êu t ica cr ia da
p or F r a n kl q ue co m p r e e n de o s er h u m a no como u m t od o,
d i fe r en t em en te d as p r op os t as r ed u cion is t as de F r e ud e Ad le r.
P a ra tan to, faz-se n ecessár io p er cor r er os fu n d am en tos e
ap licações da Logoter ap ia e da An á lises Exis t en cia l, abordagens
que o p s iq u ia t ra a u s t r ía co e la b or ou a p a r t ir d as exp er iên cias
v i ve n c ia d as como p r i s io n e i ro em ca m p os de con cen t r a ção
n a zis t a s: desde s ua ext en sa e p r o fu n da t r a jetór ia a ca d ém ica,
con so l id a da em seus m a is de 30 l i vr o s p u b l ica d os, p a ssa n do
p e las ca u sas do va zio exis t en cial e os ca m in h os que a p o n t am
p a ra o sen t ido a té a b u s ca e com p r een s ão p e la exis t ên cia e
sen t ido da v id a.
E s te l ivr o , u m gu ia d as p r in c ip a is id e ias e con ceitos que
e m b a s am a ob ra de Vi k t o r F r a n k l, é t an to p a ra os que b u s cam
a p r o fu n d a m en to q u a n to p a ra q u em p r o cu ra u ma in t r od u ção
à t eor ia fr a n k l ia n a, oferecen do u ma visão acessível e p r o fu n da
sobre o sen t ido da v id a."Não há nada no mundo que capacite
tanto um ser humano a superar dificuldades externas ou inter
nas quanto a consciência de que ele tem uma missão na vida".
U m a vez mais encontramos Frankl colocando-se à disposição
para trazer alívio, conforto e encorajar os de espírito abatido.
Nos campos, como veremos, o suicídio entre os prisioneiros
era algo corriqueiro e, neste momento, em Theresienstadt, por
ações como esta de Frankl , crescem a esperança e a valentia.
A noção de que há um sentido nesta vida, mesmo em meio às
situações mais terríveis, e a de que todos nós possuímos uma
missão neste mundo surgem como resposta e convocação
àqueles prisioneiros fatigados.
C o m a ajuda de Er ich M u n k , diretor de assistência médica,
Frankl organizou em Theresienstadt estações móveis de acon
selhamento psicológico.
O chamado "Esquadrão de c h o q u e " era composto por médi
cos e ajudantes voluntários que, sempre que possível, ofere
c i a m conforto, ajuda e cuidados aos presos acometidos de
sofrimentos psíquicos. O Esquadrão de C h o q u e concentrava
sua atenção, acima de tudo, nos fracos e desamparados de
Theresienstadt: os idosos, os doentes, os psicologicamente
enfermos e aqueles que, j á em meio às mais degradantes c i r
cunstâncias de v ida , estavam na base da hierarquia social do
campo. O grupo de ajudantes voluntários também conside
rava importante a tarefa de atenuar o choque dos r e c é m - c h e -
gados a Theresienstadt.4
Entre 1942 e 1945, Viktor Frankl passou por quatro campos
de concentração, entre eles o nefasto campo de Auschwitz.
Levou a vida ordinária de u m prisioneiro. Foi o prisioneiro
119.104, número este que levava tatuado em sua pele. Na maior
parte do tempo trabalhou em escavações e na construção de
ferrovias. Encontramos a síntese do que foram esses três anos
4 Battyány,2021,p. 27.
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O H O M E M E A BUSCA D E SENTIDO
para Frankl em seu livro Em busca de sentido, publicado oito
meses após sua libertação, tendo sido vendidas, até o presente
momento, mais de 12 milhões de cópias em todo o mundo.
O livro foi ditado por Frankl num período de nove dias e de
início publicado anonimamente, assim ficando claro que seu
desejo era, antes de qualquer fama literária, de que prescin
dia, prestar um serviço valioso e cumprir com o seu dever. O
objetivo era transmitir ao leitor u m exemplo concreto de que
a vida, mesmo nas piores circunstâncias, possui um sentido.
Como ele mesmo diz: "Mesmo uma vítima desamparada, numa
situação sem esperança, enfrentando um destino que não pode
mudar, pode erguer-se acima de si mesma, crescer para além
de si mesma e, assim, mudar-se a si mesma".5
Nesta obra, as vivências dos prisioneiros nos campos de
concentração são divididas em três fases distintas, três modos
de reação psicológica. A primeira é o choque de recepção. E r a m os
prisioneiros submetidos a uma brutalidade sem precedentes, a
ponto de fazê-los nutrir o desejo de não mais fazer parte deste
mundo. Eis como o próprio Frankl descreve esta fase:
Imagine-se a situação: o transporte de 1.500 pessoas está a
caminho há alguns dias e noites. E m cada vagão do trem esti
r a m 80 pessoas sobre a sua bagagem (seus últimos haveres). A s
mochilas, bolsas etc. empilhadas i m p e d e m quase toda visão
pelas janelas, deixando l ivre apenas u m último vão na parte
superior. Lá fora se divisa o pr imeiro clarão da aurora. Todos
achávamos que o transporte se dir igia para alguma fábrica
de armamento onde nos usariam para trabalhos forçados.
