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<p>Feliciência</p><p>Felicidade e Trabalho na Era da Complexidade</p><p>2022</p><p>Carla Furtado</p><p>FELICIÊNCIA</p><p>FELICIDADE E TRABALHO NA ERA DA COMPLEXIDADE</p><p>© Almedina, 2022</p><p>AUTOR: Carla Furtado</p><p>DIRETOR DA ALMEDINA BRASIL: Rodrigo Mentz</p><p>EDITOR DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS: Marco Pace</p><p>ASSISTENTES EDITORIAIS: Isabela Leite e Marília Bellio</p><p>REVISÃO: Sol Coelho</p><p>DIAGRAMAÇÃO: Almedina</p><p>DESIGN DE CAPA: Roberta Bassanetto</p><p>ISBN: 9786587019321</p><p>Março, 2022</p><p>Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)</p><p>(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)</p><p>Furtado, Carla</p><p>Feliciência : felicidade e trabalho na Era da</p><p>complexidade / Carla Furtado. -- São Paulo, SP : Actual, 2022.</p><p>ISBN 978-65-87019-31-4</p><p>1. Autorrealização 2. Desenvolvimento pessoal</p><p>3. Desenvolvimento profissional 4. Felicidade</p><p>5. Liderança 6. Psicologia positiva 7. Satisfação no trabalho I. Título.</p><p>21-95659 CDU-650.1</p><p>Índices para catálogo sistemático:</p><p>1. Felicidade no trabalho : Administração 650.1</p><p>Eliete Marques da Silva - Bibliotecária - CRB-8/9380</p><p>Este livro segue as regras do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990).</p><p>Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro, protegido por copyright, pode ser</p><p>reproduzida, armazenada ou transmitida de alguma forma ou por algum meio, seja eletrônico ou</p><p>mecânico, inclusive fotocópia, gravação ou qualquer sistema de armazenagem de informações, sem a</p><p>permissão expressa e por escrito da editora.</p><p>EDITORA: Almedina Brasil</p><p>Rua José Maria Lisboa, 860, Conj.131 e 132, Jardim Paulista | 01423-001 São Paulo | Brasil</p><p>editora@almedina.com.br</p><p>www.almedina.com.br</p><p>Aos que me esclarecem e aos que me desafiam no caminho</p><p>da produção de conhecimento: em especial Doutor Neel</p><p>Konwar e Karma Wandgi e as Professoras Doutoras Lêda</p><p>Gonçalves de Freitas, Cida Penso e Ondina Pena.</p><p>Nota da Autora</p><p>Muitas empresas limitam-se a perguntar o quanto custa investir na</p><p>felicidade dos colaboradores. Eu prefiro perguntar: quanto custará não</p><p>investir? Os custos da infelicidade estão postos. Nos Estados Unidos, o</p><p>prejuízo decorrente apenas do estresse relacionado à atividade laboral</p><p>atinge a casa dos US$ 300 bilhões por ano. Prejuízos dessa natureza estão</p><p>presentes na maior parte das nações, embora não sejam devidamente</p><p>contabilizados.</p><p>Estamos adoecendo e o trabalho é o pano de fundo do sofrimento</p><p>psíquico contemporâneo. Tanto que um dos principais desafios corporativos</p><p>desta década é o enfrentamento à escalada de transtornos mentais e</p><p>comportamentais. A depressão, sozinha, atinge cerca de 300 milhões de</p><p>pessoas no mundo e já é a doença mais incapacitante para a vida laboral.</p><p>Em 2030, o custo mundial do adoecimento mental deverá alcançar a casa</p><p>dos US$ 6 trilhões em todo o mundo, mais que o dobro de 2010. Cerca de</p><p>2/3 desses valores correspondem à perda de dias de trabalho.</p><p>Previamente à pandemia, a incidência de depressão no Brasil já estava</p><p>acima da média mundial, com 5,8% contra 4,4%. Também antes do SARS-</p><p>CoV-2, o país já ocupava o topo do ranking de transtornos de ansiedade,</p><p>com 9,3% da população acometida. Em 2018, a depressão despontava como</p><p>a segunda causa de pagamento de auxílio-doença (30,67%), perdendo</p><p>apenas para acidentes de trabalho. Esse percentual cresceu cerca de 20% em</p><p>2020.</p><p>Nos departamentos de Gestão de Pessoas a pergunta frequente é: “o que</p><p>fazer com tantos afastamentos por CID F?”. A resposta começa com a</p><p>admissão de que o bem-estar de quem trabalha é estratégico, indispensável</p><p>para a sustentabilidade das organizações. Precisa integrar a pauta das</p><p>reuniões de board, estar no escopo da gestão de riscos, produzir indicadores</p><p>consistentes para uma tomada de decisão responsável.</p><p>Por onde começar? Sem dúvida, pela compreensão aprofundada do que</p><p>é felicidade, com base nas diferentes disciplinas que a investigam. A</p><p>primeira parte desse livro é dedicada a apresentar ao leitor abordagens da</p><p>filosofia, da psicologia positiva e das neurociências. Traz também um</p><p>capítulo dedicado às falácias neoliberais que embalam a felicidade para</p><p>venda –– como se possível fosse consumir respostas simples para um dos</p><p>mais complexos anseios humanos. Compõe esse bloco um capítulo sobre a</p><p>Felicidade Interna Bruta que, segundo a ONU, é o novo paradigma de</p><p>desenvolvimento econômico.</p><p>Na segunda parte, o leitor ingressa em uma costura entre gestão</p><p>estratégica e felicidade. São anos de estudo, consultoria, docência e</p><p>pesquisa organizados em sete capítulos com consistência teórica, mas</p><p>igualmente factíveis. Há novos paradigmas em cena, como a proposta de</p><p>abordar não mais a felicidade no trabalho e sim, a felicidade de quem</p><p>trabalha. Afinal, nunca houve duas pessoas, a que vive e a que labora, e</p><p>hoje para muitos sequer existe a fronteira material entre o que é pessoal e o</p><p>que é profissional.</p><p>Este livro carrega uma proposta: tomar o leitor pela mão e conduzi-lo</p><p>por um caminho real, situado entre cenários distópicos – marcados pela</p><p>crise de sentido no trabalho e pela naturalização do sofrimento do</p><p>trabalhador – e as narrativas utópicas de conversão das empresas em</p><p>grandes playgrounds. A ascensão da felicidade como campo de trabalho</p><p>produziu bons contadores de histórias, está na hora de produzir as boas</p><p>histórias.</p><p>Carla Furtado</p><p>Lisboa, setembro de 2021</p><p>Prefácio</p><p>É com muita honra que escrevo o prefácio do livro Feliciência – Entre a</p><p>distopia e a utopia da felicidade no trabalho, um verdadeiro manual para</p><p>gestores executivos. Com maestria, a autora Carla Furtado esclarece uma</p><p>dúvida que permeia o pensamento de empresários, líderes e liderados: é</p><p>possível ser feliz no trabalho?</p><p>Apesar de estar comprovado por meio de pesquisas que um funcionário</p><p>feliz produz mais e traz mais resultados para a empresa, o local de trabalho</p><p>ainda é um ambiente desafiador e motivo de estresse e ansiedade para</p><p>muitas pessoas.</p><p>Nas páginas seguintes, o leitor poderá encontrar elementos que</p><p>contribuirão para ampliar a visão de felicidade sob as perspectivas da</p><p>ciência e da gestão estratégica. A professora e pesquisadora Carla Furtado</p><p>conduz a reflexão sobre a construção da felicidade legítima dentro de</p><p>agrupamentos humanos, com enfoque em uma vida profissional mais</p><p>significativa e satisfatória.</p><p>Entre os caminhos propostos está a cultura de humanização, prática cuja</p><p>eficácia confirmo no dia a dia. Desde que fundamos o Grupo Sabin, há 37</p><p>anos, eu e minha sócia, Sandra Costa, investimos na construção de um</p><p>ambiente humanizado. É o que tem nos garantido não só um legado especial</p><p>em gestão de talentos, como também a sustentabilidade dos resultados</p><p>crescentes e consistentes nos negócios, o que nos permite estar entre as</p><p>melhores empresas para se trabalhar no Brasil e na América Latina por</p><p>vários anos consecutivos.</p><p>Nas páginas deste livro, Carla Furtado vai mostrar que o trabalho deve</p><p>ser uma das fontes de prazer e realização da vida. Para isso, é importante</p><p>que as pessoas estejam no centro da atenção e tenham preservadas sua vida</p><p>pessoal e profissional por meio de políticas competentes de gestão de</p><p>pessoas. Essa prática traz não só a felicidade do trabalhador, como também</p><p>a alegria do cliente e o sucesso da organização.</p><p>Boa leitura!</p><p>Janete Vaz Sócia</p><p>Fundadora do Grupo Sabin</p><p>Sumário</p><p>Parte I — Afinal, o que é felicidade?</p><p>Capítulo 1 — Filosofia: onde tudo começa</p><p>Capítulo 2 — Psicologia positiva: nova ciência para o novo século</p><p>Capítulo 3 — Neurociências: a felicidade mora no cérebro</p><p>Capítulo 4 — Armadilhas da felicidade neoliberal</p><p>Capítulo 5 — Felicidade interna bruta: a responsabilidade do estado</p><p>Parte II — A felicidade de quem trabalha</p><p>Capítulo 6 — Felicidade no trabalho: será?</p><p>Capítulo 7 — Cultura: o alicerce</p><p>Capítulo 8 — Liderança: o desafio</p><p>Capítulo 9 — Diagnóstico: felicidade data driven</p><p>Capítulo 10 — Desenvolvimento: habilidades para a felicidade</p><p>Capítulo 11 — Canvas diamante: um plano de ação sistêmico</p><p>Capítulo 12 — ROI e VOI: quando o investimento compensa</p><p>Parte I</p><p>Mas, afinal, o que é felicidade?</p><p>“Quando nos deixamos guiar pela felicidade, nos posicionamos no caminho que sempre esteve ali, à</p><p>nossa espera, e vivemos exatamente</p><p>a felicidade, pois há boas chances de haver aí a oferta de uma</p><p>receita para o alcance de uma vida idealizada. Não há receita para a</p><p>felicidade, tampouco há garantias de que ela conduza a qualquer que seja o</p><p>destino para além de uma vida significativa.</p><p>É perigosa a associação entre felicidade e sucesso porque constitui um</p><p>potente dispositivo neolioberal, usualmente vinculado ao discurso</p><p>meritocrático, que defende que cada um obtém aquilo que se esforça o</p><p>suficiente para obter. Não parece justo adotar mérito como critério</p><p>primordial em uma sociedade inequânime. Além disso, não seria a</p><p>meritocracia enquanto ideologia um dos fatores causadores de sofrimento?</p><p>O filósofo sul-coreano radicado na Alemanha Byung-Chul Han (2014)</p><p>alerta: vivemos no excesso de positividade, na equivocada crença de que</p><p>podemos tudo e qualquer coisa bastando apenas esforço pessoal, ou seja,</p><p>mérito. Estamos obcecados pela otimização ilimitada do próprio</p><p>desempenho. Exploramo-nos enquanto marcas, gerenciando nossa imagem</p><p>e produzindo “conteúdo” sem cessar sob pena de nos tornarmos</p><p>irrelevantes. E fazemos tudo isso sob a ação de algoritmos opacos, cujos</p><p>critérios desconhecemos. Em Psicopolítica – O Neoliberalismo e as Novas</p><p>Técnicas de Poder (2018), Han relaciona a escalada dos transtornos mentais</p><p>e comportamentais a termos nos convertido em “empresários de nós</p><p>mesmos”.</p><p>Como já mencionado no capítulo 2, Martin Seligman (2011) em seu</p><p>modelo teórico intitulado PERMA aponta cinco elementos com potencial de</p><p>fomento de bem-estar: emoções positivas, engajamento, relações,</p><p>sentido/significado e realizações. Não há sucesso no modelo de Seligman e</p><p>o que mais se aproximaria dele seriam as realizações, guardando uma</p><p>diferença importante: enquanto o sucesso necessita do reconhecimento de</p><p>terceiros, as realizações dispensam essa validação.</p><p>Felicidade não é tóxica</p><p>Para entender o que existe em determinado campo do conhecimento,</p><p>recorremos aos bancos de produção científica. Portanto, para saber o que é</p><p>positividade tóxica deve-se fazer exatamente esse caminho. No momento de</p><p>preparação desse livro, ainda não havia produção teórica ou empírica</p><p>consistente sobre o assunto. Em contrapartida, redes sociais, blogs e portais</p><p>de notícias seguiam abordando o tema. Errado? De maneira nenhuma.</p><p>Ocorre apenas que a ausência de produção científica faz com que não haja</p><p>pelo menos um construto estabelecido para explicar o que é positividade</p><p>tóxica. E é aqui que a confusão se estabelece.</p><p>Em alguns materiais que circulam na internet há quem alegue que não é</p><p>possível ser feliz sempre. Isso pode ser verdade ou não, depende do que está</p><p>sendo chamado de felicidade. No âmbito da psicologia positiva, é usual se</p><p>adotar o construto preconizado por Sonja Lyubomirsky (2005) citado no</p><p>capítulo 2: “Felicidade é a experiência de contentamento e bem-estar</p><p>combinada à sensação de que a própria vida possui sentido e vale a pena”.</p><p>Em outras palavras, felicidade é um estado no qual se vivencia um pouco</p><p>mais de emoções positivas que negativas em uma vida que, apesar das</p><p>circunstâncias, vale a pena ser vivida. E sim, pode ser uma experiência de</p><p>longa duração.</p><p>A psicologia positiva não defende que se bloqueiem ou evitem emoções</p><p>negativas. Do ponto de vista humano isso sequer é possível e, se por acaso</p><p>fosse, não seria recomendável. Emoções são comportamentos autônomos</p><p>em resposta a estímulos. Tome-se o medo, por exemplo: diante de um risco</p><p>real essa emoção é primordial para a preservação da vida e, embora seja de</p><p>valência negativa seu desfecho pode ser bastante positivo (falamos sobre</p><p>isso no capítulo 3). Ressalta-se aqui, mais uma vez, que felicidade não é</p><p>uma emoção.</p><p>Revisados alguns aspectos elementares da felicidade, voltemos à</p><p>positividade tóxica. A expressão tem sido usada para abordar uma espécie</p><p>de pressão pela adoção de um discurso positivo aliada a uma vida editada</p><p>para as redes sociais. É aqui que mora um elemento essencial acerca da</p><p>felicidade legítima: ela é uma experiência intrínseca. Sorrisos pasteurizados</p><p>em fotos sob filtros, vozes cuidadosamente moduladas e falas que se</p><p>assemelham a pregações são apenas artifícios, esses sim tóxicos, daquilo</p><p>que surgiu bem antes da internet: a vida de fachada e a comercialização de</p><p>receitas mágicas.</p><p>Importante mesmo é saber que nas últimas duas décadas a psicologia e</p><p>as neurociências produziram mais informações sobre felicidade do que foi</p><p>produzido em toda a história das ciências empíricas. Romperam um ciclo</p><p>histórico de pessimismo científico quanto à possibilidade do ser humano</p><p>fomentar sua própria felicidade. Produziram escalas para mensuração do</p><p>bem-estar e intervenções para ampliá-lo. Enfim, abriram a porta para que</p><p>nos reconciliemos com a possibilidade de uma vida feliz, para além do</p><p>happy hour, da sexta-feira e das férias.</p><p>Em primeira pessoa</p><p>A vida não é um concurso nem de sucesso, nem de afluência material, nem</p><p>de beleza e nem de juventude. Não há pódio para a felicidade, embora nos</p><p>façam acreditar que haja, que seja definitivo e que a satisfação de desejos</p><p>seja o caminho para chegar até lá. Uma existência significativa apresenta-se</p><p>muito mais relacionada ao contentamento que à realização dos desejos.</p><p>Como teria afirmado Santo Agostinho: “felicidade é seguir desejando aquilo</p><p>que já se possui”.</p><p>Há um fenômeno psicológico intitulado adaptação hedônica, cunhado</p><p>por Brickman e Campbell (1971), que sustenta que eventos bons e ruins</p><p>afetam temporariamente a felicidade, uma vez que tendemos a retornar ao</p><p>set point, ou nível basal, de felicidade. Embora estudos recentes mostrem</p><p>que há variações de indivíduo para indivíduo e de circunstância para</p><p>circunstância, além de intervenções capazes de hackear a adaptação</p><p>hedônica, a autorrealização não se apresenta como o caminho mais eficaz</p><p>para isso.</p><p>Para além da Teoria da Motivação Humana de Maslow (1943), cujo</p><p>ápice é a autorrealização, temos potencial para a autotranscedência. Isso</p><p>significa que encontramos o trilho da felicidade quando deixamos uma</p><p>posição autocentrada para afetarmos positivamente outras pessoas. O The</p><p>Center for Compassion and Altruism (CCARE), da Universidade de</p><p>Stanford (EUA), reúne inúmeras evidências empíricas dos benefícios</p><p>psíquicos e fisiológicos das práticas altruístas e compassivas.</p><p>Ser humano, como descreveu o neuropsiquiatra austríaco Viktor Frankl</p><p>(1966), significa estar aberto ao mundo repleto de outros seres com seus</p><p>próprios sentidos a realizar. Há mais sobre o bem-estar dos outros em nosso</p><p>próprio bem-estar do que postulam as soluções mágicas ao alcance das</p><p>nossas mãos, literalmente, através de nossos smartphones.</p><p>O ser encerrado em uma ilha não é feliz. O ser exausto também não.</p><p>Tampouco o ser que faz da felicidade uma atuação. Felicidade é resultado</p><p>de equilíbrio entre o eu e o nós, a ação e o repouso, o saber dizer sim e o</p><p>poder dizer não. É, ainda, sobre autenticidade e congruência.</p><p>Referências</p><p>BRICKMAN, P.; CAMPBELL, D. T. “Hedonic Relativism and Planning</p><p>the Good Society”. In: M. H. Appley (Ed.) Adaptation level theory: A</p><p>symposium. New York: Academic Press, 1971, pp. 287-302.</p><p>BUTOVSKAYA, M. L. et al. “Cross-Cultural Perspectives on the Role of</p><p>Empathy during COVID-19’s First Wave”. Sustainability, v. 13, nº 13</p><p>(2021), 7431. Disponível em: http://dx.doi.org/10.3390/su1313743. Acesso</p><p>em 8 nov. 2021.</p><p>HAN, B. C. Sociedade do Cansaço. Portugal: Relógio D’Água, 2014.</p><p>EISENBERGER, N. I. “The Neural Bases of Social Pain: Evidence for</p><p>Shared Representations with Physical Pain”. Psychosomatic medicine, v.</p><p>74, nº 2 (2012), pp. 126-135. Disponível em: https://doi.org/10.1097/PSY.</p><p>0b013e3182464dd1. Acesso em 8 nov. 2021.</p><p>LYUBOMIRSKY, S.; SHELDON, K.; SCHKADE, D. “Pursuing</p><p>Happiness: The Architecture of Sustainable Change”. Review of General</p><p>Psychology, v. 9, n º 2 (2005), pp. 11-131.</p><p>FRANKL, V. E. “Self-Transcendence as a Human Phenomenon”. Journal</p><p>of Humanistic Psychology, v. 6, nº 2 (1966), pp. 97–106.</p><p>HELLIWELL, J. F. et al. World Happiness Report 2021. New York:</p><p>Sustainable Development Solutions Network, 2021.</p><p>MASLOW, A. H.</p><p>(1943). “A Theory of Human Motivation”. Psychological</p><p>Review, v. 50, nº 4 (1943), pp. 370-396. Disponível em: https://doi.</p><p>org/10.1037/h0054346. Acesso em 8 nov. 2021.</p><p>SELIGMAN, M. Flourish. Nova Iorque: Free Press, 2011.</p><p>VALLIANT, G. E. Triumphs of Experience: The Men of the Grant Harvard</p><p>Study. Cambridge: Harvard University Press, 2012.</p><p>WALDINGER, R. (2015, novembro). “Do que é feita uma vida boa? Lições</p><p>do mais longo estudo sobre felicidade” [Vídeo]. Conferências TED, nov.</p><p>2015. Disponívem em:</p><p>https://www.ted.com/talks/robert_waldinger_what_makes_a_good_life_less</p><p>ons_from_the_longest_study_on_ happiness?language=pt-br. Acesso em 8</p><p>nov. 2021.</p><p>WOLPERT, Stuart. “UCLA Neuroscientist’s Book Explains Why Social</p><p>Connection is as Important as Food and Shelter. Newsroom, 10 out. 2013.</p><p>Disponível em: https://newsroom.ucla.edu/releases/we-are-hard-wired-to-</p><p>be-social-248746. Acesso em 8 nov. 2021.</p><p>CAPÍTULO 5</p><p>Felicidade Interna Bruta: a responsabilidade do</p><p>Estado</p><p>Há uma dimensão pouco explorada da felicidade, a dimensão social. No</p><p>sentido de ajustar a rota, a psicologia positiva aponta para uma terceira onda</p><p>(Lomas et al., 2020), que propõe um avanço nas investigações para além do</p><p>indivíduo, contemplando cada vez mais os sistemas humanos — como</p><p>família, organizações e comunidades.</p><p>Reconhecidos os esforços da psicologia positiva no sentido de ampliar</p><p>sua atuação, é necessário enfatizar que o Butão, com o apoio oficial da</p><p>Organização das Nações Unidas (ONU), já emprega uma abordagem de</p><p>amplo escopo para a promoção da felicidade da população. Iniciado na</p><p>primeira década deste século, o sistema Felicidade Interna Bruta (FIB) afere</p><p>as condições sociais e estabelece ações que visam melhorar tais condições</p><p>para que o cidadão possa deliberar em prol de sua felicidade. Neste capítulo</p><p>vamos explorar aspectos sociais e de gestão pública relacionados à</p><p>felicidade tendo como exemplo o modelo butanês.</p><p>O papel do Estado</p><p>No âmbito social, é importante compreender a relação entre o</p><p>desenvolvimento das nações e a felicidade dos cidadãos. Os países menos</p><p>felizes tendem a estar entre os mais pobres, sendo importante destacar que</p><p>riqueza e indicadores sociais, nesse caso, estão relacionados (Diener &</p><p>Diener, 1995). Isso pode ser evidenciado pelo World Happiness Report,</p><p>relatório mundial da felicidade editado anualmente sob chancela da</p><p>Organização das Nações Unidas (ONU). O documento traz o ranking da</p><p>felicidade das nações, com base nos seguintes critérios: PIB/Per Capita,</p><p>Expectativa de Vida no Nascimento, Percepção de Corrupção, Existência de</p><p>uma Rede de Apoio, Liberdade para Fazer Escolhas, Generosidade e</p><p>Avaliação Pessoal e Subjetiva da Felicidade. No topo estão nações que se</p><p>destacam nos critérios sociais e econômicos e sociais, o que confere aos</p><p>governos papel prioritário no bem-estar da população (Helliwell, Layard &</p><p>Sachs, 2019).</p><p>A relação Felicidade-Estado não é recente. Para Aristóteles (2007) era</p><p>papel do Estado assegurar as condições necessárias para a felicidade de seus</p><p>cidadãos. O Código Legal do Butão, de 1729, determinava: “Se o governo</p><p>não pode criar felicidade para seu povo não há razões para ele existir” (Ura</p><p>et al., 2012). Na Declaração de Independência dos Estados Unidos Thomas</p><p>Jefferson referenciou o filósofo John Locke (Dornelles, 1989) ao destacar</p><p>que a vida, a liberdade e a busca pela felicidade são direitos humanos</p><p>inalienáveis (EUA, 1776) e é tarefa do governo protegê-los. No Brasil, o</p><p>ex-senador Cristovam Buarque buscou incluir na Constituição o direito à</p><p>busca da felicidade por cada indivíduo e pela sociedade, através da Proposta</p><p>de Emenda n° 19, que ficou conhecida como PEC da Felicidade (Brasil,</p><p>2010), arquivada em 2014.</p><p>O PIB não é suficiente</p><p>Enquanto destacaram que o bem-estar da população deveria se tornar o foco</p><p>primeiro dos governantes, Diener e Seligman (2004) engrossaram o coro</p><p>daqueles que questionam o Produto Interno Bruto (PIB) enquanto indicador</p><p>de desenvolvimento. Isso remete ao épico discurso do senador americano</p><p>Robert Kennedy (1968), realizado na Universidade de Kansas durante a</p><p>campanha à presidência dos EUA:</p><p>Por muito tempo, parece que renunciamos a nossa excelência pessoal</p><p>e dos nossos valores comunitários à mera acumulação de bens materiais.</p><p>Nosso Produto Interno Bruto agora ultrapassa US$ 800 bilhões de</p><p>dólares por ano, mas esse Produto Interno Bruto — se julgarmos os</p><p>Estados Unidos da América por isso — contabiliza a poluição do ar, a</p><p>publicidade de cigarros e as ambulâncias que limpam nossas rodovias</p><p>da carnificina [...] No entanto, o Produto Interno Bruto não contabiliza a</p><p>saúde de nossos filhos, a qualidade da educação ou a alegria que</p><p>experimentam quando brincam. Não inclui a beleza de nossa poesia ou</p><p>a força de nossos casamentos, a inteligência de nosso debate público ou</p><p>a integridade de nossos funcionários públicos. Não mede nem a nossa</p><p>inteligência, nem a nossa coragem, nem a nossa sabedoria, nem a nossa</p><p>aprendizagem, nem a nossa compaixão ou a nossa devoção ao País.</p><p>Mede tudo, exceto o que faz a vida valer a pena. E pode nos contar tudo</p><p>sobre a América, exceto o porquê de termos orgulho de sermos</p><p>americanos.</p><p>Diener e Seligman (2004) avaliaram fatores importantes que influenciam</p><p>o bem-estar social, mas não são capturados pelo PIB. Após revisão</p><p>sistemática, destacaram os seguintes aspectos como exercendo impacto</p><p>sobre a felicidade do cidadão: viver em uma sociedade democrática e</p><p>estável; contar com uma rede de apoio social e afetivo; exercer um trabalho</p><p>recompensador e com renda adequada; ser razoavelmente saudável e dispor</p><p>de tratamento diante de problemas mentais; possuir objetivos alinhados aos</p><p>valores pessoais; e ter filosofia ou religião que sustente um significado de</p><p>vida pessoal.</p><p>Em 2010, Easterlin, Angelescu, Malgorzata, Sawangfa e Zwieg</p><p>revisitaram o estudo conhecido como Paradoxo Easterlin, de 1995, cujos</p><p>achados mostraram que nos países desenvolvidos a felicidade não aumenta</p><p>à medida que a renda é incrementada. Sabe-se, a partir de então, que a</p><p>relação nula entre felicidade e renda vale também para vários países em</p><p>desenvolvimento. Contudo, ressalta-se que tal avaliação é válida para</p><p>longos períodos, cerca de dez anos. Em análises por períodos curtos, a</p><p>felicidade apresenta queda em retrações econômicas e incremento em</p><p>expansões.</p><p>O argumento para a manutenção do capital enquanto principal variável</p><p>de desenvolvimento socioeconômico é que a felicidade não pode ser</p><p>medida com a mesma exatidão que o dinheiro. Contudo, a aferição do bem-</p><p>estar tem avançado de maneira consistente, permitindo que o tema ocupe</p><p>lugar privilegiado no debate político (Diener & Seligman, 2004).</p><p>O Butão</p><p>O Butão é uma monarquia constitucional espremida entre a China e a Índia.</p><p>Cercados pela Cordilheira Himalaia, os cerca de 760 mil habitantes</p><p>parecem ter entrado em acordo com o tempo, vivendo sem pressa o que</p><p>verdadeiramente possuímos: o presente. Aterrissar no aeroporto</p><p>internacional de Paro não é tarefa para turista, mas sim, para peregrino.</p><p>Pequeno, irrelevante no comércio internacional, recém-saído do grupo</p><p>dos países mais pobres do planeta, o Butão vem mostrando ao mundo que</p><p>as escolhas não precisam ser binárias, que não é necessário optar entre o</p><p>meio ambiente ou a economia, as pessoas ou o lucro, o PIB ou o bem-estar</p><p>social. A filosofia e o modelo de gestão pública estabelecidos propõem</p><p>crescimento com valores. Em esferas mais sofisticadas, esse paradigma se</p><p>chama sustentabilidade, o maior desafio da civilização humana nesta</p><p>década.</p><p>Primeiro e único país carbono-negativo, o Butão não só zera suas</p><p>emissões como também neutraliza o CO2 emitido por outras nações.</p><p>Garante em sua constituição a cobertura obrigatória de 60% de seu território</p><p>por florestas. Afere periodicamente o Índice de Felicidade Interna Bruta</p><p>(FIB) de sua população. Estabelece prioridades nas políticas públicas de</p><p>acordo com as vulnerabilidades observadas na pesquisa FIB — isso</p><p>independente do partido no poder. Garante saúde e educação para 100% da</p><p>população. E, apesar de um PIB per capita</p><p>inexpressivo e do fato de ter no</p><p>turismo sua segunda fonte de receita, não hesitou em fechar as fronteiras</p><p>para combater a pandemia do COVID-19.</p><p>Felicidade Interna Bruta</p><p>O FIB ganhou destaque mundial em 2012, após reunião do alto</p><p>comissariado da ONU, na qual foi apontado como novo paradigma de</p><p>desenvolvimento socioeconômico (Royal Government of Bhutan, 2012).</p><p>Para preparação de sólido arcabouço teórico, por iniciativa do Butão e com</p><p>o apoio da ONU, foram convocados 28 cientistas de diferentes áreas e</p><p>nacionalidades. Nomes como Alejandro Adler, Ed Diener, Ilona Boniwell,</p><p>Martin Seligman e Sabina Alkire trabalharam no compêndio intitulado</p><p>Happiness: Transforming the Development Landscape (2017).</p><p>O termo Felicidade Interna Bruta foi cunhado pelo quarto rei do Butão,</p><p>Jigme Singye Wangchuck, tendo sido mencionado pela primeira vez em</p><p>1979, durante entrevista do então monarca durante visita à Índia.</p><p>Questionado sobre o Produto Interno Bruto de seu país, ele apontou que no</p><p>Butão o FIB era mais importante que o PIB. A partir daí, o país passou a</p><p>orientar suas políticas e planos de desenvolvimento com foco no FIB (Ura</p><p>et al., 2012). Mais tarde, o rei instituiu na nova Constituição o artigo 9º, no</p><p>qual o Estado deveria promover todas as condições para o alcance da</p><p>Felicidade Interna Bruta (Bhutan, 2008).</p><p>O FIB engloba filosofia, modelo de gestão e índice. Como filosofia está</p><p>apoiado em valores tangíveis e intangíveis, não se opondo ao PIB, mas à</p><p>ideia de que a busca pela prosperidade seja o objetivo único do Estado.