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<p>CONCEITOS FUNDAMENTAIS</p><p>EM PSICANÁLISE</p><p>AULA 1</p><p>Prof.ª Juliana Santos</p><p>2</p><p>CONVERSA INICIAL</p><p>Durante essa caminhada, iremos apresentar a base dos conceitos</p><p>psicanalíticos que norteará todo o estudo de psicanálise, pois trata-se dos</p><p>conceitos que Freud nomeou de sua metapsicologia, isto é, os conceitos e</p><p>teorias que caracterizam a psicanálise como um saber.</p><p>Aqui já é importante fazer um esclarecimento: o que é fundamental para</p><p>Freud e para Lacan!</p><p>Para Freud, os conceitos fundamentais são aqueles que embasaram o</p><p>que ele chamou de metapsicologia. E metapsicologia é o nome que Freud deu</p><p>para se referir ao conjunto de suas teorias sobre a organização e o</p><p>funcionamento psíquico.</p><p>Créditos: HypeStudio/Shutterstock.</p><p>Freud desenvolveu a teoria psicanalítica, à qual deu o nome de</p><p>metapsicologia, entre os anos de 1900 e 1939. É sobre esse período histórico</p><p>que esta nossa caminhada vai tratar em um primeiro momento.</p><p>Agora vamos ao segundo momento: anos depois, Jacques Lacan também</p><p>deixou sua marca na psicanálise ao destacar o que ele chamou de Os quatro</p><p>conceitos fundamentais da psicanálise. São eles:</p><p>Pulsão de morte</p><p>Compulsão à</p><p>repetição</p><p>Eu, Isso, Supereu</p><p>Masoquismo</p><p>Inconsciente</p><p>Consciente</p><p>Pré-</p><p>consciente</p><p>Pulsão</p><p>Repressão</p><p>Narcisismo</p><p>METAPSICOLOGIA</p><p>3</p><p>• Inconsciente;</p><p>• Repetição;</p><p>• Transferência; e</p><p>• Pulsão.</p><p>Estes são os conceitos da psicanálise que são fundamentais para Lacan.</p><p>Um dos livros da coleção Os Seminários tem o nome: Os quatro conceitos</p><p>fundamentais da psicanálise. É o volume 11, publicado originalmente em 1964.</p><p>Então, resumindo: quando falamos em conceitos fundamentais EM</p><p>psicanálise, estamos nos referindo à metapsicologia freudiana. Quando falamos</p><p>de conceitos fundamentais DA psicanálise, é uma referência ao Seminário 11,</p><p>de Lacan.</p><p>TEMA 1 – O que é a metapsicologia freudiana?</p><p>Nas obras de Freud, podemos considerar alguns textos como sendo parte</p><p>essencial do movimento metapsicológico. Destacamos aqui os mais clássicos:</p><p>• O Projeto para uma psicologia científica (1895), mais conhecido como “O</p><p>Projeto”, é um texto pré-psicanalítico no qual Freud, ainda impregnado de</p><p>um discurso médico e organicista, busca descrever o funcionamento do</p><p>aparelho psíquico por meio de transmissão neuronal. Esse texto mostra</p><p>onde tudo começou, quais eram as primeiras hipóteses de Freud sobre o</p><p>psiquismo.</p><p>• A Interpretação de Sonho (1900), no qual Freud se distancia da visão</p><p>organicista anterior e passa a apresentar o funcionamento do aparelho</p><p>psíquico por meio de três instâncias: inconsciente, consciente e pré-</p><p>consciente, nomeado de a primeira tópica do aparelho psíquico.</p><p>• Introdução ao narcisismo: texto que compreende a constituição do eu e</p><p>que produz a unidade corporal do sujeito, que antes se encontrava</p><p>despedaçada no autoerotismo.</p><p>• Artigos sobre a metapsicologia (1915-1916). Nesta publicação,</p><p>encontramos alguns textos que são fundamentais para a construção</p><p>teórica da psicanálise:</p><p>o A pulsão e suas vicissitudes (1915): uma das principais construções</p><p>teóricas, considerada a mitologia freudiana – a teoria das pulsões.</p><p>4</p><p>o O recalque (1915): texto que demarca a divisão do psiquismo através do</p><p>mecanismo do recalque, como sendo esse um dos destinos da pulsão.</p><p>o O inconsciente (1915): Freud constata que o inconsciente é uma</p><p>instância que está para além do conteúdo recalcado.</p><p>• Mais além do princípio de prazer (1920). Este é o texto que inaugura uma</p><p>nova fase na metapsicologia freudiana, pois fica claro o avanço na</p><p>compreensão de Freud sobre o psiquismo humano. Podemos dizer que é</p><p>este texto que divide epistemologicamente a teoria psicanalítica, como um</p><p>“antes” e um “depois” dele. Essa nova fase se inicia com a publicação do</p><p>texto, no qual é introduzido o conceito de pulsão de morte, sendo este,</p><p>mais um modo de regulação dos processos psíquicos e dá uma nova</p><p>dimensão clínica, através da compulsão à repetição. Então, no texto Mais</p><p>além do princípio do prazer (1920), vamos destacar:</p><p>o Pulsão de morte</p><p>o Compulsão à repetição</p><p>A partir dessa nova elaboração, Freud constrói a segunda tópica do</p><p>aparelho psíquico, no texto metapsicológico O eu e o isso (1923).</p><p>• O eu e o isso (1923): demonstra o ponto de vista estrutural: Eu, Isso e</p><p>Supereu, como sendo instâncias estruturais que interagem</p><p>permanentemente e se influenciam.</p><p>• O problema econômico do masoquismo (1924): apresenta o modo como</p><p>a pulsão de morte opera e modifica a relação com o princípio de prazer.</p><p>Portanto, os conceitos inconsciente, pulsão, repetição e pulsão de morte</p><p>são fundamentais e que estão na base de todos os desdobramentos teóricos da</p><p>psicanálise, pelo qual foi nomeado por Freud de sua metapsicologia. Contudo,</p><p>mesmo se tratando de uma teoria, não se trata de uma descrição clínica, mas de</p><p>uma recusa a transformar a psicanálise em uma prática gentil do afeto. Nesse</p><p>sentido, Garcia-Roza (2008, p.13) declara que: “Opor teoria e clínica, de modo</p><p>que uma exclua a outra, corresponde a negar o próprio projeto freudiano. Para</p><p>aqueles que insistem em não acreditar em bruxas, Freud adverte que elas</p><p>existem. Pelo menos a bruxa metapsicologia.”.</p><p>De fato, todos os textos de Freud são importantes, mas estes listados</p><p>acima são os estruturais, ou seja, aqueles que sustentam toda a construção</p><p>teórica, e por isso são considerados fundamentais.</p><p>5</p><p>Em seguida, abordaremos cada um deles, e depois também serão</p><p>abordados os quatro conceitos que Lacan destacou como fundamentais no</p><p>seminário 11, pois, por meio de suas incisões na teoria freudiana, a clínica</p><p>alcançou o que sempre esteve na mira de Freud, mas ele não chegou a alcançar.</p><p>TEMA 2 – OS PRINCÍPIOS REGULATÓRIOS DO PSIQUISMO</p><p>2.1 Prazer x Desprazer</p><p>Antes de nos aprofundarmos nos principais textos da metapsicologia</p><p>freudiana, vamos ampliar nossa compreensão sobre alguns princípios que</p><p>regulam o funcionamento psíquico.</p><p>O principal regulador psíquico foi nomeado por Freud de princípio de</p><p>prazer, ele corresponde a uma tendência psíquica que visa evitar o desprazer,</p><p>pois, a sensação de prazer e desprazer marcam a vida psíquica desde</p><p>momento muito primitivo da vida.</p><p>Assim, o princípio do prazer exerce uma força sobre o funcionamento do</p><p>psiquismo e estará no processo de desenvolvimento e organização, através dos</p><p>traços mnêmicos, ou seja, as vivências do sujeito deixam registro que estará em</p><p>compromisso com o princípio de prazer.</p><p>Portanto, o princípio de prazer refere-se a um funcionamento que visa</p><p>uma economia de tensão, ou seja, ele trabalha em prol do controle da quantidade</p><p>de excitação, pelo qual a sensação prazer-desprazer está relacionada a essa</p><p>quantidade, haja vista que o objetivo é a homeostase psíquica:</p><p>Prazer = descarga de excitação</p><p>Desprazer = aumento de excitação</p><p>Dessa forma, o funcionamento do aparelho psíquico está a serviço do</p><p>princípio de prazer, que busca evitar o desprazer. Contudo, ao longo da vida, o</p><p>sujeito se dá conta de que o prazer nem sempre pode ser obtido, haja vista que</p><p>a busca imediata pelo prazer pode gerar um desprazer, ou seja, ter como</p><p>consequência uma punição. Portanto, o sujeito passa a usar a sua razão para</p><p>avaliar a situação sendo, por vezes, levado a renunciar um prazer para se manter</p><p>afastado de um desprazer. A esse funcionamento, Freud nomeou de princípio</p><p>de realidade.</p><p>6</p><p>Assim, o princípio do prazer estaria intimamente ligado aos processos</p><p>primários, cujos estímulos são internos e visam sempre o prazer, pela descarga</p><p>de excitação. Por outro lado, o princípio da realidade está relacionado ao</p><p>processo secundário, que permite a inibição dessa descarga, por conta de</p><p>estímulos externos.