Aparentemente, o t rem para e m algum lugar no meio da
l inha ; ninguém sabe ao certo se ainda estamos na Silésia o u j á
na Polónia. O apito estridente da locomotiva causa arrepios,
ecoando como u m grito de socorro ante o pressentimento
daquela massa de gente personificada pela máquina e por esta
conduzida r u m o a u m a grande desgraça. O trem começa a
manobrar e m frente a u m a grande estação. D e repente, do
amontoado de gente esperando ansiosamente no vagão, surge
5 Frankl, 2008, p. 168.
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u m gri to : " O l h a a tabuleta: A u s c h w i t z ! " . Naquele m o m e n t o
não houve coração que não se abalasse. Todos sabiam o que
significava A u s c h w i t z . Esse n o m e suscitava imagens confusas,
mas horripilantes, de câmaras de gás, fornos crematórios e
execuções e m massa. O trem avança lentamente, como que
hesitando, como se quisesse dar aos poucos a má notícia a sua
desgraçada carga humana : " A u s c h w i t z " . 6
Assim que saíam dos vagões, todos os prisioneiros eram
colocados em fila para marchar até u m oficial alemão, que
decidia seu destino, formando então duas filas diferentes,
uma à esquerda e outra à direita. Os da esquerda marchavam
diretamente para a câmara de gás; os da direita eram encami
nhados aos barracões. Entre os que continuavam vivos, era
normal a ideia de suicídio, coisa em que até Viktor Frankl
chegou a pensar, mas que logo abandonou, fazendo u m firme
e formal trato consigo mesmo: o de não " i r ao fio". Como os
campos eram cercados por arames farpados eletrificados com
alta tensão, muitos dos prisioneiros, desesperados, se dirigiam
até esses fios e metiam-lhes as mãos, cometendo suicídio ao
se eletrocutarem. O terror, o pânico e as brutalidades a que
os prisioneiros eram submetidos faziam dos "fios" u m convite
à fuga, e atenuavam até mesmo a imagem que os prisioneiros
traziam das câmaras de gás, que de algum modo os poupava
tanto da decisão de se lançarem ao " f io" quanto os desonerava
das obrigações impostas no campo.
E m seguida, vem a segunda fase, a da apatia, quando o p r i
sioneiro é tomado por intensos sentimentos de saudade de sua
pátria, da vida cotidiana e dos familiares. Tamanha é a saudade,
que resta apenas se consumir num monótono calvário, com os
dias sucedendo uns aos outros, sempre iguais em sua carga de
sofrimentos. A reação psicológica acaba por ter de ser a indi
ferença pura e simples, com a apatia sendo fundamental para a
sobrevivência. Prisioneiros sorviam em desespero as suas sopas
6 Frankl, 2008, p. 22.
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ralas, enquanto ao seu lado cadáveres de olhos esbugalhados
olhavam diretamente para eles. Por exemplo, Frankl nos re
lata o caso de u m menino de doze anos que, no ambulatório,
já estava com os dedos dos pés necrosados por causa das muitas
horas que teve de caminhar descalço na neve. Esse menino foi
submetido a uma cirurgia na qual o médico arrancou com uma
pinça os tocos necróticos e enegrecidos de suas articulações.
Ao redor dele, encontravam-se alguns prisioneiros que obser
varam indiferentes tal cena, sem demonstrar qualquer tipo de
compadecimento, revolta ou horror. A morte e o sofrimento
eram agora coisas corriqueiras.
No entanto, Viktor Frankl observou que os prisioneiros
não estavam destinados a apenas se perderem naquela massa
disforme e impessoal, ao contrário do que poderia pensar
Freud, para quem o resultado de experiências desse tipo não
seria outro senão uma uniformidade de desejos e ações, com
a necessidade imperativa da fome eliminando por completo
todas as diferenças individuais. Naquele cenário desumano,
Frankl constataria que, enquanto alguns se rebaixavam à mais
rasteira animalidade,outros alcançavam admiráveis progressos
interiores e se tornavam personalidades maduras, ascendendo à
verdadeira grandeza humana. Uns se tornavam como porcos,
outros como santos.
É essa a diferenciação que vai tomando lugar na segunda
fase. Enquanto alguns se aferram ao seu mundo interior, à fé
e aos amores genuínos, alimentando assim a esperança, outros
definham e vivem cada vez mais desesperados e desiludidos,
muitas vezes dispostos a entrar neste jogo sujo e traiçoeiro.
Mesmo diante de u m sofrimento inevitável é possível que cada
u m extraia o seu melhor, caso queira.
Frankl escutava com certa frequência conversas de prisio
neiros que diziam coisas como esta: "Será que sairemos com
vida deste campo de concentração? Caso contrário todo esse
sofrimento não tem sentido algum". Mas, para ele, a questão
que deveria guiar uma vida nessa situação era outra: será que há
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23/09/1939
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sentido nisso tudo? Neste sofrimento? Pois, se não houver, pouco
importa sair ou não com vida. U m a vida que dependa dessas
adversidades, que tenha sentido tão somente em decorrência
dessas realidades que estão para além do nosso controle, tal
vida não vale a pena ser vivida.
Sair ou não com vida era algo que não estava sob controle
dos prisioneiros, tampouco tantas outras realidades externas
tais como marchar para o trabalho todas as manhãs, receber
uma sopa rala ao f im do dia ou até mesmo ir para a câmara
de gás; porém, fazer uma experiência de sentido em meio ao
sofrimento, esta era uma possibilidade ao seu alcance.
"Dizer sim a vida, apesar de tudo"
A terceira fase é a fase pós-libertação, que infelizmente ocorreu
para poucos prisioneiros. Quando o campo de concentração de
Turkhe im, u m subcampo de Dachau, foi libertado em 27 de
abril de 1945 pelas Forças Aliadas, em particular pelo exército
norte-americano, Viktor Frankl pesava apenas 40 quilos, estava
com 40 graus de febre, e por pouco não morreu alguns dias
antes em decorrência da febre tifóide que contraíra. E le conta
que diversas vezes esteve à beira de u m colapso fatal durante
as noites, mas lutou com todas as suas forças para se manter
vivo. Como médico, sabia que adormecer naquelas condições
era u m grande perigo. Por este motivo, mantinha-se desperto
e em vigília durante toda a noite. Para tanto, pegava no bolso
do seu jaleco alguns poucos pedaços de papel roubado em
uma das oficinas do campo e ia reescrevendo o manuscrito
que as autoridades nazistas lhe haviam confiscado e destruído
ao chegar ao campo de concentração. Magro, doente e vendo
que a morte o espreitava, Frankl usava essa atividade para se
manter ativo em meio às madrugadas. Deste modo, mantinha
sua sanidade, seu estado de vigília e ainda retomava sua obra
que meses depois seria enfim publicada.
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Após a libertação, os prisioneiros tinham de aprender novas
formas de se alegrar. E r a como se a tão desejada libertação
não fosse assimilada de pronto pelas vítimas do Holocausto.