</p><p>Defende que o desenvolvimento sustentável deve adotar uma abordagem</p><p>holística em relação às noções de progresso e dar igual importância aos</p><p>aspectos não econômicos, como o bem-estar da população e a preservação</p><p>do meio ambiente (Zangmo et al., 2017). Enquanto modelo de gestão, está</p><p>alicerçado em quatro diretrizes: desenvolvimento econômico sustentável,</p><p>preservação do meio ambiente, promoção e preservação da cultura e boa</p><p>governança.</p><p>Como índice, o FIB mensura as condições da população para a</p><p>felicidade e não a felicidade em si. De natureza multidimensional, difere</p><p>das escalas de bem-estar subjetivo concebidas no ocidente e não está focado</p><p>na felicidade individual apenas, por considerar que a busca pela felicidade é</p><p>coletiva (Ura et al., 2012). Avalia nove domínios (Figura 5.1):</p><p>O índice FIB é elaborado a partir de pesquisa nacional por amostragem,</p><p>realizada a cada cinco anos. Funciona como ponto de partida para a</p><p>realização do Plano de Governo para os cinco anos subsequentes, cabendo</p><p>às lideranças estabelecer políticas públicas e ações que incrementem os</p><p>domínios vulneráveis, com o objetivo de elevar o índice (Ura et al., 2012).</p><p>Figura 5.1</p><p>Domínios avaliados pelo Índice Felicidade Interna Bruta (Ura, 2017)</p><p>Em primeira pessoa</p><p>Ao contrário do que é amplamente divulgado, o Butão não é o país mais</p><p>feliz do mundo, não figura nessa posição em nenhum ranking e não carrega</p><p>em sua narrativa o desejo de competir por esse lugar. Além disso, a nação</p><p>tem importantes desafios, em especial no âmbito do crescimento</p><p>econômico, imprescindível ao seu desenvolvimento, e na preservação de</p><p>sua identidade e cultura.</p><p>O Butão não é uma utopia, é um exercício vivo no combate à distopia. É</p><p>a busca por uma gestão pública que não perca de vista a razão da política,</p><p>que é o bem-estar do cidadão. É um convite à reflexão acerca do que</p><p>realmente importa. Afinal, como disse Robert Kennedy: “o PIB mede tudo,</p><p>exceto o que faz a vida valer a pena”. O país, com seu FIB, propõe que</p><p>mensuremos o progresso considerando economia, meio ambiente e</p><p>felicidade.</p><p>Mais do que um destino, o Butão nos oferece a experiência de um novo</p><p>paradigma, nos lembra que o mundo tal qual vivenciamos é uma construção</p><p>da mente humana e, como tal, pode ser reconfigurado. “A felicidade é um</p><p>lugar”, diz o slogan oficial do país. Desde a primeira vez que pisei no</p><p>Butão, este lugar está em mim.</p><p>Referências</p><p>ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Nova Cultural, 1987.</p><p>BRASIL. “Projeto de Emenda Constitucional nº 19”, 2010.</p><p>BUTHAN “The Constitution of the Kindgom of Bhutan”, 2008</p><p>DIENER, E.; DIENER, M.; DIENER, C. “Factors Predicting the Subjective</p><p>Well-Being of Nations”. Journal of Personality and Social Psychology, v.</p><p>69, , v. 69, 3514.69.5.851. Acesso em 9 nov. 2021.</p><p>DIENER, E.; SELIGMAN, M.E.P. “Beyond Money Toward an Economy of</p><p>Well-Being”. Psychological Science in the Public Interest, v. 5, nº 1 (2004),</p><p>pp. 1-31. Disponível em: https://doi.org/10.1111/j.0963-</p><p>7214.2004.00501001.x. Acesso em 9 nov. 2021.</p><p>DORNELLES, J. R. W. O Que São Direitos Humanos. São Paulo:</p><p>Brasiliense, 1989.</p><p>EASTERLIN, R. et al. “The Happiness–Income Paradox Revisited”. PNAS,</p><p>v. 107, nº 52 (2010), pp. 22463-22468. Disponível em: . Acesso em 9 nov. 2021.</p><p>ESTADOS UNIDOS. Declaração de Independência, 1776.</p><p>HELLIWELL, J.; LAYARD, R.; SACHS, J. World Happiness Report 2019.</p><p>New York: Sustainable Development Solutions Network, 2019.</p><p>KENNEDY, R. “Remarks of Robert F. Kennedy at the University of Kan</p><p>sas”. JFK Library, 1968.</p><p>LOMAS, T. et al. “Third Wave Positive Psychology: Broadening Towards</p><p>Complexity”. The Journal of Positive Psychology, v. 16, nº 9 (2020).</p><p>ROYAL GOVERNMENT OF BHUTAN. “The Report of the High-Level</p><p>Meeting on Wellbeing and Happiness: Defining a New Economic</p><p>Paradigm”. Thimphu: Office of the Prime Minister, 2012.</p><p>URA, K. et al. An Extensive Analyzis to GNH Index. Butão: The Centre for</p><p>Bhutan Studies, 2012.</p><p>ZANGMO, T.; WANGDI, K.; PHUNTSHO, J. Proposed GNH of Business.</p><p>Butão: The Centre for Bhutan Studies, 2017.</p><p>Parte II</p><p>Felicidade de quem trabalha</p><p>“Que tipo de empresa criar: aquela na qual todos quisessem estar, inclusive eu? Como criar um</p><p>ambiente no qual todos se sentissem bem de modo que se pudessem fariam o trabalho de graça?”</p><p>Tony Hsieh</p><p>CAPÍTULO 6</p><p>Felicidade no trabalho: será?</p><p>Se você chegou até aqui após ler os capítulos anteriores, o que vou afirmar</p><p>agora não será de todo uma novidade: não há uma única definição universal</p><p>para felicidade no trabalho, bem como não há um instrumento perfeito para</p><p>aferi-la. Talvez, com o andamento da leitura, eu conseguia inclusive</p><p>persuadir você sobre a falta de pertinência da expressão “felicidade no</p><p>trabalho”. Sigamos um passo de cada vez.</p><p>As várias faces da felicidade no trabalho</p><p>Felicidade no trabalho é um construto, ou seja, um conceito teórico que</p><p>envolve aspectos observáveis e passíveis de mensuração. Você não vai</p><p>encontrar a definição em um dicionário de uso comum, mas sim na</p><p>produção teórica e empírica publicada em periódicos científicos. Aqui cabe</p><p>um parêntese: nem tudo que é publicado em um periódico é consistente,</p><p>porque há periódicos que não são consistentes e artigos que não são</p><p>consistentes. Para conhecer a relevância das revistas científicas, no Brasil</p><p>usa-se a classificação Qualis Capes, que vai enquadrar os periódicos de A1</p><p>(o mais elevado) a C. Já para identificar a relevância de um artigo, o</p><p>número de citações que ele recebeu é um dos critérios, contudo o critério</p><p>mais importante é o pensamento crítico do leitor.</p><p>Ao se revisitar a produção científica das últimas décadas, é possível</p><p>identificar diferentes construtos relacionados à felicidade no trabalho. Cada</p><p>um deles acessa uma das inúmeras facetas do fenômeno, mas nenhum é</p><p>capaz de fazê-lo por inteiro. Há os que avaliam aspectos subjetivos — da</p><p>ordem do que sentimos em relação ao trabalho — e há os de natureza</p><p>cognitiva — sobre o que pensamos em relação ao trabalho. Para trazer</p><p>maior complexidade, existem outras variáveis, como a oscilação: a</p><p>depender do que ocorre pode haver modificação de como nos sentimos ou</p><p>de como avaliamos o trabalho em um mesmo dia.</p><p>Um dos construtos mais maduros e mais estudados é a Satisfação no</p><p>Trabalho (Lock, 1976), definido como o estado emocional positivo</p><p>resultante da avaliação que cada pessoa faz de sua experiência de trabalho.</p><p>Para aferição há diferentes instrumentos, como a Escala de Satisfação no</p><p>Trabalho (EST), a Job Satisfaction Survey (JSS) e</p><p>a Minnesota Job</p><p>Satisfaction Questionnaire (MSQ). A recomendação na seleção de</p><p>instrumentos é privilegiar aqueles que já foram validados no país onde</p><p>serão aplicados. No caso da Satisfação no Trabalho, das três citadas a</p><p>recomendação para o Brasil é a EST. Quanto a críticas, Weiss (2002)</p><p>aponta: esse é um construto predominantemente cognitivo, que ignora</p><p>aspectos afetivos.</p><p>Outros dois (com pouquíssima popularidade) são Comprometimento</p><p>com o Trabalho e Envolvimento com o Trabalho. Sobre o primeiro, cabe</p><p>esclarecer que há diferentes naturezas de comprometimento: instrumental</p><p>— quando permanecemos no mesmo trabalho por falta de alternativa — e</p><p>por identificação pessoal — quando permanecemos por congruência de</p><p>valores e conexão afetiva (Swailes, 2002). Certamente a primeira não é</p><p>relevante para a felicidade. Quanto ao Envolvimento com o Trabalho, está</p><p>relacionado ao grau de identificação psicológica do indivíduo com sua</p><p>atividade laboral (Lodahl & Kejnar, 1965).</p><p>Na trilha da apresentação dos construtos vem o Engajamento no</p><p>Trabalho, esse sim bastante popular nas organizações mundiais, inclusive</p><p>nas brasileiras. É definido como o estado mental positivo e satisfatório</p><p>caracterizado por vigor, dedicação e absorção, sendo usualmente mensurado</p><p>pela Escala de Utrecht ou UWES (Schaufeli et al., 2002). Quanto a críticas,</p><p>Weiss (2002) aponta: esse é um construto predominantemente cognitivo,</p><p>que ignora aspectos afetivos. Além disso, o engajamento de um mesmo</p><p>trabalhador pode variar significativamente dia a dia (Sonnentag, 2003).</p><p>Mais um construto presente nas investigações acerca da felicidade</p><p>laboral é o Bem-Estar no Trabalho (BES). Compreende a prevalência de</p><p>emoções positivas e a percepção da expressão dos potenciais pessoais e de</p><p>avanços em direção a realizações. Por incluir aspectos afetivos e cognitivos</p><p>contempla as abordagens hedônica e eudaimônica (Paschoal, 2008).</p><p>Sem a pretensão de esgotar o assunto, vale trazer mais um: o Estado de</p><p>Fluxo (Flow), descrito por Csikszentmihalyi (1990). Ocorre quando o</p><p>indivíduo está totalmente absorvido pelo uso de suas habilidades frente a</p><p>um desafio, quando estímulos externos e passagem do tempo são</p><p>imperceptíveis. Esse fenômeno (já abordado no capítulo 2) tem potencial de</p><p>gerar ótimo funcionamento e satisfação. Há inúmeros instrumentos para</p><p>avaliação do estado de fluxo, como o Inventário de Flow no Trabalho</p><p>(WOLF) já validado no Brasil (Freitas et al., 2019).</p><p>Qual é o melhor construto para minha organização?</p><p>Um dos principais aprendizados quando se decide trabalhar com felicidade</p><p>é compreender não há uma única definição universal para felicidade e não</p><p>há um instrumento perfeito para aferi-la (desde já peço desculpas pela</p><p>redundância, ela é necessária). Aliás, se alguém oferecer a bala de prata,</p><p>desconfie prontamente pois há grande probabilidade de a tal bala de prata</p><p>ser exatamente o produto que essa pessoa deseja vender.</p><p>Os cientistas são os primeiros a alertar para a necessidade de uma</p><p>abordagem mais ampla. Fisher (2010) sugere que na hora de avaliar a</p><p>felicidade no trabalho sejam considerados: Engajamento — representando o</p><p>envolvimento e o prazer com a atividade laboral; Satisfação com o Trabalho</p><p>— representando aspectos cognitivos como salário e clima organizacional;</p><p>e Comprometimento por Identificação Pessoal — representando fatores</p><p>como pertencimento e alinhamento de valores. Mas atenção: isso não é uma</p><p>prescrição até porque não existe receita da felicidade.</p><p>No âmbito das iniciativas corporativas, a recomendação é eleger um</p><p>construto, seja ele um dos citados anteriormente ou qualquer outro não</p><p>mencionado; qualquer que seja o que a organização decidir, desde que</p><p>razoavelmente embasado. Isso é fundamental, porque será necessário</p><p>repetir exaustivamente o que é felicidade, para que ninguém se confunda</p><p>(assim como já ouvi em um banco) com: “como seremos felizes se o</p><p>sistema cai com frequência?”. O sistema precisa de estabilidade,</p><p>independentemente de a empresa estar comprometida com a promoção da</p><p>felicidade. E mais, não poderemos delegar a nossa felicidade ao sistema</p><p>porque se há algo certo na vida é que ele vai experimentar instabilidades.</p><p>O que é felicidade no trabalho para a sua empresa? Tome o tempo</p><p>necessário para responder a essa pergunta antes de se lançar no</p><p>planejamento e na operacionalização. Lembre-se também que se decidir</p><p>sem ouvir as partes interessadas, os colaboradores, poderá definir o que faz</p><p>sentido para você ou para o board e não para o coletivo. Considere, ainda, a</p><p>necessidade de contemplar aspectos subjetivos e cognitivos (exploramos</p><p>isso no capítulo 2). Em todo caso, não pense nisso até o final deste capítulo,</p><p>há mais camadas a serem exploradas.</p><p>Felicidade no trabalho x Felicidade de quem trabalha</p><p>Até aqui cumprimos o trajeto estabelecido pelo paradigma vigente, da</p><p>felicidade no trabalho, que é para muitos uma espécie de evolução da</p><p>Qualidade de Vida no Trabalho (QVT). Você, inclusive, pode se sentir</p><p>satisfeito com a visita aos construtos apresentados e as indicações para que</p><p>desenvolva o seu construto a partir do que já foi produzido pela ciência,</p><p>adaptado aos desafios e necessidades das pessoas em sua organização. Mas</p><p>podemos, e devemos, ir muito além, estabelecendo um novo paradigma</p><p>para um novo tempo. É preciso evoluir.</p><p>Por que mesmo falamos sobre felicidade no trabalho? Não estaríamos</p><p>com isso perpetuando o ultrapassado convite para que os colaboradores</p><p>deixem a vida pessoal na porta da empresa? Em tempos de</p><p>desmaterialização do trabalho, onde fica mesmo a porta da empresa? O</p><p>mundo não é mais como era antigamente, diz a música, e o desafio</p><p>equilíbrio vida pessoal-trabalho deu espaço a outro ainda maior, gostemos</p><p>ou não: a integração vida pessoal-trabalho.</p><p>A partir daqui e sem desconsiderar tudo que foi construído pelos</p><p>pesquisadores, o convite é apreciarmos um novo paradigma: o da felicidade</p><p>de quem trabalha. Ou seja: olharmos para o trabalhador de maneira integral,</p><p>dentro e fora de seu espaço real ou digital de atuação profissional, para</p><p>além dos quesitos que dizem respeito à organização. Nunca foi sobre duas</p><p>pessoas, a que trabalha e a que vive, hoje menos ainda. Tempo laboral é</p><p>tempo de vida, seja bem vivido ou não. Vida nunca teve banco de horas.</p><p>Na prática, o novo paradigma implica em não segmentar a felicidade. Ao</p><p>contrário: é urgente integralizá-la. Diante disso, uma possibilidade é partir,</p><p>também nas iniciativas corporativas, do construto visto no capítulo 2:</p><p>felicidade é a experiência de contentamento e bem-estar combinada à</p><p>sensação de que a vida possui sentido e vale a pena (Lyubomirsky et al.,</p><p>2005). A título de curiosidade, a Universidade de Berkeley, em seu curso</p><p>The Foundations of Happiness at Work, parece ter se apoiado nisso para</p><p>estabelecer seu construto de felicidade no trabalho: percepção de que o</p><p>tempo no trabalho é bem vivido, com motivação, e de que o que se faz tem</p><p>valor. Tempo bem vivido fala sobre contentamento, enquanto trabalho com</p><p>valor fala sobre sentido.</p><p>Compreendendo-se que a organização não faz o trabalhador feliz, mas</p><p>atua nas condições com potencial de afetar positiva ou negativamente a</p><p>busca individual pela felicidade e, ainda, que as condições pessoais e</p><p>profissionais se sobrepõem, a forma adequada de aferição deve transcender</p><p>os muros da empresa. Veja que não estamos mais falando de felicidade no</p><p>trabalho, mas da felicidade de quem trabalha.</p><p>Em minha dissertação de mestrado, já a bordo da defesa desse novo</p><p>paradigma, investiguei a relação entre as condições pessoais de felicidade</p><p>do trabalhador e seu engajamento no trabalho. A primeira variável foi</p><p>avaliada com uso da adaptação para o ambiente corporativo brasileiro da</p><p>escala Felicidade Interna Bruta (vimos FIB no capítulo 5). Essa escala, já</p><p>validada no Brasil e batizada de FIB-T (Furtado, 2020), ultrapassa os muros</p><p>da empresa para compreender os antecedentes de felicidade vivenciados</p><p>pelo trabalhador em nove domínios (os mesmos do FIB no Butão): Bem-</p><p>estar psicológico, Saúde, Uso do tempo, Vitalidade comunitária, Educação,</p><p>Cultura, Meio ambiente, Governança e Padrão de vida. Para verificar o</p><p>engajamento no trabalho foi empregada a Escala de Utrecht, desenvolvida</p><p>por Schaufeli, Salanova, González-Romá e Bakker (2002).</p><p>A relação das escalas confirmou a hipótese de que indivíduos com</p><p>melhores condições pessoais de felicidade apresentam maior engajamento</p><p>no trabalho. Evidenciou-se nos estudos estatísticos uma correlação</p><p>extremamente significativa entre as variáveis (p≤0,001). Ou seja: olhar para</p><p>o ser humano de maneira integral, além-muros da empresa, permite às</p><p>organizações o desenvolvimento de políticas de qualidade de vida mais</p><p>assertivas e benéficas aos trabalhadores, à sociedade e, consequentemente,</p><p>ao próprio negócio.</p><p>Como bem afirmou Joseph Stiglitz, ganhador do prêmio Nobel de</p><p>economia: se você não mensura aspectos corretos, não implementa as ações</p><p>necessárias. Tome-se por exemplo o domínio Uso do Tempo, presente no</p><p>FIB, que avalia a qualidade do repouso do indivíduo, entre outros itens.</p><p>Estudos mostraram que pessoas que sofrem de restrição de sono crônica</p><p>podem apresentar comportamento de risco aumentado e deficiências no</p><p>raciocínio que resultam da busca de conclusões prematuras sem considerar</p><p>todos os aspectos de um problema. Além disso, a falta de sono aumenta a</p><p>probabilidade de acidentes e erros críticos no local de trabalho (Chattu et</p><p>al., 2018).</p><p>No Brasil, as prevalências de distúrbios de sono e fadiga durante o dia</p><p>são de 14,9% e 11,9%, respectivamente (Wendtet et al., 2019). Conhecer a</p><p>incidência de distúrbios do sono em um grupo de trabalhadores pode indicar</p><p>a necessidade de ações educativas e assistenciais. Se quisermos retomar a</p><p>conversa neurocientífica (capítulo 3), vale destacar que a falta de sono</p><p>restaurador compromete o humor. Costumo dizer que é quase impossível</p><p>ser feliz quando se está cronicamente cansado.</p><p>Felicidade no trabalho ou felicidade de quem trabalha? A decisão é sua e</p><p>de sua organização. O importante é tomá-la de maneira consciente e</p><p>fundamentada, lembrando que a partir da decisão haverá um construto, a</p><p>partir do construto virá a escolha de instrumento(s) de aferição e a partir dos</p><p>resultados da aferição deverá ocorrer a construção de um plano estratégico.</p><p>Considerando-se a complexidade humana, deixar variáveis importantes de</p><p>fora é iniciar o empreendimento de esforços já em desvantagem.</p><p>Fusões e confusões</p><p>É inquestionável o aquecimento da temática felicidade dentro das</p><p>organizações a partir do primeiro ano da pandemia do SARS-CoV-2, que se</p><p>desdobrou em iniciativas de bem-estar e saúde mental. Embora afins,</p><p>felicidade, bem-estar e saúde mental são distintos e precisam ter suas</p><p>especificidades compreendidas.</p><p>Para começar, cabe trazer o conceito de saúde estabelecido pela</p><p>Organização Mundial da Saúde (1948), como estado de completo bem-estar</p><p>físico, mental e social, e não apenas a ausência de enfermidade. Saúde</p><p>contém saúde mental. Já saúde mental é o estado no qual o indivíduo</p><p>desenvolve suas habilidades pessoais, consegue lidar com os estresses da</p><p>vida, trabalha de forma produtiva e encontra-se apto a dar sua contribuição</p><p>para sua comunidade (WHO, 2014).</p><p>Galderisi (2015) propôs, junto com seu grupo, um elegante conceito para</p><p>saúde mental: estado dinâmico de equilíbrio interno que permite ao</p><p>indivíduo usar suas habilidades em harmonia com os valores universais da</p><p>sociedade. Por habilidades, das ordens cognitiva e social, entendam-se:</p><p>capacidade de reconhecer, expressar e modular as próprias emoções, bem</p><p>como ter empatia pelos outros; flexibilidade e capacidade de lidar com</p><p>eventos adversos da vida; e relação harmoniosa entre corpo e mente. O que</p><p>esses pesquisadores fizeram foi ressaltar o caráter coletivo da saúde mental,</p><p>ou seja, se meu comportamento é benéfico para mim, mas deletério para os</p><p>outros não pode ser reconhecido como saudável.</p><p>Quanto a bem-estar, ele é plural e trará diferentes dimensões de acordo</p><p>com o referencial teórico empregado. Além disso, não deve ser considerado</p><p>um estado estático, mas sim dinâmico. Dodge e outros pesquisadores</p><p>(2012) propuseram a seguinte definição: ponto de equilíbrio entre o</p><p>conjunto de recursos psicológicos, sociais e físicos de um indivíduo e os</p><p>desafios enfrentados. Se os desafios forem superiores aos recursos</p><p>disponíveis, o bem-estar se reduz. Lembremo-nos de que nos estudos da</p><p>psicologia positiva (capítulo 2), a felicidade é construída sobre duas</p><p>dimensões de bem-estar: o subjetivo (afetivo) e o psicológico (cognitivo).</p><p>Apresentadas diferenças, mesmo que brevemente, fica claro que a</p><p>escolha do escopo de uma iniciativa organizacional não é apenas uma</p><p>questão de gosto pessoal. Embora tenham interseção, felicidade, bem-estar</p><p>e saúde mental demandam planejamentos específicos e composição de</p><p>times com as qualificações necessárias para implementação de cada um</p><p>deles. Podemos fundi-los, mas não os confundir (Figura 6.1).</p><p>Figura 6.1</p><p>Ordem de complexidade para felicidade, bem-estar e saúde mental</p><p>Tomando-se por base o diagrama anterior, é equivocada a proposta de se</p><p>constituir um programa de saúde mental baseado apenas em preceitos da</p><p>psicologia positiva e com um time de practitioners, pessoas que passaram</p><p>por treinamentos na área. Para atuar nesse campo, devem-se cumprir pré-</p><p>requisitos, sendo psiquiatras e psicólogos os profissionais habilitados para</p><p>atuar no que tange à anamnese, diagnóstico e assistência. Não custa lembra-</p><p>se de que essa área requer profundo conhecimento do adoecimento e a</p><p>psicologia positiva não permeia esse território.</p><p>Não observar esse preceito apresenta riscos, pois quando se trata de</p><p>saúde mental, partimos do princípio de que nenhuma intervenção é</p><p>inofensiva, ou seja, se não fizer bem, mal também não faz. Pequenas</p><p>intervenções e até mesmo a meditação, cujos benefícios são validados em</p><p>inúmeros artigos científicos, pode trazer efeitos colaterais indesejados.</p><p>Escolha com responsabilidade o escopo de atuação, defina com rigor</p><p>o(s) construto(s) que orienta(m) os trabalhos, elenque um time habilitado —</p><p>incluindo a equipe de segurança e medicina do trabalho. Guarde uma</p><p>postura humilde, observando seus limites de atuação, e respeite a ciência.</p><p>Referências</p><p>CHATTU, V. K. et al. “The Global Problem of Insufficient Sleep and Its</p><p>Serious Public Health Implications. Healthcare, Switzerland: v. 7, nº 1</p><p>(2018). Disponível em: http://doi.org/10.3390/healthcare7010001. Acesso</p><p>em 12 nov. 2021.</p><p>CSIKSZENTMIHALYI, M. Flow: The Psychology of Optimal Experience.</p><p>Nova Iorque: Harper & Row, 1990.</p><p>DODGE, R. et al. “The Challenge of Defining Wellbeing”. International</p><p>Journal of Wellbeing, v. 2, nº 3 (2012), pp. 222-235. In:</p><p>https://www.internationaljournalofwellbeing.org/index.php/ijow/article/vie</p><p>w/89/238. Acesso em 12 nov. 2021.</p><p>FISHER, C. D. “Happiness at Work”. International Journal of Management</p><p>Reviews, v. 12, nº 4 (2010), pp. 384-412. Disponível em:</p><p>http://dx.doi.org/10.1111/j.1468-2370.2009.00270.x. Acesso em 12 nov.</p><p>2021.</p><p>FURTADO, C. F. “Condições Pessoais de Felicidade e Engajamento no</p><p>Trabalho: Evidências de Relação”. Dissertação (Mestrado) – Universidade</p><p>Católica de Brasília. Brasília, 2020.</p><p>GALDERISI, S. et al. “Toward a New Definition of Mental Health”. World</p><p>Psychiatry: Official Journal of the World Psychiatric Association (WPA), v.</p><p>14, nº 2 (2015), pp. 231-233. Disponível em: https://doi.org/10.1002/wps.</p><p>20231. Acesso em 12 nov. 2021.</p><p>LOCKE, E. A. The nature and causes of job satisfaction. In: DUNNETTE,</p><p>M. D. (Ed.) Handbook of Industrial and Organizational Psychology.</p><p>Chicago: Rand McNally, 1976, pp. 1297-1349</p><p>LODAHL, T.; KEJNAR, M. “The Definition and Measurement of Job</p><p>Involvement”. Journal of Applied Psychology, v. 49, nº 1 (1965), pp. 24-33.</p><p>Disponível em: http://dx.doi.org/10.1037/h0021692. Acesso em 12 nov.</p><p>2021.</p><p>LYUBOMIRSKY, S.; SHELDON, K.; SCHKADE, D. Pursuing Happiness:</p><p>The Architecture of Sustainable Change. Review of General Psychology, v.</p><p>9, , v. 9, 2680.9.2.111. Acesso em 12 nov. 2021.</p><p>ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Constituição. Genebra: OMS,</p><p>1948.</p><p>PASCHOAL, T. “Bem-Estar no Trabalho: Relações</p><p>com Suporte</p><p>Organizacional, Prioridades Axiológicas e Oportunidades de Alcance de</p><p>Valores Pessoais no Trabalho”. Tese (Doutorado). Universidade de Brasília.</p><p>Brasília, 2008.</p><p>SCHAUFELI, W. B. et al. “The Measurement of Engagement and Burnout:</p><p>A Two-Sample Confirmatory Factor Analytic Approach”. Journal of</p><p>Happiness Studies, v. 3 (2002), pp. 71–92.</p><p>SONNENTAG, S. “Recovery, Work Engagement, and Proactive Behavior:</p><p>A New Look at the Interface Between Nonwork and Work”. The Journal of</p><p>applied psychology, v. 88, nº 3 (2003), pp. 518-528. Disponível em:</p><p>https://doi.org/10.1037/0021-9010.88.3.518. Acesso em 12 nov. 2021.</p><p>SWAILES, S. “Organizational Commitment: A Critique of the Construct</p><p>and Measures”. International Journal of Management Reviews, v. 4 (2002),</p><p>pp. 155-179.</p><p>WENDT, A. et al. “Sleep Disturbances and Daytime Fatigue: Data from the</p><p>Brazilian National Health Survey 2013”. Cadernos de Saúde Pública, v. 35,</p><p>nº 3 (2019). Disponível em: https://dx.doi.org/10.1590/0102-311x00086</p><p>918. Acesso em 12 nov. 2021.</p><p>WORLD HEALTH ORGANIZATION. Promoting Mental Health:</p><p>Concepts, Emerging Evidence, Practice. Genebra: WHO, 2004.</p><p>CAPÍTULO 7</p><p>Cultura: o alicerce</p><p>Há duas formas de se abordar a felicidade no ambiente organizacional: de</p><p>maneira operacional e de maneira estratégica. A primeira opção é</p><p>constituída por ações, estando desvencilhada de macroestratégias de médio</p><p>e longo prazo. Costuma estar sob responsabilidade da média gestão,</p><p>usualmente da área de Recursos Humanos/Pessoas. É um primeiro passo,</p><p>embora sua perpetuação esteja muito vulnerável aos ventos que sopram</p><p>dentro e fora da empresa. Já ouvi relatos de executivos e consultores que</p><p>viram uma iniciativa dessa natureza ruir quando o board se deparou com</p><p>resultados de diagnósticos internos e, pior, quando testemunhou um</p><p>lampejo de brilho nos olhos dos colaboradores que ameaçava a estabilidade</p><p>do modelo de gestão baseado no comando-e-controle</p><p>Já a felicidade estratégica não é um apêndice, algo que possa ser</p><p>eliminado facilmente diante da primeira necessidade de enxugamento de</p><p>recursos ou qualquer outro fator subjetivo. Ela é estrutural para a realização</p><p>do planejamento estratégico, convertendo-se em um valor inegociável. Em</p><p>outras palavras: suprimi-la implicará na mutilação da cultura que sustenta</p><p>todo o edifício, ou melhor, o negócio. Neste capítulo vamos falar sobre isso.</p><p>Uma cultura icônica</p><p>Quando um executivo da Zappos apresenta a empresa, costuma iniciar sua</p><p>fala informando que eles não vendem sapatos, eles constroem cultura. Em</p><p>100% das vezes que tive a oportunidade de ouvi-los foi essa a narrativa</p><p>inicial. Após o anúncio oficial da pandemia afirmaram estar prontos para</p><p>mudar todo o portfólio de produtos se necessário fosse, uma vez que</p><p>confiavam na força da cultura construída.</p><p>A Zappos é uma varejista online americana que se tornou um case de</p><p>felicidade no trabalho. Seu crescimento exponencial na primeira década</p><p>deste século chamou a atenção da Amazon, que a comprou em 2009 pelo</p><p>valor de US$ 1,2 bilhão. A transação foi feita com uma exigência dos</p><p>fundadores: que Tony Hsieh seguisse como CEO da companhia. O temor</p><p>era que a aquisição destruísse o principal ativo, o jeito Zappos de encantar</p><p>seus clientes.</p><p>A filosofia por trás da empresa está descrita no livro Satisfação</p><p>Garantida, assinado pelo ex-CEO, falecido em 2020. Já o olhar atento à</p><p>experiência dos colaboradores, ou employee experience, tornou-se o</p><p>principal produto da consultoria fundada por Hsieh, a Delivering</p><p>Happiness, em tradução livre Entregando Felicidade.