</p><p>No entanto, vale lembrar que, na passagem do princípio de prazer para o</p><p>princípio de realidade, com a instauração de um julgamento, este</p><p>(“objetiva”), como</p><p>pode ser o equivalente simbólico de uma parte do real.</p><p>O objeto no sentido objetal coloca em questão não apenas a relação do</p><p>objeto com o objetivo, mas, sobretudo, o modo de relação da pulsão com seu</p><p>objeto e mais especificamente do indivíduo com o seu mundo (p. 123).</p><p>Dessa maneira, a pulsão oral implica não somente um objeto, mas</p><p>sobretudo um modo de relação objetal: a incorporação. Os Três</p><p>ensaios sobre a sexualidade deram ênfase à distinção entre as fases</p><p>pré-genitais da libido, que se caracterizavam por um modo de relação</p><p>objetal (autoerótica, narcísica, objeto parcial etc.), e a fase genital,</p><p>onde ocorre uma escolha de objeto. Nesta fase, o objeto não é mais</p><p>um objeto parcial, mas uma pessoa (ou algo que funcione como um</p><p>objeto total). Nesse sentido, falar-se-ia não mais em objeto da pulsão,</p><p>mas em objeto de amor. (Garcia-Roza, 2009, p. 123)</p><p>Assim, “objeto”, na teoria psicanalítica, não é aquilo que se oferece em</p><p>face da consciência, mas algo que só tem sentido quando relacionado à pulsão</p><p>e ao inconsciente.</p><p>9</p><p>A teoria da pulsão estabelece a energia que faz funcionar o aparelho</p><p>psíquico pela busca constante de satisfação, contudo, trata-se de uma satisfação</p><p>já vivida, pela qual ela visa resgatar.</p><p>3.2 Pulsões do eu e pulsões sexuais</p><p>Na primeira teoria das pulsões, Freud (1915) distingue as pulsões do eu</p><p>e as pulsões sexuais. As pulsões de eu não podem ser confundidas como pulsão</p><p>que emanam do eu, pois, como vimos anteriormente, a fonte da pulsão é</p><p>somática. Por isso, o correto é pensar como uma pulsão de autoconservação, já</p><p>que estão designadas as necessidades ligadas às funções corporais, cujo</p><p>objetivo é a conservação da vida do indivíduo. Sendo assim, elas se satisfazem</p><p>com objetos reais. Por exemplo: alimentar-se seria uma finalidade dessa pulsão,</p><p>assim, ela seria regida pelo princípio de realidade.</p><p>Já no caso das pulsões sexuais, essas estariam a serviço do princípio de</p><p>prazer, pois os objetos da sua satisfação podem ser reais ou fantasmáticos, e o</p><p>seu alvo é a satisfação do órgão. Essas pulsões surgem quando a satisfação</p><p>não é mais apenas em suprir a necessidade, mas é em busca de repetir a</p><p>satisfação. Por exemplo: quando o bebê chora, não é mais apenas por fome,</p><p>mas em reviver a experiência de prazer vivenciada quando mama.</p><p>A Psicanálise lida com os efeitos das pulsões sexuais, pois é delas que</p><p>emanam os conflitos psíquicos. De início, as pulsões sexuais se apoiam nas</p><p>funções de autopreservação e vão ganhando a sua autonomia gradualmente.</p><p>Por exemplo: de início, o choro da criança é de autopreservação, mas,</p><p>gradualmente, esse choro vai na direção de obtenção de satisfação. As pulsões</p><p>passam da parcialidade autoerótica para o narcisismo. Assim, os destinos das</p><p>pulsões são apresentados por Freud em quatro caminhos:</p><p>• Reversão ao seu oposto, o qual é desdobrado com base em duas</p><p>operações: mudança da atividade para a passividade e reversão de seu</p><p>conteúdo;</p><p>• Retorno ao próprio eu;</p><p>• Recalque;</p><p>• Sublimação.</p><p>10</p><p>Contudo, a concepção do conceito do narcisismo, no qual o eu se torna</p><p>objeto de investimento libidinal, esse dualismo pulsional vai sendo,</p><p>progressivamente, unificado em uma só pulsão – pulsão de vida –, pois, como</p><p>Freud identifica, toda pulsão é sexual. E, como veremos mais adiante, Freud</p><p>institui um novo dualismo pulsional: Pulsão de vida x Pulsão de morte.</p><p>TEMA 4 – RECALCAMENTO</p><p>Seguindo nossa proposta de estudar os artigos de metapsicologia, o que</p><p>segue é o tema do recalque. Freud postula o recalque como um dos destinos da</p><p>pulsão.</p><p>Freud considera o recalcamento o pilar da teoria psicanalítica. No</p><p>Dicionário de Psicanálise, Roudinesco (1998, p. 647) descreve o recalque como</p><p>um processo que visa manter no inconsciente todas as ideias e representações</p><p>ligadas às pulsões e cuja realização, produtora de prazer, afetaria o equilíbrio do</p><p>funcionamento psicológico do indivíduo, transformando-se em fonte de</p><p>desprazer.</p><p>O recalque sempre foi empregado por Freud, desde o período pré-</p><p>psicanalítico, mas sua elaboração vem após o abandono da prática da hipnose,</p><p>quando, de fato, ele passa a se confrontar com a resistência. O que Freud conclui</p><p>é que os pacientes não conseguiam se recordar, não porque certas lembranças</p><p>haviam sido apagadas de suas memórias, mas, na verdade, havia um</p><p>mecanismo de defesa que impedia que essas lembranças voltassem à</p><p>consciência.</p><p>Assim, Freud distingue o recalque como um mecanismo de defesa com</p><p>base em Interpretação do sonho (1900), pois, nesse momento, ele especifica a</p><p>operação do recalcamento pela sua condição de evitação de lembrança, ou seja,</p><p>uma repetição da fuga à percepção penosa. Garcia-Roza (2009, p. 90) explica</p><p>da seguinte maneira:</p><p>No caso de o aparelho psíquico ser atingido por um estímulo que</p><p>provoque uma excitação dolorosa, ocorrerá uma série de</p><p>manifestações motoras que, apesar de inespecíficas, poderão afastar</p><p>o estímulo causador da experiência desprazerosa. Se a mesma</p><p>experiência se repetir, isto é, se a percepção do estímulo voltar a se</p><p>apresentar, ocorrerá uma repetição dos movimentos que anteriormente</p><p>produziram seu afastamento. [...] Evitar a lembrança é um processo</p><p>análogo à fuga da percepção. Esse mecanismo que é colocado em</p><p>funcionamento através da memória é que Freud aponta como o modelo</p><p>do recalcamento e que só pode ser efetuado pelo sistema Pcs/Cs, pois</p><p>é a ele que pertence a função inibidora.</p><p>11</p><p>Em 1915, a concepção do recalque é retomada por Freud, quando ele se</p><p>indaga sobre o porquê da pulsão tomar tal destino. Ou seja, por que uma</p><p>satisfação, que deveria ser sentida como prazer, deve ser recalcada a ponto de</p><p>ser tornar inoperante? E a resposta apontada mostra que o caminho para a</p><p>satisfação representa mais desprazer do que ganho de prazer. Dessa forma,</p><p>Garcia-Roza (2008, p. 175) conclui que produzir prazer num lugar pode produzir</p><p>desprazer em outro lugar, portanto, o que estabelece a condição para o recalque</p><p>é a potência do desprazer, ou seja, quando o desprazer é maior do que o prazer</p><p>da satisfação.</p><p>Contudo, o recalque não impedirá que a pulsão consiga obter satisfação,</p><p>pois, como Freud foi demostrando ao longo de toda sua obra, o aparelho</p><p>psíquico é um aparelho de transformação e, nesse sentido, o próprio recalque</p><p>não estaria contra a satisfação pulsional, porém, a satisfação se dá de forma</p><p>indireta.</p><p>4.1 O retorno do recalcado</p><p>Para que o recalque ocorra é preciso que previamente haja existido um</p><p>recalque originário, ou seja, marcas psíquicas inconscientes que funcionem</p><p>como polo de atração para o recalque propriamente dito. O recalque primário,</p><p>então, é uma demarcação inconsciente, que nunca foi simbolizada, mas</p><p>produzirá uma rede que se opõe à significação, pela qual se soma ao conteúdo</p><p>recalcado. E, no inconsciente, o recalcado não elimina as representações da</p><p>pulsão recalcada, pelo contrário, ele continua exercendo força contra os outros</p><p>sistemas (P-cs/Cs), e logra retornar à consciência. A esse retorno Freud nomeou</p><p>de retorno do recalcado.</p><p>O retorno do recalcado, porém, não é à consciência em sua forma original,</p><p>ele sofre uma deformação, pois só dessa forma ele conseguirá desviar da</p><p>censura imposta pela consciência.</p><p>Garcia-Roza (2008, p. 2005) evidencia o retorno do recalcado da seguinte</p><p>forma:</p><p>O retorno do recalcado se faz de forma deformada, distorcida, e não</p><p>como retorno do “mesmo”, do idêntico. Aquilo que retorna, o faz sob a</p><p>forma de um compromisso entre os dois sistemas, de tal modo que o</p><p>desejo recalcado encontre uma expressão consciente, mas ao mesmo</p><p>tempo não produza desprazer. O retorno do recalcado não se faz,</p><p>portanto, devido a uma falha no sistema defensivo, mas, precisamente</p><p>porque foram produzidos derivados submetidos a deformações tais</p><p>12</p><p>que o caráter ameaçador do recalcado original tenha sido</p><p>suficientemente atenuado a ponto de ultrapassar</p><p>a barreira imposta</p><p>pelo eu às representações recalcadas.