A "libertação" de Frankl se deu de forma singular: u m dia,
em meio aos campos e campinas floridas, num espaço amplo,
ele se prostrou de joelhos e, absorto, colocou-se na presença de
Deus. Foi então que ouviu as seguintes palavras: " N a angústia
gritei para o Senhor, e ele me respondeu no espaço l ivre" .
Frankl não sabe precisar por quanto tempo ficou ali ajoelhado,
se foram horas ou minutos, mas afirma que naquele preciso
momento começou uma nova vida. A vida de u m homem que
teria de lidar com sua história, sofrer e se enlutar pelos entes
queridos que perdera. Se antes Frankl havia tomado a decisão
de "não ir ao fio", agora a sua decisão seria de recomeçar. E ,
para alguém como ele, nesta situação, com esse passado e essas
vivências, era forte e clara a noção de que nada mais era preciso
temer, senão a Deus.
Para Frankl , somos uma geração privilegiada, pois com as
barbáries do século x x pudemos conhecer a pessoa humana
como nenhuma outra geração. "Mas quem é a pessoa humana?",
pergunta-nos Frankl . E , de modo firme, responde: "É o ser
que inventou as câmaras de gás; mas é também aquele ser que
entrou nas câmaras de gás, ereto, com uma oração nos lábios".7
E m 1945, ao deixar o campo de concentração e passar por
essa experiência de libertação, Frankl foi aos poucos perceben
do que todo o seu mundo havia sido destruído. Perdera a sua
cátedra, seu trabalho, seu pai, sua mãe, seu irmão e também
sua amada esposa T i l ly . Descobriu que a sua irmã era a única
sobrevivente da família, pois havia conseguido migrar para a
Austrália.
E m 27 de abril de 1945, após a sua libertação, Frankl foi
nomeado médico-chefe de campo no hospital militar para
desalojados na Bavária. Trabalhou por dois meses e, na p r i -
7 Frankl, 2008, p. 113.
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meira ocasião possível, abandonou o cargo e foi às pressas para
sua cidade natal. Ansiava por ter notícias dos seus amigos e
familiares, pois alimentava uma viva esperança de que p u
desse encontrar alguns, em especial sua amada esposa, T i l ly .
Ao chegar, deparou-se com uma cidade em ruínas. Viena estava
estilhaçada, terrivelmente destruída pela guerra.
Também ele, por dentro, havia sido feito em pedaços e
precisava se reerguer. Recordava-se vivamente que antes de ser
levado aos campos de concentração havia feito uma promessa
a sua primeira esposa T i l l y : caso sobrevivesse, iria retomar os
seus escritos para publicar o seu livro Psicoterapia e sentido da vida.
Os manuscritos desta que vir ia a ser sua primeira grande
obra já estavam quase finalizados antes da guerra, e, no ato da
deportação, ele corajosamente os escondeu em seu casaco e os
levou consigo para a prisão. Todavia, evidentemente, estes lhe
foram arrancados pelos guardas e descartados junto com seus
outros haveres. Durante o tempo em que esteve no campo,
principalmente nas noites de febre tifóide em que devia lutar
para se manter vivo e lúcido — como vimos anteriormente
— , tentou reescrever esses manuscritos a partir de taquigrafia.
E , ao f im, levou consigo alguns desses fragmentos, escritos em
pedaços de papel com reconstituições do manuscrito original
que lhe haviam tirado.
Deste modo, tão logo retornou a Viena, começou a trabalhar
nesta obra com o f im de cumprir a promessa feita à sua esposa.
No entanto, a promessa incluía uma contrapartida: a de que
T i l l y pudesse ser a primeira a ler este livro. Apesar disso, com
grande dor, mas diligentemente, ele se empenhou em c u m
prir a sua parte, certo de que T i l l y já não poderia cumprir a
dela. No prefácio desta obra encontramos a dedicatória: " E m
memória de T i l l y " .
A consciência claríssima que Frankl tinha acerca do cum
primento dos seus deveres foi algo que não só marcou de
modo indelével sua biografia, como também — no momento
pós-guerra — u m fator de proteção psicológica e de sobre-
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vivência para ele. Quando Frankl se percebe desprovido de
praticamente tudo o que lhe dava alegria, bem-estar e felicidade,
volta-se parao cumprimento das suas obrigações. Sentia-se
como uma criança que ficou detida na escola. O sinal tocou,
todos saíram, mas aquela criança permaneceu ali. E se questio
nava: por que motivo, afinal, uma criança permanece na escola
mesmo depois de o sinal ter tocado e de todas as outras terem
partido e voltado para casa? E conclui: muito provavelmente
porque tal criança ainda precisa terminar a sua tarefa.
C o m essa consciência, aos poucos retomou seus empreen
dimentos, sua vida como médico, académico e escritor. Poucos
meses depois de liberto, publicou seu primeiro livro Psicoterapia
e sentido da vida. A l g u m tempo depois, foi convidado a conce
der entrevistas em rádios. Retomou seus atendimentos como
médico psiquiatra e, em fevereiro de 1946, foi nomeado chefe
do departamento de neuropsiquiatria da Policlínica de Viena,
cargo que ocupou por 25 anos, até se aposentar.
Um homem muito maior do que seu século
Alguns meses após assumir o departamento de neuropsiquiatria,
Frankl conheceu uma funcionária da Policlínica de Viena. U m a
jovem enfermeira, muito simpática e bela, que o fez voltar a
sonhar com dias melhores. Despontava a primavera de 1946,
e Frankl , como deixará registrado num poema escrito meses
antes, temia que uma vez mais se aproximasse essa bela estação
do ano sem que, contudo, ele pudesse desfrutar dela. Diz ia
que muitas primaveras haviam se passado nos anos anteriores,
sem que nenhuma florescesse para ele. Pois bem, aquela jovem
chamada Eleonore Schwindt parecia v ir lhe comunicar um
momento de florescimento.
O primeiro encontro se deu de modo bastante inusitado.
Ambos trabalhavam no mesmo prédio, em setores diferentes.
E m u m dado momento, o departamento de odontologia ao
qual pertencia Eleonore precisou de uma maca. Decidiram,
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então, perguntar ao setor de neuropsiquiatria se havia a l
guma disponível para ser emprestada. Entretanto, o chefe
do setor de neuropsiquiatria era u m homem muito temido.