</p><p>Quando Hsieh faleceu após inalar fumaça em um incêndio em sua casa,</p><p>vieram à tona aspectos de sua vida desconhecidos do grande público, como</p><p>um estilo de vida excêntrico e abuso de drogas. Ele havia deixado a</p><p>liderança da empresa tempos antes do acidente, mas rapidamente pipocaram</p><p>matérias em veículos — de fofocas a negócios — apontando a incoerência</p><p>entre a vida de Hsieh e a bandeira de felicidade da Zappos. Até hoje recebo</p><p>em meu whatsapp essas publicações com mensagens do gênero “envio</p><p>porque sei que era fã dele”.</p><p>O pensamento crítico, exigência na formação de um pesquisador,</p><p>impede que tenhamos fé cega em qualquer relato. Não somos fãs nem de</p><p>nossas próprias pesquisas, somos “fãs” da metodologia científica. Para além</p><p>disso, todo estudo de caso, mesmo que tenha sido realizado em</p><p>universidades de primeira linha — como é o caso da Zappos em Stanford e</p><p>Harvard, produz apenas uma faceta da história (perdoe-me aqui a digressão,</p><p>mas preciso reverenciar Chimamanda Ngozi Adichie e sua obra O Perigo de</p><p>uma História Única). Dessa forma, sugiro que se avaliem com temperança</p><p>visitas de benchmark, estudos de caso e livros que descrevem trajetórias de</p><p>sucesso. No caso de Hsieh, é importante que se considere as</p><p>vulnerabilidades humanas às quais ele também estava sujeito. E, ainda, que</p><p>tudo vende, de trajetórias de sucesso pessoal e empresarial a mortes</p><p>precoces e trágicas.</p><p>Costumo dizer que a Zappos é um caso extremo e único. Certamente não</p><p>pode e nem deve ser replicado por 99,9% das organizações do mundo.</p><p>Contudo, há nele uma essência que pode, sim, fazer parte de todas as</p><p>organizações: a construção deliberada de uma cultura sólida e resiliente. Se</p><p>“a cultura come a estratégia no café da manhã”, como afirmou Peter</p><p>Drucker, a Zappos aprendeu a fazê-la trabalhar diuturnamente a favor de</p><p>seu planejamento. Hsieh chegou a afirmar que “para uma organização,</p><p>cultura é destino”. Concordo plenamente com isso.</p><p>Afinal, o que é cultura?</p><p>Geert Hofstede é um dos nomes essenciais nos estudos de cultura. O</p><p>psicólogo holandês iniciou seu interesse na temática nos anos 1960, a partir</p><p>dos estudos das culturas de diferentes nações. No livro Culture’s</p><p>consequences: international differences in work-related values, preconizou</p><p>cultura como uma programação coletiva da mente que distingue os</p><p>membros de um grupo humano de outro.</p><p>É dele o Culture Onion Model (Figura 7.1), modelo teórico que faz</p><p>referência às camadas de uma cebola para desvendar a cultura. A camada</p><p>mais externa é formada por símbolos, o que facilmente reconhecível nas</p><p>logomarcas e outros elementos institucionais — basta lembrar de empresas</p><p>que são prontamente lembradas por uma cor. Logo abaixo está a camada</p><p>que o psicólogo batizou de heróis, representando as pessoas com</p><p>comportamentos exemplares — muitas vezes simbolizado pelo fundador da</p><p>empresa. Na terceira camada figuram os rituais, comportamentos e eventos</p><p>recorrentes, como formatos específicos de reuniões, premiações,</p><p>celebrações, entre outros. Ao centro estão os valores, que orientam todas as</p><p>decisões e se manifestam especialmente nos rituais (Hofstede, 2001).</p><p>Outro nome icônico é Edgar Schein. O psicólogo suíço é professor</p><p>emérito de administração do MIT Sloan School of Management, com uma</p><p>vida dedicada à pesquisa em cultura e transformação organizacional. Define</p><p>cultura como “um fenômeno dinâmico que nos cerca o tempo todo, sendo</p><p>constantemente representada e criada por nossas interações com outras</p><p>pessoas e moldada pelo comportamento de liderança aliado a um conjunto</p><p>de estruturas, rotinas, regras e normas que guiam e restringem o</p><p>comportamento. Trazida ao nível organizacional, pode-se ver claramente</p><p>como estabiliza e fornece estrutura e significado para os membros do</p><p>grupo” (2004).</p><p>Figura 7.1</p><p>Culture Onion Model (Hofstede, 2001)</p><p>Conhecido como Modelo de Schein (1992), o diagrama a seguir tornou-</p><p>se uma das grandes influências nos estudos de gestão. Apesar de guardar</p><p>interseções com o Culture Onion Model de Hofstede, possui apenas três</p><p>níveis (Figura 7.2). Na região externa do diagrama estão os artefatos,</p><p>estruturas visíveis da cultura. São facilmente observáveis pelo público</p><p>externo (da identidade visual ao grau de formalidade), correspondendo à</p><p>área visível de um iceberg.</p><p>Abaixo da linha da água estão os valores compartilhados. Não são</p><p>diretamente observáveis, mas podem ser inferidos pela forma como o grupo</p><p>explica e justifica o que faz e como faz. Na área mais profunda estão os</p><p>pressupostos básicos, crenças que</p><p>de tão introjetadas podem ser</p><p>inconscientes. De dentro para fora, as três camadas mostram: o que a</p><p>organização faz, como faz e no que acredita. Quanto mais profundo o nível,</p><p>mais difícil de ser modificado.</p><p>No âmbito da psicologia positiva, o nome mais relevante para aspectos</p><p>organizacionais é Kim Cameron. Professor emérito de administração da</p><p>Michigan Ross, possui mais de trinta livros acadêmicos e 130 artigos</p><p>científicos publicados. É também cofundador do Center for Positive</p><p>Organizations da Universidade de Michigan, tendo sido reconhecido como</p><p>um dos dez maiores acadêmicos organizacionais do mundo.</p><p>Figura 7.2</p><p>Modelo de Schein (1992)</p><p>Sobre cultura organizacional o pesquisador definiu, junto com Robert E.</p><p>Quinn (2006): “reflete a ideologia prevalecente que as pessoas carregam</p><p>dentro de suas cabeças, transmite senso de identidade aos funcionários,</p><p>fornece diretrizes não escritas e muitas vezes não ditas sobre como se dar</p><p>bem na organização e aumenta a estabilidade do sistema social que o grupo</p><p>vivencia”.</p><p>Tipologias de Handy, Cameron e Quinn</p><p>Um dos nomes presentes em meu início de carreira é Charles Handy,</p><p>filósofo irlandês e especialista em comportamento e gestão organizacional.</p><p>Seus livros me fizeram companhia no transporte público de Londres quando</p><p>morava na capital inglesa. Consumi um após o outro, sendo Empty Raincoat</p><p>uma das joias da minha biblioteca.</p><p>Impossível falar de tipologia de cultura organizacional sem citá-lo.</p><p>Handy (1993) classificou quatro tipos: cultura em poder, cultura de papéis,</p><p>cultura de tarefas e cultura de pessoas. A primeira, cultura de poder, é</p><p>aquela na qual o foco está na liderança, mais comumente no “número um”,</p><p>seja ele o fundador ou um executivo contratado. Se usarmos a metáfora da</p><p>teia de aranha, nessa cultura o poder não é capilarizado para toda a teia,</p><p>permanece centralizado. É observada em organizações com forte arena</p><p>política, nas quais as decisões dependem mais de persuasão que de fatos e</p><p>argumentos.</p><p>Para a cultura de papéis, Handy usa a metáfora do tempo grego, por ser</p><p>construída sobre lógica e racionalidade. Contém certa previsibilidade, uma</p><p>vez que funciona com normas e procedimentos. Organizações com esse</p><p>traço costumam ter como pilares os departamentos financeiro e de compras.</p><p>O risco dessa cultura é o tempo que leva para perceber a necessidade de</p><p>mudança, bem como a morosidade para mudar.</p><p>Na cultura de tarefas, a metáfora da teia é explorada de forma diferente.</p><p>Em vez de centralizado, o poder está distribuído nos interstícios, nas</p><p>pequenas junções entre as partes contíguas da rede. Trata-se de uma cultura</p><p>com ênfase na realização do trabalho e, para isso, reúne as pessoas certas</p><p>nas funções certas e os recursos adequados. Já na cultura de pessoas, a base</p><p>de poder é especializada, ou seja, as pessoas precisam ser competentes para</p><p>assumir responsabilidades. Comando e controle definitivamente não</p><p>funcionam nessa classe de cultura, pois os profissionais não a toleram e,</p><p>devido à especialização, têm maior facilidade para encontrar outro trabalho.</p><p>Na obra Diagnosing and Changing Organizational Culture, Cameron e</p><p>Robert Quinn categorizam cultura organizacional em quatro tipos, no</p><p>modelo que chamaram de Competing Values Framework (CVF). São elas:</p><p>cultura de clã, cultura adocrática, cultura orientada ao mercado e cultura</p><p>hierárquica (Figura 7.3).</p><p>Figura 7.3</p><p>Competing Values Framework (Cameron e Quinn, 2006)</p><p>A cultura de clã valoriza relações afetuosas, estabelecendo uma espécie</p><p>de “família” corporativa e valorizando sobremaneira a experiência do</p><p>colaborador. Na modalidade adocrática a liderança é inspiracional e a</p><p>inovação, altamente valorizada. Já a cultura orientada ao mercado tem na</p><p>performance sua força e nos indicadores seus parâmetros de sucesso. O</p><p>quarto e último tipo, a hierárquica, é baseado no cumprimento de tarefas</p><p>mais que em resultados, sendo os líderes verdadeiros supervisores de</p><p>tarefas.</p><p>Há outras tipologias. As compartilhadas aqui são de autores de</p><p>referência para mim. Qual é o melhor autor e a melhor classificação? Não</p><p>há. As tipologias serão sempre modelos teóricos cartesianos, que se</p><p>fragmentam para que possamos compreender e investigar. As organizações</p><p>podem experimentar um sem-número de combinações, e dificilmente serão</p><p>descritas como um único tipo de um único modelo. Além disso, cada tipo</p><p>guarda vantagens e desvantagens e há profissionais que serão bem-</p><p>sucedidos em um tipo de cultura e malsucedidos em outro.</p><p>Construir a própria cultura, deliberadamente, é tarefa da alta gestão.</p><p>Eleger um framework apoia a compreensão do tipo de cultura predominante</p><p>para que, a partir daí, se faça uma análise crítica com as seguintes questões:</p><p>esta é ou não a cultura desejada, esta é ou não uma cultura intencional, esta</p><p>é ou não uma cultura que corrobora com as estratégias organizacionais. No</p><p>caso da felicidade de quem trabalha, iniciamos a jornada pela revisita à</p><p>cultura. Falaremos mais sobre isso adiante.</p><p>Modelos disruptivos</p><p>Para quem vai estabelecer ou revisitar uma cultura organizacional, deixo</p><p>duas sugestões de leitura. A primeira delas é Holacracia: O Novo Sistema</p><p>de Gestão que Propõe o Fim da Hierarquia, de Brian J. Robertson. Já</p><p>imaginou uma organização onde não há chefes e todos, absolutamente</p><p>todos, são líderes? Essa é a proposta da holacracia, adotada na Zappos — ao</p><p>menos em parte da trajetória da empresa. A princípio, Robertson criou a</p><p>metodologia após experimentos dentro de suas próprias empresas, todas</p><p>startups tecnológicas. Atualmente, gere uma organização dedicada à</p><p>disseminação da holacracia pelo mundo.</p><p>O modelo conta com uma constituição (isso mesmo, uma espécie de</p><p>carta magna), onde estão definidas todas as regras para governança e</p><p>operações. O documento é a estrutura formal da empresa e deve ser</p><p>rigorosamente observado. Em vez da hierarquia piramidal, há círculos auto-</p><p>organizados nos quais a tomada de decisão é distribuída. Cada círculo tem</p><p>um propósito e esse atua para a realização do macropropósito da empresa.</p><p>Trata-se de um framework que propõe ganho de foco, agilidade para</p><p>mudança e aumento da percepção de pertencimento, mas isso não quer</p><p>dizer que seja uma panaceia organizacional. Muitas empresas tentaram e</p><p>desistiram. Ao longo dos anos, a própria Zappos compreendeu que era</p><p>necessário ajustar o modelo à sua cultura, que é baseada em pessoas.</p><p>Por falar em pessoas, a segunda recomendação de leitura é</p><p>Humanocracia: Criar Empresas Tão Incríveis Como as Pessoas Que as</p><p>Compõem, de Gary Hamel e Michele Zanini. Começo aqui referendando o</p><p>pensamento dos autores, que destacam a absoluta falta de pertinência na</p><p>expressão “capital humano”. Em uma sociedade convertida em mercado,</p><p>primeiro o capitalismo batizou o meio ambiente de “capital natural” para,</p><p>em seguida, nominar pessoas como uma modalidade de capital.</p><p>Hamel e Zanini questionam: será que as organizações precisam de tantos</p><p>gestores, de tantas camadas hierárquicas, de tantos processos? A resposta é</p><p>não, visto que tudo isso é insustentável — defendem. Em contraponto à</p><p>burocracia, onde os humanos são recursos, na humanocracia, neologismo</p><p>cunhado pelos autores, a empresa é que é recurso para as pessoas intra e</p><p>extramuros.</p><p>Cultura e felicidade</p><p>A felicidade de quem trabalha deve ser abordada a partir de uma visão</p><p>sistêmica, compreendendo-se sua influência no todo, e vice-versa. Para</p><p>posicioná-la estrategicamente, concebemos e adotamos, no Instituto</p><p>Feliciência, o diagrama Ecossistema CHO-Feliciência (Figura 7.4).</p><p>Nesse diagrama fica evidenciado que tratamos de organizações que já</p><p>ultrapassaram o paradigma do “existimos para produzir resultados” — são</p><p>inegociáveis, precisam ser atingidos e isso não está em questão — para</p><p>“existimos para causar impacto positivo”. Tem como core da jornada o</p><p>propósito. Não é sobre romantizar o duro mundo dos negócios, é sobre</p><p>admitir que critérios ESG — de responsabilidade ambiental, social e de</p><p>governança — são um caminho sem volta em uma humanidade que precisa</p><p>reverter rapidamente o impacto negativo que tem gerado, especialmente</p><p>da</p><p>década de 1950 para cá.</p><p>Figura 7.4</p><p>Diagrama Ecossistema CHO Feliciência</p><p>A felicidade está inscrita na ética e não no neoliberalismo. Se a</p><p>organização não tem um compromisso verdadeiro com a sustentabilidade</p><p>ampla — com todas as manifestações de vida — melhor não ingressar no</p><p>modelo sistêmico, permanecendo assim nas ações pontuais e operacionais.</p><p>Vi organizações recuarem e até suspenderem iniciativas ao se depararem</p><p>com a profundidade da temática para além do retrofit no escritório, do kit</p><p>trabalho remoto (que por vezes inclui crachá para bebês e animais de</p><p>estimação, mas não inclui qualidade de tempo para que o colaborador</p><p>desfrute da companhia da família) e de workshops que se localizam entre a</p><p>infantilização e a manipulação da subjetividade. Felicidade não é sobre</p><p>produtividade, felicidade é sobre sustentabilidade.</p><p>Um propósito — que trata do impacto positivo que a organização gera</p><p>para além dos empregos, dos impostos e do lucro —– demanda uma cultura</p><p>alinhada e capaz de sustentar sua realização. No âmbito da felicidade de</p><p>quem trabalha não é possível constituir condições favoráveis quando os</p><p>valores manifestos são dissonantes. Atribuída a Peter Drucker, a frase</p><p>“cultura devora estratégia no café da manhã” é das mais mencionadas em</p><p>minhas conversas com executivos. Revisitar a cultura é palavra de ordem na</p><p>construção de estruturas empresariais mais saudáveis e, consequentemente,</p><p>mais resilientes. E quem não deseja isso em tempos de tamanha</p><p>complexidade?</p><p>Ainda antes de disseminar iniciativas de felicidade junto aos</p><p>trabalhadores, é preciso educar os líderes para cogerirem as iniciativas.</p><p>Aliás, alinhamento da liderança é palavra de ordem, mais ainda quando se</p><p>trata de transformação cultural — sim, trazer a felicidade para o portfólio</p><p>estratégico da organização é um processo cultural, tanto quanto</p><p>transformação digital. No próximo capítulo mergulharemos no papel da</p><p>liderança.</p><p>Constituídas com congruência as três primeiras camadas — propósito,</p><p>cultura e liderança — é seguro operacionalizar os esforços para oferecer</p><p>condições favoráveis à felicidade de quem trabalha. E o impacto? É o que</p><p>transborda.</p><p>Desvendando a cultura</p><p>Temos no mercado mais consultorias falando sobre felicidade do que sobre</p><p>cultura organizacional. A primeira não se estabelece adequadamente sem a</p><p>segunda, é sempre sistêmico. Por isso, lanço luz sobre a lacuna, provocando</p><p>eventuais leitores a desenvolver competências na área ou buscarem experts.</p><p>Questionada com frequência sobre inventários de cultura, instrumentos</p><p>que podem apoiar a identificação do status atual, cito dois para facilitar o</p><p>caminho, sem a intenção de esgotar o rol de opções ou defendê-los como</p><p>ideais. O primeiro deles é o Instrumento Brasileiro para Avaliação da</p><p>Cultura Organizacional – IBACO (Ferreira et al., 2002), que ajuda a revelar</p><p>o status da cultura por intermédio da percepção dos colaboradores sobre os</p><p>valores e as práticas da organização.</p><p>O segundo instrumento é o Organizational Culture Assessment</p><p>Instrument – OCAI (Cameron & Quinn, 2006). Os participantes avaliam</p><p>seis aspectos da cultura: características dominantes, liderança, gestão de</p><p>pessoas, cola organizacional, ênfase em estratégias e critérios de sucesso.</p><p>Os resultados englobam a cultura dominante (entre as quatro do modelo</p><p>Competing Values Framework), a discrepância entre o status atual e a</p><p>cultura desejada, as perdas e os ganhos possíveis com a mudança de</p><p>direção, entre outros.</p><p>A partir de buscas em bancos de produção científica é possível localizar</p><p>artigos de validação dos instrumentos no Brasil, estudos empíricos, entre</p><p>outros.</p><p>Referências</p><p>CAMERON, K. S.; QUINN, R. E. Diagnosing and Changing</p><p>Organizational Culture. Massachusetts: Addison-Wesley, 2006.</p><p>FERREIRA. M. C. et al. “Desenvolvimento de um Instrumento Brasileiro</p><p>para Avaliação da Cultura Organizacional. Estudos de Psicologia, Natal: v.</p><p>7, nº 2 (2002). Disponível em: https://doi.org/10.1590/S1413-294X2002000</p><p>200008. Acesso em 12 nov. 2021.</p><p>HANDY, C. Understanding Organizations. London-UK: Penguin Books,</p><p>1993</p><p>HOFSTEDE, G. Culture’s Consequences: Comparing Values, Behaviors,</p><p>Institutions and Organizations Across Nations. Thousand Oaks: Sage</p><p>Publications, 2001.</p><p>SCHEIN, E. H. Organizational Culture and Leadership. San Francisco:</p><p>Jossey-Bass, 1992.</p><p>CAPÍTULO 8</p><p>Liderança: o desafio</p><p>O diagrama Ecossistema CHO Feliciência (Figura 7.4), visto no capítulo</p><p>anterior, aponta possíveis respostas para o naufrágio de iniciativas de</p><p>felicidade nas organizações. Por vezes o esforço não está ancorado em um</p><p>propósito, outras é a cultura instalada que não é favorável e há, ainda, o</p><p>caso de desalinhamento da liderança. Há situações nas quais vemos as três</p><p>circunstâncias concomitantes. Contudo, é importante enfatizar que a</p><p>felicidade de quem trabalha é um compromisso estratégico da organização,</p><p>usualmente instalado na área de gestão de pessoas e cultura, mas gerido por</p><p>todos os líderes. Vamos às reflexões.</p><p>Será o fim do líder?</p><p>O Massachusetts Institute of Technology (MIT) tem debatido, internamente,</p><p>se o termo “líder” já encerrou seu ciclo de vida no mundo dos negócios.</p><p>Ainda sem respostas definitivas acerca da questão, o fato é que assim como</p><p>chefe passou a ser chamado de gestor quando seu papel ganhou novos</p><p>contornos, é natural o questionamento sobre a pertinência de “líder”.</p><p>Para Otto Scharmer, professor sênior do MIT e cocriador da Teoria U, há</p><p>mesmo algumas fragilidades no uso da palavra (Carlson, 2018). Em</p><p>primeiro lugar, liderança é associada a indivíduos, em vez de ser uma</p><p>característica sistêmica, ou seja, da organização. Em tempos de tamanha</p><p>volatilidade, as empresas não podem depender diretamente de seus líderes,</p><p>até porque sozinhos não são capazes de enfrentar desafios cada vez mais</p><p>complexos.</p><p>O questionamento tem mais argumentos. Se liderança sempre foi</p><p>sinônimo de persuasão junto à própria equipe, hoje é preciso saber</p><p>igualmente influenciar aqueles que estão fora do escopo hierárquico.</p><p>Nenhum líder é capaz de promover realizações consistentes de maneira</p><p>isolada, dentro de um silo, onde sua palavra é sempre a que conta. O</p><p>mercado demanda executivos que saibam dialogar, persuadir e negociar</p><p>com diferentes públicos — esta é a década da economia de stakeholders,</p><p>uma economia baseada em relações.</p><p>Líder parece mesmo palavra gasta. Até porque muitos não sabem definir</p><p>sequer o propósito de sua liderança. Também cometem o erro de seguir</p><p>tomando decisões sem ver de perto o impacto que elas causam. E, ainda,</p><p>mantêm o status dos egossistemas, onde manda quem pode e obedece quem</p><p>tem juízo.</p><p>Mas como chamar aqueles que atuam de maneira decisiva em tempos</p><p>tão disruptivos? Changemakers é uma das hipóteses em discussão. Como</p><p>definiu David Brooks em artigo no New York Times (Brooks, 2018):</p><p>agentes de mudança são pessoas capazes de identificar problemas,</p><p>arquitetar soluções, organizar times fluidos, conduzir ações coletivas e</p><p>seguir se adaptando à medida que as situações continuam se transformando.</p><p>É bem provável que você se identifique com essa descrição, seja como um</p><p>agente de mudança, seja como alguém que adoraria contratar um.</p><p>Em processos de educação corporativa arrisco perguntar aos executivos,</p><p>após reflexões aprofundadas (muitas vezes usando a pedagogia da Teoria U,</p><p>de Scharmer e Senge), que outro nome poderia substituir “líder”. Não se</p><p>trata aqui da busca pela palavra definitiva, mas sobre a compreensão de que</p><p>cada palavra carrega significado e “liderança” está contaminada em nossas</p><p>mentes com elementos improdutivos — como hierarquia e controle. Entre</p><p>as inúmeras propostas, divido uma das mais significativas: chamemos essa</p><p>posição de “ponte”. É preciso ser ponte na condução do momento atual ao</p><p>futuro que precisa emergir, das forças individuais à teia de forças coletivas,</p><p>da concentração de poder ao fomento da potência. A função da ponte é</p><p>servir, não ser servida. Se poder e bônus não estivem na equação, a</p><p>pergunta é: você aceitaria liderar?</p><p>A era da pós-liderança</p><p>Temos no Instituto Feliciência um programa de educação</p><p>executiva</p><p>intitulado Beyond Leadership — em tradução livre Pós-Liderança. É</p><p>implementado em kick offs de transformação cultural e a inserção da</p><p>felicidade de quem trabalha no portfólio estratégico da organização é uma</p><p>desafiadora transformação cultural. É óbvio reconhecer a urgência e os</p><p>ganhos da transformação digital, por exemplo, mas não tão simples quando</p><p>se trata do bem-estar do trabalhador.</p><p>Com a intensa agenda de desafios e disrupções nos negócios a ser</p><p>enfrentada nesta terceira década do século 21, é fundamental que as</p><p>empresas estabeleçam um modelo intencional de liderança, ou seja, elejam</p><p>uma linha de conduta e preparem seus executivos para manifestar em ações</p><p>a filosofia de gestão estabelecida pela e para a organização. A forma de</p><p>liderar deve ser transversal, para além de personalidades, de humores e do</p><p>“o-que-eu-ganho-com-isso”.</p><p>O pós-líder será responsável por conduzir a migração do egossistema ao</p><p>ecossistema, movendo a organização em direção ao futuro, para além dos</p><p>paradigmas que não são mais capazes de gerar soluções para os desafios</p><p>que se apresentam. Precisará, para isso, de consciência expandida de si</p><p>mesmo, conhecendo seus valores, forças e talentos, mas também</p><p>desvelando seus pontos cegos. Deverá desenvolver habilidades que o</p><p>humanizem, com especial atenção à humildade situacional. Em um mundo</p><p>complexo, não há mais espaço para gestores que acreditam ter todas as</p><p>respostas, seguiremos todos como aprendizes, independentemente da</p><p>extensão de nossos currículos.</p><p>O pós-líder, esse ser-ponte, precisará atuar dentro dos amplos preceitos</p><p>da sustentabilidade — incluindo aspectos ambientais, sociais e de</p><p>governança corporativa, tanto no que diz respeito à prevenção quanto à</p><p>restauração dos tecidos esgaçados pelos efeitos deletérios do business as</p><p>usual. Posso enfatizar isso como humanista que sou, mas prefiro lembrar</p><p>que o mercado financeiro sinaliza a concentração dos investimentos em</p><p>papéis de empresas com evidências de cumprimento de critérios ESG (do</p><p>inglês, environmental, social e governance) e o bem-estar de quem trabalha</p><p>é um dos primeiros compromissos sociais a serem estabelecidos. Não por</p><p>acaso, empresas visionárias já inseriram saúde mental do trabalhador no</p><p>escopo da gestão de riscos organizacionais.</p><p>Para além das entregas de seu time, o pós-líder será avaliado igualmente</p><p>de maneira qualitativa. O cumprimento de metas em um período não</p><p>garante o mesmo resultado no próximo, em especial quando a performance</p><p>se dá às custas da sustentabilidade humana. Não tardará o dia em que os</p><p>relatórios anuais terão o impacto negativo gerado pela empresa debitado</p><p>dos resultados e a saúde de quem trabalha será uma dessas variáveis.</p><p>O líder enquanto instituição</p><p>Precisei ir ao Butão para compreender de verdade o que um líder significa.</p><p>Em 2017, já no processo de formação em Felicidade Interna Bruta na</p><p>Universidade de Schumacher — na Inglaterra —, participei como speaker</p><p>da 7ª Conferência Internacional FIB. Na capital, Thimpu, representantes de</p><p>29 países se reuniram a convite daquele governo para debater a inserção do</p><p>FIB nos negócios. Já pilotava no Brasil um projeto que viria a se tornar um</p><p>case internacional que me levaria a apresentações em Portugal, na Hungria,</p><p>na Malásia e na Austrália.</p><p>O Butão é uma monarquia constitucional. Desde 2006, pela vontade do</p><p>então rei Jigme Singye Wangchuck, iniciou-se um processo de instauração</p><p>da democracia. Carinhosamente chamado pelo povo de K4 (King 4), ele foi</p><p>o quarto rei de uma mesma dinastia estabelecida em 1907. A história do</p><p>país é tão complexa que a primeira obra em inglês, The history of Bhutan —</p><p>de Karma Phuntsho e com 934 páginas na versão Kindle, foi publicada em</p><p>2018. Assim, não me arriscarei aqui a recontá-la em poucas linhas. Faço</p><p>apenas um convite para que você reflita sobre uma forma diversa de</p><p>liderança.</p><p>Enquanto as monarquias se diluíram nos últimos séculos, sua ascensão</p><p>no Butão representa a pacificação e a unificação de um país com inúmeros</p><p>conflitos em sua história. Na voz do povo butanês, o rei assegura a</p><p>manutenção da estabilidade social. Em 2006, o K4 não só anunciou a</p><p>democracia, como abdicou em favor de seu filho, o atual rei Jigme Khesar</p><p>Namgyel Wangchuck ou, simplesmente, K5. E mais: inseriu na constituição</p><p>a aposentadoria compulsória dos monarcas aos 65 anos e o direito ao povo</p><p>de promover o impeachment do rei se um dia necessário for.</p><p>A história da dinastia aponta para a estrita observação ao papel do rei do</p><p>Butão, que é assegurar o bem-estar do povo e o desenvolvimento da nação.</p><p>De todos os cinco monarcas até então, apenas o segundo rei, Jigme</p><p>Wangchuck (1926-1952), não deixou legado expressivo, mas seu reinado</p><p>não foi deletério para a nação. O primeiro rei, Ugyen Wangchuck (1907-</p><p>1926), estabeleceu relações internacionais estratégicas com a Grã-Bretanha</p><p>e a Índia — a segunda é até os dias atuais de extrema relevância para o país.</p><p>O terceiro rei, Jigme Dorji Wangchuck (1952-1972), entrou para a história</p><p>como o responsável pela modernização da nação. Já o K4 (1972-2006)</p><p>tornou-se mundialmente conhecido como “O Arquiteto do FIB”. O Rei</p><p>Dragão, como é chamado o atual monarca, segue os passos da liderança</p><p>servidora de seus antecessores.