</p><p>O retorno do recalcado produz, pela distorção, uma satisfação tanto à</p><p>consciência quanto ao inconsciente, e está intimamente ligado ao sintoma.</p><p>O sintoma é o lugar do sofrimento que proporciona satisfação sexual</p><p>para o neurótico sem que ele o saiba. É um lugar que contém uma</p><p>verdade para o sujeito, e, dependendo da interpretação que ele lhe der,</p><p>procurará um médico ou um analista, ou ainda um padre ou um pai-de-</p><p>santo. (Quinet, 2009, p. 123)</p><p>TEMA 5 – O INCONSCIENTE</p><p>O funcionamento do inconsciente é a grande descoberta freudiana e a</p><p>base do princípio do tratamento na psicanálise. Em nossos dias, ainda há quem</p><p>busque localizar o inconsciente em alguma parte cerebral, mas precisamos ter a</p><p>clareza de que, quando falamos em inconsciente e no aparato psíquico</p><p>formulado por Freud, estamos lidando com uma ficção teórica, cujas localizações</p><p>são puramente virtuais.</p><p>Freud, por meio da análise do sonho, revelou que o inconsciente funciona</p><p>por meio de mecanismos específicos, e que seu conteúdo é formado por desejos</p><p>proibidos que só podem ser satisfeitos passando por um processo de</p><p>deformação, para driblar a censura da consciência. Dessa forma, pela análise e</p><p>interpretação do sonho, Freud constata que os sintomas neuróticos obedecem a</p><p>mesma lógica da formação do sonho, sendo assim, os sintomas também</p><p>satisfazem um desejo proibido à consciência do sujeito.</p><p>Em 1905, nos Três ensaios, Freud alcança novas elaborações a respeito</p><p>da pulsão, nos quais ele a coloca como uma força constante e irredutível sobre</p><p>o psiquismo, que leva o sujeito a ir sempre em busca de satisfação. A relação</p><p>entre o inconsciente e a pulsão vai sendo definida ao longo das obras de Freud</p><p>e no texto O inconsciente, publicado nos Artigos sobre a metapsicologia (1915).</p><p>Freud se dedicou a escrever o seu conceito, sobre o qual, Pierre Kaufmann</p><p>(1996, p. 265), em seu dicionário enciclopédico de psicanálise, faz o seguinte</p><p>recorte:</p><p>Instituído pela ação do recalcamento, o inconsciente é, de fato,</p><p>constituído por "[...] representações da pulsão que querem descarregar</p><p>seu investimento, portanto por moções de desejo. Essas moções</p><p>pulsionais são coordenadas umas às outras, persistem umas ao lado</p><p>das outras sem se influenciar reciprocamente e não se contradizem</p><p>entre si".</p><p>13</p><p>E complementa seu entendimento sobre o inconsciente, distinguindo-o da</p><p>pulsão pela seguinte colocação:</p><p>A pulsão é de essência inconsciente. Não pode se tornar consciente</p><p>senão pela mediação de uma representação psíquica, a qual</p><p>permanece tributária do processo primário e, consequentemente,</p><p>essencialmente submetida ao trabalho da condensação e do</p><p>deslocamento.</p><p>Laplanche e Pontalis (2001, p. 236) também nos ajudam em nosso estudo</p><p>sobre o conceito de inconsciente.</p><p>O inconsciente freudiano é, em primeiro lugar, indissoluvelmente uma</p><p>noção tópica e dinâmica, que brotou na experiencia do tratamento.</p><p>Este mostrou que o psiquismo não é redutível ao consciente e que</p><p>certos “conteúdos” só se tornam acessíveis a consciência depois de</p><p>superadas as resistências.</p><p>Portanto, por meio desses autores, podemos compreender que o</p><p>inconsciente freudiano tem uma disposição topológica e dinâmica, cuja energia</p><p>se direciona no sentido de obter satisfação posta pelas representações</p><p>pulsionais, visto que o inconsciente é atemporal, ou seja, não obedece a</p><p>organização cronológica do tempo, nem se inscreve a negação, isto é, ele</p><p>funciona por um afirmação, na qual exclui a diferença dos sexos. Nesse sentido,</p><p>o inconsciente opera em sua própria realidade psíquica, que, por vez, substitui a</p><p>realidade externa. Assim, o inconsciente “obedece a regras próprias que</p><p>desconhecem as relações lógicas conscientes de não contradição e de causa e</p><p>efeito, que nos são habituais” (Kaufmann, 1996, p. 265).</p><p>Contudo, Freud (1915, p. 98) enfatiza que</p><p>tudo que é reprimido deve permanecer inconsciente; mas, logo de</p><p>início, declaremos que o reprimido não abrange tudo que é</p><p>inconsciente. O alcance do inconsciente é mais amplo: o reprimido é</p><p>apenas uma parte do inconsciente.</p><p>Isso significa dizer que as representações pulsionais que buscam</p><p>satisfação são apenas uma parte do inconsciente, mas que outras partes</p><p>escapam dessas representações. Essa constatação foi fundamental para que,</p><p>mais tarde, Freud pudesse formular um novo modelo de aparelho psíquico, pois,</p><p>do ponto de vista estrutural, o modelo da primeira tópica não comporta a teoria</p><p>das pulsões, já que o inconsciente não está inserido apenas ao recalcado, mas</p><p>ele abrange parte do eu e do supereu, sendo um verdadeiro reservatório das</p><p>pulsões. Mas deixaremos para nos aprofundar a respeito da segunda tópica na</p><p>próxima etapa.</p><p>14</p><p>NA PRÁTICA</p><p>O inconsciente sempre foi uma questão polêmica para a psicanálise.</p><p>Primeiro pela dificuldade em abordá-lo, visto que só é pelo desvio que nos</p><p>aproximamos dele; segundo, pela complexidade de conceituá-lo. Lacan, no</p><p>entanto, ao trazer a ciência linguística para o seu campo de análise, pôde dar</p><p>novos contornos ao inconsciente e tirá-lo de vez dos ares místicos e intocáveis.</p><p>Ele vai dizer que o inconsciente está na fala do sujeito, pois ele é estruturado</p><p>como linguagem, e, por assim ser, o psicanalista pode operar pela fala do</p><p>analisando, ou seja, é como Freud demostrou – ele surge nos atos falhos, nos</p><p>tropeços, nos esquecimentos ou mesmo no silêncio.</p><p>Certa vez, um analisante relatou que, na saída da igreja, um guardador</p><p>de carro lhe pediu dinheiro, mas ela tinha esquecido a sua carteira e o homem a</p><p>xingou, o que lhe deu muita raiva. Mas, passam os dias e aquela situação não</p><p>lhe saía da cabeça. Conta que tinha vontade de voltar lá e lhe perguntar com</p><p>que direito ele fizera isso, pois ela tinha acabado de sair da igreja, estava em</p><p>paz. Por que ele achava que as pessoas eram obrigadas a lhe dar dinheiro?</p><p>Sua analista, então, pergunta o porquê desse acontecimento ter lhe</p><p>aborrecido tanto e se ela já havia vivenciado algo assim. Prontamente, ela</p><p>responde que não, mas, logo em seguida, ela associa a um pedinte que</p><p>encontrou em uma viagem e que, pelo mesmo motivo de não andar com dinheiro,</p><p>não teve nada para lhe dar, e o pedinte fala um palavrão para ela, pensando que</p><p>ela não entenderia o seu idioma. Então, a analista pergunta:</p><p>• Analista – quando você escuta o palavrão, o que lhe vem à mente?</p><p>• Analisante – eu pensei, é por isso que está nessa condição!</p><p>• Analista – e você pensou o mesmo para o guardador de carro?</p><p>• Analisante – eu acho que sim... credo, né?! Eu tinha acabado de sair da</p><p>igreja...</p><p>A culpa e a recriminação fizeram com que ela recalcasse os seus</p><p>pensamentos (“é por isso que está nessa condição”), mas, a angústia retornava</p><p>como um sintoma, em que ela buscava culpar o outro para encobrir o seu real</p><p>desejo.</p><p>15</p><p>FINALIZANDO</p><p>Nesta etapa, vimos que o narcisismo constitui um estádio posterior ao</p><p>autoerotismo, pois ele surge sob a condição de uma nova ação psíquica que</p><p>promove a constituição do eu como uma unidade corporal. Assim, o eu se forma</p><p>por meio do narcisismo primário, que é consequência da projeção do eu ideal</p><p>dos pais.</p><p>Vimos também que a pulsão está situada na fronteira entre o somático e</p><p>o psiquismo. Freud a desmonta em quatro partes: a fonte, no corpo; a força, que</p><p>é constante no psiquismo; o objetivo, que é sempre a satisfação; e, por último, o</p><p>objeto, que é o mais variável, visto que ele é escolhido para alcançar o seu</p><p>objetivo.</p><p>Estudamos o recalque como sendo um dos principais mecanismos de</p><p>defesa e responsável por dividir o sujeito: consciente e inconsciente. Contudo, o</p><p>que é recalcado não fica de forma passiva no inconsciente, mas ele busca</p><p>retornar à consciência pelos mesmos mecanismos dos sonhos, em que uma</p><p>ideia recalcada sofre uma distorção e retorna pelas formações do inconsciente.