D i z i a m que ele era de poucas palavras, severo e exigente.
U m sobrevivente do holocausto que, muito embora fosse u m
exímio médico, não se encontrava em seus melhores dias. Este
homem era o D r . Viktor E m i l Frankl . Sem ninguém que se
aventurasse a pedir a maca a ele, Eleonore se prontificou. E
lá foi ela. Mas, para sua surpresa, aquele médico se mostrou
cortês e simpático. Cedeu ao seu pedido e emprestou o que
ela desejava. Eleonore, ao voltar para o setor de odontologia,
disse aos colegas que aquele médico era um homem amável,
muito diferente do que lhe haviam dito. Enquanto o setor de
odontologia celebrava o pequeno feito, no departamento da
frente estava Frankl , tomado por u m sentimento de encanto
e admiração. Foi amor à primeira vista. E a primavera estava
prestes a florescer para Viktor .
E m julho de 1947 eles se casaram, e, poucos meses depois,
nasceu sua filha Gabriele. Nas palavras de Viktor Frank l ,
Eleonore foi aquela que conseguiu converter u m homem que
sofria em u m homem que amava.
Nos longos e frutíferos anos entre 1945 e 1997, Viktor
Frankl teve uma vida extremamente ativa. Ministrou cursos
em diversos países, realizou centenas de conferências, tendo
ganhado notoriedade nos principais centros universitários
do mundo. Nos Estados Unidos foram criadas cátedras de
convidados nas universidades de Harvard, Boston, Dallas e
Pittsburgh. Até o f im, Frankl trabalhou em sua clínica, exer
cendo a medicina de forma séria e comprometida com seus
pacientes. Vale destacar que muitos dos seus atendimentos
eram realizados gratuitamente.
Juntamente com Eleonore, que datilografava todas as suas
obras enquanto ele as ditava, Frankl trouxe ao mundo uma
extensa e significativa obra que totaliza 39 livros.
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U m homem incansável, que nos deixou um grande legado de
esperança e que surge como resposta a este nosso tempo confuso
e sem grandes referências. U m a luz que brilhou e aqueceu em
meio a uma noite escura e fria. U m autor comprometido com
a verdade e profundamente apaixonado pela pessoa humana.
U m homem de coração inquieto, que, desde muito cedo. se
mostrou atento aos sinais do seu tempo e não poupou esforços
para criar e difundir sua mensagem de esperança e otimismo,
para fazer nascer e crescer a Logoterapia. U m homem que, não
obstante ter sido submetido aos mais torturantes processos de
desumanização nos campos de concentração, soube entregar ao
mundo uma escola psicoterapêutica que contribuiu para a huma
nização da psiquiatria e da psicologia em todo o mundo. Frankl
é sem dúvida um destes homens magnânimos e inquietos que
buscam fazer a diferença na vida das pessoas. Por volta de 1942
ele colocou em um dos bolsos do seu uniforme de prisioneiro,
para que se lembrasse todos os dias: "Fizeste-nos para T i , Senhor,
e inquieto está o nosso coração enquanto não repousar em T i " . 8
" F possível dizer sim à vida, apesar de tudo". Esta é a frase
que resume a vida de Viktor Frankl . É possível fazer uma ex
periência de sentido, de amor, mesmo padecendo dos maiores
sofrimentos. E possível acreditar que o amor move o mundo.
E possível nos colocarmos como protagonistas da nossa história
mesmo quando forças contrárias nos tomam de assalto e nos
levam para onde não queremos ir.
Ao saber da morte de Viktor E m i l Frankl, em 1997, Olavo de
Carvalho, importante pensador brasileiro, escreveu o seguinte:
No dia 2 de setembro morreu, aos 92 anos, um dos homens
realmente grandes deste século. Acabo de escrever isto e já
tenho uma dúvida: não sei se o médico judeu austríaco Viktor
Frankl pertenceu mesmo a este século. Pois ele só viveu para
devolver aos homens o que o século xx lhes havia tomado —
e não poderia fazê-lo se não fosse, numa época em que todos
8 Santo Agostinho, Confissões, livro i , cap. 1 .
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se orgulham de ser "homens do seu t e m p o " , alguém muito
maior do que o século.
L u i s ENRIQUE PAULINO CARMELO 9
Referências
FRANKL, V. E . Em busca de sentido: Um psicólogo no campo de
concentração. Petrópolis: E d . Vozes, 2008.
BATTHYÁNY, A . "Viktor Frankl e o desenvolvimento da logo
terapia e da Análise Existencial" . I n : FRANKL, V. E . A falta
de sentido: Um desafio para a psicoterapia e a filosofia. Campinas:
Auster, 2021.
9 Luis Enrique Paulino Carmelo é graduado em psicologia e filosofia e pós-
-graduado em Análise Existencial e Logoterapia Frankliana. Atua como psi
cólogo clínico desde 2012 e é coordenador da pós-graduação em Logote
rapia do Centro Universitário Católico Italo Brasileiro, em parceria com o
Instituto E m Rota. E autor do livro O mínimo sobre Viktor Frankl ( O Mínimo,
2024) e idealizador do documentário Além da liberdade — A vida de Viktor
Frankl (Lumine, 2024).
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pg7 - introdução
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26
Os pilares da Logoterapia e
Análise Existencial
Aobra de Viktor Frankl gira em torno da questão do
sentido da vida, a respeito do qual ele passou toda a vida
refletindo. Disso é derivado o nome de sua abordagem
psicoterapêutica:Logoterapia. A palavra logos, aqui, é usada jus
tamente com a acepção de "sentido".
Quando, em 1926, propôs pela primeira vez uma Logotera
pia, Frankl não pretendia com isso criar uma nova abordagem
na psicologia. Ele ainda era, naquele momento, um estudante
universitário. No entanto, percebia que as teorias em voga na
época — a psicologia adleriana, com seu foco no contexto
social, e a psicologia freudiana, que se propunha a explicar os
indivíduos tendo em vista os seus impulsos inconscientes — não
eram suficientes para se ter uma visão completa do ser humano.