</p><p>Até pisar em Thimpu, acreditava que as transformações podem ocorrer</p><p>apesar dos líderes. Na semana da conferência de 2017, devidamente</p><p>apoiada por meus cicerones e amigos, os pesquisadores Dr. Neel Konwar</p><p>(Índia) e Karma Wandgi (Butão), compreendi que o sucesso do sistema</p><p>Felicidade Interna Bruta estava centrado na figura do rei — não na pessoa,</p><p>mas na instituição que ele vivifica, no compromisso inegociável que</p><p>sustenta. Lembro-me de minutos antes de assumir o púlpito agradecer à</p><p>executiva patrocinadora do projeto que apresentaria no evento. Havia</p><p>compreendido que não era meu conhecimento técnico o responsável pelos</p><p>resultados que sua empresa observava, mas sim seu modelo de liderança e</p><p>como ela conseguia capilarizá-lo em todos os níveis hierárquicos. O FIB,</p><p>apesar do compromisso dos cientistas butaneses e do aporte da ONU, seria</p><p>inviável sem a instituição “rei”. Consultores podem quase nada sem a</p><p>instituição “líder”.</p><p>Foi Will O’Brein, ex-CEO da Hannover Insurance, que afirmou: “O</p><p>sucesso de uma intervenção depende da condição interior do interventor”.</p><p>Essa citação é recorrente na fala do Professor Otto Scharmer e, não por</p><p>acaso, nas aulas do Dr. Tho Ha Vinh e da Dra. Julia Kim — ex e atual</p><p>diretores do Centro de Felicidade Interna Bruta no Butão.</p><p>As várias formas de liderar</p><p>Há inúmeros modelos de liderança e minha indicação é que se parta sempre</p><p>do estudo do que já existe para a customização de uma linha que atenda à</p><p>organização. Vale repetir: alinhamento de liderança é condição inegociável</p><p>para a implementação de iniciativas que visam à felicidade de quem</p><p>trabalha. Sem a intenção de esgotar o campo, vejamos alguns dos pontos de</p><p>partida possíveis.</p><p>A Liderança Positiva, que tem no Professor Kim Cameron um ícone, é o</p><p>modelo preconizado pela psicologia positiva. Segundo Cameron (2008), a</p><p>abordagem busca fomentar uma performance acima da média a partir do</p><p>enfoque nas virtudes, nas forças e no potencial humano. Em outras</p><p>palavras, dedica maior atenção ao que funciona em indivíduos, equipes e</p><p>empresas ao invés de investir a maior parte do tempo e da energia na</p><p>correção dos gaps.</p><p>Em 2016, já quase encerrando minhas atividades em consultoria para me</p><p>dedicar exclusivamente à educação e à pesquisa, conduzi um último</p><p>planejamento estratégico a partir da teoria e com o ferramental da</p><p>psicologia positiva. Havia passado anos dizendo aos clientes que durante a</p><p>elaboração da Matriz SWOT (acrônimo em inglês para Forças, Fraquezas,</p><p>Oportunidades e Ameaças) não se demorassem na especificação de seus</p><p>pontos fortes, mas se dedicassem a esmiuçar seus pontos fracos. O melhor</p><p>resultado obtido em planejamento estratégico em meus vinte anos de</p><p>atuação ocorreu naquele ano, quando antes de planejar o futuro, cerca de</p><p>cinquenta executivos mergulharam no resgate de suas forças e daquilo que</p><p>havia trazido</p><p>aquela organização até ali. O ano seguinte foi disruptivo para</p><p>a companhia.</p><p>Um líder positivo não deixa de lado a entrega de resultados, mas alcança</p><p>uma performance pessoal e coletiva acima da média fomentando clima</p><p>saudável, relações nutritivas, comunicação competente e propósito.</p><p>Outra abordagem inspiradora é de Janice Marturano, fundadora do</p><p>Institute for Mindful Leadership. Marturano foi executiva c-level da</p><p>General Mills antes de fundar seu instituto sem fins lucrativos dedicado à</p><p>disseminação da liderança consciente. Foi treinada por Jon Kabat-Zinn,</p><p>precursor do mindfulness, tendo tido atuação decisiva para a inserção da</p><p>prática em ambientes organizacionais. Chegou ao meu escopo de estudos de</p><p>liderança pelas mãos da Dra. Teresa Franco, professora convidada do</p><p>Instituto Feliciência e pesquisadora na área de mindfulness.</p><p>Todos nós já estivemos com um líder cuja simples presença foi capaz de</p><p>nos afetar positivamente. Mais que “carisma”, essa pessoa por certo se</p><p>destacava pela qualidade de sua presença, manifestada pela atenção, por</p><p>estar a serviço de algo maior que ela. A liderança consciente, conforme</p><p>preconiza Marturano (2014) demanda a educação da atenção e da</p><p>compaixão através das práticas contemplativas — compreendendo-se aqui</p><p>compaixão como capacidade de perceber os liderados, suas dificuldades e</p><p>tomar uma ação no sentido de apoiá-los. Conversa em perfeita harmonia</p><p>com a Liderança Positiva, uma vez que a psicologia positiva abraça o</p><p>mindfulness enquanto intervenção e campo de pesquisa.</p><p>A Liderança Cuidadora é mais uma abordagem que vale</p><p>aprofundamento, afinal cuidar é o verbo a se conjugar na era da</p><p>sustentabilidade, após décadas e décadas de uso exaustivo dos verbos</p><p>explorar e crescer. A consultora americana Heather Younger, autora do livro</p><p>The Art of Caring Leadership: How Leading With Heart Uplifts Teams and</p><p>Organizations (em tradução livre A Arte da Liderança Cuidadora: Como</p><p>Liderar Com o Coração Eleva Times e Organizações), estruturou seu</p><p>pensamento em torno de alguns princípios: cultivar habilidades de</p><p>autoliderança; identificar as virtudes dos colaboradores e fazer com que se</p><p>sintam relevantes; compreender as pessoas para além dos muros do</p><p>trabalho; criar espaços de escuta e ambientes seguros; fomentar a</p><p>participação nas decisões; e construir resiliência.</p><p>A psicóloga organizacional Sesil Pir afirma que o trabalho de Younger</p><p>está alinhado à pesquisa relacionada à Liderança Centrada no Ser Humano,</p><p>do The Center for Compassion and Altruism (CCARE), da Universidade de</p><p>Stanford (EUA). Seu livro, Human-Centered Leadership, é um resumo do</p><p>estudo e aponta oito atributos a serem desenvolvidos pela liderança para a</p><p>construção de ambientes saudáveis: propósito, coragem, prospecção,</p><p>percepção emocional, curiosidade, sabedoria, compaixão e maestria.</p><p>Essas são algumas abordagens humanistas disponíveis. Vale lembrar que</p><p>este é um tempo não binário. Não se trata de abandonar o compromisso</p><p>com os resultados, uma das responsabilidades da liderança, mas abandonar</p><p>a inútil questão “as pessoas ou o lucro?”.</p><p>Por onde começar?</p><p>Só é possível promover o alinhamento sistêmico da liderança quando se tem</p><p>uma filosofia de gestão definida. A tarefa primordial é esculpir uma</p><p>filosofia que sustente a cultura desejada e favoreça a realização das</p><p>estratégias. Já está claro que aqui a abordagem da felicidade é estratégica, e</p><p>não operacional, e que o caráter humanista da liderança é condição</p><p>indispensável. Utilize as referências trazidas anteriormente, busque outras,</p><p>mas considere sempre que o melhor modelo é aquele adaptado à sua</p><p>realidade. O produto dessa primeira etapa é conseguir responder com</p><p>assertividade qual é a abordagem de liderança adotada intencionalmente em</p><p>sua organização.</p><p>A filosofia de gestão impacta os job descriptions das lideranças. Cabe</p><p>avaliar se os perfis prescritos até então são os desejados para conduzir e</p><p>sustentar uma organização resiliente, centrada no bem-estar. As próximas</p><p>contratações considerarão o desenho realizado. Quanto aos líderes já em</p><p>atuação, sugere-se a sobreposição do novo job description ao perfil de cada</p><p>profissional, seguida da identificação das oportunidades de</p><p>desenvolvimento.</p><p>Reúna o maior número de informações antes de desenhar uma trilha de</p><p>upskill da liderança, tais como: premissas estratégicas da organização —</p><p>missão, visão, valores e propósito; mapa estratégico ou balanced scorecard</p><p>(BSC); indicadores sistêmicos, com especial atenção aos de pessoas;</p><p>pesquisas como clima organizacional e segurança psicológica. Coloque</p><p>também na mesa as forças dos líderes e, para isso, você pode lançar mão do</p><p>inventário online e gratuito Values in Action (viacharacter.org). Além de</p><p>trazer à luz as forças de cada gestor, permite construir o mapa de forças do</p><p>time de liderança e, ainda, deliberar sobre as forças que a organização</p><p>precisa fomentar para realizar suas aspirações.</p><p>Por fim, lembre-se de que o alinhamento da liderança é um processo</p><p>dinâmico: há mudança no quadro de líderes, há mudança nos</p><p>macrocenários, há mudanças nas estratégias. Parte-se de um planejamento,</p><p>mas é necessário estar pronto para ajustar as velas ao longo do percurso.</p><p>Além disso, considere o desenvolvimento como um processo que permeia a</p><p>vida dos executivos, pode e deve ser realizado para além das salas de aula</p><p>físicas ou remotas. Flerte com um modelo de educação que se aproxime do</p><p>entretenimento — podcasts e vídeos on demand, por exemplo — e aposte</p><p>no microlearning para dar sustentação ao processo. Lembre-se de que o</p><p>desafio da educação é a conquista da atenção do seu público.</p><p>Referências</p><p>BROOKS, D. “Everyone a Changemaker”. New York Times, 8 fev. 2008</p><p>Disponível em:</p><p>https://www.nytimes.com/2018/02/08/opinion/changemaker-social-</p><p>entrepreneur.html. Acesso em 15 nov. 2021.</p><p>CAMERON, K. Positive Leadership: Strategies for Extraordinary</p><p>Performance. São Francisco: Berrett-Koehler Publishers, 2008.</p><p>MARTURANO, J. Finding the Space to Lead: A Practical Guide to</p><p>Mindful Leadership. Nova Iorque: Bloomsbury Press, 2014.</p><p>MODERN LEADERSHIP 77: Criticisms of Leadership with MIT Professor</p><p>Otto Scharmer. Entrevistado: Otto Scharmer. Entrevistador: J. Carlson.</p><p>Spotify, jun. 2018. Disponível em:</p><p>https://open.spotify.com/episode/0nvGkv7yhCSfq8UdMMqPfw. Acesso em</p><p>15 nov. 2021.</p><p>Capítulo 9</p><p>Diagnóstico: felicidade data driven</p><p>A melhor maneira de iniciar este capítulo é trazendo o pensamento de</p><p>Joseph Stiglitz (2019), Nobel de economia e autor de Measuring What</p><p>Counts: The Global Movement for Well-Being: “medir da forma certa é de</p><p>importância crucial, especialmente em uma sociedade orientada para</p><p>métricas de desempenho. Se medirmos a coisa errada, faremos a coisa</p><p>errada. Se nossas medidas nos disserem que está tudo bem quando</p><p>realmente não está, seremos complacentes”.</p><p>No âmbito da felicidade de quem trabalha, ação sem investigação prévia</p><p>tem consideráveis chances de não produzir resultados e, até mesmo,</p><p>produzir efeitos deletérios — visto que significa prescrever tratamento sem</p><p>se cumprir a tríade hipótese, investigação e diagnóstico. O impacto sobre a</p><p>felicidade de quem trabalha se dá a partir de ações assertivas (quase</p><p>cirúrgicas), e não com iniciativas aleatórias. O encontro entre o</p><p>conhecimento científico sobre felicidade e a gestão estratégica é data</p><p>driven, ou seja, orientado por dados que subsidiam uma tomada de decisão</p><p>responsável quanto às pessoas e racional quanto ao investimento.</p><p>Exploraremos isso a seguir.</p><p>Os dados que já existem</p><p>Antes de realizar pesquisas específicas para diagnóstico do status da</p><p>felicidade dos colaboradores, deve-se buscar dentro da organização os</p><p>dados que já existem; chamo isso de etapa de escavação. Há informações</p><p>sobre como o trabalhador se sente por toda parte e os indicadores de gestão</p><p>de pessoas são a ponta desse iceberg.</p><p>A primeira recomendação é avaliar o perfil epidemiológico do grupo. É</p><p>preciso saber quais são as patologias relacionadas a afastamento do</p><p>trabalho, quais seus percentuais de acordo com a Classificação Estatística</p><p>Internacional de Doenças (CID)</p><p>a vida que deveríamos estar vivendo.”</p><p>Joseph Campbell</p><p>CAPÍTULO 1</p><p>Filosofia: onde tudo começa</p><p>Impossível investigar felicidade sem colocar os pés — e a mente, claro —</p><p>na filosofia. Segundo Epicuro (271 a.C. ou 270 a.C.), essa área do</p><p>conhecimento humano usa a reflexão para analisar a vida em busca da</p><p>felicidade. São inúmeras as correntes e escolas filosóficas, algumas</p><p>favoráveis e outras desfavoráveis à felicidade enquanto protagonista de uma</p><p>vida que valha a pena ser vivida. Longe de esgotar o tema ou cumprir uma</p><p>lógica temporal, exploramos aqui apenas as contribuições que foram</p><p>essenciais para a construção da minha narrativa, para a delimitação do lugar</p><p>de onde falo sobre felicidade.</p><p>Os gregos e o dilema Hedonia x Eudaimonia</p><p>Na história do pensamento ocidental registrada através da filosofia, a</p><p>felicidade surge na Grécia antiga, com os filósofos Pré-Socráticos, do</p><p>século VII ao V a.C. É de Tales de Mileto (624 a.C.-548 a.C.) a referência</p><p>filosófica escrita mais antiga sobre o tema. Segundo ele, para ser feliz seria</p><p>necessário ter corpo são e forte, boa sorte e alma bem-formada. A mitologia</p><p>grega descrevia sorte como algo fabricado pelas Moiras, mulheres que</p><p>teciam o fio da vida de cada ser humano na roda da fortuna, algo que</p><p>podemos chamar de destino.</p><p>Sócrates (469 a.C.-399 a.C.) deu novo rumo para a compreensão da</p><p>felicidade, afirmando que não se relacionava apenas à satisfação dos</p><p>desejos e necessidades do corpo, pois, para ele, o homem não era só corpo,</p><p>mas, principalmente, alma. Assim, tratava-se do bem da alma.</p><p>Entre os discípulos de Sócrates, Antístenes (445 a.C.-365 a.C.)</p><p>acrescentou um toque pessoal à ideia de felicidade de seu mestre,</p><p>considerando que o homem feliz era o homem autossuficiente. Mas foi</p><p>Platão (427 a.C.-347 a.C.), o maior discípulo de Sócrates, que efetivamente</p><p>levou a especulação filosófica adiante de onde ele a deixara, ao afirmar que</p><p>a função da alma era ser virtuosa e justa, de modo que exercendo a virtude e</p><p>a justiça obter-se-ia a felicidade. Para ele, a ética não estava limitada aos</p><p>negócios privados, devendo ser posta em prática também nos negócios</p><p>públicos. O filósofo entendia que a função do Estado era tornar os homens</p><p>felizes.</p><p>A ligação entre ética e política estará ainda mais definida na obra mais</p><p>importante de Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.), discípulo de Platão, que</p><p>criticou o idealismo do mestre, reconhecendo a necessidade de elementos</p><p>básicos, como boa saúde, liberdade (em vez de escravidão) e boa situação</p><p>socioeconômica para alguém ser feliz. Aristóteles considerava a política</p><p>como uma extensão da ética e, nesse sentido, para ele também era função</p><p>do Estado criar condições para o cidadão ser feliz. Desde a Grécia antiga a</p><p>felicidade estava inscrita no campo da ética. Ética e política deveriam</p><p>caminhar lado a lado, visto que política seria a ação ética no contexto</p><p>coletivo.</p><p>Para Aristóteles, a felicidade era o maior desejo dos seres humanos. Do</p><p>seu ponto de vista, a melhor forma de conseguir ser feliz era através das</p><p>virtudes: cultive as boas virtudes e alcançará a felicidade. Ele também</p><p>definiu felicidade como uma espécie de modo de vida: o ser humano</p><p>precisa exercitar constantemente o melhor que tem dentro de si.</p><p>Contudo, sem dúvida, foi ao equiparar felicidade à eudaimonia que</p><p>Aristóteles fez sua maior contribuição. O termo grego significa: (eu) bem,</p><p>verdade, bem-estar, qualidade do bem-disposto; (daemon) espírito, gênio,</p><p>poder divino. Para ele, a felicidade se manifestava quando o ser humano</p><p>expressava seu daemon, seu potencial. Ou seja: a felicidade não dependeria</p><p>da intervenção de algo externo e maior, ocorreria ao se acessar e expressar</p><p>as próprias virtudes. Trazida para os tempos atuais, eudaimonia se aproxima</p><p>do conceito de bem-estar psicológico, que requer o desenvolvimento das</p><p>forças de caráter em prol de algo maior. Crescimento pessoal, significado,</p><p>propósito, autonomia, autenticidade e congruência de valores são fatores</p><p>relacionados ao bem-estar eudaimônico.</p><p>Outra contribuição da antiguidade clássica é a hedonia, preconizada pelo</p><p>filósofo Aristipo (435 a.C.-356 a.C.). Ela se alinha ao conceito de bem-estar</p><p>subjetivo, reconhecendo a felicidade na maximização de emoções positivas</p><p>e na minimização de afetos negativos. Prazer, conforto e regozijo são</p><p>considerados manifestações hedônicas. Aristipo levava isso ao limite,</p><p>defendendo que o prazer era o propósito maior da experiência humana.</p><p>Mais tarde, Epicuro (341 a.C.-271 a.C.) promoveu uma ressignificação da</p><p>hedonia a partir da inserção da temperança, defendendo que muitas vezes os</p><p>prazeres, embora positivos, podem conduzir a desfechos negativos. Peço</p><p>aqui licença para sugerir que se entenda o pensamento de Aristipo como</p><p>hedonismo e o de Epicuro como hedonia — o que distancia os dois é o</p><p>equilíbrio, um dos elementos mais relevantes para a compreensão e a</p><p>experiência de numa vida satisfatória.</p><p>Qual seria, então, o verdadeiro caminho para a felicidade: a hedonia ou a</p><p>eudaimonia? A filosofia não chegou a um consenso, mas a psicologia sim.</p><p>Ed Diener (1984) admitiu a necessidade da integração de ambas ou do bem-</p><p>estar subjetivo e do bem-estar psicológico. Martin Seligman (2002) também</p><p>optou por uma abordagem integrativa, com um modelo que reuniu emoções</p><p>positivas, engajamento e sentido como vetores para o que chamou de</p><p>felicidade autêntica. Mais tarde, o modelo ganhou novas dimensões —</p><p>relações e realizações, sendo batizado de PERMA — acrônimo para</p><p>Positive Emotion, Engagement, Relationships, Meaning and</p><p>Accomplishment (Seligman, 2011).</p><p>Admite-se hoje que a felicidade demande níveis elevados de eudaimonia</p><p>e hedonia, uma vez que geram diferentes impactos: a primeira aumenta</p><p>gradualmente a linha de base do bem-estar, enquanto a segunda traz efeitos</p><p>de maior impacto, porém temporários. Assim, as investigações acerca do</p><p>tema devem contemplar fatores afetivos e cognitivos — também chamados</p><p>de subjetivos e psicológicos — com vistas a fornecer uma melhor</p><p>compreensão.</p><p>Os franceses contemporâneos e o agora</p><p>A cultura ocidental acabou colocando a felicidade em uma posição</p><p>desconfortável: na melhor das hipóteses aparece como algo fugaz, na pior</p><p>como inalcançável ou inexistente. Ditos populares e as artes mostram muito</p><p>bem o que está instalado no inconsciente coletivo — basta lembrar de</p><p>“Tristeza não tem fim, felicidade sim”, da linda e triste canção A Felicidade,</p><p>de Antônio Carlos Jobim e Vinícius de Moraes.</p><p>Para compreender o quanto esta percepção é equivocada, costumo lançar</p><p>uma questão: você acredita que infelicidade existe? A resposta tem sido</p><p>afirmativa em 100% das vezes. A partir do momento que admitimos que a</p><p>infelicidade existe estamos aceitando que a felicidade é um fato, já que é</p><p>impossível haver a antítese de algo inexistente. Se posso me sentir infeliz,</p><p>habita em mim a possibilidade de também ser feliz.</p><p>Compreender o que significa felicidade é um passo essencial ao flerte e,</p><p>quem sabe, casamento de vida com esse estado tão desejado. Para isso,</p><p>tomemos o trabalho do filósofo francês contemporâneo Frédéric Lenoir, que</p><p>tão bem distinguiu prazer, alegria e felicidade.</p><p>Comecemos por entender o prazer, nosso conhecido de longa data. De</p><p>curtíssima duração, está necessariamente ligado a um gatilho externo</p><p>deflagrado por nós mesmos ou por terceiros sob nossa permissão. Para que</p><p>dure, é necessário que o estímulo seja renovado. E, por esse caráter, possui</p><p>duas faces: pode ser bom ou nefasto, basta ver escolhas destrutivas e</p><p>compulsões.</p><p>A alegria é uma emoção, ou seja, uma reação corpórea relativa a um</p><p>estímulo presente na realidade ou na memória, também de duração limitada.</p><p>Antecede o sentimento. É mais profunda que um prazer, mas, ainda assim é</p><p>fugaz. Enquanto somos capazes de provocar em nós mesmos um prazer, não</p><p>necessariamente obtemos o mesmo êxito quando buscamos a alegria.</p><p>Já a felicidade pode ser um estado durável, que independe de fatores</p><p>externos. É resultado de deliberação e trabalho pessoal. É feita de prazeres</p><p>moderados e escolhidos. É um estado de sabedoria, e sabedoria</p><p>e se há concentração de afastamentos por</p><p>atividade, função e área de atuação. No âmbito da temática desse livro, é</p><p>natural destinar especial atenção aos diagnósticos por CID-F, o grupo dos</p><p>transtornos mentais e comportamentais, contudo sabemos que outras</p><p>doenças e acidentes de trabalho também possuem causas psicossociais.</p><p>Nessa avaliação, não hesite em envolver a equipe de Medicina e Segurança</p><p>do Trabalho.</p><p>O segundo passo é avaliar os indicadores de gestão de pessoas em uso</p><p>na organização. Entre os principais Key Performance Indicators, ou KPIs,</p><p>da área estão: turn over ou rotatividade, retenção de talentos, absenteísmo,</p><p>presenteísmo, engajamento, produtividade, eNPS (indicador de fidelização),</p><p>acidentes de trabalho, sinistralidade de plano de saúde, reclamações</p><p>trabalhistas, entre outros. Considere ainda, no processo de levantamento de</p><p>informações, as entrevistas de desligamento (por que as pessoas deixam a</p><p>empresa?), os eventuais registros via ouvidoria interna, a natureza dos</p><p>processos trabalhistas e o que colaboradores e ex-colaboradores falam sobre</p><p>a empresa em plataformas como a Glassdoor.</p><p>Não se abstenha de visitar outros indicadores, como os de desempenho e</p><p>de qualidade. São os colaboradores que entregam a proposta de valor da</p><p>empresa ao mercado, o bem-estar e o mal-estar de quem trabalha</p><p>transbordam, podendo impactar índices de não conformidade de processos,</p><p>satisfação e fidelização do cliente e, por consequência, a rentabilidade.</p><p>Embora não se possa traçar uma relação de nexo causal no momento de</p><p>diagnóstico, esses KPIs são afetados positivamente com o decorrer da</p><p>implantação da felicidade (veremos isso no capítulo 12, sobre ROI e VOI).</p><p>É comum ouvir a pergunta “podemos usar pesquisas que já</p><p>realizamos?”. A resposta é sim, se forem recentes. Antes da Covid-19,</p><p>consideravam-se pesquisas recentes aquelas com até dois anos de</p><p>realização. Não fico à vontade em sustentar essa resposta diante de tamanha</p><p>disrupção. Imagine lançar mão de uma pesquisa de clima organizacional</p><p>realizada em 2019, por exemplo, para compreender a realidade de 2021.</p><p>Não é o caso de descartá-la, mas garantir que o uso de seus dados venha</p><p>acompanhado do disclaimer “dados coletados antes da pandemia”.</p><p>Além de clima organizacional, aferido anualmente pelas grandes</p><p>corporações, há outras pesquisas em profundidade ou de pulso sendo</p><p>realizadas, como Experiência do Colaborador, Segurança Psicológica,</p><p>Diversidade e Inclusão — apenas para citar algumas. Reúna os dados e as</p><p>informações resultantes da escavação para uso na construção do</p><p>diagnóstico.</p><p>Qual é o melhor instrumento para aferir felicidade?</p><p>Desconfie quando lhe apresentarem a bala de prata para o diagnóstico da</p><p>felicidade — há boas chances de que estejam tentando vendê-la. O</p><p>instrumento de pesquisa perfeito não existe, nem no âmbito da aferição</p><p>individual, nem dos agrupamentos humanos. Cada instrumento de pesquisa</p><p>destina-se a aferir um construto específico. Para felicidade, há diferentes</p><p>construtos, conforme abordado no capítulo 6. Antes de escolher o(s)</p><p>instrumento(s), é preciso eleger o construto que possui fit com a</p><p>organização, sua cultura e suas estratégias.</p><p>Outro alerta relevante para essa sensível etapa diz respeito aos</p><p>instrumentos sem validação científica. Às vezes por ingenuidade, outras por</p><p>razões pouco nobres, vemos a oferta de pesquisas não submetidas aos</p><p>rigorosos testes psicométricos. Na prática, usá-las significa não saber</p><p>exatamente o que estão mensurando, se estão efetivamente mensurando</p><p>algo e, o mais arriscado, tomar decisões e realizar investimentos com base</p><p>em dados inconsistentes. O convite aqui é para darmos um passo em</p><p>direção à aproximação entre academia e mundo organizacional: todos têm a</p><p>ganhar. Além disso, patrocinadores de iniciativas de felicidade costumam</p><p>questionar resultados de pesquisas e, invariavelmente, interpelam a</p><p>metodologia adotada — esteja pronto para sustentar sua argumentação.</p><p>A experiência de campo me apresentou outro aspecto relevante: o quanto</p><p>é benéfico empregar mais de uma escala — ao menos duas, se possível três.</p><p>Permita-me defender esse ponto, pois ele pode ser controverso em um</p><p>tempo no qual adesão à pesquisa é um desafio. Se cada instrumento afere</p><p>um construto e já sabemos que felicidade possui inúmeros, isso significa</p><p>que com cada instrumento obtemos a leitura de uma faceta da realidade.</p><p>Quando empregamos duas escalas temos a possibilidade de verificar</p><p>dimensões diferentes e, inclusive, correlacioná-las. O uso de apenas um</p><p>instrumento pode gerar uma visão míope, pois haverá a tendência de</p><p>explicar a realidade a partir de uma única fatia dela.</p><p>Instrumentos recomendados</p><p>No processo de seleção de instrumentos, considere a inserção da Escala de</p><p>Utrecht ou UWES (Schaufeli et al., 2002), que afere Engajamento no</p><p>Trabalho, ou seja, estado mental positivo. Trata-se de uma escala com</p><p>amplo uso internacional, já validada no Brasil, com dezessete questões</p><p>distribuídas em três dimensões — vigor, dedicação e absorção. Além disso,</p><p>oferece resultados de alto interesse dos boards, diante dos riscos de</p><p>escalada de burnout e o desafio do presenteísmo. Mesmo altos executivos</p><p>que não se sentem atraídos pela temática da felicidade demonstram</p><p>interesse no resultado da pesquisa de engajamento.</p><p>Para organizações mais conservadoras, a UWES pode ser acompanhada</p><p>da Escala de Satisfação no Trabalho ou EST (Siqueira, 2008), com 25</p><p>questões distribuídas em cinco dimensões — colegas, salário, liderança,</p><p>natureza do trabalho e promoções. Para organizações mais arrojadas, a</p><p>sugestão é usar, no lugar da EST, a Escala de Felicidade Interna do</p><p>Trabalhador ou FIB-T (Furtado, 2020), com 32 perguntas e três dimensões</p><p>— bem-estar, padrão de vida e satisfação com a empresa. A FIB-T lança um</p><p>olhar além-muros da organização, buscando compreender o trabalhador de</p><p>maneira integral e para além do trabalho.</p><p>Durante a pandemia, tornou-se premente o emprego adicional de uma</p><p>escala relacionada à saúde mental e isso seguirá relevante. Meu instrumento</p><p>de eleição é o Self-Reporting Questionnaire ou SRQ-20 (Harding et al.</p><p>1980). O instrumento de screening chancelado pela Organização Mundial</p><p>de Saúde (OMS) é usado para rastreamento de sintomas de sofrimento</p><p>psíquico, sugerindo suspeição de algum transtorno mental. Embora não</p><p>substitua o diagnóstico médico, pesquisas mostraram a sensibilidade do</p><p>instrumento, evidenciando que achados com o seu uso em uma população</p><p>se aproximaram dos diagnósticos realizados por especialistas no mesmo</p><p>grupo. Avalie como alternativa o uso de uma escala de estresse —</p><p>importante salientar que o estresse relacionado ao trabalho deverá se</p><p>constituir na principal causa associada à depressão em 2030 (World Health</p><p>Organization, 2017).</p><p>Observe que essas não são informações prescritivas, trata-se da partilha</p><p>dos instrumentos de eleição pessoal no momento da publicação dessa obra.