</p><p>Por fim, buscamos conhecer o conceito de inconsciente</p><p>e como ele foi</p><p>apresentado na primeira tópica, como sendo parte recalcada, privada de vir à</p><p>consciência por conter elementos proibidos para a consciência, mas Freud se dá</p><p>conta de que o inconsciente é muito mais amplo e não se restringe apenas ao</p><p>conteúdo recalcado.</p><p>16</p><p>REFERÊNCIAS</p><p>GARCIA-ROZA, L. A. Freud e o inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,</p><p>2009.</p><p>GARCIA-ROZA, L. A. Metapsicologia freudiana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,</p><p>2008. v. 3.</p><p>KAUFMANN, P. Dicionário enciclopédico de psicanálise: o legado de Freud</p><p>e Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.</p><p>LAPLANCHE; PONTALIS. Vocabulário de psicanálise. São Paulo: Martins</p><p>Fonter, 2001.</p><p>SIGMUND, F. (1914). Introdução ao narcisismo. In: SIGMUND, F. Obras</p><p>completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. XIV.</p><p>SIGMUND, F. (1915). Pulsão e suas vicissitudes. In: SIGMUND, F. Obras</p><p>completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. XIV.</p><p>SIGMUND, F. (1915). O recalque. In: SIGMUND, F. Obras completas. Rio de</p><p>Janeiro: Imago, 1996. v. XIV.</p><p>SIGMUND, F. (1915). O inconsciente. In: SIGMUND, F. Obras completas. Rio</p><p>de Janeiro: Imago, 1996. v. XIV.</p><p>ROUDINESCO, E. Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.</p><p>CONCEITOS FUNDAMENTAIS</p><p>EM PSICANÁLISE</p><p>Aula 4</p><p>Prof.ª Juliana Santos</p><p>2</p><p>CONVERSA INICIAL</p><p>Nesta abordagem, chegamos à metade da nossa trajetória de estudos, e,</p><p>antes de darmos sequência, que tal retomarmos, brevemente, o que já vimos até</p><p>aqui?</p><p>Vimos, anteriormente, os textos que são considerados parte do</p><p>movimento da metapsicologia freudiana. Portanto, a metapsicologia foi o modo</p><p>como Freud nomeou o conjunto da teoria que transforma a psicanálise em um</p><p>campo de saber específico.</p><p>Aprendemos sobre os princípios regulatórios do psiquismo: prazer x</p><p>desprazer, cuja principal tendência psíquica é o principio de prazer, que visa uma</p><p>economia de tensão, ou seja, ele trabalha em prol do controle da quantidade de</p><p>excitação, pelo qual a sensação prazer-desprazer está relacionada a essa</p><p>quantidade.</p><p>Sobre a experiência de desamparo e satisfação vivenciada no início da</p><p>vida, Freud situa aí toda fonte primordial dos motivos morais, pois a criança, ao</p><p>se perceber necessitada de uma ajuda alheia para ter suas necessidades</p><p>satisfeitas, ao mesmo tempo que a intervenção do outro lhe produz satisfação,</p><p>ela se percebe, também, desamparada.</p><p>Outro tema abordado foi a noção de realidade. Para a psicanálise, a</p><p>realidade que verdadeiramente importa é a realidade psíquica, que não</p><p>necessariamente precisa ter compromisso com a realidade externa. Dessa</p><p>forma, Freud nos ensina que a realidade psíquica é resultado de uma escuta</p><p>clínica, cuja gênese está na fantasia, e seu alicerce, no desejo inconsciente do</p><p>sujeito.</p><p>Expusemos, também, a primeira formulação do funcionamento psíquico</p><p>do Projeto para uma psicologia científica (1895). Nele, Freud, ainda com um</p><p>linguajar médico, tenta localizar de forma anatômica o aparelho psíquico, através</p><p>de ligações neuronais. Nesse momento, o princípio de inércia seria a principal</p><p>tendência do psiquismo, cuja função é produzir uma descarga de energia, mas</p><p>uma força contrária impediria o êxito dessa descarga; essa força contrária é</p><p>secundária e tende a manter um nível constante de energia, pelo qual foi</p><p>nomeada de princípio de constância.</p><p>Posteriormente, ingressamos no texto que inaugura a psicanálise como</p><p>um saber específico – A interpretação do sonho (1900). O sonho, como nos</p><p>3</p><p>ensina Freud, é isso – a realização de um desejo inconsciente. Ele se realiza</p><p>não em sua forma original, mas de maneira distorcida e disfarçada, para nos</p><p>poupar de nós mesmos. Portanto, a tese central da Interpretação do sonho é</p><p>que a verdade trazida no sonho é um enigma a ser decifrado, e a psicanálise</p><p>constituiu-se como teoria e prática do deciframento.</p><p>Assim, no trabalho do sonho, o pensamento latente, isto é, o pensamento</p><p>do sonho, é inconsciente e só surge, no sonho, recoberto pelo conteúdo</p><p>manifesto, após sofrer transformação pelo mecanismo de deslocamento e</p><p>condensação.</p><p>Estudamos, ainda, a primeira tópica do aparelho psíquico, dividido em três</p><p>sistemas dinâmicos: inconsciente (Ics), consciente (Cs) e pré-consciente (P-Cs).</p><p>Nesse conjunto de sistemas, cada um deles possui um sentido ou direção,</p><p>fazendo com que nossas atividades psíquicas se iniciem a partir de estímulos</p><p>(internos ou externos) e finaliza numa descarga motora.</p><p>Em seguida, analisamos a noção de desejo para a psicanálise – ele não</p><p>está identificado com a necessidade biológica, portanto não pode ser satisfeito</p><p>por um objeto adequado (como o alimento). O desejo inconsciente está ligado a</p><p>traços mnêmicos, como o que foi apontado por Freud na primeira experiência de</p><p>satisfação.</p><p>Na sequência, vimos que a sexualidade, na teoria psicanalítica, está</p><p>ligada ao prazer e desprazer, em sua relação com a pulsão. Portanto, a</p><p>sexualidade, na psicanálise, é, em suma, uma ruptura com os sexólogos, que</p><p>reduzem a sexualidade ao sexual biológico, remetendo unicamente ao genital.</p><p>Continuando nossos estudos, começamos a desbravar os conceitos</p><p>fundamentais em psicanálise, os quais explicam a constituição psíquica, e não</p><p>mais o modo de funcionamento psíquico.</p><p>O primeiro tema abordado foi o narcisismo. O estádio do narcisismo</p><p>refere-se ao momento de constituição do eu, visto que o bebê, quando nasce,</p><p>não vem com o eu dado, este vai ser formado através do investimento libidinal</p><p>dos pais, que produz o narcisismo, ou seja, o amor a si próprio e a formação do</p><p>seu eu através da unificação do corpo.</p><p>Freud distingue duas formas de narcisismo:</p><p>1. Narcisismo primário: são os primeiros investimentos libidinais dos pais</p><p>nas crianças; tal investimento é uma inscrição narcísica do eu ideal</p><p>perdido e que os pais tentam recuperar nos filhos.</p><p>4</p><p>2. Narcisismo secundário: trata-se da libido que retorna ao eu, ou seja, à</p><p>medida que a criança vai crescendo, parte de sua libido é retirada do eu</p><p>e investida no objeto, mas quando, por algum motivo, o objeto é</p><p>desinvestido, a libido retorna para o seu eu.</p><p>Depois, passamos a estudar a teorias das pulsões, o conceito mais</p><p>original da psicanálise. A pulsão é aquilo que marca o nosso corpo com</p><p>sensações e cria, no psiquismo, experiência de prazer e desprazer. Portanto, a</p><p>pulsão está na fronteira entre o somático e o psiquismo.</p><p>Estudamos, ainda, o recalque, sendo este um dos destinos da pulsão. O</p><p>recalque é um mecanismo que visa manter, no inconsciente, todas as ideias e</p><p>representações ligadas às pulsões, cuja realização, produtora de prazer, afetaria</p><p>o equilíbrio do funcionamento psicológico do indivíduo, transformando-se em</p><p>fonte de desprazer.</p><p>E, para concluir o nosso resumo, estudamos o principal objeto de análise</p><p>da prática psicanalítica – o inconsciente. Freud, através da análise do sonho,</p><p>revelou que o inconsciente funciona através de mecanismos específicos, e que</p><p>seu conteúdo é formado por desejos proibidos, que só conseguem satisfação</p><p>passando por um processo de deformação, para driblar a censura da</p><p>consciência. Dessa forma, pela análise e interpretação do sonho, Freud constata</p><p>que os sintomas neuróticos obedecem à mesma lógica da formação do sonho.</p><p>Sendo assim, os sintomas também satisfazem um desejo proibido para a</p><p>consciência do sujeito.</p><p>A partir de agora, iniciaremos a segunda parte das elaborações</p><p>freudianas, quando, depois da conceitualização da pulsão de morte, Freud foi</p><p>levado a revisar a sua teoria e ampliar o modelo do aparelho psíquico,</p><p>apresentando a Segunda Tópica do Aparelho Psíquico.