As abordagens psicoterapêuticas criadas por Freud e Adler,
então, falhavam em encontrar respostas para questões exis
tenciais, com as quais Viktor Frankl já se deparava, e percebia
estar presentes naqueles que lhe chegavam com queixas. Tais
abordagens interpretavam a vida de maneira reducionista, como
se o ser humano fosse apenas seu próprio psiquismo e não fosse
constituído também de uma dimensão espiritual, e assim elas
O H O M E M E A BUSCA D E SENTIDO
não contemplavam seus questionamentos existenciais, espe
cialmente sobre o sentido da vida. A partir daí ele propõe uma
terapia (tratamento, cuidado) que se dirige ao logos, ao sentido,
e que conta com os recursos saudáveis da pessoa, recursos da
dimensão propriamente humana, a dimensão dos fenómenos
humanos, a dimensão espiritual, portanto uma "logoterapia".
E m suas apresentações nos congressos, e nas suas aulas, V i k
tor Frankl costumava desenhar e explicar que a Logoterapia, e
consequentemente sua visão de ser humano, como nos templos
gregos, se sustenta sobre três pilares: a liberdade da vontade, a
vontade de sentido, e o sentido da vida.1 Esses sãos conceitos
principais que constituem os princípios fundamentais da L o
goterapia e da Análise Existencial de Viktor Frankl .
1 Frankl, 2011, p. 26.
OS PILARES DA LOGOTERAPIA E ANÁLISE E X I S T E N C I A L
Liberdade da vontade: o caráter ontológico da liberdade
O primeiro pilar da Logoterapia, a liberdade da vontade, sustenta
que a vontade do ser humano é livre. Trata da constituição da
natureza humana e da liberdade que emerge desta constituição
e se opõe à visão de que tudo no ser humano é determinado.
O ser humano não é u m "efeito, produto ou resultado"2 de
impulsos psíquicos, ou de condicionamentos e influências do
meio. Ele não é somente determinado por essas "forças", ape
sar destas também fazerem parte da sua realidade, apesar de
também ser impulsionado ou condicionado. Na realidade, a
sua "vontade" — aquela que realmente faz com que ele realize
uma coisa ou outra em sua vida — é livre!
Podemos considerar quatro aspectos envolvidos nesta afir
mação: 1. A liberdade em oposição ao pandeterminismo —
liberdade versus destino; 2. O modo de ser espiritual do ser
humano — como nossa natureza é constituída; 3. Liberdade
e existência — o modo de existir do ser humano; 4. O sentido
da liberdade — para quê somos livres. Vamos a eles:
1 . A L I B E R D A D E E M OPOSIÇÃO A O P A N D E T E R M I N I S M O :
L I B E R D A D E VERSUS D E S T I N O
As teorias que tendem a considerar somente u m aspecto da
realidade do ser humano, para explicar toda a sua realidade,
acabam caindo em u m reducionismo, o que foi fortemente
criticado por Frankl .
Mas o que seria o reducionismo? A fábula dos sete sábios
cegos e o elefante pode nos ajudar a compreendê-lo. A fábula diz
que diante de um elefante com que nunca tinham se deparado,
cada sábio, tocando apenas em uma parte dele, o definia de
acordo com a parte que tocava: o que tocava a pata do elefante
dizia que aquilo era uma árvore; o que tocava o rabo, dizia
que era uma corda; o que tocava a orelha, que era u m leque
2 Frankl, 2019, p. 242.
O H O M E M E A BUSCA D E SENTIDO
etc. Cada um, a partir somente da sua perspectiva, concluía
o que seria todo o elefante. O que caracterizaria a descrição
de cada u m como reducionista? O fato de generalizar e dizer
que o elefante não seria nada mais do que aquela pata, rabo ou
orelha. O reducionismo faz exatamente isso: reduz toda uma
realidade a só u m aspecto da realidade.
Se pensarmos em termos de ser humano, o reducionismo,
conforme diz Frankl , é "uma abordagem pseudocientífica
que negligencia e ignora o caráter humano de determinados
fenómenos, ao reduzi-los a meros epifenômenos".3 O u seja,
um fenómeno derivado de outro. E , mais especificamente,
reduzindo-o a um fenómeno sub-humano, abaixo do humano,
no nível do animal. Portanto, ao partir apenas de um aspecto da
realidade do ser humano, uma abordagem reducionista poderia
considerá-lo somente naquilo que ele tem de semelhante ao
animal. U m a teoria reducionista do ser humano expressa não
somente uma visão reduzida, mas também ignora aquilo que
de especificamente humano o ser humano tem. O problema
não é olhar para cada u m dos aspectos da realidade, mas sim
generalizar e elaborar uma teoria a respeito de toda a realidade
partindo de u m só aspecto desta realidade.
Encontramos reducionismo de tipo psicologista em algumas
teorias que se enquadram no que chamamos de teorias psicodi-
nâmicas, aquelas teorias que buscam explicar toda a realidade
do ser humano a partir somente da dinâmica psíquica, ou seja,
somente a partir do aspecto psíquico.
A dinâmica psíquica (de dínamo, o que gera força, energia)
é a dinâmica da busca de satisfação das necessidades, sejam
elas biológicas, psíquicas ou sociais, onde os impulsos surgem
para obter satisfação.4 Os impulsos dessa forma nos movem,
nos levam a agir. Também somos passíveis de ser condiciona
dos pelos estímulos do meio em que vivemos, o que também
3 Frankl, 2011, p . 29.
4 Lersh, 1974, p. 15.
OS PILARES DA LOGOTERAPIA E ANÁLISE E X I S T E N C I A L
influencia nosso comportamento, por conta desta mesma busca
de satisfação.
Na medida em que essas teorias psicodinâmicas consideram
que tudo o que acontece em nossa vida, nossos comportamentos,
nossas escolhas, nossas realizações, são "mero efeito, produto, ou
resultado" de impulsos inconscientes ou de condicionamentos
do meio, elas deixam de lado a liberdade e a intencionalidade
de todas as nossas ações. Essa é a visão do pandeterminismo.