</p><p>Se há algo diretivo é o uso de mais de uma escala. A seguir reforço esse</p><p>argumento com o resultado seguido de comentários sobre pesquisa</p><p>científica realizada na Universidade Católica de Brasília (UCB) com o uso</p><p>de três instrumentos (Figura 9.1):</p><p>Figura 9.1</p><p>Resultados de pesquisa empresa 1: FIB, UWES e SRQ20 (Furtado, 2020)</p><p>Para o estudo, realizado em uma organização privada brasileira, foram</p><p>usados os instrumentos FIB, UWES e SRQ-20, tendo a coleta sido feita em</p><p>junho de 2020, em pleno processo pandêmico. Os resultados das escalas são</p><p>bastante distintos, porque avaliam aspectos diferentes relacionados a</p><p>felicidade e bem-estar.</p><p>Iniciemos com o índice FIB, que afere as condições pessoais e sociais de</p><p>felicidade intra e extramuros da empresa, considerando aspectos como bem-</p><p>estar psicológico, saúde, uso do tempo, vitalidade comunitária, entre outros.</p><p>Apresentou o pior resultado dos três, pois os 67% estão abaixo dos 70%</p><p>convencionados como aceitáveis. Já o índice de engajamento no trabalho,</p><p>que é um dos construtos de felicidade no trabalho aqui mensurado pela</p><p>UWES, alcançou 82% — acima da média observada no país. E, por fim, a</p><p>SRQ-20 mostrou que 23%</p><p>reportaram sintomas de transtornos mentais —</p><p>embora elevado, está dentro dos parâmetros observados em países</p><p>industrializados.</p><p>O relatório completo, apresentado à empresa, trouxe as subescalas que</p><p>cada um dos três instrumentos oferece, a correlação entre as escalas, o</p><p>cruzamento com informações demográficas e a análise. Localizou áreas</p><p>quentes, onde há maior vulnerabilidade e riscos do ponto de vista do bem-</p><p>estar, bem como aquelas que podem ter a algo a ensinar às demais, dados os</p><p>resultados mais favoráveis. E mostrou, ainda, algo impossível de ser</p><p>identificado com o uso de apenas uma escala: parte dos colaboradores com</p><p>elevado engajamento apontaram sintomas de estado de sofrimento psíquico.</p><p>Aplicação de pesquisas</p><p>Uma vez selecionados instrumentos, observe que devem ser liberados de</p><p>uma só vez para o público-alvo, no chamado momento-zero: antes de</p><p>qualquer sensibilização para a felicidade — como evento de lançamento,</p><p>campanha de endomarketing, palestra ou live. O objetivo é evitar qualquer</p><p>impacto prévio capaz de alterar a percepção do colaborador sobre a</p><p>temática.</p><p>Os instrumentos devem ser precedidos por uma breve explicação do que</p><p>cada um visa mensurar, é um direito do trabalhador ser informado</p><p>previamente sobre o que está respondendo e poder optar ou não por</p><p>participar. É uma questão de ética em pesquisa garantir o absoluto</p><p>anonimato do participante, ninguém pode estar vulnerável a qualquer tipo</p><p>de penalização porque aceitou participar de uma pesquisa a convite da</p><p>empresa. Isso orienta que a emissão do link para participação em pesquisa</p><p>eletrônica parta de endereço neutro, de uma terceira parte — como instituto</p><p>de pesquisa ou consultoria externa. A não observação a esse protocolo pode</p><p>comprometer os resultados, visto que há pessoas que não responderão um</p><p>questionário enviado pela área de Recursos Humanos ou o farão sem</p><p>compromisso com a fidedignidade de suas respostas.</p><p>Considere ainda que é necessário inserir um questionário demográfico</p><p>antes das escalas, com informações que permitam cruzamentos específicos,</p><p>tais como: área de atuação na empresa, cargo de liderança ou não, gênero e</p><p>o que mais julgar necessário. Não se exceda nos dados demográficos</p><p>solicitando informações que não serão úteis, tampouco deixe de coletar o</p><p>que é necessário. Fique atento ao fato de que apenas índices globais, que</p><p>mostram o status da empresa como um todo, são insuficientes para o</p><p>estabelecimento de planos de ação assertivos. É por esta razão que os itens</p><p>do questionário demográfico devem ser pensados com atenção.</p><p>No percurso de construção do diagnóstico, após as etapas de escavação</p><p>de dados e pesquisa, avalie a necessidade de aprofundamento através de</p><p>avaliações qualitativas, como entrevistas e grupos focais. Opte por isso</p><p>quando os dados que possui forem imprecisos ou inconclusivos em algum</p><p>aspecto.</p><p>Referências</p><p>FURTADO, C. A. “Condições Pessoais de Felicidade e Engajamento no</p><p>Trabalho: Evidências de Relação”. Dissertação (Mestrado) — Programa de</p><p>Pós-Graduação em Psicologia, Escola de Saúde e Medicina, Universidade</p><p>Católica de Brasília. Brasília, 2020.</p><p>HARDING, T. W. et al. “Mental Disorders in Primary Health Care: A Study</p><p>of their Frequency and Diagnosis in Four Development Countries”.</p><p>Psychological Medicine, v. 10 (1980), pp. 231-241.</p><p>SCHAUFELI, W. B. et al. The Measurement of Engagement and Burnout:</p><p>A Two Sample Confirmatory Factor Analytic Approach. Journal of</p><p>Happiness Studies, v. 3 (2002), pp. 71–92.</p><p>SIQUEIRA, M. M. M. Medidas do Comportamento Organizacional:</p><p>Ferramentas de Diagnóstico e de Gestão. Porto Alegre: Artmed, 2008.</p><p>STIGLITZ, J. “It’s Time to Retire Metrics Like GDP”. The Guardian, 24</p><p>nov. 2019. Disponivel em:</p><p>https://www.theguardian.com/commentisfree/2019/nov/24/metrics-gdp-</p><p>economic-performance-social-progress. Acesso em 15 nov. 2021.</p><p>WORLD HEALTH ORGANIZATION. “Depression and Other Common</p><p>Mental Disorders: Global Health Estimates”. Geneva: World Health</p><p>Organization, 2017.</p><p>CAPÍTULO 10</p><p>Desenvolvimento: habilidades para a felicidade</p><p>Meu primeiro trabalho após o anúncio da pandemia da Covid-19, que</p><p>cancelou em dois dias toda a agenda do ano de 2020, foi sistematizar a</p><p>primeira formação no Brasil em Happiness Skills — em português,</p><p>habilidades para a felicidade. Sou uma boa aprendiz, aprendi com o</p><p>Professor Doutor Lucas Benevides que a ansiedade pode desencadear três</p><p>formas de enfrentamento: consumo, destruição e criação. Reconheço o</p><p>trabalho com um espaço criativo.</p><p>Organizei um framework para ensino teórico e de intervenções em</p><p>psicologia positiva, minha primeira experiência em educação a distância.</p><p>Como sempre digo — e fico feliz ao ver os alunos repetirem — não há lista</p><p>mestra das habilidades para a felicidade. Dessa forma, para a seleção das</p><p>skills abordadas no curso, mantive a coerência das referências científicas</p><p>adotadas pelo Instituto Feliciência, elegendo as quatro habilidades</p><p>destacadas pelos estudos do neurocientista Richard Davidson (já</p><p>mencionado no capítulo 3). São elas: atenção plena, savouring, resiliência e</p><p>generosidade.</p><p>A educação em habilidades para a felicidade deve integrar os esforços</p><p>das organizações, como parte do desenvolvimento socioemocional de</p><p>executivos e colaboradores. Para o sucesso da iniciativa, é importante que</p><p>seja ancorada na ciência. Neste capítulo apresento elementos essenciais</p><p>para o desenvolvimento dessas habilidades: eleger um construto robusto,</p><p>selecionar intervenções com evidências empíricas de eficácia e adotar uma</p><p>escala de validade científica para mensurar o impacto do programa.</p><p>O conteúdo que se segue serve como uma porta de acesso ao</p><p>conhecimento, sem qualquer intenção de esgotá-lo ou substituir a necessária</p><p>capacitação para a facilitação e condução de treinamentos na área.</p><p>O que são habilidades?</p><p>Há certa confusão em torno das habilidades. Portanto, antes mesmo de</p><p>tratar das happiness skills, as habilidades para a felicidade, convém alinhar</p><p>alguns conceitos. O primeiro deles é primordial: habilidades são adquiridas</p><p>através de esforço intencional, sistemático e continuado. Ou seja: não</p><p>nascemos hábeis, nos tornamos hábeis.</p><p>Profissionais com atuação na área de gestão de pessoas e mesmo aqueles</p><p>de diferentes setores que passaram por organizações com departamento de</p><p>recursos humanos estruturado conhecem ou já ouviram falar em Gestão por</p><p>Competências. Trata-se de um modelo teórico desenvolvido por diferentes</p><p>pesquisadores, sendo o psicólogo americano David McClelland um dos</p><p>mais eminentes. O modelo define competência como um grupo de</p><p>conhecimentos, habilidades e atitudes (CHA), sendo habilidade a</p><p>capacidade de empregar o conhecimento obtido de maneira prática e atitude</p><p>a iniciativa para fazê-lo. Em poucas palavras: não basta saber, é preciso</p><p>saber fazer e efetivamente fazer o que precisa ser feito.</p><p>Aristóteles (1987), diante de questionamentos sobre como ser feliz em</p><p>um mundo de sofrimentos, defendeu que podemos ser felizes pelo daemon</p><p>(virtude) e pelo areté (excelência) e a virtude das virtudes é a felicidade, o</p><p>encontro do pensamento e da ação. O filósofo se referia à eudaimonia e</p><p>apontava a necessidade de converter virtudes e forças pessoais em ações</p><p>realizadas da melhor forma possível.</p><p>Uma vez estabelecido que habilidades são capacidades adquiridas, cabe</p><p>segmentá-las a título didático (Figura 10.1), visto que do ponto de vista</p><p>sistêmico são complementares e se potencializam:</p><p>As soft skills nasceram no Exército dos EUA. Por volta de 1959,</p><p>começaram a investir bastante em procedimentos de treinamento para</p><p>melhorar o fluxo de trabalho e a eficiência do aprendizado. Então foi criado</p><p>um regulamento (CON Reg 350-100-1) que compreendia habilidades</p><p>relacionadas ao trabalho envolvendo “pessoas e papel” (inspecionar</p><p>processos, supervisionar pessoas, preparar relatórios, projetar estruturas,</p><p>entre outras), ou seja, habilidades que não envolviam máquinas. Esse teria</p><p>sido o catalisador para a criação do termo soft skills, que aparece no manual</p><p>de treinamento do Exército dos EUA de 1972. Hoje, essas habilidades</p><p>também são chamadas de</p><p>socioemocionais ou inteligência emocional.</p><p>Figura 10.1</p><p>Segmentação das habilidades</p><p>Há quem defenda que o termo “soft” não representa adequadamente a</p><p>complexidade dessas habilidades. Tanto que podem ser identificadas como</p><p>human skills, habilidades humanas — fica aqui a indagação: não seriam as</p><p>hard skills também humanas? O escritor americano Seth Godin, por sua</p><p>vez, afirma que as habilidades socioemocionais são real skills —</p><p>habilidades reais. Vemos também o uso de life skills, habilidades para a</p><p>vida.</p><p>No primeiro ano da pandemia da Covid-19, o Fórum Econômico</p><p>Mundial (WEF, 2020) publicou o relatório The Future of Jobs, no qual</p><p>destacou as habilidades em alta até 2025. O rol, apresentado a seguir, reitera</p><p>a natureza mista das habilidades. Muitas delas são inclusive de difícil</p><p>enquadramento quanto a hard ou soft, como a Orientação para Serviço.</p><p>Essa habilidade demanda expertise técnica e ao menos uma skill</p><p>reconhecidamente socioemocional: a empatia.</p><p>1. Pensamento Analítico e Inovação</p><p>2. Aprendizado Ativo e Estratégicas de Aprendizado</p><p>3. Solução de Problemas Complexos</p><p>4. Pensamento Crítico e Análise</p><p>5. Criatividade, Originalidade e Iniciativa</p><p>6. Liderança e Influência Social</p><p>7. Uso de Tecnologia, Monitoramento e Controle</p><p>8. Design de Tecnologia e Programação</p><p>9. Resiliência, Tolerância ao Estresse e Flexibilidade</p><p>10. Racionalização, Solução de Problemas e Ideação</p><p>11. Inteligência Emocional</p><p>12. Solução de Problemas e Experiência do Usuário</p><p>13. Orientação para Serviço</p><p>14. Análise e Avaliação de Sistemas</p><p>15. Persuasão e Negociação</p><p>E as happiness skills, de onde vêm? Habilidades para a felicidade,</p><p>aquelas capazes de fomentar felicidade, estão presentes nas tradições</p><p>espirituais milenares, como o budismo. A atenção plena, por exemplo, tal</p><p>qual disseminada no ocidente pelos protocolos de mindfulness, tem sua</p><p>semente original nas práticas contemplativas orientais. Nas últimas décadas,</p><p>a ciência se debruçou sobre esse campo, produzindo evidências da validade</p><p>tanto da atenção plena, quanto de outras habilidades abordadas aqui.</p><p>Como já apresentado no capítulo 3, o neurocientista Richard Davidson é</p><p>categórico ao afirmar que atenção plena, savoring, resiliência e</p><p>generosidade podem ser treinados, impactando positivamente nas reservas</p><p>pessoais de bem-estar. Treinamentos nessas skills têm potencial para</p><p>promover neuroplasticidade, que consiste em alterações estruturais e</p><p>funcionais do cérebro. Assim, é importante que se compreenda que o</p><p>desenvolvimento das habilidades para a felicidade constitui treinamento</p><p>mental.</p><p>Na psicologia positiva o conhecimento produzido não está integrado e</p><p>compilado. Além das quatro habilidades citadas nos trabalhos</p><p>neurocientíficos de Davidson, estudos apontam algumas dezenas de outras,</p><p>tais como: coragem, empatia, gratidão, paciência, perdão, altruísmo,</p><p>autocontrole, otimismo, entre outras.</p><p>Social Emotional Learning (SEL)</p><p>Há pouca literatura que explore adequadamente a origem e a evolução das</p><p>soft skills no âmbito organizacional. Sobre happiness skills é praticamente</p><p>nula a oferta de material organizado. Contudo, o Social Emotional Learning</p><p>(SEL) ou Aprendizagem Socioemocional (SEL), desenvolvido para as</p><p>escolas no final do século 20, pode apoiar a educação corporativa em soft</p><p>skills.</p><p>SEL é o processo pelo qual estudantes adquirem e aplicam efetivamente</p><p>conhecimentos, habilidades e atitudes necessários para compreender e</p><p>gerenciar emoções, definir e atingir objetivos positivos, sentir e demonstrar</p><p>empatia pelos outros, estabelecer e manter relacionamentos e tomar</p><p>decisões responsáveis.</p><p>O termo Aprendizagem Socioemocional foi cunhado em 1994, durante</p><p>reunião organizada pelo Instituto Fetzer (EUA), com a participação de</p><p>pesquisadores, educadores envolvidos em vários esforços baseados na</p><p>educação para promover o desenvolvimento positivo das crianças. Esses</p><p>pioneiros entendiam que a programação escolar era ineficaz e que faltava</p><p>uma coordenação sistêmica de programas como prevenção de drogas,</p><p>prevenção da violência, educação sexual, entre outros.</p><p>Na mesma reunião foi criado o Colaborativo para Aprendizagem</p><p>Acadêmica, Social e Emocional (CASEL). O objetivo da entidade é</p><p>estabelecer a programação SEL baseada em evidências científicas, da pré-</p><p>escola ao ensino médio nas escolas americanas. Um dos fundadores é o</p><p>psicólogo Daniel Goleman, amplamente conhecido pela obra Inteligência</p><p>Emocional. O modelo teórico engloba cinco competências (Figura 10.2).</p><p>Figura 10.2</p><p>Competências do Social Emotional Learning (CASEL)</p><p>De acordo com o CASEL (2015), autoconsciência consiste na</p><p>competência para entender as próprias emoções, pensamentos e valores e</p><p>como eles influenciam o comportamento em contextos diversos. Isso inclui</p><p>capacidade para reconhecer seus pontos fortes e limitações com um senso</p><p>de confiança e propósito bem fundamentado, exame de preconceitos e</p><p>vieses, desenvolvimento de uma mentalidade construtiva, entre outros.</p><p>Já a autogestão é a competência para gerenciar as emoções, pensamentos</p><p>e comportamentos de forma eficaz em diferentes situações e para atingir</p><p>objetivos e aspirações. Inclui as capacidades de adiar a gratificação,</p><p>gerenciar o estresse, motivar-se, agenciar realizações pessoais e coletivas,</p><p>entre outros.</p><p>A terceira das cinco é a consciência social, a competência para entender</p><p>a perspectiva dos outros e estabelecer a empatia, inclusive com pessoas de</p><p>diversas origens, culturas e contextos. Isso inclui reconhecer os pontos</p><p>fortes dos outros, demonstrar compaixão, preocupar-se com os sentimentos</p><p>alheios, compreender e expressar gratidão, identificar diversas normas</p><p>sociais, reconhecer demandas situacionais e oportunidades, compreender as</p><p>influências das organizações no comportamento, entre outros.</p><p>As habilidades de relacionamento formam a competência para</p><p>estabelecer e manter relacionamentos saudáveis e de apoio, comunicar-se</p><p>com clareza, ouvir ativamente, cooperar, trabalhar colaborativamente para</p><p>resolver problemas, negociar conflitos de forma construtiva, navegar em</p><p>ambientes com diferentes demandas e oportunidades sociais e culturais,</p><p>exercer liderança, buscar ou oferecer ajuda quando necessário, entre outros.</p><p>A quinta competência, tomada de decisão responsável, aborda o saber</p><p>fazer escolhas atentas e construtivas sobre o comportamento pessoal e as</p><p>interações sociais em diversas situações. Isso inclui a capacidade de</p><p>considerar padrões éticos e questões de segurança e de avaliar os benefícios</p><p>e consequências de várias ações para o bem-estar pessoal, social e coletivo.</p><p>Sobre a aquisição de habilidades</p><p>“Nós somos o que repetidamente fazemos. A excelência, então, não é um</p><p>ato, mas um hábito”. Essa citação atribuída a Aristóteles é, na verdade, do</p><p>filósofo americano Will Durant (1885-1981). Todavia, reflete o pensamento</p><p>do filósofo grego. Como afirmado no Capítulo 3, a aquisição de habilidades</p><p>é um esforço intencional, sistemático e continuado.</p><p>Quanto tempo de treinamento é necessário para que se estabeleça uma</p><p>habilidade para a felicidade? Se você pensou 21 dias, errou. Essa é uma das</p><p>inúmeras falácias pseudocientíficas amplamente repetidas. Esse número</p><p>mágico foi popularizado a partir de um livro publicado na década de 1960</p><p>pelo cirurgião plástico Maxwell Maltz. Na obra intitulada Psycho-</p><p>Cybernetics, ele afirmou que seus pacientes pareciam necessitar de 21 dias</p><p>para se acostumarem aos novos rostos pós-procedimento. Seria bom que</p><p>fosse assim – linear, previsível e igual para todos, mas não é.</p><p>Pesquisas empíricas, como a How Are Habits Formed: Modelling Habit</p><p>Formation in the Real World (Lally et al., 2010) desenvolvida na University</p><p>College London, mostram a complexidade do tema. Nesse estudo, ao</p><p>acompanhar um grupo de pessoas em processo de aquisição de novos</p><p>hábitos os cientistas verificaram que o tempo médio no grupo foi de 66</p><p>dias, sendo que os tempos individuais variaram de dezoito a 254 dias. O</p><p>tempo para alcançar a automaticidade para realizar um comportamento sem</p><p>autocontrole depende da complexidade da atividade, do indivíduo e da</p><p>combinação</p><p>entre ambas as variáveis.</p><p>Mas como explicar o Diário de Gratidão, uma das mais difundidas</p><p>intervenções em psicologia positiva? Embora divulgado como uma</p><p>atividade a ser realizada por 21 dias, a intervenção de Seligman (2005),</p><p>intitulada “As três bençãos”, foi validada cientificamente em protocolo com</p><p>dosagem de sete dias e não 21. Cabe destacar que a duração da intervenção</p><p>parte do desenho do estudo, tal qual proposto pelos investigadores. Um</p><p>protocolo é testado com diferentes dosagens para que se identifique a</p><p>frequência adequada.</p><p>Então quanto tempo de treinamento é necessário para que se estabeleça</p><p>uma habilidade para a felicidade? Recomenda-se sempre o uso de</p><p>intervenções validadas cientificamente, os estudos que as respaldam trazem</p><p>a frequência indicada. Não custa lembrar que, como popularmente dito, a</p><p>diferença entre remédio e veneno é a dosagem. Até mesmo uma singela</p><p>intervenção, como os Atos Aleatórios de Bondade (Sheldom et al., 2012),</p><p>pode gerar efeito rebote quando exacerbada, reduzindo o nível de bem-estar</p><p>em vez de elevá-lo.</p><p>Atenção plena</p><p>“O bem-estar é uma habilidade”, afirmou Richard Davidson na conferência</p><p>Mindfulness & Well-Being at Work, do Greater Good Science Center da</p><p>Universidade de Berkeley (EUA). Segundo o neurocientista, a felicidade</p><p>não é diferente de aprender a tocar violoncelo. Se alguém praticar as</p><p>habilidades necessárias, ficará melhor nisso.</p><p>“Com base em pesquisas, o bem-estar tem quatro componentes que</p><p>receberam atenção científica séria. Cada um deles está enraizado em</p><p>circuitos neuronais e cada um desses circuitos exibe plasticidade. Portanto,</p><p>sabemos que se exercitarmos esses circuitos eles se fortalecerão. Praticar</p><p>essas quatro habilidades pode fornecer o substrato para mudanças</p><p>duradouras, o que pode ajudar a promover níveis mais elevados de bem-</p><p>estar em nossas vidas”, defendeu no evento.</p><p>Comecemos pela atenção plena. Para compreendê-la, adota-se aqui o</p><p>construto de Jon-Kabat Zinn (2009): “Capacidade de prestar atenção de</p><p>uma maneira particular, de propósito, no momento presente e sem</p><p>julgamento”. Como todo construto, essa é uma elaboração com base em</p><p>teorias existentes e a partir de fenômenos observáveis. Para mensurar a</p><p>atenção plena, recomenda-se o uso da escala MAAS, Mindful Attention</p><p>Awareness Scale (Brown & Ryan, 2003), validada no Brasil como Escala de</p><p>Atenção e Consciência Plenas (Barros et al., 2015).</p><p>Considera-se adequado o uso dessa e das demais escalas da seguinte</p><p>forma: no momento zero, ou seja, antes da intervenção (treinamento com o</p><p>objetivo de desenvolver a habilidade, no caso, a atenção plena);</p><p>imediatamente após a intervenção; e em um follow up de um ou três meses,</p><p>por exemplo. Observe que aqui não se trata do desenho de uma pesquisa</p><p>empírica, com todo o rigor científico necessário, mas sim da indicação de</p><p>uso de instrumento cientificamente validado para observação do impacto da</p><p>intervenção para aquisição dessa happiness skill.</p><p>O desenvolvimento da habilidade de atenção plena de maneira</p><p>estruturada se dá através de práticas contemplativas, o que não se reduz a</p><p>meditação. Introduzido no ocidente por Kabat-Zinn, o mindfulness vai além</p><p>da meditação, com práticas diversas a serem inseridas no dia a dia. Desde o</p><p>programa de Redução do Stress Baseada em Mindfulness (MBSR), que</p><p>Kabat-Zinn lançou na Universidade de Massachusetts, em 1979, centenas</p><p>de estudos robustos documentaram os benefícios para a saúde física e</p><p>mental, inspirando inúmeras adaptações para escolas, prisões, hospitais,</p><p>empresas, entre outros.</p><p>A condução de práticas de mindfulness deve ser necessariamente</p><p>precedida de qualificação profissional. Você pode se capacitar para isso ou</p><p>atuar em parceria como um professor habilitado.</p><p>Savoring</p><p>Para compreensão de savoring, é importante conhecer o trabalho do</p><p>pesquisador Fred Bryant, da Loyola University, em Chicago (EUA). Dr.</p><p>Bryant é precursor de estudos em savoring, tendo cunhado o termo na</p><p>primeira década do século 21. Segundo Bryant & Veroff (2007), trata-se do</p><p>“processo pelo qual a pessoa percebe e aprecia experiências agradáveis</p><p>enquanto ocorrem e busca prolongar ou amplificar as sensações positivas</p><p>decorrentes das vivências”. O livro Savoring: A New Model of Positive</p><p>Experience, de Bryant e Joseph Veroff, é a principal fonte para</p><p>compreensão aprofundada dessa habilidade para a felicidade.</p><p>É comum que se confunda atenção plena e savoring, como se ambas</p><p>fossem apenas a contemplação e apreciação do momento presente. Embora</p><p>haja uma interseção entre elas e até se possa afirmar que a atenção plena é</p><p>um possível requisito para o savoring, há distinções entre ambas. Segundo</p><p>Kabat-Zinn (2009), “o princípio central da atenção plena é incentivar a</p><p>pessoa a aproveitar cada pequeno aspecto da experiência — físico,</p><p>sensorial, emocional ou social”. Sobre savoring, Bryant e Veroff (2007)</p><p>destacam: “a pessoa busca prolongar sensações positivas decorrentes das</p><p>vivências”.</p><p>E não é apenas o exercício de amplificação da sensação positiva que</p><p>diferencia savoring de atenção plena, visto que é possível implementar</p><p>intervenções de savoring em três âmbitos: apreciação, reminiscência e</p><p>antecipação: Bryant e Veroff esclarecem, no livro Savoring: A New Model</p><p>of Positive Experience:</p><p>“Embora savoring seja um processo para o aqui e agora, há</p><p>experiências positivas que partem do passado (savoring por</p><p>reminiscência) e experiências que vêm do futuro (savoring por</p><p>antecipação). Quando as pessoas invocam ativamente sentimentos</p><p>positivos ao relembrar podem estar usando processos da apreciação para</p><p>examinar o passado. Quando as pessoas invocam ativamente</p><p>sentimentos positivos ao antecipar o que pode ou vai acontecer no</p><p>futuro, elas podem estar usando processos de savoring para considerar o</p><p>futuro.</p><p>(...)</p><p>No entanto, os benefícios da reminiscência também dependem tanto</p><p>dos motivos de reminiscência quanto da maneira pela qual a</p><p>reminiscência é realizada. Aqueles que disseram que usaram a</p><p>reminiscência principalmente para obter perspectiva e</p><p>autoconhecimento relataram uma capacidade maior de saborear a vida</p><p>do que aqueles que usaram a reminiscência principalmente para escapar</p><p>do presente. Esse resultado sugere que o maior valor adaptativo da</p><p>reminiscência não é apenas uma forma de escapar dos problemas atuais,</p><p>mas uma ferramenta construtiva para aumentar a conscientização e</p><p>fornecer um senso de perspectiva no presente.</p><p>A antecipação é uma forma muito especial de savoring, porque exige</p><p>que se transcenda o aqui e o agora e se construa um momento agradável</p><p>na mente, inteiramente do zero. (...) Com antecipação, os indivíduos</p><p>devem criar a experiência puramente pela fantasia, imaginando como</p><p>ela pode se desenrolar, ou talvez projetando um futuro com</p><p>circunstâncias que já encontraram.</p><p>(...)</p><p>A maneira de impedir que a antecipação diminua o efeito presente é</p><p>encontrar um equilíbrio entre o que saboreamos em antecipação e o que</p><p>saboreamos no presente. Esse equilíbrio pode ser alcançado evitando</p><p>comparações diretas entre expectativas anteriores e realidade atual. Em</p><p>outras palavras, as pessoas podem ter o melhor dos dois mundos.”</p><p>Para mensurar savoring, recomenda-se o Savoring Beliefs Inventory –</p><p>SBI (Bryant, 2003). O desenvolvimento da habilidade de savoring conta</p><p>com intervenções nos três âmbitos: antecipação, apreciação e</p><p>reminiscência.</p><p>Resiliência</p><p>Para aprofundamento em resiliência, sugere-se o trabalho do pesquisador</p><p>Michael Ungar, da Dalhousie University (Canadá). O construto de</p><p>referência é “Capacidade de um sistema biopsicossocial (pessoa, família,</p><p>comunidade) de navegar em direção aos recursos necessários para sustentar</p><p>o funcionamento positivo sob estresse” (Ungar, 2011). Por funcionamento</p><p>positivo compreenda-se o enfrentamento sem adoecimento físico ou mental</p><p>de média ou longa duração. Diferente de atenção plena e savoring, a</p><p>resiliência possui inúmeros construtos, sendo amplamente pesquisada por</p><p>diferentes disciplinas, universidades e grupos. Pode ser considerada “um</p><p>processo de adaptação positiva diante de um contexto desfavorável, no qual</p><p>o indivíduo demonstra uma notável capacidade de superação de condições</p><p>adversas que representariam uma ameaça significativa ao seu bem-estar,</p><p>desenvolvimento ou saúde mental” (Luthar, 2006). Para Hardy e colegas</p><p>(2004), “resilientes são indivíduos capazes de permanecer bem, se recuperar</p><p>e até triunfar perante a adversidade”. Segundo Masten (2001), “são pessoas</p><p>comuns lidando com os desafios e as tragédias do dia a dia”.</p><p>Do ponto de visto do desfecho, são três as possibilidades de um processo</p><p>de resiliência: recuperação, adaptação e transformação. De maneira breve,</p><p>compreenda-se a recuperação como retorno ao ponto anterior à adversidade.