</p><p>TEMA 1 – A SEGUNDA TÓPICA DO APARELHO PSÍQUICO</p><p>O modelo da segunda tópica do aparelho psíquico é apresentado no texto</p><p>O Eu e o Isso (1923), após uma revisão na teoria das pulsões. Freud inicia esse</p><p>texto declarando que os estudos</p><p>que constituem a elaboração deste novo</p><p>desenvolvimento obedecem à sequência dos pensamentos que foram expostos</p><p>em Além do Princípio de Prazer (1920).</p><p>5</p><p>Na segunda tópica da divisão do aparelho psíquico, os sistemas que</p><p>foram apresentados na primeira tópica (inconsciente, pré-consciente e</p><p>consciente) surgem como adjetivos das novas instâncias, que agora recebem o</p><p>nome de eu, isso e supereu. Ou seja, a partir da segunda tópica, as instâncias</p><p>psíquicas passam a participar tanto de processos inconscientes quanto dos pré-</p><p>conscientes e conscientes, portanto a única instância que estaria totalmente</p><p>submersa nas profundezas do ser, e seria completamente inconsciente, é o isso.</p><p>Porém, vale lembrar que o isso não equivale ao inconsciente da primeira tópica,</p><p>mas todo isso é inconsciente. Vamos relembrar a metáfora do iceberg, que ficou</p><p>muito conhecida ao explicar, visualmente, os níveis psíquicos.</p><p>Ao visualizar a imagem, podemos observar as três camadas:</p><p>Créditos: Crystal Eye Studio/Shutterstock.</p><p>6</p><p>1º Consciente: abrange parte do eu (ego) e uma pequena parte do supereu</p><p>(superego).</p><p>2º Pré-consciente: abrange parte do eu e do supereu.</p><p>3º Inconsciente: abrange parte do eu, uma maior parte do supereu e toda a</p><p>parte do isso (Id).</p><p>Portanto, como vimos anteriormente, Freud (1915), no Texto O</p><p>Inconsciente, chega à compreensão de que o conteúdo recalcado é apenas parte</p><p>do inconsciente, e não sua totalidade. Portanto, no desdobramento de sua teoria,</p><p>Freud é levado a ampliar o sistema do aparelho psíquico, assim, a parte</p><p>inconsciente ele nomeou de isso, que corresponde ao conteúdo recalcado e aos</p><p>conteúdos que nunca vieram à consciência, sendo este, o núcleo das pulsões.</p><p>Freud no texto Esboço de psicanálise (1940, p. 92), declara:</p><p>À mais antiga destas localidades ou áreas de ação psíquica damos o</p><p>nome de isso. Ele contém tudo o que é herdado, que se acha presente</p><p>no nascimento, que está assente na constituição – acima de tudo,</p><p>portanto, as pulsões, que se originam da organização somática e que</p><p>aqui [no isso] encontram uma primeira expressão psíquica, sob formas</p><p>que nos são desconhecidas.</p><p>O eu corresponde ao setor que funciona de forma não linear entre o isso</p><p>e o mundo exterior, mas, resulta que, pela influência do mundo exterior, ele se</p><p>diferencia do isso, como que se entre um e outo existisse uma cortina que os</p><p>separasse. Assim, o núcleo do eu se encontra no isso, ou seja, é inconsciente,</p><p>de modo que, os estímulos endógenos são projetados à periferia, na superfície</p><p>corporal. Freud (1923, p.16) afirma:</p><p>É fácil ver que o eu é a parte do isso que foi modificada pela influência</p><p>direta do mundo externo, por intermédio do Pcs: em certo sentido, é</p><p>uma extensão da diferenciação de superfície. Além disso, o eu se</p><p>esforça por aplicar as tendências do mundo externo sobre o isso, assim</p><p>como seus próprios propósitos; e esforça-se por substituir o princípio</p><p>de prazer, que reina irrestritamente no isso, pelo princípio de realidade.</p><p>Para o eu, a percepção cumpre o papel que no isso cabe à pulsão. O</p><p>eu é o representante [repräsentieren] do que se pode chamar de razão</p><p>e prudência, em oposição ao isso, que contém as paixões.</p><p>Portanto, segundo Freud, o eu é uma parte do isso que sofreu</p><p>modificações por influência do mundo externo, assim, o que era originalmente</p><p>7</p><p>uma camada para receber estímulos, e com disposições para agir como um</p><p>escudo protetor contra estímulos, “surgiu uma organização especial que, desde</p><p>então, atua como intermediária entre o isso e o mundo externo. A esta região de</p><p>nossa mente demos o nome de eu” (Freud 1940, p. 92).</p><p>Assim, o eu executa a função de evitar o desprazer. De modo que, ao</p><p>exercer essa função, ele mesmo é levado a uma renúncia pulsional, visto que a</p><p>criança, em sua relação com os pais, vai internalizando as proibições,</p><p>constituindo, assim, uma terceira força de oposição ao eu. Essa força que o eu</p><p>tem que levar em conta recebe o nome de supereu. Portanto, a nova formulação</p><p>do aparelho psíquico foi descrita por Freud (1940, p. 94), assim:</p><p>O poder do isso expressa o verdadeiro propósito da vida do organismo</p><p>do indivíduo. Isto consiste na satisfação de suas necessidades inatas.</p><p>Nenhum intuito tal como o de manter-se vivo ou de proteger-se dos</p><p>perigos por meio da ansiedade pode ser atribuído ao isso. Essa é a</p><p>tarefa do eu, cuja missão é também descobrir o método mais favorável</p><p>e menos perigoso de obter a satisfação, levando em conta o mundo</p><p>externo. O supereu pode colocar novas necessidades em evidência,</p><p>mas sua função principal permanece sendo a limitação das</p><p>satisfações.</p><p>Portanto, tal formulação só foi possível ser alcançada por Freud após o</p><p>texto Além do princípio de prazer, no qual a verdadeira face da pulsão, essa força</p><p>que existe por trás de toda função do isso, foi desvelada.</p><p>TEMA 2 – MAIS ALÉM DO PRINCÍPIO DE PRAZER</p><p>Por que “mais além” do princípio de prazer? Se, inicialmente, Freud</p><p>nomeou de Princípio de Prazer a principal tendência psíquica, que tinha como</p><p>função evitar o desprazer, mantendo o nível de tensão o mais baixo possível, em</p><p>sua experiência clínica ele se confrontou com uma força que se opunha a essa</p><p>tendência, pois, ao invés do sujeito caminhar para uma experiência que</p><p>representava um ganho de satisfação, ele caminhava para um sentido</p><p>completamente oposto, portanto, um caminho que estava para além do princípio</p><p>de prazer.</p><p>Assim, essa força que se opunha ao princípio de prazer era observável</p><p>por um fenômeno clínico – a compulsão à repetição – o que levou Freud,</p><p>8</p><p>novamente, a reconsiderar a sua teoria das pulsões, elaborando um novo</p><p>dualismo pulsional: Pulsão de Vida x Pulsão de Morte.</p><p>Sob esse novo olhar a respeito das pulsões, Freud (1920, p. 7) declara</p><p>que, na verdade, seria incorreto afirmar a dominância do princípio de prazer no</p><p>curso dos processos mentais e, portanto, no máximo há uma forte tendência a</p><p>esse princípio.</p><p>Se tal dominância existisse, a imensa maioria de nossos processos</p><p>mentais teria de ser acompanhada pelo prazer ou conduzir a ele, ao</p><p>passo que a experiência geral contradiz completamente uma</p><p>conclusão desse tipo. O máximo que se pode dizer, portanto, é que</p><p>existe na mente uma forte tendência no sentido do princípio de prazer,</p><p>embora essa tendência seja contrariada por certas outras forças ou</p><p>circunstâncias, de maneira que o resultado final talvez nem sempre se</p><p>mostre em harmonia com a tendência no sentido do prazer.</p><p>Ao concluir a existência de uma força que contraria o princípio de prazer,</p><p>Freud concebe a manifestação da compulsão à repetição como sendo o caráter</p><p>essencial da pulsão de morte.</p><p>Portanto, o que estaria para além do princípio de prazer é a pulsão de</p><p>morte, visto que ela não estaria a serviço do princípio de prazer, de modo que</p><p>nenhuma instância psíquica se beneficia com ela. Freud (1920, p. 14) declara</p><p>assim:</p><p>É claro que a maior parte do que é reexperimentado sob a compulsão</p><p>à repetição, deve causar desprazer ao ego, pois traz à luz as atividades</p><p>dos impulsos instintuais reprimidos. Isso, no entanto, constitui</p><p>desprazer de uma espécie que já consideramos e que não contradiz o</p><p>princípio de prazer: desprazer para um dos sistemas e,</p><p>simultaneamente, satisfação para outro. Contudo, chegamos agora a</p><p>um fato novo e digno de nota, a saber, que a compulsão à repetição</p><p>também rememora do passado experiências que não incluem</p><p>possibilidade alguma de prazer e que nunca, mesmo há longo tempo,</p><p>trouxeram satisfação, mesmo para impulsos instintuais que desde</p><p>então foram reprimidos.