Não considera que o ser humano possa decidir, possa escolher
agir por algum valor, por algum motivo, por alguma coisa que
vá além dele, por algum sentido.3
De certa forma, todas essas teorias, por mais que tenham
alcançado grandes descobertas sobre a dinâmica do nosso
psiquismo, chegaram à conclusão de que o ser humano vive
somente em função de metas intrapsíquicas, metas do seu pró
prio psiquismo, buscando u m equilíbrio interno para alívio de
tensões, somente em função das suas próprias necessidades.6
Essa antropologia da psicodinâmica desenha uma imagem de
ser humano sem liberdade e totalmente egocêntrica, u m ser
fechado em si, como se a pessoa buscasse sempre somente a si
mesma: na psicologia profunda, buscando a máxima obtenção
de prazer; na terapia da conduta, buscando recompensa ou
aplausos sociais; na psicologia humanista, buscando a realização
individual,7 portanto, tendo sua vontade determinada por estas
forças psíquicas e sociais, não podendo escapar desta situação.
Frankl , pessoalmente, nunca descartou as descobertas e
propostas das demais teorias psicológicas. Tais escolas, como
citava, poderiam ser re-humanizadas pela Logoterapia; esta seria
uma complementação das demais, especialmente da visão de
ser humano.8 Criticava somente a interpretação reducionista
5 Frankl, 2019, p. 242.
6 Frankl, 2019, p. 37.
7 Lukas, 1986, p. 56.
8 Frankl, 201 l , p . 38; 2016b, p. 175.
O H O M E M E A BUSCA D E SENTIDO
que estava por trás de algumas destas abordagens, e afirmava:
a vontade do ser humano é livre!
2 . O M O D O D E S E R E S P I R I T U A L D O S E R H U M A N O : C O M O
N O S S A N A T U RE Z A É C O N S T I T U Í D A
Tentando superar o reducionismo presente nestas abordagens,
Frankl 9 propõe, com sua Análise Existencial, u m novo olhar
para a visão de ser humano, buscando uma visão na qual a
humanidade do ser humano é preservada; na qual podemos
enxergar para aquilo que é próprio do ser humano e que o
diferencia dos outros seres. Assim, propõe o que chamou de
uma ontologia dimensional, uma reflexão sobre as dimensões
que constituem a natureza do ser humano fazendo uma ana
logia com a geometria.
Vamos supor que tomamos u m fenómeno tridimensional
para ser analisado, por exemplo u m cilindro, como na figura
acima. A o lançar uma luz em cima do cilindro, ela cria uma
projeção, isto é, uma sombra deste fenómeno. O que resulta
em u m círculo, que nos revela algo do cilindro, mas não toda
a sua realidade. O mesmo ocorre se colocamos a luz em outra
direção. A projeção será de u m retângulo, uma sombra que
também revela algo do cilindro; podemos observar que o
9 2011, p. 25.
Dimensões do ser humano
OS PILARES DA LOGOTERAPIA E ANÁLISE E X I S T E N C I A L
retângulo está contido no cilindro. Mas o retângulo não revela
toda a realidade do cilindro. O que isso quer dizer? Que se
nos basearmos apenas nas projeções não compreenderemos o
fenómeno na sua totalidade. O u seja, as projeções oferecem uma
visão reduzida do fenómeno, de somente um de seus aspectos.
Supondo que o fenómeno no lugar do cilindro fosse um ser
humano, a conclusão é óbvia: podemos sempre projetar algo do
ser humano que revelará uma dimensão inferior à dimensão da
sua totalidade. Podemos estudar o ser humano, por exemplo,
na sua dimensão biológica. Mas a biologia jamais revelará toda
a realidade do ser humano. O mesmo ocorre com a psicologia
e as escolas psicológicas. A psicologia, apesar das suas desco
bertas, não revela toda a realidade do ser humano. Portanto, se
quisermos conhecer quem é o ser humano (saber quem somos),
precisamos procurar o ser humano não nos determinismos
psíquicos ou sociais, nos mecanismos das dimensões biológica
e psíquica, nos quais a liberdade não aparece. Mas precisamos
buscá-lo no que ele tem de especificamente humano, no âmbito
que lhe é próprio, no âmbito dos fenómenos humanos. Ele
tem de ser observado onde os fenómenos humanos acontecem.
O H O M E M E A BUSCA D E SENTIDO
3 . L I B E R D A D E E EXISTÊNCIA:
O MODO DE EXISTIR DO SER HUMANO
Aquilo que é específico do ser humano não é o seu modo de
ser biológico, psíquico ou social, mas encontra-se justamente
na sua capacidade de elevar-se — de existir, de eksistere — de
ser para além de si, de elevar-se para além destes modos de
ser que constituem sua faticidade, seu organismo psicofísico.10
ÂMBITO DA EXISTÊNCIA
DA PESSOA ESPIRITUAL
O modo específico de ser do ser humano o capacita a ir
além de si mesmo. E esta capacidade significa que o ser humano
é livre, não sendo simplesmente resultado daquilo que o de
termina biológica, psíquica, ou socialmente, que o determina
enquanto faticidade, enquanto organismo psicofísico. E le é
capaz de se elevar e assumir uma atitude diante de si mesmo,
diante dos fenómenos biológicos, psíquicos ou sociais, enfim,
diante de sua faticidade, da qual a liberdade não participa.
Muitas vezes nos sentimos reféns de nossas próprias emoções
e instintos, ou das influências das circunstâncias de nossa vida,
porém precisamos nos dar conta de que, enquanto humanos,
sempre podemos nos posicionar diante do que sentimos,
diante das situações, e decidir como agir. Não decidimos, por
exemplo, quando vamos sentir fome ou quando vamos morrer.
Mas, a partir dessa realidade que está determinada, podemos
nos elevar, e nos posicionarmos diante do nosso próprio eu.