</p><p>Já a adaptação consiste em, na impossibilidade de retornar ao ponto anterior</p><p>devido a perdas reais ou simbólicas, estabelece-se um novo set point ou</p><p>ponto de homeostase. Por fim, a transformação pode ser explicada como um</p><p>status novo que, com ou sem perdas, se constitui de maneira deliberada</p><p>como uma posição melhor que a original.</p><p>Para mensurar resiliência, entre outras há a Resilience Scale – RS</p><p>(Wagnild & Young, 1993), validada no Brasil como Escala de Resiliência</p><p>(Pesce et al., 2005). Diferente da atenção plena — cujas intervenções são</p><p>estruturadas em torno das práticas contemplativas — e do savoring — cujas</p><p>intervenções são quase que específicas para essa habilidade, o</p><p>desenvolvimento da resiliência requer intervenções com foco em diversas</p><p>dimensões que a constituem (Figura 10.3).</p><p>Figura 10.3</p><p>Fatores protetivos para a resiliência (Reivich et al., 2005)</p><p>Generosidade</p><p>A generosidade não é uma habilidade apenas, constitui um guarda-chuva</p><p>sob o qual estão situadas diferentes habilidades de natureza pró-social, ou</p><p>seja, aquelas que beneficiam outras pessoas e não a nós mesmos. Entre elas</p><p>destacam-se: altruísmo, bondade, compaixão, empatia, gentileza e gratidão.</p><p>Divido aqui o construto de generosidade da University of Notre Dame</p><p>(EUA), que investe em pesquisa na área através do Science of Generosity</p><p>Project: “Virtude de dar coisas boas aos outros de maneira livre e</p><p>abundante. Por coisas boas compreendam-se: recursos financeiros, bens</p><p>materiais, tempo, atenção, ajuda, encorajamento, disponibilidade</p><p>emocional, entre outros”.</p><p>Os benefícios da generosidade têm sido amplamente evidenciados</p><p>através de pesquisas empíricas, destacando-se: saúde geral, longevidade,</p><p>bem-estar psicológico, melhoria nos relacionamentos e felicidade. Um dos</p><p>centros de referência é o CCARE – The Center for Compassion and</p><p>Altruism Research and Education, da Stanford University (EUA).</p><p>Para mensurar generosidade, indicamos Interpersonal Generosity Scale</p><p>– IGS, em tradução livre Escala de Generosidade Interpessoal (Smith &</p><p>Hill, 2009). São inúmeras as intervenções para desenvolvimento da</p><p>generosidade, considerando todas as habilidades situadas em seu escopo.</p><p>Referências</p><p>ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Nova Cultural, 1987.</p><p>BARROS, V. et al. “Validity Evidence of the Brazilian Version of the</p><p>Mindful Attention Awareness Scale (MAAS)”. Psicologia: Reflexão e</p><p>Crítica, v. 28 (2015), pp. 87-95. Disponível em:</p><p>https://doi.org/10.1590/1678-7153. 201528110. Acesso em 17 nov. 2021.</p><p>BROWN, K. W.; RYAN, R. M. “The Benefits of Being Present:</p><p>Mindfulness and its Role in Psychological Well-Being”. Journal of</p><p>personality and social psychology, v. 84, nº 4 (2003), pp. 822-848.</p><p>Disponível em: https://doi.org/10.1037/0022-3514.84.4.822. Acesso em 17</p><p>nov. 2021.</p><p>BRYANT, F. B. (2003). Savoring Beliefs Inventory (SBI): A Scale for</p><p>Measuring Beliefs About Savouring. Journal of Mental Health, v. 12, nº 2</p><p>(2003), pp. 175-196. Disponível em:</p><p>https://doi.org/10.1080/0963823031000103 489. Acesso em 17 nov. 2021.</p><p>BRYANT, F. B.; VEROFF, J. Savoring: A New Model of Positive</p><p>Experience. Mahwah, Nova Jersey: Lawrence Erlbaum, 2007.</p><p>CASEL. “Effective Social and Emotional Learning Programs. Preschool</p><p>and Elementary School Edition”. Chicago: Collaborative for Academic,</p><p>Social, and Emotional Learning, 2015.</p><p>HARDY, S. E.; CONCATO, J.; GILL, T. M. (2004). Resilience of</p><p>community-dwelling older persons. Journal of the American Geriatrics</p><p>Society, 52(2), 257–262. https://doi.org/10.1111/j.1532-5415.2004.52065.x</p><p>KABAT-ZINN, J. Full Catastrophe Living: Using the Wisdom of your Body</p><p>and Mind to Face Stress, Pain and Illness. Nova Iorque: Bantam House,</p><p>2009.</p><p>LALLY, P. et al. “How Are Habits Formed: Modeling Habit Formation in</p><p>the Real World”. European Journal of Social Psychology, v. 40, nº 6 (2009),</p><p>pp. 998-1009. Disponível em: https://doi.org/10.1002/ejsp.674. Acesso em</p><p>17 nov. 2021.</p><p>LUTHAR, S. S. “Resilience in Development: A Synthesis of Research</p><p>Across Five Decades”. In: CICCHETTI, D.; COHEN, D. J. (Eds.).</p><p>Developmental psychopathology: Risk, disorder, and adaptation. Nova</p><p>Iorque: John Wiley & Sons, 2006, pp. 739-795</p><p>MASTEN, A. S. “Ordinary Magic: Resilience Processes in Development”.</p><p>American Psychologist, v. 56, nº 3 (2001), pp. 227-238. Disponível em:</p><p>https://doi.org/10.1037/0003-066X.56.3.227. Acesso em 17 nov. 2021.</p><p>PESCE, R. P. et al. “Adaptação Transcultural, Confiabilidade e Validade da</p><p>Escala de Resiliência”. Caderno de Saúde Pública, v. 2, nº 2 (2005), pp.</p><p>436-448.</p><p>REIVICH, K. et al. “From Helplessness to Optimism: The Role of</p><p>Resilience in Treating and Preventing Depression in Youth”. In:</p><p>GOLDSTEIN, S.; BROOKS. R. B. (Eds.). Handbook of Resilience in</p><p>Children. Nova Iorque: Kluwer Academic/Plenum Publishers, 2005, pp.</p><p>223-237.</p><p>SELIGMAN, M. et al. “Positive Psychology Progress: Empirical Validation</p><p>of Interventions”. The American Psychologist, v. 60 (2005), pp. 410-421.</p><p>Disponível em: https://doi.org/10.1037/0003-066X.60.5.410. Acesso em 17</p><p>nov. 2021.</p><p>SHELDON, K.; LYUBOMIRSKY, S. (2012). “Achieving Sustainable New</p><p>Happiness: Prospects, Practices, and Prescriptions”. In: LINLEY, P. A.;</p><p>JOSEPH, S. (Eds.) Positive Psychology in Practice. Nova Jersey: John</p><p>Wiley & Sons, 2012, pp. 127-145. Disponível em:</p><p>http://doi.org/10.1002/9780470939338.ch8. Acesso em 17 nov. 2021.</p><p>SMITH, C.; HILL, J. P. “Toward the Measurement of Interpersonal</p><p>Generosity (IG): An IG Scale Conceptualized, Tested, and Validated”, 2009.</p><p>Disponível em: https://generosityresearch.nd.edu/assets/13798/ig. Acesso</p><p>em 17 nov. 2021.</p><p>UNGAR, M. “The Social Ecology of Resilience: Addressing Contextual</p><p>and Cultural Ambiguity of a Nascent Construct”. American Journal of</p><p>Orthopsychiatry, v. 81, nº 1 (2011), pp. 1-17. Disponível em:</p><p>https://doi.org/10.1111/j.1939-0025.2010.01067.x. Acesso em 17 nov. 2021.</p><p>WAGNILD, G. M.; YOUNG, H. M. “Development and Psychometric</p><p>Evaluation of the Resilience Scale”. Journal of Nursing Measurement, v. 1,</p><p>nº 2 (1993), pp. 165-178.</p><p>WEF. “The Future of Jobs Report 2020”. Genebra: World Economic Forum,</p><p>2020. Disponível em: https://www.weforum.org/reports/the-future-of-jobs-</p><p>report-2020. Acesso em 17 nov. 2021.</p><p>CAPÍTULO 11</p><p>Canvas diamante:</p><p>um plano de ação sistêmico</p><p>Como planejar uma iniciativa de promoção da felicidade de quem trabalha?</p><p>Quem deve conduzir? Por onde começar? O que não pode faltar? Como</p><p>avaliar o impacto? São muitas as perguntas. Com o compromisso de</p><p>facilitar o processo e apoiar os Chief Happiness Officers certificados pelo</p><p>Instituto Feliciência, desenvolvi um mapa visual batizado de Canvas CHO</p><p>Diamante. Em formato da pedra lapidada, conta com doze blocos e sete</p><p>indicadores. Como costumo dizer nas certificações, trata-se de um ponto de</p><p>partida e cada organização pode e deve hackear a ferramenta, adaptando-a à</p><p>sua realidade — o que significa inserir e retirar blocos. Contudo, como</p><p>também enfatizo, só se pode alterar aquilo que se conhece bem. Se você</p><p>chegou até aqui, pode ver nos capítulos anteriores as premissas que</p><p>sustentam a metodologia.</p><p>Antes de dar início ao uso do canvas, há passos importantes. O primeiro</p><p>deles é obter o buy in da organização, com o compromisso do patrocinador.</p><p>É fundamental que esse apoio venha da alta gestão, visto que se trata de</p><p>uma iniciativa em âmbito estratégico. Um mindset data driven, com</p><p>argumentos construídos sobre dados, favorece o processo de persuasão do</p><p>board. Avalie</p><p>os indicadores mencionados no capítulo 9, eles podem revelar</p><p>pontos de vulnerabilidade a ser pivotados com a iniciativa de felicidade.</p><p>Afastamento do trabalho, alta sinistralidade no plano de saúde, turn over</p><p>elevado, evasão de talentos, absenteísmo, presenteísmo, baixo engajamento,</p><p>reclamações trabalhistas guardam sinais da (in)felicidade de quem trabalha</p><p>em sua empresa.</p><p>Outro ponto importante é constituir um grupo de trabalho. Esse não é</p><p>um simples projeto, é o início de uma transformação cultural, vai exigir</p><p>estamina. A sugestão é que seja conduzido por um comitê multidisciplinar,</p><p>liderado por um executivo devidamente capacitado, mas com a participação</p><p>de gestores de áreas que possuam interseção com a iniciativa. A composição</p><p>é única, não há receita, sendo o mais usual ter nessa célula de trabalho</p><p>líderes das áreas de pessoas, cultura, estratégia, inovação e até mesmo de</p><p>atendimento ao cliente — a felicidade legítima transborda os muros da</p><p>organização e atinge diferentes stakeholders, clientes são os primeiros a</p><p>perceber. O comitê tem também a função de capilarizar o processo,</p><p>recebendo e transmitindo informações ao sistema. Cinco é um bom número</p><p>de integrantes: ímpar para a saída em casos de divergências, não muito</p><p>grande para dar fluidez ao trabalho, não muito pequeno para garantir uma</p><p>visão diversa.</p><p>Exploro a seguir os blocos do Canvas CHO Diamante (Figura 11.1).</p><p>Figura 11.1</p><p>Canvas CHO Diamante (Furtado, 2020)</p><p>Os blocos 1, 2 e 3 constituem a base filosófica do processo. Deixe-me</p><p>antecipar algo: por muitas vezes haverá dúvidas quanto às reais intenções</p><p>da iniciativa. “Por que mesmo estamos fazendo isso?”, “O que felicidade</p><p>tem a ver com os desafios do nosso negócio?”, “Isso vai nos ajudar a vender</p><p>mais?” — eis apenas algumas das perguntas que costuma emergir ao longo</p><p>do caminho. Por isso, antes de definir o que e como fazer, é preciso saber</p><p>por que fazer. Vamos aos três passos iniciais.</p><p>1 – Conceituação de felicidade: O que é felicidade para a organização?</p><p>Com base em referenciais teóricos sólidos, é necessário eleger o construto</p><p>de felicidade que norteia a iniciativa, ou seja, é preciso ser capaz de</p><p>responder o que ela significa para a empresa. Essa definição é</p><p>exaustivamente repetida, integra o storytelling do endomarketing, os</p><p>treinamentos e, principalmente, está na fala dos membros do board. O que</p><p>chamamos de happiness education, a inserção da temática no dia a dia</p><p>corporativo, poderá ser acompanhado por uma espécie de tutorial</p><p>esclarecendo “o que é e o que não é felicidade”. Ou seja: se o sistema cair</p><p>(e ele vai cair), que ninguém diga “assim não dá para ser feliz”.</p><p>2 – Clarificação do propósito: Como já abordado ao longo do livro,</p><p>propósito compõe o pilar cognitivo da felicidade. Do ponto de vista de</p><p>negócios, a correlação propósito, engajamento e crescimento já foi</p><p>evidenciada. Para além da missão — premissa estratégica que segue</p><p>relevante, junto com visão e valores —, o capitalismo de stakeholders</p><p>demanda clareza quanto ao impacto positivo que a organização gera. O</p><p>próprio Diagrama Ecossistema CHO Feliciência (visto no capítulo 7)</p><p>preconiza que uma iniciativa de felicidade seja ancorada no propósito</p><p>corporativo, para que não se torne um apêndice sujeito a qualquer</p><p>intempérie dos cenários internos ou externo.</p><p>3 – Cristalização da intenção: De que maneira a felicidade de quem</p><p>trabalha apoia a realização do propósito? Esta é a pergunta que precisa ser</p><p>respondida após os blocos 1 e 2. Em outras palavras: onde estamos hoje e</p><p>onde intencionamos estar ao final do primeiro ciclo –recomendo que seja de</p><p>doze meses.</p><p>Os blocos 4, 5 e 6 constituem a etapa estratégica da iniciativa. Não</p><p>cumprir esses passos implica em construir um edifício sem qualquer</p><p>solidez. Parecem óbvios, mas não são, porque não é usual vê-los realizados</p><p>na integralidade. Demandam recursos e se você pensou em investimento</p><p>financeiro acertou parcialmente — são possivelmente a parte mais</p><p>trabalhosa do processo.</p><p>4 – Diagnóstico: A relevância e os caminhos para construção de um</p><p>diagnóstico consistente foram abordados no capítulo 9. Recapitulando, o</p><p>diagnóstico compreende a avaliação de indicadores sistêmicos da</p><p>organização, a revisita a pesquisas já realizadas, a realização de novas</p><p>pesquisas com o uso de escalas cientificamente validadas, bem como</p><p>investigações qualitativas realizadas por entrevistas e grupos focais.</p><p>5 – Disseminação da cultura: Tony Hsieh, ex-CEO da Zappos, afirmou</p><p>que para uma empresa “cultura é destino”. Sem dúvida, a cultura</p><p>organizacional é fator decisivo para o futuro de um negócio porque pode</p><p>apoiar ou rechaçar a realização das estratégias. A felicidade implica na</p><p>inserção do cuidado como valor inegociável e isso não acontecerá em uma</p><p>cultura permeada pela falta de cuidado. Como abordado no capítulo 7, esta</p><p>etapa propõe a revisita à cultura desejada, a aferição da cultura real, a</p><p>calibração entre o desejado e o real.</p><p>6 – Alinhamento da liderança: Como tratado no capítulo 8, o caráter</p><p>humanista da liderança é condição indispensável para o sucesso da</p><p>promoção da felicidade de quem trabalha. Este bloco contempla a definição</p><p>de uma abordagem de liderança adotada intencionalmente pela organização,</p><p>com a posterior identificação do status atual da liderança e o desenho de</p><p>uma trilha de alinhamento enquanto processo que permeia a vida dos</p><p>executivos, para muito além das salas de aulas físicas ou remotas.</p><p>Os blocos 7, 8, 9, 10 e 11 são operacionais. É importante que se enfatize</p><p>aqui os vários passos necessários para que se chegasse à ação direta com o</p><p>colaborador. É essa abordagem sistêmica que eleva a iniciativa de plano de</p><p>ação a portfolio estratégico. Com o cumprimento dos blocos 1 a 6, nas</p><p>dimensões filosófica e estratégica, há maior clareza e assertividade para</p><p>agir.</p><p>7 – Design de Employee Experience (EX): De nada adiantam narrativas</p><p>positivas quando as experiências são negativas. Tome, por exemplo, um</p><p>encantador onboarding — o processo de integração do novo colaborador —</p><p>seguido por dias de trabalho (e até semanas) sem o devido acesso ao</p><p>sistema por questões burocráticas ou processuais. Olhar a Experiência do</p><p>Colaborador, ou EX, desenhando e redesenhando as diferentes jornadas de</p><p>seu ciclo na organização é um grande e longo esforço, mas essencial à</p><p>manutenção da coerência com a iniciativa de felicidade. Aqui a sugestão é</p><p>que se eleja uma das jornadas, aquela com potencial de maior impacto, para</p><p>criação de uma experiência memorável. A título de ilustração, essas são</p><p>algumas das jornadas: atração, seleção, onboarding, avaliação,</p><p>desenvolvimento, retenção, reconhecimento, promoção, offboarding e</p><p>alumni (esse último refere-se a ações de relacionamento com ex-</p><p>colaboradores).</p><p>8 – Lançamento: A iniciativa de felicidade, assim como outros pilares</p><p>estratégicos, deve contar com um kick off, um marco inicial devidamente</p><p>capitaneado pela alta gestão — de preferência pelo CEO. É nesse momento</p><p>que a empresa apresenta seu compromisso aos colaboradores. Os anos de</p><p>experiência forjaram em mim um aprendizado: não exagere no lançamento.</p><p>Lembre-se de que a empresa estabelece um compromisso ético quando</p><p>apresenta ao trabalhador a possibilidade de construção de um espaço de</p><p>trabalho e, consequentemente, de vida mais saudável para todos. Fale</p><p>apenas sobre o que será capaz de cumprir, estabeleça um processo orgânico</p><p>— passo a passo — e evite aquilo que o professor Márcio César Ferreira, da</p><p>Universidade de Brasília (UnB), intitulou de “ofurô corporativo”.</p><p>9, 10 e 11 – Ação, Ação e Ação: A partir daqui a metodologia conduz</p><p>aos blocos de ação. O fato de mencionar três blocos fala da natureza das</p><p>ações: de educação em habilidades para a felicidade, de natureza</p><p>eudaimônica — sobre sentido do trabalho e propósito — e de natureza</p><p>hedônica — sobre a redução de estressores desnecessários e a promoção de</p><p>emoções de valência positiva.</p><p>Por fim, o bloco 12 trata dos resultados observados, aqui chamados de</p><p>retorno sobre o investimento (ROI) e valor sobre o investimento (VOI).</p><p>Dedicamos o próximo capítulo a esse</p><p>sensível aspecto.</p><p>Referência</p><p>FURTADO, C. A. Manual de Certificação Internacional Chief Happiness</p><p>Officer. Brasília: Instituto Feliciência, 2020.</p><p>Capítulo 12</p><p>ROI e VOI: quando o investimento compensa</p><p>Toda organização espera resultados, tenha ou não fins lucrativos. Toda</p><p>alocação de recursos — financeiros, de força de trabalho e de tempo —</p><p>precisa demonstrar evidências de que vale a pena. Com a felicidade não é</p><p>diferente, há um momento em que alguém perguntará qual é o ROI e você</p><p>precisará responder.</p><p>ROI é a forma tradicional de mensurar o Retorno Sobre o Investimento:</p><p>quanto foi despendido versus quanto foi obtido. Em termos globais, para</p><p>investimentos em saúde mental convencionou-se adotar o estudo de</p><p>Chishtolm e colegas (2016), com evidências de que para cada US$ 1</p><p>investido há um retorno de 4 dólares em termos de bem-estar e capacidade</p><p>dos trabalhadores. Mas, como saber o que ocorre dentro da sua</p><p>organização?</p><p>O Canvas CHO Diamante (Figura 12.1), apresentado no capítulo 11,</p><p>demanda a definição de KPIs, Key Performance Indicators, para</p><p>acompanhamento do impacto da iniciativa de felicidade. Não se trata de</p><p>criar indicadores com foco em bem-estar, mas elencar entre os indicadores</p><p>adotados pela organização aqueles que podem ser afetados direta ou</p><p>indiretamente pela melhoria das condições de felicidade.</p><p>Inicialmente, sugere-se uma seleção entre os KPIs de pessoas. Como</p><p>citado no capítulo 9, os mais usuais são: turn over ou rotatividade, retenção</p><p>de talentos, absenteísmo, presenteísmo, engajamento, produtividade, eNPS</p><p>(indicador de fidelização), acidentes de trabalho, afastamento do trabalho,</p><p>sinistralidade de plano de saúde, menções em plataformas como Glassdoor</p><p>e reclamações trabalhistas. Verifique entre os indicadores que sua</p><p>organização já acompanha aqueles que apresentam maior vulnerabilidade,</p><p>considere os principais fatores relacionados ao desempenho atual e se a</p><p>promoção de condições da felicidade poderá colaborar para a melhoria.</p><p>Figura 12.1</p><p>Canvas CHO Diamante (Furtado, 2020)</p><p>Organizações mais maduras — do ponto de vista do modelo de gestão e</p><p>da preparação dos executivos — podem incluir também KPIs relacionados</p><p>a processos — como desempenho e inovação; a clientes e mercado — como</p><p>satisfação e NPS; e financeiros — como rentabilidade. Há evidências</p><p>empíricas de impacto sistêmico da felicidade sobre o desempenho do</p><p>negócio, por isso recomendo que se observe o que ocorre em todas as</p><p>dimensões de um clássico Balanced Scorecard (BSC) ou mapa estratégico</p><p>(Figura 12.2).</p><p>A felicidade de quem trabalha pode afetar sistemicamente a</p><p>organização? Sim, não há dúvidas. Podemos medir o retorno da felicidade</p><p>objetivamente, confrontando valores investidos versus redução de</p><p>reclamações de clientes, retrabalho, aumento de fatia de mercado ou lucro?</p><p>Não devemos. Criar uma relação de nexo causal é incorreto, visto que a</p><p>felicidade é um dos elementos em operação no ecossistema organização.</p><p>Quando vemos uma pesquisa empírica que aponta uma relação positiva</p><p>entre incremento de felicidade e vendas, por exemplo, trata-se de um estudo</p><p>realizado em uma amostragem específica onde foram correlacionadas as</p><p>duas variáveis — não representa uma verdade universal.</p><p>Figura 12.2</p><p>Balanced Scorecard (Kaplan & Norton, 1992)</p><p>Dada a sensibilidade do tema, nos últimos anos ganhou força a proposta</p><p>de substituir Retorno Sobre o Investimento (ROI) por Valor Sobre o</p><p>Investimento (VOI) quando se trata de felicidade do trabalhador. Um</p><p>mindset ROI considera resultados financeiros lineares, enquanto uma</p><p>mentalidade VOI avalia os ativos intangíveis que contribuem para a</p><p>performance da organização. Importante ainda mencionar que VOI é uma</p><p>perspectiva de longo prazo, os resultados não são observados poucos meses</p><p>após o kick off, mas tendem a se tornar robustos e resilientes em anos.</p><p>Ajustadas as lentes para se avaliar resultados dessa natureza de</p><p>investimento, reitero a necessidade de se acompanhar KPIs clássicos, como</p><p>os da Figura 12.2, associando-se análises críticas e qualitativas. No âmbito</p><p>da saúde, por exemplo, é importante ir além da redução do afastamento por</p><p>motivo de doença, incluindo-se a avaliação da melhoria de hábitos dos</p><p>colaboradores. Considere compor um radar VOI (Figura 12.3).</p><p>Por fim, mas não menos importante, lembre-se que felicidade não é</p><p>sobre produtividade, é sobre sustentabilidade. Não se trata do que podemos</p><p>obter agora como resultado, mas se seremos capazes, enquanto organização,</p><p>de desenvolver resiliência para enfrentar um mundo em disrupção. Fica</p><p>claro que promover melhores condições de felicidade para quem trabalha é</p><p>uma tarefa difícil. Contudo, gerir na infelicidade também é. Meu conselho</p><p>é: escolha o difícil que tem sentido para você.</p><p>Figura 12.3</p><p>Radar VOI (Furtado, 2020)</p><p>Referências</p><p>CHISHOLM, D. et al. “Scaling-up Treatment of Depression and Anxiety: A</p><p>Global Return on Investment Analysis. The Lancet Psychiatry, v. 3, nº 5</p><p>(2016), pp. 415-424. Disponível em: https://doi.org/10.1016/S2215-0366</p><p>(16)30024-4. Acesso em 18 nov. 2021.</p><p>FURTADO, C. A. Manual de Certificação Internacional Chief Happiness</p><p>Officer. Brasília: Instituto Feliciência, 2020.</p><p>KAPLAN, R. S.; NORTON, D. P. “The Balanced Scorecard: Measures that</p><p>Drive Performance”. Harvard Business Review, v. 70 (1992), 71-79.</p><p>Capa</p><p>Frontespício</p><p>Ficha Técnica</p><p>Nota da Autora</p><p>Prefácio</p><p>Sumário</p><p>Parte I Mas, afinal, o que é felicidade?</p><p>Capítulo 1 Filosofia: onde tudo começa</p><p>Capítulo 2 Psicologia positiva: nova ciência para o novo século</p><p>Capítulo 3 Neurociência: a felicidade mora no cérebro</p><p>Capítulo 4 Armadilhas da felicidade neoliberal</p><p>Capítulo 5 Felicidade Interna Bruta: a responsabilidade do Estado</p><p>Parte II Felicidade de quem trabalha</p><p>Capítulo 6 Felicidade no trabalho: será?</p><p>Capítulo 7 Cultura: o alicerce</p><p>Capítulo 8 Liderança: o desafio</p><p>Capítulo 9 Diagnóstico: felicidade data driven</p><p>Capítulo 10 Desenvolvimento: habilidades para a felicidade</p><p>Capítulo 11 Canvas diamante: um plano de ação sistêmico</p><p>Capítulo 12 ROI e VOI: quando o investimento compensa</p><p>tem como</p><p>alicerce a liberdade interior, que nos permite manter uma relação positiva</p><p>com a vida “apesar de”. Como lindamente disse Santo Agostinho (354-</p><p>430): “Felicidade é seguir desejando aquilo que se possui”.</p><p>No livro La Puissance de la Joie, Lenoir descreve uma alegoria bastante</p><p>pertinente para a compreensão da autorresponsabilidade diante da</p><p>felicidade. Um homem idoso estava na entrada de uma cidade. Um</p><p>estrangeiro aproximou-se e disse: “Não conheço este lugar. Como são as</p><p>pessoas que vivem aqui?”. “Como eram os habitantes das terras de onde</p><p>vem?”, respondeu o velho homem. “Egoístas e mesquinhos”, disse o</p><p>forasteiro. “Aqui também são assim”, concluiu o guardião. Mais tarde,</p><p>outro estrangeiro se aproximou e dirigiu-lhe a mesma pergunta. Ao ser</p><p>indagado sobre as pessoas de sua terra natal, respondeu: “Tinha tantos</p><p>amigos que foi difícil partir”. “Aqui também você fará muitos amigos”,</p><p>encerrou o velho homem.</p><p>Outro filósofo francês contemporâneo digno de nota é André Comte-</p><p>Sponville, que escolheu a profissão porque não era feliz e acreditava que a</p><p>filosofia seria capaz de ajudá-lo. Em sua obra A Felicidade,</p><p>Desesperadamente, traz a relevância da vida simples, da satisfação com</p><p>quem se é e o que se tem, da sabedoria para fazer escolhas e de uma</p><p>existência com profundidade. E o mais importante o título do livro revela:</p><p>deixar de esperar o que quer que seja para ser feliz. Felicidade, sem mais</p><p>espera, aqui e agora.</p><p>O núcleo duro da Filosofia</p><p>O capitalismo transforma tudo em mercadoria e com a felicidade à venda</p><p>em discursos superficiais disfarçados de ciência, nunca foi tão necessário</p><p>duvidar do que é oferecido. Um dos indicativos de que pode haver algo fora</p><p>do lugar é a promessa de ganhos secundários.</p><p>Tome-se por exemplo a afirmação: “Não é o sucesso que traz felicidade,</p><p>é a felicidade que traz sucesso”. Empregada fora de seu contexto original,</p><p>um estudo empírico, preconiza que essencial mesmo à vida é sucesso,</p><p>felicidade não passa de um meio para alcançá-lo. Mas não seria o anseio</p><p>pelo reconhecimento de terceiros um dos responsáveis pela infelicidade?</p><p>Não seria a felicidade o caminho alternativo, no qual o que realmente</p><p>importa é o olhar de cada um sobre suas próprias realizações?</p><p>Em A Sociedade do Cansaço, Byung-Chul Han condena o excesso de</p><p>positividade, cujo alicerce é a afirmação “tudo é possível”. O filósofo sul-</p><p>coreano critica em sua obra a sociedade da produção, o ser humano</p><p>convertido em empresário e explorador de si mesmo, em mero animal</p><p>laborans — como definiu Hannah Arendt — em uma busca incessante por</p><p>mais. Para alcançar o sucesso é preciso gerenciar o tempo, aumentar a</p><p>produtividade, fazer a gestão da marca pessoal e tudo isso parecendo ser</p><p>mais jovem do que se é, além de magro. Para quem não chega lá o veredito</p><p>é: faltou força de vontade.</p><p>Vale também usar lentes de aumento quando felicidade surge associada,</p><p>ostensiva ou sutilmente, a poder. Seria mais adequado aproximá-la de</p><p>potência e por potência compreenda-se toda possibilidade do ser, tudo</p><p>aquilo que ainda não se é, mas se pode vir a ser. Cada semente de fruta é,</p><p>em potencial, uma árvore e vai precisar de muito pouco para tornar-se</p><p>árvore. Todas as pessoas que nos estimulam a seguir adiante, a dar um</p><p>passo largo, a subir um degrau mais alto do que estamos acostumados</p><p>enxergam a nossa potência. Não apenas quem somos, mas quem podemos</p><p>vir a ser.</p><p>Friedrich Nietzsche (1844-1900) definiu a vontade de potência como o</p><p>combustível que movimenta tudo que existe. Baruch Spinoza (1632-1677)</p><p>afirmou que alegria é preenchimento de potência. Gilles Deleuze (1925-</p><p>1995) disse que a infelicidade lhe apanhava quando se via separado de sua</p><p>potência.</p><p>Em um vídeo, Fernando Graça diferenciou poder e potência. Não tendo</p><p>conseguido resgatar o material que vi há anos, trago o que certamente</p><p>minha memória mixou às aulas da Professora Ondina Pena. O poder busca</p><p>respostas externas, a potência olha para dentro. O poder se compara aos</p><p>outros, a potência tem a si mesmo como referência. O poder precisa de</p><p>seguidores, a potência precisa de relações. O poder faz barulho, a potência é</p><p>silenciosa. O poder usa o medo, a potência usa o amor. A potência não</p><p>precisa do poder. Não seria a potência a matéria-prima do florescimento</p><p>humano? Discutiremos isso no capítulo seguinte, ao tratarmos da psicologia</p><p>positiva.