</p><p>Portanto, como Freud evidenciou, ele já havia demonstrado que o que</p><p>causa desprazer para um dos sistemas pode ser vivido como satisfação para</p><p>outro, como é o caso das experiências reprimidas. Contudo, é nesse ponto que</p><p>Freud traz a novidade, pois a compulsão à repetição não inclui possibilidade</p><p>9</p><p>alguma de prazer em nenhuma instância psíquica. Ou seja, a compulsão à</p><p>repetição exprime experiências que nunca foram vividas com satisfação, mesmo</p><p>quando ocorreram.</p><p>Assim, por esses fenômenos observáveis da compulsão à repetição,</p><p>Freud se encoraja a supor que “existe realmente na mente uma compulsão à</p><p>repetição que sobrepuja o princípio de prazer”. (p. 15).</p><p>Portanto, cabe-nos agora estudarmos o estatuto da pulsão de morte e</p><p>compreendermos o seu vínculo com a repetição. Pois foi através da análise dos</p><p>fenômenos insistentes da repetição que Freud pôde conceber e conceitualizar a</p><p>pulsão de morte.</p><p>TEMA 3 – PULSÃO DE MORTE</p><p>No artigo Mais além do princípio de prazer, Freud (1920) reformula a sua</p><p>teoria das pulsões, de modo que as pulsões sexuais e de autopreservação</p><p>passam a integrar a pulsão de vida, pois, como vimos anteriormente, ao</p><p>introduzir o conceito do narcisismo, Freud entende que o eu também pode ser</p><p>tomado como objeto. Assim, tanto as pulsões do eu (conservação) quanto as</p><p>sexuais são uma só, cujo objeto escolhido visa uma satisfação sexual. Assim,</p><p>ambas as pulsões passam a ser compreendidas como pulsão de vida, cujo único</p><p>obstáculo para o alcance da satisfação é a pulsão de morte.</p><p>Freud concebeu a noção de pulsão de morte através de uma longa análise</p><p>que incluiu desde suas observações clínicas às narrativas literárias, como</p><p>também as análises dos sonhos, as neuroses traumáticas e do brincar das</p><p>crianças. Em todas essas ocorrências era possível destacar que se tratava de</p><p>situações em que a repetição era um fenômeno no qual o princípio do prazer não</p><p>estava operando no sentido de evitar o desprazer, portanto, tratava-se de um</p><p>mais-além.</p><p>Portanto, no texto Além do princípio de prazer, Freud (1920) inicia</p><p>apresentando a análise dos sonhos das neuroses traumáticas, que tem por</p><p>característica levar o sujeito a reviver tal situação do trauma nos sonhos,</p><p>contrariando, assim, a ideia da interpretação do sonho, segundo a qual o sonho</p><p>é a realização de um desejo inconsciente. Mas Freud não responde esta</p><p>questão, e nos leva a outra situação – a brincadeira das crianças.</p><p>Ele conta a história de uma criança de um ano e meio, que de dentro do</p><p>seu berço lança um carretel de linha, fazendo-o desaparecer, e depois puxa de</p><p>10</p><p>volta fazendo-o aparecer. Essa brincadeira que era feita de forma repetitiva era</p><p>acompanhada com os seguintes sons: “ooooooó” ao lançar, e de um “daaaaá”</p><p>ao puxar, que Freud identificou como os advérbios alemães fort e da, que</p><p>significam, aproximadamente, “ir embora” e “ali”. Essa brincadeira foi</p><p>interpretada, por Freud, como uma tentativa de simbolizar a saída e a volta da</p><p>mãe. Garcia-Roza 2008, p. 134-135) faz a seguinte referência:</p><p>No dizer de Freud, ela se relaciona à renúncia pulsional da criança ao</p><p>deixar a mãe e ir embora sem protestar, e, ao representar as saídas e</p><p>voltas da mãe pela brincadeira, ela realizava um duplo distanciamento:</p><p>primeiro, da mãe para o carretel e, em seguida, do carretel para a</p><p>linguagem. Com isso, ela submetia as forças pulsionais às leis do</p><p>processo secundário e ao mesmo tempo afastava-se, pela linguagem,</p><p>da vivência real. Não podendo controlar as saídas e chegadas da mãe,</p><p>às quais ela se submetia passivamente, conseguia exercer um domínio</p><p>simbólico sobre o acontecimento através do distanciamento operado</p><p>pela linguagem.</p><p>Essa experiência vivida pela criança, ainda que desagradável, visa</p><p>superar o domínio do desprazer vivido pela ausência da mãe, pois, através do</p><p>brincar, a criança transporta para o plano simbólico a saída e a volta da mãe.</p><p>Nesse sentido, o princípio do prazer ainda está em evidência.</p><p>A questão do “para além do princípio de prazer” é demostrada, de fato, no</p><p>último exemplo apresentado por Freud, na experiência de compulsão à</p><p>repetição. Trata-se de um fenômeno no nível clínico, que se manifesta pela</p><p>repetição inconsciente de experiências das quais o sujeito não consegue se</p><p>recordar e que em nenhum momento representou prazer a nenhuma instância.</p><p>Freud (1920, p. 34) declara:</p><p>Chegamos agora a um fato novo e digno de nota, a saber, que a</p><p>compulsão à repetição também rememora do passado experiências</p><p>que não incluem possibilidade alguma de prazer e que nunca, mesmo</p><p>há longo tempo, trouxeram satisfação, mesmo para impulsos</p><p>pulsionais que desde então foram recalcados.</p><p>A essa característica pulsional que se manifesta pela compulsão à</p><p>repetição de experiências que causam sofrimento, Freud nomeia de pulsão de</p><p>morte.</p><p>11</p><p>3.1 Princípio de nirvana</p><p>Diante dessa constatação, Freud vincula a pulsão de morte a outro</p><p>princípio – o princípio de nirvana. A expressão “de nirvana” é caracterizada</p><p>pela tendência ao aniquilamento do desejo humano, de modo que o aparelho</p><p>psíquico alcançaria um estado de quietude plena. Trata-se de um estado de</p><p>homeostase, pelo qual a excitação interna ou externa seria totalmente suprimida.</p><p>Nesse sentido, o caráter da pulsão de morte é compreendido por essa tendência</p><p>radical de total eliminação da excitação.</p><p>Portanto, o fenômeno da compulsão à repetição retoma a ideia de o</p><p>psiquismo ir em busca de um equilíbrio, uma constância, pelo qual, sob a</p><p>preponderância do princípio de Nirvana, buscará um estado de excitação zero,</p><p>possível apenas com a morte.</p><p>Assim, a pulsão de morte, por sua manifestação na compulsão à</p><p>repetição, difere do princípio de prazer pelo modo qualitativo, e não econômico,</p><p>pois enquanto a última visa uma economia de tensão, a pulsão de morte, guiada</p><p>pelo princípio de nirvana, almeja a ausência total de excitação. Portanto, trata-</p><p>se de um movimento regressivo, de um retornar à origem, ou seja, o estado</p><p>inorgânico do ser, de um repouso absoluto anterior à vida, sendo, este, o sentido</p><p>constituinte do conceito de pulsão de morte.</p><p>Através da concepção da pulsão de morte, Freud pôde conceber as duas</p><p>características primordiais de toda pulsão:</p><p>1. O caráter conservador: toda pulsão visa restituir um estado anterior.</p><p>Coutinho Jorge (2008, p. 61-62) sublinha que, a natureza conservadora</p><p>das pulsões pode ser definida pela constatação de que “todas as pulsões</p><p>tendem à restauração de um estado anterior de coisas”. No entanto, a</p><p>natureza conservadora da pulsão de morte reside na tendência de retorno</p><p>ao estado inorgânico: “se admitirmos que o ser vivo veio depois do ser</p><p>não vivo, e surgiu dele, a pulsão de morte harmoniza-se bem com a</p><p>fórmula segundo a qual a pulsão tende para o retorno a um estado</p><p>anterior”. Daí o caráter conservador da pulsão, que emana da tendência</p><p>da compulsão à repetição.</p><p>2. O caráter repetitivo: a repetição é, portanto, a expressão da pulsão, meio</p><p>pelo qual temos acesso a elas. A pulsão visa sempre voltar ao mesmo.</p><p>12</p><p>3.2 Pulsão de destruição</p><p>A pulsão de morte, por seu caráter conservador, busca retornar ao estado</p><p>anterior da vida. Para que ela não alcance o seu objetivo, é necessário que a</p><p>pulsão de vida encontre meios de manter o organismo vivo. Assim, uma das</p><p>soluções propostas por Freud (1923) é o desvio da pulsão de morte para fora do</p><p>organismo. Desse modo, esse desvio feito para o exterior é concebido como</p><p>pulsão de destruição.</p><p>No texto O ego e o Id, Freud (1923) descreve a fusão entre as pulsões de</p><p>vida e de morte, para que a pulsão de morte possa ser descarregada de forma</p><p>saudável. Assim, quando elas são desfusionadas, a pulsão de morte encontraria</p><p>no supereu um aliado para se voltar contra o seu próprio eu, instaurando um</p><p>sentimento de culpa e levando o sujeito a uma posição de sofrimento.