10 Frankl, 2017, p. 59.
OS PILARES DA LOGOTERAPIA E ANÁLISE E X I S T E N C I A L
Por exemplo: podemos sentir raiva quando alguém nos agride,
essa emoção é u m fenómeno próprio da nossa faticidade, po
rém não determina nossa ação. Podemos decidir como agir, se
vamos agredir também ou agir de forma diferente, apesar do
que estamos sentindo. Sentir fome também é u m determinis
mo biopsíquico. Querendo ou não, sentiremos fome. Porém,
quando sentimos fome, podemos decidir o que faremos com
ela: podemos comer ou não, podemos deixar de comer para
dar de comer a alguém que precisa mais do que nós. Viktor
Frankl testemunhou isto no campo de concentração. Podemos
escolher nossa atitude. E essa capacidade de escolher, de decidir,
é a liberdade própria somente da pessoa. Essa decisão implica
uma elevação para "além de s i " , e este é o modo específico de
ser do ser humano. È o seu modo de existir. Identificamos essa
capacidade de se elevar e se posicionar no que chamamos de
"âmbito da existência", porque é isso que faz do ser humano
uma pessoa — e esse modo de ser expressa sua constituição
espiritual, é um modo de ser espiritual, no sentido de que não é
material, pois a faticidade é o modo material de ser. Espiritual,
neste caso, não tem conotação religiosa ou teológica. O âmbito
da existência da pessoa espiritual é aquele em que podemos
refletir a respeito da nossa própria vida, em que podemos ter
consciência de nós mesmos, podemos criar, amar, nos elevar
acima dos determinismos psíquicos ou biológicos, enfim, é o
âmbito dos fenómenos propriamente humanos.
3. 1 . U N I D A D E N A T O T A L I D A D E
Voltando à imagem do cilindro, esta analogia também nos
ajuda a compreender que, semelhantemente ao cilindro, o ser
humano é uma unidade apesar dos modos de ser diferentes. Não
é possível separar, no cilindro, a dimensão da circularidade ou
da retangularidade. O mesmo ocorre no ser humano: a dimen
são espiritual é a essência, é como u m "núcleo" (Max Scheler),
mas esta é inseparável dos modos de ser biológico e psíquico.
O H O M E M E A BUSCA D E S EN T I D O
É justamente o fato de ser pessoa que promove essa unidade
das dimensões biológica, psíquica, social e espiritual." O ser
humano, portanto, não é apenas u m corpo e u m psiquismo,
mas uma totalidade dos modos de ser bio-psico-sócio-espiritual.
3.2. A U T O T R A N S C E N D Ê N C I A
Ainda observando a imagem do cilindro, diferentemente do
círculo ou do retângulo, ele, sendo u m fenómeno tridimen
sional, permite uma abertura, como se fosse, por exemplo, u m
copo. Essa abertura, no ser humano, representa exatamente o
seu modo de ser espiritual, o que chamamos de autotranscen-
dência. O ser humano é capaz de transcender, de ir além de si,
por conta dessa abertura. Não é u m ser fechado em si mesmo.
Dessa forma, a autotranscendência se expressa nessa capacidade
de elevar-se, de ir além de si, de sair de si.
Tratando desse tema, Frankl 1 2 faz uma analogia do ser huma
no com u m avião para nos ajudar a compreender esse modo de
ser autotranscendente: a essência de u m avião se revela e ele se
distingue de um simples automóvel justamente quando levanta
voo, ainda que possa taxiar na pista como u m automóvel. D a
mesma forma, a essência do ser humano se revela quando ele
se eleva e vai além de si, ainda que traga em si elementos que
são próprios também do animal. Autotranscender é próprio da
essência do ser humano. Significa sempre dirigir-se para algo
além de si, algo que não seja o próprio eu.1 3 O ser humano é
capaz de ir além de si e se autotranscender para encontrar algo,
uma tarefa para realizar, uma missão, uma causa que ele perceba
que é importante; ou é capaz de ir além de si para encontrar
alguém, uma pessoa para amar, que ele pode reconhecer como
pessoa. E próprio do ser humano viver por algo ou alguém.
1 1 Frankl, 2 0 1 9 , p. 1 6 8 .
12 2011, p. 39; 1997, p. 72.
13 Frankl,201 l . p . 67.
OS F I L A R E S DA L O G O T E R A P IA E A N A L I S E E XI ST Ê N C I A!
PARA ALGO
E PARA ALGUÉM
UM SENTIDO A REALIZAR
UMA PESSOA PARA AMAR
Essa autotranscendência,essa abertura, manifesta a ca
pacidade que temos de nos relacionar. A pessoa é u m ser de
relação, capaz de autorrelação, ou seja, capaz de conhecer a si
mesma, de se dar conta de si mesma, de se relacionar consigo
mesma e, ao mesmo tempo, de se relacionar com o outro, de
conseguir compreender, captar e respeitar o outro como pessoa,
e não somente como objeto de sua satisfação. Justamente por
ser autotranscendente a pessoa é sempre capaz de se referir a
algo que não seja ela mesma.
3.3. L I B E R D A D E VERSUS D E S T I N O : L I B E R D A D E " D E "
Não podemos entender liberdade como ausência de obstáculos
ou de limites. A natureza humana, enquanto livre, pressupõe
"vínculos".14 F r a n k l 1 5 chamou de destino tudo aquilo que faz
parte da nossa realidade e que não depende de nossa liberdade,
constituindo assim os determinismos e condicionamentos em
nossa vida: nosso destino biológico e psíquico (hereditarieda
de e disposições), nosso destino social (condições e meio). A
liberdade se revela justamente pela nossa capacidade de nos
posicionarmos, de escolhermos nossa atitude em cada mo
mento, apesar dos determinismos e condicionamentos. Mesmo
tendo impulsos, é a pessoa que decide se cederá a eles ou não.
Assim, podemos compreender que, para o ser humano, não
existe liberdade sem impulsos, como não existem impulsos
sem liberdade. A liberdade humana se manifesta perante os
impulsos, diante dos quais decide se dirá sim ou não. E diante
dos condicionamentos que se posiciona e decide se agirá de
acordo com eles ou de outra forma.
14 Frankl, 2016a, p. 159.
15 2016a, p. 162.
O H O M E M E A BUSCA D E SENTIDO
Como seres humanos, portanto, não somos livres "de" ser
mos impulsionados ou condicionados. Mas, ao mesmo tempo,
somos livres "para" nos posicionar, decidir, adotar uma atitude.