</p><p>É importante estudar filósofos críticos, céticos e mesmo os ditos</p><p>pessimistas. Cada um deles concede sua contribuição sobre a experiência</p><p>humana a partir de um prisma próprio e dentro de um recorte sócio-</p><p>histórico. Nietzsche, Deleuze, Arendt e Han refletem de volta, tal qual</p><p>espelhos, a complexidade e a ambivalência do humano. Uma vida</p><p>significativa, definitivamente, pede profundidade.</p><p>Em primeira pessoa</p><p>Minha narrativa acerca da felicidade tornou-se aristotélica, com forte apelo</p><p>à eudaimonia — que a ciência já atestou ser mais potente que a hedonia no</p><p>que diz respeito a uma felicidade sustentada ao longo do tempo. Mas</p><p>carrego um kit de primeiros socorros com recursos hedônicos que uso para</p><p>retornar ao trilho da felicidade quando percebo que me perdi de mim</p><p>mesma. Minhas emoções positivas são potencializadas por hábitos</p><p>saudáveis (que costumamos abandonar como compensação para períodos</p><p>mais difíceis, uma péssima decisão), por pequenos rituais cotidianos, pelo</p><p>estreitamento de laços com minha rede de apoio afetivo, pelo uso</p><p>deliberado de minhas forças de caráter — em especial a persistência, a</p><p>criatividade e o amor ao aprendizado.</p><p>Tenho um recurso infalível para levantar da cama vazia de sentido ou</p><p>repleta de tédio (às vezes ambas): eu cozinho. Simples? Nem tanto. Quando</p><p>falamos sobre ações intencionais, falamos sobre fazê-las com ou sem</p><p>vontade. Nos domingos que procedem semanas difíceis serei facilmente</p><p>encontrada na cozinha. Irei à feira para escolher um peixe como minha mãe</p><p>fazia — checando as guelras e os olhos para atestar que é fresco.</p><p>Conversarei com o peixeiro e o verdureiro. Escolherei cada ingrediente</p><p>como se fosse o principal. Para alimentar minha família encherei uma</p><p>sacola da produção que alimenta outras famílias. E esse rito me resgatará,</p><p>me devolverá ao lugar do que importa. É difícil, a partir desse exemplo real,</p><p>definir os limites entre hedonia e eudaimonia, pois coexistem e se</p><p>potencializam.</p><p>No âmbito dos estudos, a felicidade social tornou-se mais relevante que</p><p>a individual, ingressei no campo de pesquisa em psicossociologia e passei a</p><p>me dedicar ao estudo de filósofos como Michel Foucault (1926-1984),</p><p>Gilles Deleuze (1925-1995) e Byung-Chul Han. Não constam na</p><p>bibliografia usual de quem estuda bem-estar e surpreenderam minha banca</p><p>de qualificação no mestrado porque abordam, em essência, o mal-estar da</p><p>sociedade. Contudo, desde o contato com o sistema Felicidade Interna</p><p>Bruta compreendi que o primeiro passo para promover condições de</p><p>felicidade é reconhecer o sofrimento. Esses filósofos mudaram o rumo da</p><p>minha vida enquanto pesquisadora, guiando-me a um projeto de doutorado</p><p>inusitado para quem leciona felicidade. Sou grata a cada um deles.</p><p>Referências</p><p>COMTE-SPONVILLE, A. A felicidade, desesperadamente. São Paulo:</p><p>Martins Fontes, 2015.</p><p>DIENER, E. “Subjective well-being”. Psychological Bulletin. v. 95, nº 3</p><p>(1984), pp. 542-575.</p><p>HAN, B. C. A sociedade do cansaço. Lisboa: Relógio D’Água, 2014.</p><p>LENOIR, F. La puissance de la joie. Paris: Fayard, 2015.</p><p>NIETZSCHE, F. Vontade de potência. Petrópolis: Vozes, 2017.</p><p>SELIGMAN, M. Authentic happiness: using the new positive psychology to</p><p>realize your potential for lasting fulfillment. Nova Iorque: Free Press, 2002.</p><p>SELIGMAN, M. Flourish. Nova Iorque: Free Press, 2011.</p><p>CAPÍTULO 2</p><p>Psicologia positiva: nova ciência para o novo</p><p>século</p><p>Enquanto os filósofos ocidentais mergulhavam, desde antes do nascimento</p><p>de Cristo, na busca da melhor resposta para o que faz o ser humano feliz, a</p><p>psicologia abraçou a questão, oficialmente, apenas na virada do século 21.</p><p>Foi a inauguração da psicologia positiva, enquanto movimento organizado,</p><p>que reforçou a investigação científica nesse campo.</p><p>Nascia o que, a partir</p><p>daí, se convencionou chamar de ciência da felicidade.</p><p>Há muita controvérsia sobre a criação da psicologia positiva e sobre sua</p><p>“paternidade”. Da mesma forma, pouco foi escrito quanto a sua</p><p>epistemologia, sobre as bases de construção dessa área de conhecimento.</p><p>Porém, é inegável o papel de Martin Seligman, então presidente da</p><p>American Psychology Association (APA). Nos últimos anos do século 20,</p><p>ele mobilizou nomes consagrados da ciência, e outros promissores, em</p><p>debates e reuniões de trabalho com vistas à construção do novo campo de</p><p>atuação da psicologia.</p><p>Em setembro de 1999, ocorria a primeira conferência internacional de</p><p>psicologia positiva, na sede do Gallup, em Nebrasca, Estados Unidos. Em</p><p>janeiro de 2000, uma edição especial do periódico American Psychologist,</p><p>da APA, editada por Seligman e Mihaly Csikszentmihalyi, trazia quinze</p><p>artigos com questões exclusivas sobre felicidade: o que a fomenta, quais</p><p>são os efeitos da autonomia e da autorregulação, como o otimismo e a</p><p>esperança afetam a saúde, o que constitui a sabedoria, como talento e</p><p>criatividade frutificam.</p><p>Apesar das críticas que sabiam que receberiam da própria comunidade</p><p>científica, Seligman e Csikszentmihalyi afirmaram em editorial que o foco</p><p>exclusivo nas patologias havia dominado a psicologia por muito tempo,</p><p>resultando em um modelo marcado pela ausência de conhecimento sobre as</p><p>características positivas humanas, sobre aquilo que fazia a vida valer a</p><p>pena. Eles previram que, no século que nascia, veríamos a formação de uma</p><p>ciência e de profissionais capazes de compreender os fatores que permitem</p><p>que indivíduos, comunidades e sociedades floresçam. Passadas pouco mais</p><p>de duas décadas, podemos considerar que estavam certos. A pesquisa de</p><p>aspectos positivos é a que mais cresce na psicologia.</p><p>A psicologia positiva investiga três grandes grupos: afetos positivos</p><p>(como felicidade, otimismo, gratidão, entre outros), características positivas</p><p>(virtudes, forças, talentos) e instituições positivas (agrupamentos humanos</p><p>de qualquer ordem, da família às organizações). Seu principal método é o</p><p>quantitativo, é com pesquisa empírica rigorosa que se chega aos seus</p><p>achados. Participar de um congresso mundial promovido pela International</p><p>Positive Psychology Association (IPPA) — o que recomendo a todos que se</p><p>dedicam à psicologia positiva — elimina qualquer dúvida quanto à</p><p>cientificidade do campo.</p><p>Embora não haja um consenso quanto à definição de felicidade, a mais</p><p>empregada no meio é a de Sonja Lyubomirsky (2005): felicidade é a</p><p>experiência de contentamento e bem-estar combinada à sensação de que a</p><p>vida possui sentido e vale a pena. Trata-se da vivência de aspectos</p><p>hedônicos — emoções positivas — e eudaimônicos — percepção de sentido</p><p>e propósito. Tal associação é relevante visto que é fácil recordar fases da</p><p>vida em que emoções positivas não foram capazes de sustentar o bem-estar</p><p>devido à ausência de um sentido maior. Da mesma forma, um propósito</p><p>sólido em uma vida com mais emoções negativas que positivas não é</p><p>suficiente para constituir uma experiência feliz.</p><p>Muitas vezes se vê a equiparação de felicidade a bem-estar. Novamente</p><p>há controvérsia. Seligman, no livro Florescer, foi taxativo ao afirmar que a</p><p>psicologia positiva trata de bem-estar, sendo a felicidade um de seus</p><p>elementos. Há autores que relacionam bem-estar subjetivo apenas aos</p><p>aspectos hedônicos da felicidade, às emoções positivas. Nesse caso, para</p><p>aspectos eudaimônicos, usa-se bem-estar psicológico e/ou a sentido de vida,</p><p>propósito e vida virtuosa. E ainda: bem-estar subjetivo versa sobre aspectos</p><p>afetivos, enquanto o bem-estar psicológico relaciona-se a aspectos</p><p>cognitivos (Figura 2.1). Como se vê, esse é um campo complexo e, como</p><p>toda a psicologia, pré-paradigmático.</p><p>Figura 2.1</p><p>Composição do bem-estar segundo a psicologia positiva</p><p>Modelo PERMA e Florescimento</p><p>Apesar das divergências conceituais sobre bem-estar, o modelo teórico</p><p>PERMA (acrônimo para Positive Emotions, Engagement, Relationships,</p><p>Meaning e Accomplishments), de Seligman, tornou-se uma unanimidade no</p><p>meio da psicologia positiva (Figura 2.2). Determina que o bem-estar possui</p><p>cinco elementos mensuráveis: emoções positivas, engajamento, relações,</p><p>sentido/significado e realizações. Em permanente evolução caminha, a</p><p>partir do trabalho de Emiliya Zhivotovskaya, para tornar-se PERMAV —</p><p>sendo o “V” referente à vitalidade, ou seja, a fatores fisiológicos e</p><p>comportamentais como atividade física, alimentação balanceada, sono</p><p>restaurador, entre outros.</p><p>Figura 2.2</p><p>Modelo teórico PERMA</p><p>Através da vivência do PERMA o ser humano atinge o florescimento,</p><p>outro conceito relevante na psicologia positiva. Trata-se de um estado de</p><p>elevado bem-estar mental. Felicia Huppert e Timothy So (2013)</p><p>propuseram a seguinte definição: florescimento refere-se à experiência da</p><p>boa vida, sendo uma combinação de sentimentos positivos e funcionamento</p><p>eficaz. Barbara Fredrickson e Marcial Losada (2005) definiram da seguinte</p><p>forma: é viver dentro de uma faixa de ótimo funcionamento que contemple</p><p>crescimento e resiliência.</p><p>Aristóteles, na obra Metafísica (2012), considera que o ser em ato é a</p><p>manifestação atual do ser, o que ele já é, e a potência é tudo que pode vir a</p><p>ser. Florescimento é a expressão do potencial que cada um de nós carrega</p><p>em si e que está ali pronto para existir, precisando apenas de condições</p><p>essenciais, assim como uma semente necessita de solo, um pouco de água e</p><p>luz para germinar. Os aspectos do PERMA constituem os nutrientes ideais</p><p>para o devir, para a passagem de potência a ato.</p><p>Teoria do Flow</p><p>Engajamento, tal qual aparece no PERMA, pode ser mais bem</p><p>compreendido ao estudarmos a Teoria do Flow (1990), desenvolvida por</p><p>Mihaly Csikszentmihalyi anos antes de tornar-se cofundador da psicologia</p><p>positiva. Consiste em um estado no qual a pessoa está tão envolvida em</p><p>uma atividade que nada mais parece importar, sendo a perda da percepção</p><p>da passagem do tempo uma de suas principais características.</p><p>Flow é uma experiência universal e tem sido relatada em diferentes</p><p>culturas, gêneros, idades, classes sociais, podendo ser experimentado em</p><p>muitos tipos de atividades. Em suas investigações, Csikszentmihalyi</p><p>entrevistou atletas, músicos, artistas, entre outros, para saber quando eles</p><p>experimentaram os melhores níveis de desempenho. O pesquisador adotou</p><p>o termo flow porque muitos descreveram seus estados ideais de</p><p>desempenho como instâncias nas quais a atividade fluía sem muito esforço.</p><p>O diagrama a seguir (Figura 2.3) estabelece uma relação imprescindível</p><p>para que se compreenda o flow: magnitude do desafio versus nível de</p><p>habilidade para enfrentá-lo. A experiência de fluxo ocorre em desafios</p><p>elevados para os quais se possui a expertise necessária. Note-se que, em</p><p>contraponto, o mesmo desafio elevado com baixa habilidade é capaz de</p><p>gerar ansiedade.</p><p>Figura 2.3</p><p>Diagrama da Teoria de Flow (Csikszentmihalyi, 1990)</p><p>Csikszentmihalyi e Seligman concordam que a experiência de flow é</p><p>capaz de incrementar a felicidade e o bem-estar.</p><p>Virtudes e forças de caráter</p><p>O Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) trata</p><p>de insanidades, afirma Seligman no livro The Hope Circuit (2018), que</p><p>descreve os bastidores da constituição da psicologia positiva. “E quanto às</p><p>sanidades?”, questionou. Era o início do século 21 e, também, da parceria</p><p>entre ele e Chris Peterson, que viria a se tornar coautor do inventário de</p><p>virtudes e forças de caráter e do teste Values-in-Action, conhecido como</p><p>VIA.</p><p>O inventário e o teste vieram para apoiar um dos três grupos de</p><p>investigação da psicologia positiva: as características positivas. Gratuito e</p><p>disponível online (você pode realizá-lo pelo link</p><p>feliciencia.pro.viasurvey.org), apresenta um ranking de 24 forças de caráter</p><p>(Figura 2.4), sendo as cinco primeiras chamadas de “forças de assinatura”.</p><p>As forças estão distribuídas em seis grupos de virtudes. De acordo com a</p><p>psicologia positiva, as forças constituem a pessoa, gerando facilidade de</p><p>aprendizado, além de eficiência</p><p>e satisfação ao serem utilizadas.</p><p>Figura 2.4</p><p>Tabela VIA de virtudes e forças de caráter</p><p>Após o teste, pergunto aos alunos: quem é você se destituído de suas</p><p>forças de assinatura? Ao longo dos anos e cerca de 30 mil testes aplicados a</p><p>resposta tem sido: “não sei quem sou se não puder viver minhas forças”.</p><p>Minhas três primeiras — persistência, criatividade e amor ao aprendizado</p><p>(observe que eles podem flutuar a cada aplicação do teste, embora tendam a</p><p>manter certa estabilidade) — refletem como me posiciono na vida e não</p><p>tenho qualquer dúvida para afirmar que me trouxeram até aqui. É inevitável</p><p>usá-las e a sensação é de sentir-me renovada ao invés de exausta quando as</p><p>forças são convocadas para enfrentamento de um desafio.</p><p>O VIA materializa a resposta a uma pergunta raramente feita, embora</p><p>vital: o que há de certo comigo? Conhecer as próprias forças permite usá-</p><p>las deliberadamente e esse é um dos princípios para incrementar o bem-</p><p>estar. Favorece também a aplicabilidade da premissa eudaimônica de</p><p>Aristóteles, para quem a boa vida é vivida a partir da expressão intencional</p><p>das próprias virtudes e não dos vícios. “Ser feliz é usar a razão com</p><p>propriedade e fazer de tal modo que isso se torne uma virtude”, nos ensina o</p><p>filósofo em Ética a Nicômaco (1987). Saber suas forças é o passo</p><p>primordial e Seligman, Peterson e cerca de cinquenta pesquisadores</p><p>constituíram um assessment científico com consistência psicométrica para</p><p>revelá-las. A chamada ciência do caráter já está presente em diversos</p><p>âmbitos de maneira aplicada, como na liderança, na educação e na</p><p>psicologia clínica.</p><p>Descontinuidade de uso da Fórmula 50-40-10</p><p>Desde julho de 2019, após conferência de Sonja Lyubomirsky no 6º</p><p>Congresso Mundial de Psicologia Positiva, desaconselha-se o uso da “Pie</p><p>Chart”, como ficou conhecido o gráfico pizza que determinava que o bem-</p><p>estar humano era influenciado por fatores genéticos (50%), ações</p><p>intencionais (40%) e circunstâncias externas (10%).</p><p>Segundo Lyubomirsky, autora do estudo relativo à Fórmula 50-40-10,</p><p>houve má interpretação do gráfico que tinha mera função ilustrativa no</p><p>artigo publicado por ela, Kennon M. Sheldon e David Schkade em 2005. Os</p><p>percentuais 50-40-10 não são precisos, da mesma forma que não são apenas</p><p>esses os três únicos fatores que influenciam a felicidade. Além disso, não</p><p>são estanques, podendo ser interdependentes, se somar e se sobrepor. Como</p><p>os percentuais apresentados no estudo original correspondem a variações</p><p>populacionais, constitui um grave equívoco atribui-los a indivíduos.</p><p>A pesquisadora destacou que segue valendo a premissa de que é possível</p><p>ampliar a própria felicidade a partir de ações intencionais, que resultam de</p><p>decisões conscientes em prol da própria felicidade. Englobam mindset, além</p><p>de atitudes e comportamentos com potencial de promover o bem-estar.</p><p>Compõem um estilo de vida positivo e favorável à manifestação das</p><p>virtudes e das forças de caráter, além da experiência de flow.</p><p>Esse é o segundo estudo de grande popularidade na psicologia positiva a</p><p>entrar em desuso. O primeiro deles foi o Critical Positive Ratio, de Marcial</p><p>Losada e Barbara Fredrickson, publicado em 2005. O paper propunha que</p><p>para se alcançar o florescimento seriam necessárias no mínimo três</p><p>emoções positivas para cada emoção negativa vivida. Mais tarde a pesquisa</p><p>foi invalidada por equívocos metodológicos.</p><p>Ambas as pesquisas, embora em circunstâncias bem diferentes, mostram</p><p>que não há verdade inquestionável na ciência, em especial em um campo</p><p>novo. Evidenciam também a necessidade de atualização constante dos</p><p>profissionais dedicados à psicologia positiva.</p><p>Eles vieram antes</p><p>Há pouco material sobre a epistemologia da psicologia positiva, ou seja,</p><p>sobre os conhecimentos científicos que a antecedem e a fundamentam.</p><p>Seria muito pueril afirmar que não houve esforços anteriores para legitimar</p><p>a pesquisa sobre aspectos humanos positivos.</p><p>Para começo de conversa, a compreensão da psicologia positiva requer o</p><p>conhecimento de sua base filosófica. A tradição aristotélica é a principal,</p><p>cujo pensamento sustenta-se no indivíduo como um ser virtuoso, sendo as</p><p>virtudes humanas de duas ordens: as do pensamento — passíveis de serem</p><p>aprendidas — e as do caráter — que necessitam de prática. Para Aristóteles,</p><p>a felicidade poderia ser compreendida ao se examinar as virtudes humanas,</p><p>sabendo-se que essas não se realizam sozinhas. Como visto anteriormente,</p><p>para a psicologia positiva, sabedoria, coragem, humanidade, justiça,</p><p>temperança e transcendência são virtudes universais que, ao serem</p><p>desenvolvidas, tornam-se fonte de felicidade e bem-estar.</p><p>Pode-se dizer que a fenomenologia também está presente nas bases da</p><p>psicologia positiva. Descontente com os rumos da Europa na década de</p><p>1920, no pós-Primeira Guerra Mundial, o filósofo alemão Edmund Husserl</p><p>(1859-1938) propôs uma renovação que trouxesse a ciência para o mundo</p><p>da vida, resgatasse o “telos” da sociedade, sua finalidade, e que conduzisse</p><p>ao florescimento vigoroso ao invés do definhamento. A reflexão teleológica</p><p>foi mais uma das contribuições de Aristóteles e está presente no livro Ética</p><p>a Nicômaco.</p><p>Já o princípio do ótimo funcionamento humano, também central na</p><p>psicologia positiva, é visto anteriormente na Gestalt. De acordo com Heinz</p><p>Werner (1890-1964), todos os indivíduos — como seres cognitivos, afetivos</p><p>e sociais — passam por um processo de desenvolvimento comum em</p><p>direção ao que é melhor, mais distinto, preciso ou perfeito. Esse princípio</p><p>constitui o ótimo funcionamento humano.</p><p>Há ainda autores que se referem a William James (1842-1910) como o</p><p>primeiro psicólogo positivo, visto que afirmava que para compreender o</p><p>ótimo funcionamento humano era preciso considerar a experiência subjetiva</p><p>do indivíduo. Em seu discurso como presidente da APA, em 1906, lançou as</p><p>questões: Por que alguns indivíduos são capazes de explorar seus próprios</p><p>recursos e outros não? Quais são os limites para a energia humana? Como</p><p>essa energia pode ser estimulada e liberada? Aristóteles, James, Gestalt e</p><p>Psicologia Positiva compartilharam da crença de que seres humanos</p><p>orientam-se para o ótimo funcionamento.</p><p>Algumas décadas antes da psicologia positiva, a psicologia humanista</p><p>realizou ensaios acerca do estabelecimento de uma psicologia centrada em</p><p>uma visão mais positiva do ser humano. O termo psicologia positiva tem</p><p>sua primeira aparição na obra Motivation and Personalitiy, de Abraham</p><p>Maslow (1908-1970), publicada em 1954. O livro trazia, no capítulo</p><p>“Toward a positive psychology”, reflexão sobre o fato de a psicologia não</p><p>haver compreendido o ser humano de maneira integral, destinando seus</p><p>esforços aos humores negativos.</p><p>Segundo Seligman, Maslow, Carl Rogers (1902-1987) e seus seguidores</p><p>não conseguiram produzir dados empíricos suficientes para impulsionar a</p><p>psicologia positiva. Alan Waterman (2013) defendeu a conexão psicologia</p><p>positiva e psicologia humanista no que diz respeito aos objetivos, apesar de</p><p>diferenças ontológicas e práticas.</p><p>De toda forma, há aproximações teóricas e conceituais entre a psicologia</p><p>humanista, também chamada de Terceira Força da Psicologia, e a psicologia</p><p>positiva. Há quem compreenda a psicologia positiva como o florescimento</p><p>de um movimento iniciado com a psicologia humanista. Para Jeffrey Froh</p><p>(2004), no dia que a psicologia positiva abraçar a história, suas bases</p><p>epistemológicas e acolher a fenomenologia enquanto método de</p><p>investigação (trata-se de um método qualitativo) poderemos presenciar o</p><p>surgimento da Quarta Força.</p><p>Em primeira pessoa</p><p>Todo excesso tem potencial de antecipar uma decadência. Muito embora a</p><p>explosão do tema felicidade se deva à produção científica das primeiras</p><p>décadas do século 21, tanto pela psicologia positiva quanto pelas</p><p>neurociências, não há dúvidas de que a disseminação do tema sofre de</p><p>ausência de cientificidade e profundidade.</p><p>São inúmeras as prescrições para a felicidade distribuídas em redes</p><p>sociais, na mídia convencional e em cursos breves sob o codinome de</p><p>“ciência da felicidade”. Por isso, é importante</p><p>saber reconhecer as falácias</p><p>da pseudociência. A mais usual é o emprego de jargões científicos em</p><p>narrativas desprovidas de consistência. Há uma profusão de receitas</p><p>referenciando PERMA, Flow, VIA e outros princípios e modelos abarcados</p><p>pela psicologia positiva. Minha orientação é: duvide de respostas simples</p><p>para questões complexas, duvide de receitas capazes de contemplar a</p><p>pluralidade humana desconsiderando a singularidade, duvide de quem fala</p><p>sobre ciência sem uma trajetória científica consistente.</p><p>Outra falácia usual é a chamada experiência anedótica, ou seja, o uso de</p><p>experiências isoladas, na maioria das vezes pessoais, para justificar uma</p><p>teoria. Um dos indicadores de que as fronteiras entre autoajuda e ciência</p><p>foram derrubadas é a narrativa ancorada em episódio biográfico de</p><p>superação. Ciência não é sobre o que eu vivi, é sobre o que é produzido</p><p>dentro do rigor metodológico e posteriormente aprovado pela comunidade</p><p>científica — inicia-se com orientadores no percurso de mestrado e</p><p>doutorado, passa por bancas de qualificação e defesa de dissertação e tese</p><p>para, finalmente, se estabelecer com a aprovação por conselhos editoriais.</p><p>Qualquer estudo será considerado científico apenas após a publicação em</p><p>periódico científico rigoroso. Até lá e enquanto não pertencermos a grupos</p><p>ativos de pesquisa, guardemos a vontade de nos autointitular cientistas.</p><p>A felicidade tornou-se muito sedutora. Não falta quem deseje ser</p><p>detentor do título de especialista no tema, mas uma pequena parcela cumpre</p><p>o percurso lato sensu na área (pós-graduação com um mínimo de 360 horas</p><p>de duração e oficialmente reconhecida no Brasil), que é a única forma de</p><p>tornar-se especialista. E quando o discurso do especialista confere a ele o</p><p>status de guru, aquele que vive tudo que ensina, novamente há evasão do</p><p>campo científico. O fato de, enquanto professora, tratar de bem-estar,</p><p>empatia, resiliência ou qualquer outro construto, não significa que sou</p><p>exemplo vivo do estado da arte que ensino. A psicologia positiva não é um</p><p>caminho para a iluminação e, por isso, não deve ser usada como</p><p>justificativa para perder-se de sua humanidade.</p><p>De onde você fala quando fala sobre felicidade? Essa é a pergunta que</p><p>faço aos alunos em certificações e pós-graduações. É um convite para que</p><p>cada um estabeleça um posicionamento consciente e se prepare para</p><p>sustentá-lo. Não há nada errado em posicionar-se na autoajuda, desde que</p><p>essa não seja apresentada como ciência da felicidade. No caso do campo</p><p>científico, o percurso será extenso e extenuante, mas será para aqueles que</p><p>o escolhem por vocação uma possibilidade de uma vida significativa.</p><p>Referências</p><p>ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Nova Cultural, 1987.</p><p>ARISTÓTELES. Metafísica. São Paulo: Edipro, 2012.</p><p>CSIKSZENTMIHALYI, Mihaly. Flow: The Psychology of Optimal</p><p>Experience. Nova Iorque: Harper,1990.</p><p>FREDRICKSON, B. L., LOSADA, M. F. “Positive Affect and the Complex</p><p>Dynamics of Human Flourishing”. The American psychologist, v. 6, nº 7</p><p>(2005), pp. 678–686.</p><p>FROH, J. J. “The History of Positive Psychology: Truth Be Told”. NYS</p><p>Psychologist, v. 16, nº 3, pp. 18-20.</p><p>HUPPERT, F. A.; SO, T. C. “Flourishing across Europe: Application of a</p><p>new conceptual framework for defining well-being”. Social Indicators</p><p>Research, v. 110, nº 3, pp. 837-861.</p><p>HUSSERL, E. “A Crise da Humanidade Europeia e a Filosofia”. Porto</p><p>Alegre: Edipucrs, 2002.</p><p>LYUBOMIRSKY, S.; SHELDON, K.; SCHKADE, D. (2005). “Pursuing</p><p>happiness: the architecture of sustainable change”. Review of General</p><p>Psychology, v. 9, nº 2, pp. 11-131.</p><p>MASLOW, A. H. Motivation and Personality. Nova Iorque: Harper and</p><p>Row, 1997.</p><p>SELIGMAN, M. Flourish. Nova Iorque: Free Press, 2011.</p><p>SELIGMAN, M. The Hope Circuit. Sydney: Penguin, 2018.</p><p>WATERMAN, A. “The Humanistic Psychology-positive Psychology</p><p>Divide: Contrasts in Philosophical Foundations”. American Psychologist, v.</p><p>68 (2013), pp. 124-133.</p><p>WERNER, H. “The concept of development from a comparative and</p><p>organismic point of view”. In: HARRIS, D. B (ed.). The Concept of</p><p>Development. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1957, pp. 125-</p><p>148.</p><p>CAPÍTULO 3</p><p>Neurociência: a felicidade mora no cérebro</p><p>Como visto no capítulo 1, a produção de conhecimento sobre felicidade no</p><p>ocidente data da antiguidade. O primeiro achado escrito sobre a temática é</p><p>do filósofo Tales de Mileto (624 a.C.-548 a.C.) e a ele se seguiram outros</p><p>grandes pensadores da Grécia clássica, como Sócrates (455 a.C.-365 a.C.),</p><p>Platão (427 a.C.-347 a.C.), Epicuro (341 a.C.-271 a.C.) e Aristóteles (384</p><p>a.C.–322 a.C.). Mais tarde, no iluminismo, o tema voltou a ganhar destaque</p><p>com pensadores do porte de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778). Na era</p><p>contemporânea, segue em alta com os franceses André Comte-Sponville e</p><p>Frédéric Lenoir e o trio brasileiro Clóvis de Barros, Mario Sergio Cortella e</p><p>Luiz Felipe Pondé.</p><p>Embora a filosofia seja o campo original de reflexão sobre felicidade,</p><p>sua investigação tornou-se transdisciplinar com a ascensão do empirismo. A</p><p>partir do movimento iniciado nos séculos 17 e 18, passou-se a exigir mais</p><p>que razão para explicar a realidade, sendo necessário submeter hipóteses ao</p><p>rigor científico, testando-as e analisando os resultados para, então, aceitar</p><p>ou refutar a ideia inicial. Nunca é demais lembrar que o próprio empirismo</p><p>foi mais uma contribuição da filosofia, tendo o britânico John Locke (1632-</p><p>1704) como figura central, e segue em pleno vigor até os dias atuais.</p><p>Na esteira da história, viu-se a felicidade ocupar a produção de grandes</p><p>filósofos e ser também investigada pelas ciências naturais e humanas. Da</p><p>metafísica aos positivistas, foi robusta a contribuição. Contudo, essa mesma</p><p>contribuição poderia ser considerada modesta diante do que o século 21</p><p>seria capaz de produzir. Em pouco mais de vinte anos, a psicologia e as</p><p>neurociências escalaram seus achados sobre a temática: de um lado está o</p><p>estabelecimento da psicologia positiva enquanto movimento dedicado à</p><p>investigação de aspectos humanos positivos, do outro estão os avanços</p><p>tecnológicos que masterizaram as investigações neurocientíficas.