</p><p>TEMA 4 – A PULSÃO DE MORTE E SUA RELAÇÃO COM O SUPEREU</p><p>Ao postular o conceito de pulsão de morte, não é a morte em si que Freud</p><p>quis abordar, pois a pulsão de morte, conforme explica Garcia-Roza (1986), diz</p><p>respeito, sobretudo, aos limites de validade do princípio de prazer, isto é, até</p><p>onde o princípio de prazer atua como uma</p><p>tendência psíquica.</p><p>Freud, ao vivenciar os efeitos da I Guerra Mundial, confrontou-se com os</p><p>sonhos traumáticos que o levaram a reelaborar os princípios que regem o</p><p>psiquismo para além do princípio de prazer. Nesse caminho, o caráter cruel do</p><p>supereu se apresentou com uma íntima ligação à pulsão de morte.</p><p>O termo supereu foi introduzido por Freud no texto O eu e o isso (1923),</p><p>sendo uma instância forjada no complexo de Édipo, que se separa do eu (ou</p><p>ego) e se constitui pela introjeção das exigências e interdições parentais.</p><p>Roudinesco (1998, p. 745) declara assim:</p><p>A severidade e o caráter repressivo do supereu não devem ser</p><p>concebidos como pura e simples repetição das características</p><p>parentais. Essa severidade e essa tendência repressora manifestam-</p><p>se com força ainda maior, com efeito, nos casos em que o sujeito</p><p>recebe uma educação benevolente que exclua toda e qualquer forma</p><p>de brutalidade; essas características são o produto do adestramento</p><p>precoce das pulsões sexuais e agressivas por um supereu colocado a</p><p>serviço das exigências da cultura.</p><p>13</p><p>Nesse sentido, a compulsão à repetição, enfatizada por Freud, conduz o</p><p>sujeito a reviver a experiência de sofrimento, e suscita uma questão: como se</p><p>constitui e atua essa força que empurra o homem para a dor? A resposta que</p><p>encontramos para essa questão está na destrutividade de ordem psíquica,</p><p>forjada historicamente pelo supereu.</p><p>Assim, se, incialmente, o seupereu teve sua origem na dissolução do</p><p>complexo de Édipo, após a concepção do conceito e pulsão de morte o supereu</p><p>pôde encontrar o seu verdadeiro estatuto na teoria psicanalítica, pois é desde aí</p><p>que as referências ao sentimento de culpa puderam ser abordadas na conjunção</p><p>do sofrimento e prazer.</p><p>Nessa perspectiva, o supereu se constrói em conformidade com o</p><p>supereu dos pais, mas sua constituição é diferente do que inicialmente ele foi</p><p>pensado, pois agora as bases do supereu representam a parte da força da</p><p>pulsão de morte.</p><p>No artigo Inibição, sintoma e angústia, Freud (1926) evidencia o supereu</p><p>sob as formas de resistência ao tratamento analítico, no qual a reação</p><p>terapêutica negativa e o masoquismo se manifestam em face da tirania de um</p><p>supereu sádico sobre o eu. Rudge (2006), nessa perspectiva, enfatiza os</p><p>mesmos fenômenos clínicos expostos por Freud na pulsão de morte. Nesse</p><p>texto, são apresentados sob nova rubrica: resistência do supereu.</p><p>A resistência do supereu tem por característica o sentimento de culpa e</p><p>uma necessidade de autopunição. Por conta disso, se opõe a qualquer</p><p>movimento para o sucesso, o que inclui as possibilidades de melhoras no</p><p>tratamento analítico (Freud 1926, p. 160). Portanto, destaca Rudge, podemos,</p><p>agora, estabelecer uma construção metapsicológica bem mais complexa e livre</p><p>de qualquer apoio biológico, pela qual o psiquismo fica estritamente dependente</p><p>do que ocorre no campo simbólico.</p><p>TEMA 5 – O PROBLEMA ECONÔMICO DO MASOQUISMO</p><p>A partir do texto: O problema econômico do masoquismo, Freud (1924)</p><p>postula o masoquismo originário, ou seja, um aspecto masoquista na base do</p><p>ser do sujeito. Esta base masoquista daria o fundamento de toda moção</p><p>pulsional. Dessa forma, o masoquismo não poderia ser pensado apenas como</p><p>um aspecto parcial da pulsão, isto é, um modo de alcançar satisfação, mas</p><p>assume um caráter estrutural na constituição do sujeito.</p><p>14</p><p>Este novo discernimento acerca do masoquismo originário se alinhava</p><p>com a própria experiência clínica, visto que era observável que, em muitos</p><p>casos, parecia que o sujeito se opunha à cura, mantendo uma tendência ao</p><p>sofrimento.</p><p>Após esta elaboração do masoquismo primário, Freud (1927) toma o</p><p>supereu como núcleo do eu, isto é, o ponto mais arcaico da estruturação egoica,</p><p>ligado à pulsão de morte. Rudge descreve assim a relação do supereu com a</p><p>pulsão de morte:</p><p>O supereu estará inseparavelmente ligado à pulsão de morte: o</p><p>sentimento de culpa e a busca de punição inconscientes, que são</p><p>manifestações da tensão entre eu e supereu, representarão a parte da</p><p>força da pulsão de morte que é "psiquicamente ligada pelo supereu e</p><p>assim se torna reconhecível" (FREUD, 1937/1975, p. 242). Evidencia-</p><p>se assim que a promoção da pulsão de morte, do supereu e do</p><p>masoquismo são passos na elaboração de uma teia teórica que visa</p><p>apreender uma mesma problemática.</p><p>Portanto, a psicanálise pôde relacionar o prazer e a dor, de modo que o</p><p>masoquismo originário pode ser adequado na base dessa edificação, sob a</p><p>supervisão do caráter repressivo do supereu, cuja origem é na pulsão de morte.</p><p>NA PRÁTICA</p><p>Vimos, nesta abordagem, muitos conceitos importantes que estão na</p><p>base da teoria psicanalítica. Agora, chegou a vez de pensá-los na prática. Como</p><p>podemos constatar a pulsão de morte na clínica?</p><p>Por algum tempo, esteve em análise um homem por volta dos seus 30</p><p>anos, que achava todas as mulheres interesseiras e, por conta disso, era</p><p>impossível amá-las, pois, aos seus olhos, elas só queriam ter o que ele poderia</p><p>ofertar em termos materiais.</p><p>— Se todas as mulheres são interesseiras, a sua mãe também é</p><p>interesseira? – perguntou a analista. E, ao incluir a sua mãe como mais uma</p><p>mulher interesseira, ele entra em análise e passa a associar a sua relação com</p><p>as mulheres ao modo como ele sempre se relacionou com ela.</p><p>Ele relata que não gosta de estar perto da mãe, pois ela nunca pareceu</p><p>ter desejado um filho, mas engravidou na esperança de ficar com o seu pai, o</p><p>15</p><p>qual, ao invés disso, se separou definitivamente dela e ficou com a sua</p><p>verdadeira família.</p><p>Assim, sua mãe sempre teve de trabalhar fora, e, desde pequeno, ele</p><p>ficava sozinho em casa. Ela não lhe dava carinho nem se interessava por sua</p><p>vida. Muitas das vezes era trancado dentro de casa e, quando ela chegava, ele</p><p>já estava dormindo.</p><p>Logo que pôde, começou a trabalhar, e o dinheiro que ganhava era para</p><p>sair com as mulheres, mas sem criar nenhum vínculo, porque “mulher não</p><p>presta”. Dessa forma, ele se nomeou um grande sedutor de mulheres, mas</p><p>nunca mantinha um relacionamento sério com elas.</p><p>A dimensão da pulsão de morte que se manifestava pela repetição, sem</p><p>ele se dar conta, encontrava seu apoio na fantasia: “não sou amado pela minha</p><p>mãe”. Assim, ele repetia nas relações amorosas o desejo de ser amado por uma</p><p>mulher – a mãe – mas essa ele não encontrava, então ele não amava.</p><p>A mãe que não o amava – era isso que se repetia em sua fantasia. O</p><p>trabalho de análise opera sobre o discurso do sujeito, de modo cirúrgico, fazendo</p><p>corte e interrogando-o sobre o que ele diz, para assim implicá-lo no seu dizer.</p><p>Ao longo da análise, o analisante foi se apropriando de sua fantasia e</p><p>construindo uma nova relação com a figura feminina.</p><p>FINALIZANDO</p><p>Tópico 1 – A segunda tópica do aparelho psíquico foi formulada para</p><p>ampliar o alcance das funções do aparelho psíquico, pois Freud compreendeu</p><p>que o inconsciente é muito mais amplo e participa do eu e do supereu, pois o</p><p>eu tem seu núcleo no isso, a parte inconsciente do aparelho psíquico.</p><p>Tópico 2 – A partir do artigo Mais além do princípio de prazer, Freud</p><p>conceitualiza mais um princípio regulador do psiquismo, que, ao contrário do</p><p>princípio de prazer, leva o sujeito a repetir experiências que nunca, nem no</p><p>momento do ocorrido, representou prazer, mas sofrimento.</p><p>Tópico 3 – A pulsão de morte ou pulsão de destruição é regida pelo</p><p>princípio de nirvana, cuja tendência é a eliminação total das tensões, portanto</p><p>busca retornar a um estado anterior da vida, um estado inorgânico, uma</p><p>experiência anterior à vida.</p><p>16</p><p>Tópico 4 – Após a concepção da pulsão de morte, o supereu alcançou</p><p>seu verdadeiro estatuto para a psicanálise, pois, ao ser relacionado com a pulsão</p><p>de morte, o supereu pode ser justificado por seu caráter tirano contra o eu.