E isso significa que não somos frutos dos condicionamentos,
mas damos nossa resposta pessoal diante deles, somos livres
para ser responsáveis. E ser responsável significa ser capaz de
responder, de escolher qual resposta dar. O ser humano não é
u m ser que só obedece a impulsos inconscientes, ou u m ser que
só reage a estímulos externos. E u m ser que responde, que dá
sua resposta pessoal diante de sentidos e valores que encontra na
vida. Essa é a responsabilidade do ser humano: ser capaz de dar
uma resposta pessoal e não só reagir a estímulos ou impulsos.
Por isso, quando se fala de liberdade humana, é preciso
darmos u m passo além e perguntar: para quê o ser humano
é livre? Nossa liberdade, essa capacidade de decidir, tem u m
"para quê".
4 . O S E N T I D O D A L I B E R D A D E : P A R A Q U Ê S O M O S L I V R E S
Esse "para quê" da liberdade humana é justamente a respon
sabilidade que a leva para " u m mundo de objetivos" além de
si mesma.
Viktor Frankl , ainda quando tinha entre 15 e 16 anos,16
intuiu algo que é central na Logoterapia: em cada situação
singular de nossa vida nos sentimos interrogados; não somos
nós que fazemos perguntas à vida. E a vida que nos pergunta.
E só nós podemos dar a nossa resposta pessoal.
O ser humano é livre para ser responsável. E ser responsá
vel significa abrir-se para algo que o transcende: " u m mundo
de objetivos", de realidades concretas, de situações que o
convocam e questionam. A vida nos coloca diante de muitas
circunstâncias, e a cada uma delas correspondem diversas
possibilidades dentre as quais devemos decidir qual realizare
mos para torná-la realidade. A vida nos apresenta perguntas
16 Pintos, 2007, p. 37.
OS PILARES DA LOGOTERAPIA E ANÁLISE E X I S T E N C I A L
concretas e nós damos respostas a cada circunstância, sempre
perante algo que consideramos importante, que percebemos ter
valor, que percebemos ter sentido. Respondemos com ações,
com atitudes. Cada circunstância implica em u m "de que"
nos sentimos responsáveis: por uma tarefa, uma pessoa, pelo
trabalho, pela própria vida. Algo que dá motivo para o nosso
agir. Sentimo-nos responsáveis para fazer algo que tenha valor
e sentido. Estamos sempre respondendo às possibilidades de
sentido que a vida nos oferece, nas mais variadas circunstân
cias. Somos livres para ser responsáveis. O sentido de ser livre
é ser responsável.
Vontade de sentido: a busca de sentido na vida
O segundo pilar trata da teoria da motivação da Logoterapia.
U m aspecto importante da autotranscendência é o que se chama
em Logoterapia de "vontade de sentido". Frankl diz:
D e fato, a existência humana sempre vai além de si mesma,
sempre se refere a u m sentido que a ultrapassa. O que, neste
aspecto, está e m questão para o h o m e m que v ive a sua ex i s
tência não é o prazer ou o poder; mas também não se trata da
realização de si mesmo: trata-se antes da plenitude de sentido.
Daí que, e m Logoterapia, falemos de u m a vontade de sentido
( W i l l e n z u m Sinn) ( F r a n k l , 2016a, p. 312) .
1 . BUSCA DE SENTIDO
Se por u m lado uma antropologia psicodinâmica vê o ser
humano como tendo impulsos por conta das necessidades que
determinam sua busca de satisfação — e essa seria a busca de
si mesmo, a busca do prazer — , podemos dizer que o ser h u
mano, pela sua abertura, autotranscendência e liberdade, pela
sua capacidade de escolha e de resposta, na verdade se orienta
na vida em busca de algo que tenha u m sentido para ele, que
lhe dê uma razão para sua vida, para sua existência, e que lhe
diga: vale a pena viver por isto!
O H O M E M E A BUSCA D E SENTIDO
Quando a pessoa se orienta para além de si mesma, quando
se abre à realidade que a transcende e se orienta para o sentido,
ela se dá conta das possibilidades de realização de valores que
existem na vida. E os valores a atraem.
O âmbito dos fenómenos humanos, o qual alcançamos e
vivemos enquanto pessoas, é justamente o do sentido e dos
valores, daquilo que pode dar uma razão para nossa vida, que
pode ser u m motivo para nossa existência. E é também onde
reside a nossa capacidade de descobrir a realidade e estes valo
res que já existem por si mesmos, que são objetivos, e não são
invenções da nossa cabeça, da nossa subjetividade. Os valores
se referem às possibilidades concretas de sentido em nossa vida
e podemos descobri-los, alcançá-los e realizá-los. Portanto,
podemos concluir que a pessoa que é capaz de buscar algo além
de si não vive só em busca de si mesma. E livre, capaz de ir além
de si para buscar algo que a transcenda, e que possa preencher
sua vida de sentido. É justamente essa a contribuição de Viktor
Frankl : ele compreendeu esse modo de ser do ser humano e
trouxe, para o desenvolvimento das teorias psicológicas e da
sua Análise Existencial e Logoterapia, esse conceito novo: a
vontade de sentido. O ser humano não é um ser que somente
busca a satisfação das suas necessidades, que busca o prazer ou
o poder; na realidade, primariamente, ele busca preencher o
máximo possível a sua vida de sentido. Ele busca sentido e é
movido, então, essencialmente, por uma vontade de sentido.
A pessoa não é movida só pelos impulsos inconscientes, que
são próprios da dinâmica psíquica. Mesmo sendo influenciado
pela dinâmica psíquica, em última instância o que o move é
a dinâmica especificamente humana: a do modo de ser espi
ritual.1 7 Essa dinâmica é a da busca de sentido, a vontade de
sentido. A dinâmica que o leva para além de si, constitutiva
do ser humano, e presente desde o instante da concepção até
o último suspiro. Assim:
17 Frankl, 2017, p. 108.
OS PILARES DA LOGOTERAPIA E ANÁLISE E X I S T E N C I A L
Se queremos encontrar e viver plenamente u m sentido em
nossa vida, seremos felizes e ao mesmo tempo capazes de supe
rar o sofrimento. Se podemos encontrar u m sentido, estamos
preparados para dar a nossa vida por esse sentido. Por outro
lado, se não podemos ver u m sentido, estamos inclinados a
tirar-nos a vida, ainda em