</p><p>Pode-se dizer que o ser humano sabia pouco sobre como fomentar sua</p><p>felicidade até a virada do século 20 para o 21. A ciência era pessimista,</p><p>compreendendo a felicidade como um traço de personalidade, passível de</p><p>pouca oscilação ao longo da vida (Sheldon & Lyubomirsky, 2019). No caso</p><p>da psicologia, foi necessária a instituição de um campo específico, a</p><p>psicologia positiva, para fomentar a pesquisa de emoções positivas, traços</p><p>positivos de caráter e instituições positivas — família, escola, empresas,</p><p>comunidades. Como resultado, neste século foram produzidas mais</p><p>pesquisas em psicologia sobre aspectos positivos que negativos (Rusk &</p><p>Waters, 2013), sendo alguns dos achados amplamente divulgados.</p><p>Já as neurociências têm alavancado a compreensão sobre felicidade a</p><p>partir da visualização e do exame de estruturas e atividade cerebral com</p><p>suporte tecnológico — como a Ressonância Magnética Funcional (fMRI),</p><p>surgida nos anos 1990. Contudo, diferente da psicologia, os achados</p><p>neurocientíficos acerca da felicidade não estão disponíveis de maneira</p><p>integrada e são abordados de modo reducionista e superficial na divulgação</p><p>de massa e nas redes sociais, fazendo parecer que é possível prescrever</p><p>intervenções pontuais para alterar por completo o sistema nervoso humano.</p><p>É fato que a felicidade mora no cérebro, ou melhor, no encéfalo. Assim</p><p>como também é verdade que em pouco tempo será difícil compreender o</p><p>comportamento humano sem conhecer as bases neurocientíficas. Neste</p><p>capítulo, são destacadas importantes contribuições para a compreensão da</p><p>felicidade à luz das evidências neurocientíficas, com enfoque em</p><p>neurociência das emoções, neuroplasticidade e habilidades para a felicidade</p><p>e, por fim, o desafiador viés negativo do cérebro.</p><p>Neurofakes</p><p>“As pessoas precisam saber que não de outro lugar, mas do cérebro vêm a</p><p>alegria, o prazer, a felicidade, o arrependimento, o sofrimento e a</p><p>lamentação”, teria afirmado Hipócrates (460 a.C-360</p><p>a. C). Sem qualquer</p><p>recurso de imagens biomédicas, o pai da medicina ocidental já antecipava</p><p>na era pré-cristã o que as neurociências contemporâneas viriam a afirmar no</p><p>século 21: emoções, sentimentos e felicidade são mediados no sistema</p><p>nervoso central.</p><p>Contudo, enquanto a ciência avança, progride também a disseminação</p><p>da pseudociência. Basta uma breve pesquisa na internet para localizar</p><p>centenas de materiais que referenciam a teoria do cérebro trino de Paul</p><p>McLean (1913-2007), um marco para evolução da área datado da década de</p><p>1970, mas sem validade atualmente (Mograbi, 2015). O ser humano não</p><p>possui três “cérebros” — reptiliano, límbico e neocórtex. É sim dotado de</p><p>um sistema complexo com funcionamento integrado e qualquer tentativa de</p><p>explicá-lo de maneira linear já guarda um grande risco de equívoco.</p><p>Outra falácia que inunda as redes sociais diz respeito aos “hormônios da</p><p>felicidade” — dopamina, endorfina, oxitocina e serotonina. Há variadas</p><p>prescrições para liberação dessas moléculas sinalizadoras, como abraços de</p><p>trinta segundos para uma dose extra de oxitocina. São vários os riscos aqui,</p><p>como a crença de que a felicidade possa ser prescritiva e de que dependa</p><p>apenas de neurotransmissores e hormônios específicos. Essa narrativa faz</p><p>parte da neoliberalização do bem-estar, estando usualmente relacionada à</p><p>venda de treinamentos, coaching, mentorias, entre outros recursos sem</p><p>respaldo científico (Cabanas & Illouz, 2019).</p><p>O bem-estar humano está associado à homeostase, ou seja, a um</p><p>organismo capaz de manter-se em equilíbrio dinâmico diante das alterações</p><p>do meio externo e, para isso, são necessárias todas as substâncias químicas</p><p>produzidas pelo sistema nervoso ou a partir de seu comando, além de</p><p>inúmeros outros fatores. Uma vida sem cortisol — conhecido popularmente</p><p>como hormônio do estresse — não é uma vida mais feliz, significa</p><p>literalmente a morte.</p><p>Neurociência das emoções</p><p>Um dos importantes avanços para a compreensão da felicidade se deu a</p><p>partir do advento dos estudos neurocientíficos relacionados às emoções.</p><p>Isso porque a psicologia positiva define felicidade como a experiência de</p><p>contentamento e bem-estar combinada à sensação de que a vida possui</p><p>sentido e vale a pena (Lyubomirsky et al., 2005). Esse construto ou conceito</p><p>científico preconiza a vivência de mais emoções positivas que negativas</p><p>aliada à percepção de propósito. Dessa forma, fomentar a felicidade requer</p><p>conhecimento consistente das emocionalidades.</p><p>Em primeiro lugar é importante definir emoções. Nesse campo, destaca-</p><p>se o trabalho do neurocientista António Damásio. Em seu livro Ao Encontro</p><p>de Espinosa (2017), ele esclarece que as emoções são impulsos neurais que</p><p>movem o organismo à ação, sendo deflagradas por estímulos reais ou</p><p>vindos da memória e da imaginação. Os elementos desses estímulos são</p><p>apresentados às regiões sensoriais no sistema nervoso central. Em seguida,</p><p>sinais relacionados a essas representações são enviados a áreas do cérebro</p><p>que deflagram emoções. O estado emocional que começa no cérebro vai</p><p>atingir todo o corpo, através de um processo neuroquímico sistêmico.</p><p>Damásio afirma que as emoções são corporais, enquanto os sentimentos são</p><p>mentais — pois decorrem da elaboração cognitiva das emoções.</p><p>A neurociência categoriza as emoções em primárias e secundárias, sendo</p><p>as primeiras universais e as segundas variáveis de cultura para cultura. As</p><p>primárias são alegria, tristeza, raiva, nojo, medo e surpresa, podendo ser</p><p>identificadas por microexpressões faciais e outras expressões corporais</p><p>similares independente da origem. Já as secundárias (gratidão, culpa,</p><p>indignação, orgulho, entre várias outras), embora sigam o mesmo processo</p><p>neurofisiológico, serão deflagradas por estímulos diferentes visto que o que</p><p>causa, por exemplo, aversão em uma cultura poderá causar apreciação em</p><p>outra (Damásio, 2005).</p><p>Quanto a viver mais emoções positivas que negativas, conforme trata a</p><p>psicologia positiva, a neurociência adota uma abordagem mais sofisticada</p><p>com o conceito de valência emocional, cujo continuum vai do negativo ao</p><p>positivo. Para esse campo do conhecimento, emoções não são em si</p><p>positivas ou negativas, visto que sua função não é ser agradável, mas</p><p>preservar a vida. A psicologia positiva, ao longo da segunda década deste</p><p>século, ajustou sua abordagem a partir da chamada “segunda onda” do</p><p>movimento, propondo a saída da polarização das emoções para a busca pela</p><p>harmonização dinâmica de estados dicotômicos e equilíbrio de elementos</p><p>opostos (Lomas & Ivtzam, 2016). Aparentemente, apropriando-se do</p><p>conhecimento neurocientífico, reconheceu-se que emoções de valência</p><p>negativa podem conduzir a desfechos positivos — como é o caso do medo</p><p>— e vice-versa.</p><p>Sobre a concepção cultural de que “não há felicidade, mas momentos</p><p>felizes”, há aqui a hipótese de compreensão de felicidade e alegria como</p><p>sinônimos. Deflagrada por um estímulo, a emoção primária alegria pode ter</p><p>seu efeito ampliado ou reduzido, mas vai se encerrar enquanto fenômeno</p><p>neurofisiológico. Já a felicidade é composta não só por aspectos afetivos,</p><p>mas também por aspectos cognitivos. Trata-se de uma construção mental</p><p>com potencial para se manter ao longo do tempo. É amplificada pela</p><p>hedonia (emoções de valência positiva), mas se sustenta na eudaimonia</p><p>(percepção de sentido de vida e propósito). Sentir-se feliz e ser feliz não são</p><p>a mesma coisa. Ser feliz refere-se a uma condição duradoura e não a</p><p>emoções, por si só, momentâneas. Assim, a felicidade deve ser entendida</p><p>como uma avaliação global da vida de acordo com critérios individuais que</p><p>incluam cognições e emoções.</p><p>O mitologista Joseph Campbell afirmou: “Quando nos deixamos guiar</p><p>pela felicidade, nos posicionamos no caminho que sempre esteve ali, à</p><p>nossa espera, e vivemos exatamente a vida que deveríamos estar vivendo”</p><p>(1988). Imaginemos a felicidade como um trilho que está próximo de nós,</p><p>como uma possibilidade de caminho. Cabe a cada um subir ou não nesse</p><p>trilho, bem como retornar a ele quando os reveses da vida se apresentarem.</p><p>Isso está inscrito no âmbito intencional da felicidade, que contempla</p><p>consciência, escolhas, atitudes e comportamentos.</p><p>Neuroplasticidade e habilidades para a felicidade</p><p>O cérebro possui a capacidade de realizar mudanças adaptativas estruturais</p><p>e funcionais. Esse fenômeno é chamado neuroplasticidade. Sua primeira</p><p>menção data do século 18, na obra do médico Samuel Thomas von</p><p>Sömmerring. No século 19, seguiu sendo explorada por importantes</p><p>cientistas, como Charles Darwin e Rámon y Cajal, até ser definida na obra</p><p>do pioneiro da psicologia William James. Em Princípios da Psicologia,</p><p>James descreve plasticidade como “a característica de uma estrutura</p><p>maleável o suficiente para responder a influências, mas forte o suficiente</p><p>para não o fazer de pronto”.</p><p>Foram necessárias muitas décadas para que a neurociência elucidasse</p><p>efetivamente a neuroplasticidade. No início dos anos 1960, cientistas</p><p>evidenciaram que o cérebro humano não atingia um ponto fixo a partir do</p><p>qual não poderia mais se modificar. Mais adiante, em 1973, foi descoberta</p><p>por Tim Bliss e Terje Lømo a Potenciação de Longa Duração (LTP),</p><p>mecanismo de reforço de sinapses considerado um marco para a evolução</p><p>do conhecimento sobre a plasticidade cerebral. E, finalmente, no final do</p><p>século 20, os avanços sobre neurogênese em adultos — formação de novos</p><p>neurônios — mudou de vez a compreensão do sistema nervoso humano</p><p>(Costandi, 2016).</p><p>Em outras palavras: enquanto há vida o cérebro não para de se</p><p>modificar. Isso vai ocorrer em diferentes circunstâncias além das etapas</p><p>naturais de desenvolvimento, tais como: aprendizagem e aquisição de</p><p>memória, meditação e atividade física regulares, processos de reabilitação</p><p>de lesões cerebrais. Na plasticidade estrutural, há brotamento e</p><p>remodelamento de conexões neurais, enquanto na modalidade funcional</p><p>ocorre a formação e reforço de sinapses e de circuitos neurais.</p><p>A relação neuroplasticidade-felicidade se estabeleceu no século 21, com</p><p>especial contribuição do neurocientista Richard Davidson,</p><p>diretor do Center</p><p>for Health Minds na University of Madison-Wisconsin nos Estados Unidos.</p><p>Davidson tem abordado a felicidade como uma habilidade e como tal pode</p><p>ser apreendida, treinada e desenvolvida (Davidson, 2015). Suas</p><p>investigações trazem a correlação positiva entre a aquisição de habilidades</p><p>socioemocionais — como atenção plena, savoring (apreciação), resiliência</p><p>e generosidade — e o aumento da percepção de bem-estar. Curiosamente,</p><p>esses achados atuais da neurociência coincidem com o pensamento de</p><p>Aristóteles, para quem a felicidade consistia em uma atividade, não estando</p><p>disponível àqueles que passam a vida “adormecidos”.</p><p>As habilidades socioemocionais com potencial de fomento da felicidade</p><p>têm sido chamadas de happiness skills (veremos mais sobre isso no capítulo</p><p>10). Visto que a neuroplasticidade ocorre involuntária e voluntariamente,</p><p>Davidson defende que os circuitos neurais relacionados a essas habilidades</p><p>sejam cultivados intencionalmente, a partir de intervenções específicas e de</p><p>comprovada eficácia científica. Boa parte do trabalho do cientista é</p><p>direcionado à meditação e ao mindfulness (atenção plena) enquanto</p><p>treinamentos mentais (2014).</p><p>O desenvolvimento de happiness skills demanda treinamento e tempo,</p><p>não devendo ser visto como resultado de uma atividade isolada. Atividades</p><p>pontuais sensibilizam e introduzem o tema do ponto de vista cognitivo —</p><p>são importantes, mas não se encerram em si mesmas. Imagine o primeiro</p><p>dia de um aspirante à trapezista. Ele não possui a destreza pois, sem a</p><p>prática, seu cérebro não estabeleceu os padrões necessários para produzir</p><p>movimentos precisos e seguros. Ele precisará de exercícios regulares para</p><p>construir e fortalecer conectividade sináptica suficiente para garantir</p><p>maestria. A complexidade de suas acrobacias estará diretamente ligada às</p><p>circuitarias neurais adquiridas. Habilidades — sejam hard, soft ou</p><p>happiness skills — só são consideradas como tal quando atingem</p><p>funcionamento autônomo ou próximo a isso.</p><p>Uma boa ilustração é dirigir: no início, cada movimento é previa e</p><p>conscientemente evocado até que, com dezenas de horas ao volante, a</p><p>atividade seja automatizada. Isso implica em dizer que as habilidades</p><p>envolvidas serão armazenadas como memória implícita, demandando pouco</p><p>processamento consciente. Significa que uma vez adquirida uma habilidade,</p><p>nunca se deteriora? Negativo. A falta de prática pode conduzir à perda da</p><p>destreza para o trapezista ou ao motorista, assim como à perda de controle à</p><p>atenção para o praticante de mindfulness. Contudo, convém lembrar que o</p><p>cérebro é plástico e não elástico, o que significa que, ao restabelecer o</p><p>treinamento, há boas chances de se resgatar a habilidade mais rápido do que</p><p>alguém que inicia seu aprendizado.</p><p>Aprender habilidades para a felicidade demanda força de vontade,</p><p>autorregulação e esforço (Layous & Lyubomirsky, 2014). Não é fácil, como</p><p>não foi fácil controlar a embreagem nas primeiras aulas de direção em uma</p><p>avenida movimentada. Mas, ao contrário da mobilidade urbana para a qual</p><p>há alternativas, ninguém pode assumir o protagonismo em prol de seu</p><p>próprio bem-estar.</p><p>Viés negativo</p><p>Embora o ser humano valorize sobremaneira a felicidade, precisa lidar com</p><p>o fato de o cérebro possuir um viés negativo. Isso quer dizer que um</p><p>estímulo negativo possui maior impacto sobre a percepção, o afeto, a</p><p>fisiologia, a memória e a tomada de decisão do que um positivo. Enquanto</p><p>espécie, a humanidade aprende mais rápido pela dor que pelo prazer e</p><p>precisa lidar com a maior magnitude das interações negativas. Como</p><p>ilustram Mendius e Hanson no livro O cérebro de Buda, o sistema nervoso</p><p>central funciona como velcro para o que é negativo e como teflon para o</p><p>que é positivo (2011).</p><p>Desserviço biológico? Ao contrário. Foram tantos e tão variados os</p><p>riscos ao longo da trajetória e evolução da espécie, que foi necessário o</p><p>desenvolvimento de um sistema potente de preservação da vida. Enquanto</p><p>algumas espécies possuem conchas e cascos para se resguardar, o ser</p><p>humano conta com sofisticada circuitaria cerebral capaz de escanear</p><p>situações desagradáveis e ameaçadoras em milissegundos para apresentar</p><p>uma pronta resposta voltada à sobrevivência. O viés negativo é uma</p><p>vantagem adaptativa, pois para sobreviver é mais importante evitar um</p><p>estímulo prejudicial do que perseguir um estímulo agradável (Norris, 2021).</p><p>O estudo do corpo amigdaloide possibilitou a compreensão de sua</p><p>relevância para o funcionamento do viés negativo do cérebro. Exames de</p><p>imagem demonstram que, diante de situações desagradáveis, há aumento na</p><p>atividade das amígdalas cerebrais, sucedido por respostas fisiológicas</p><p>imediatas, como incremento no batimento cardíaco, e comportamentais que</p><p>ocorrem mesmo quando o possível risco não alcançou a consciência. Esses</p><p>comportamentos, como mencionado antes, são chamados de emoções.</p><p>Em situações de estresse leve a moderado, o córtex pré-frontal —</p><p>responsável pelo controle dos impulsos, entre várias outras atividades —</p><p>vai mediar o comando da amígdala, avaliando prós e contras de responder</p><p>ao estímulo. Contudo, diante de um estímulo de grande magnitude, com</p><p>intensa liberação de cortisol e adrenalina, o córtex pré-frontal não consegue</p><p>interromper o comportamento. É nesse cenário que se dá o chamado</p><p>“sequestro da amígdala”, processo descrito originalmente por LeDoux</p><p>(1993) e popularizado pelo psicólogo Daniel Goleman (1995) em seu livro</p><p>Inteligência Emocional. Como mecanismo biológico, se dá em situações</p><p>nas quais não há tempo a perder, é “lutar ou fugir”.</p><p>Ocorre que mesmo sem os riscos ambientais enfrentados por nossos</p><p>ancestrais nas savanas da África, para os quais o fenômeno sequestro da</p><p>amígdala era decisivo, é possível experimentar essa perda da capacidade de</p><p>mediação diante de estímulos não severos. Há evidências de que o estresse</p><p>crônico incrementa a ocorrência desses sequestros (Ferrara et al., 2020), por</p><p>reduzir o limiar de sua ativação. A vida nas cidades não é composta por</p><p>sucessivas decisões de luta ou fuga, muito embora as pessoas se comportem</p><p>como se fosse, como se estivessem em risco de vida iminente e só houvesse</p><p>duas opções: matar ou morrer. Basta observar o trânsito caótico e alguns</p><p>ambientes de trabalho tóxicos.</p><p>Conhecer esse processo neurofisiológico implica em compreender o</p><p>funcionamento do próprio sistema nervoso e seu consequente impacto sobre</p><p>o bem-estar. A proposta não é “consertar” o viés negativo, pois isso não faz</p><p>qualquer sentido. Contudo, há benefícios no aprendizado de como o cérebro</p><p>funciona e de como o estilo de vida pode comprometer o equilíbrio</p><p>emocional, bem como o aprendizado socioemocional.</p><p>Em primeira pessoa</p><p>Os avanços na psicologia positiva e nas neurociências caminham a passos</p><p>largos no século 21. Contudo, tais trajetórias são apartadas. Na psicologia</p><p>positiva, a felicidade é investigada majoritariamente de maneira quantitativa</p><p>e seu arcabouço teórico faz uso de construtos que as neurociências</p><p>descrevem de maneira detalhada como processos fisiológicos, como é o</p><p>caso das emoções. Houve um momento em meu percurso que compreendi</p><p>que não poderia mais abordar a felicidade desconhecendo aspectos</p><p>fisiológicos. Minha opção foi ingressar em uma especialização lato sensu</p><p>em Neurociência e Comportamento.</p><p>Para os profissionais das ciências humanas a imersão no campo das</p><p>ciências biológicas pode ser desafiadora. Para mim não foi diferente. A</p><p>intenção desse capítulo é trazer para o universo dos estudos da psicologia</p><p>positiva alguns dos achados neurocientíficos que ampliam o conhecimento</p><p>sobre a felicidade enquanto fenômeno neurofisiológico. Veja bem, esta é a</p><p>ponta do iceberg, sinta-se estimulado a constituir sua própria trilha de</p><p>aprofundamento na área. E lembre-se de incluir nessa trilha boas horas de</p><p>estudo de neuroanatomia.</p><p>No âmbito da vivência, sabe-se que a felicidade precisa ser simples. Já</p><p>no âmbito do estudo, simplificá-la é um equívoco. Denis Mareschal (2007),</p><p>com suas investigações acerca do neuroconstrutivismo, afirma que a mente</p><p>existe dentro de um corpo, sendo ele</p><p>mesmo contido em uma experiência</p><p>ambiental e social. Compreender a felicidade requer profundidade teórica</p><p>em diferentes áreas do conhecimento, que contemplem as dimensões</p><p>biológica, psíquica e social, além das sobreposições entre elas.</p><p>Referências</p><p>CABANAS, E.; ILLOUZ, E. Happycracia. Barcelona: Planeta, 2019.</p><p>CAMPBELL, J. “Sacrifice and Bliss”. Entrevistado por B. Moyers . The</p><p>power of myth [Trasmissão por televisão]. Arlington: PBS, 24 jun. 1988</p><p>COSTANDI, M. Neuroplasticity. P. Cambridge: The MIT Press, 2016.</p><p>DAMÁSIO, A. O Erro de Descartes: Emoção, Razão e o Cérebro Humano.</p><p>São Paulo: Companhia das Letras, 2005.</p><p>DAVIDSON, R. J. “NU Symposium on Mind and Society: Happiness as a</p><p>Skill”. Youtube, 2014. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?</p><p>v=FSFEpMEdiaI&t=181s. Acesso em 8 nov. 2021.</p><p>DAVIDSON, R. J.; SCHUYKER, B. S. World Happiness Report:</p><p>Neuroscience of happiness. Nova Iorque: Sustainable Development</p><p>Solutions Network, 2015.</p><p>LAYOUS, K.; LYUBOMIRSKY, S. “The How, Why, What, When, and</p><p>Who of Happiness: Mechanisms Underlying the Success of Positive</p><p>Activity Interventions”. In: GRUBER, J.; MOSKOWITZ, J. T. (Eds.)</p><p>Positive Emotion: Integrating the Light Sides and Dark Sides. Oxford:</p><p>Oxford University Press, 2014, pp. 473-495. Disponível em:</p><p>https://doi.org/10.1093/acprof:oso/9780199926725.003.0025. Acesso em 8</p><p>nov. 2021.</p><p>LOMAS, T.; IVTZAN, I. “Second Wave Positive Psychology: Exploring</p><p>the Positive–Negative Dialectics of Wellbeing”. Journal of Happiness</p><p>Studies, v. , v. 015-9668-y. Acesso em 8 nov. 2021.</p><p>LYUBOMIRSKY, S.; SHELDON, K.; SCHKADE, D. “Pursuing</p><p>Happiness: The Architecture of Sustainable Change”. Review of General</p><p>Psychology, v. 9, nº 2 (2005), pp. 11-131.</p><p>MARESCHAL, D. Neuroconstructivism: How the Brain Constructs</p><p>Cognition. Oxford: Oxford University Press, 2007.</p><p>MOGRABI, G. “Considerações Sobre a Teoria do Cérebro Triuno e sua</p><p>Relevância para uma Filosofia da Mente e das Emoções”. Porto Alegre:</p><p>Veritas, v. 60, nº 2 (2015), pp. 222-241. In: https://revistaseletronicas.pucrs.</p><p>br/ojs/index.php/veritas/article/view/21861. Acesso em 8 nov. 2021.</p><p>RUSK, R.; WATERS, L. “Tracing the Size, Reach, Impact, and Breadth of</p><p>Positive Psychology”. Journal of Positive Psychology, v. 8, nº 3 (2013), pp.</p><p>207-221. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1080/17439760.2013.7777 66.</p><p>Acesso em 8 nov. 2021.</p><p>SHELDON, K. M.; LYUBOMIRSKY, S. “Revisiting the Sustainable</p><p>Happiness Model and Pie Chart: Can Happiness Be Successfully Pursued?”</p><p>The Journal of Positive Psychology, v. 16, nº 2 (2019), pp. 145-154.</p><p>Disponível em: https://doi.org/10.1080/17439760.2019.1689421. Acesso</p><p>em 8 nov. 2021.</p><p>CAPÍTULO 4</p><p>Armadilhas da felicidade neoliberal</p><p>Até aqui vimos extratos do que a filosofia, a psicologia positiva e as</p><p>neurociências nos oferecem para a compreensão da felicidade. Muitos</p><p>elementos dessas áreas de conhecimento são usados na construção de</p><p>narrativas que sustentam que a “felicidade é apenas uma decisão”. Tais</p><p>narrativas costumam constituir a embalagem para produtos à venda nas</p><p>gôndolas do mercado da felicidade. O neoliberalismo transforma tudo em</p><p>mercadoria, com o bem-estar humano não haveria de ser diferente. Este</p><p>capítulo alerta quanto às armadilhas da felicidade neoliberal.</p><p>Felicidade não é uma saga solitária</p><p>É reducionista a abordagem da felicidade enquanto mero percurso pessoal.</p><p>Isso porque retira do contexto aspectos sociais que exercem influência</p><p>sobre a vivência do bem-estar subjetivo e psicológico. Trata a felicidade</p><p>como uma experiência que se dá em um indivíduo desconectado do mundo,</p><p>como se não fosse continuamente afetado e forjado pelas condições</p><p>externas e pelas relações.</p><p>O famoso Harvard Study of Adult Development, uma das mais extensas</p><p>pesquisas longitudinais, levou cerca de oitenta anos e quatro gerações de</p><p>cientistas para identificar os principais fatores para uma vida longa e feliz.</p><p>Iniciado em 1938, acompanhou alunos de Harvard e rapazes da periferia de</p><p>Boston (EUA) ao longo de décadas para desvendar o que os conduziria a</p><p>um envelhecimento satisfatório e positivo. Alguns seguiram sendo</p><p>avaliados após os noventa anos e recentemente foi iniciado o recrutamento</p><p>da segunda geração para dar seguimento à pesquisa.</p><p>O psiquiatra Robert Waldinger (2015), atual diretor do estudo, revelou</p><p>em um TED Talk com dezenas de milhões de visualizações que</p><p>relacionamentos próximos, mais que dinheiro ou fama, são o que mantêm</p><p>as pessoas felizes por toda a vida. Protegem-nos dos descontentamentos da</p><p>vida, ajudam a atrasar o declínio mental e físico e são melhores preditores</p><p>de vidas longas e felizes — mais que a classe social, QI ou genes.</p><p>O diretor que antecedeu Waldinger entre 1972 e 2004, o também</p><p>psiquiatra George Valliant, reconheceu que quando o estudo foi iniciado os</p><p>pesquisadores não estavam interessados no papel da empatia ou no peso dos</p><p>vínculos para a longevidade e o bem-estar. Isso não é incomum na ciência:</p><p>inicia-se com uma hipótese para se alcançar outro achado. No caso desse</p><p>estudo específico, o principal resultado é relevância das relações</p><p>interpessoais. Valliant escreveu sobre o estudo no livro Triumphs of</p><p>Experience: The Men of the Grant Harvard Study (2012). Nele, o cientista</p><p>afirma que “a influência mais importante, de longe, em uma vida que</p><p>floresce, é o amor. Não exclusivamente o amor precoce e não</p><p>necessariamente o amor romântico. Mas o amor cedo na vida facilita o</p><p>amor mais tarde (...). A maioria dos homens que floresceram, encontraram o</p><p>amor antes dos trinta e foi por isso que floresceram”.</p><p>O avesso do afeto também mostra o quanto dependemos de nossas</p><p>conexões. A dor social, experimentada quando estamos vulneráveis e</p><p>expostos ou em circunstâncias de ruptura de laços, ocorre nos mesmos</p><p>substratos neurais que a dor física, o que evidencia o peso das conexões</p><p>para a espécie humana (Eisenberger, 2012). Em outras palavras, somos</p><p>eminentemente animais sociais — seja para Aristóteles, Marx ou para os</p><p>neurocientistas contemporâneos. Matthew Lieberman, precursor da</p><p>neurociência cognitiva social, aposta que um dia olharemos para trás sem</p><p>compreender como vivemos, estudamos e trabalhamos sem sermos guiados</p><p>pelos princípios do cérebro social (2013).</p><p>A felicidade não é uma experiência vivida exclusivamente na primeira</p><p>pessoa, precisa ser compreendida no plural. O individualismo põe em risco</p><p>o bem-estar humano, enquanto o coletivismo o fomenta. O World</p><p>Happiness Report (2021) mostrou o quanto a conexão social digital</p><p>funcionou como fator protetivo para a saúde mental durante o primeiro ano</p><p>da pandemia da Covid-19.</p><p>Já a pesquisa Cross-Cultural Perspectives on the Role of Empathy</p><p>during COVID-19’s First Wave, realizada em 23 nações, incluindo o Brasil,</p><p>mostrou correlação entre redução da empatia e elevação do sofrimento</p><p>durante a primeira etapa do Sars-CoV-2 (Butovskaya et al., 2021). E o que é</p><p>a empatia se não uma capacidade biológica voltada à manutenção da</p><p>conexão entre os indivíduos, preservando com isso a espécie humana?</p><p>Esvaziar-se de empatia é perde-se da própria humanidade.</p><p>Felicidade não é sobre sucesso</p><p>Embora estudos apontem felicidade enquanto antecedente de sucesso, vista</p><p>fora do contexto de uma pesquisa essa aparente relação de nexo causal pode</p><p>conduzir a uma série de equívocos. Em primeiro lugar, cabe explicar que</p><p>pesquisas sobre a temática não são verdades absolutas e generalistas, são</p><p>sim evidências empíricas de um determinado recorte populacional,</p><p>geográfico, cultural e temporal visto dentro de um desenho específico de</p><p>investigação. Ou seja: os achados de cada estudo estão relacionados à</p><p>população estudada e da forma como foi estudada.</p><p>Em segundo lugar, raramente vê-se explicada a definição de sucesso em</p><p>narrativas, livros e até materiais ditos científicos que sustentam sua</p><p>correlação positiva com felicidade. Já nos artigos publicados em periódicos</p><p>respeitáveis, sucesso é avaliado dentro de contextos específicos, como</p><p>desempenho escolar, liderança ou carreira. Redobre a atenção diante da</p><p>ausência da definição de sucesso enquanto construto e quando aparecer</p><p>relacionado</p>

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