</p><p>Tópico 5 – No texto O problema econômico do masoquismo,</p><p>Freud</p><p>estabelece o masoquismo originário na base da constituição psíquica do sujeito.</p><p>Portanto, o prazer no sofrimento pode ser explicado através dessa relação entre</p><p>a pulsão de morte, supereu e masoquismo originário.</p><p>17</p><p>REFERÊNCIAS</p><p>FREUD, S. Esboço de psicanálise. In: Obras completas de S. Freud. Rio de</p><p>Janeiro: Imago (versão digital), 1940. v. XXIII.</p><p>FREUD, S. Além do princípio de prazer. In: Obras completas de S. Freud. Rio</p><p>de Janeiro: Imago (versão digital), 1920. v. XVIII.</p><p>FREUD, S. O ego e o id. In: Obras completas de S. Freud. Rio de Janeiro:</p><p>Imago (versão digital), 1923. v. XIX.</p><p>FREUD, S. O problema econômico do masoquismo. In: Obras completas de S.</p><p>Freud. Rio de Janeiro: Imago (versão digital), 1924. v. XIX.</p><p>GARCIA-ROZA, L. A. Freud e o Inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,</p><p>2009.</p><p>GARCIA-ROZA, L. A. Matapsicologia freudiana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar</p><p>Ed., 2008. v. 3.</p><p>RUDGE, A. M. Pulsão de morte como efeito de supereu. Ágora: Estudos em</p><p>Teoria Psicanalítica [online]. 2006, v. 9, n. 1, p. 79-89. Disponível em:</p><p><https://doi.org/10.1590/S1516-14982006000100006>. Acesso em: 19 jan.</p><p>2023.</p><p>CONCEITOS FUNDAMENTAIS</p><p>EM PSICANÁLISE</p><p>AULA 5</p><p>Prof.ª Juliana Santos</p><p>2</p><p>CONVERSA INICIAL</p><p>Nesta abordagem, estudaremos o tema da repetição. Como vimos</p><p>anteriormente, a repetição é um fenômeno que foi observado por Freud em sua</p><p>prática clínica. Os pacientes, na maioria dos casos, ao invés de caminhar de</p><p>acordo com o princípio de prazer, repetiam situações que em nenhuma instância</p><p>psíquica haviam sido prazerosas.</p><p>Assim, ele chama de pulsão de morte a tendência que impele o sujeito a</p><p>uma compulsão à repetição. Portanto, a pulsão de morte se opõe à pulsão de</p><p>vida, que objetiva a satisfação sexual. Portanto, a esse novo dualismo pulsional,</p><p>Freud deu a seguinte conotação:</p><p>• Eros → pulsão de vida, equivale às pulsões sexuais, visa a imortalidade</p><p>da vida pela procriação da espécie. A pulsão de vida está ligada a um</p><p>objeto.</p><p>• Tanatos → pulsão de morte, equivale a uma busca de eliminação total</p><p>das tensões, pela qual tende ao retorno a um estado mítico originário, ou</p><p>seja, um estado anterior à vida. A pulsão de morte não está ligada a um</p><p>objeto, sendo uma energia solta no psiquismo.</p><p>Para chegar à compreensão da pulsão de morte, Freud estabeleceu uma</p><p>linha de pensamento que tem início no texto Recordar, repetir e elaborar, de</p><p>1914. Depois, ele publica O estranho, de 1919, em que o tema da repetição é</p><p>abordado por diferentes vieses, até concluir a sua elaboração final com a tese</p><p>da pulsão de morte. Assim, no primeiro tópico vamos esclarecer essa linha de</p><p>pensamento freudiano, a fim de compreender os seus avanços teóricos.</p><p>Em seguida, vamos trazer as contribuições de Lacan, que deram um novo</p><p>rumo à escuta clínica, pelo desenvolvimento do conceito de repetição. Para</p><p>alcançar o nosso objetivo, é importante compreender o modo como Lacan</p><p>aborda o funcionamento psíquico. Assim, antes de seguir, preste atenção em</p><p>nossas explicações preliminares.</p><p>Sabemos que Freud concebeu o funcionamento psíquico através de dois</p><p>modelos do aparelho psíquico: a primeira tópica, dividida em 3 sistemas</p><p>(inconsciente, consciente e pré-consciente), e a segunda tópica, dividida em</p><p>instâncias (Eu, Supereu, com partes conscientes e inconscientes, e Isso, que</p><p>engloba todo o inconsciente, onde se localiza o núcleo das pulsões).</p><p>3</p><p>Por sua vez, Lacan concebeu o funcionamento psíquico através de três</p><p>registros: real, simbólico e imaginário.</p><p>• Real: são as experiências vividas que não passam por simbolização, ou</p><p>seja, não passam pela linguagem. Imagine um bebê quando nasce – ele</p><p>vive muitas experiências que deixam registros em seu psiquismo,</p><p>algumas delas serão simbolizadas, isto é, ganharão um sentido, um dizer</p><p>sobre o vivido; mas outras nunca serão simbolizadas, ficarão no registro</p><p>real.</p><p>• Simbólico: são os registros simbolizados; contudo, esses registros são</p><p>frutos de uma simbolização primeira, de uma lei, no qual o sujeito estará</p><p>referido, trata-se do outro simbólico, lugar da lei e linguagem.</p><p>• Imaginário: são os registros especulares da imagem que produz uma</p><p>realidade psíquica para o sujeito a partir de sua relação com o real e o</p><p>simbólico. Assim, o imaginário é aquilo que envolve o sentido e o</p><p>simbólico, produzindo uma ilusão para o sujeito.</p><p>Não podemos seguir com Lacan sem a concepção desses três registros.</p><p>Afinal, inclusive a repetição, como veremos, apresenta o alcance desses</p><p>registros, de modo que existe algo que se repete que está no registro do real,</p><p>razão pela qual o sujeito nunca poderá se recordar desse acontecimento. Nesse</p><p>sentido, Lacan traz uma nova dimensão para o conceito de repetição na teoria</p><p>psicanalítica. Dito tudo isso, vamos seguir em frente!</p><p>TEMA 1 – REPETIÇÃO NA TEORIA PSICANALÍTICA</p><p>No início de sua prática com a psicanálise, Freud observou que o sujeito</p><p>portava uma verdade que não se oferecia docilmente à consciência. Esse</p><p>material esquecido era exatamente o alvo do tratamento, pois, segundo Freud,</p><p>a verdade da doença era apreendida por detrás desse esquecimento. Portanto,</p><p>toda técnica utilizada até esse momento tinha como finalidade a rememoração.</p><p>No entanto, ao iniciar o tratamento da jovem Dora, Freud se confronta com</p><p>um novo elemento, que seria decisivo para o futuro da psicanálise: a repetição.</p><p>No texto Recordar, repetir e elaborar, Freud (1996c, p. 93), declara: “o paciente</p><p>não recorda coisa alguma do que esqueceu e reprimiu, mas expressa-o pela</p><p>atuação ou atua-o (acts it out). Ele o reproduz não como lembrança, mas como</p><p>ação repete-o, sem, naturalmente, saber que o está repetindo”. A repetição</p><p>4</p><p>passa a ser o novo referencial da escuta clínica, e nesse quadro a transferência</p><p>ganha uma nova perspectiva (Freud, 1996c, p. 93):</p><p>Logo percebemos que a transferência é, ela própria, apenas um</p><p>fragmento da repetição e que a repetição é uma transferência do</p><p>passado esquecido, não apenas para o médico, mas também para</p><p>todos os outros aspectos da situação atual. Devemos estar preparados</p><p>para descobrir, portanto, que o paciente se submete à compulsão, à</p><p>repetição, que agora substitui o impulso a recordar, não apenas em</p><p>sua atitude pessoal para com o médico, mas também em cada</p><p>diferente atividade e relacionamento que podem ocupar sua vida...</p><p>Freud foi o primeiro a pensar o aspecto da repetição como um fenômeno</p><p>clínico cuja fonte está na constituição do sujeito. Os protótipos infantis da relação</p><p>de amor mãe-bebê serão posteriormente repetidos pelo sujeito em sua vida</p><p>amorosa e até mesmo na dinâmica de transferência. Garcia-Roza (1986, p. 23)</p><p>declara:</p><p>O que se repete são protótipos infantis, de tal forma que o analista, ao</p><p>ser capturado nestas repetições, toma o lugar da imago paterna ou</p><p>materna, dando lugar à transferência. Essa compulsão a repetir</p><p>padrões arcaicos substitui a recordação, o que faz com que Freud</p><p>identifique a repetição como uma resistência: "Quanto maior a</p><p>resistência, mais extensivamente a atuação (acting out) (repetição)</p><p>substituirá o recordar”.</p><p>A repetição, portanto, ocupa um lugar de resistência que impede a</p><p>associação livre, pois o sujeito atua sem saber que o faz. Por esse mesmo</p><p>motivo, o material esquecido não é recuperado por meio de lembranças.</p><p>1.1 O estranho</p><p>Cinco anos depois, a questão da repetição seria retomada no artigo O</p><p>estranho (Das Unheimlich). Freud (1996a, p. 220) aponta para um novo aspecto</p><p>da repetição, o assustador familiar: "O estranho é aquela categoria aterrorizante</p><p>que remete ao que é conhecido, de velho, e há muito familiar".</p><p>O ponto principal desse texto é o seguinte: a categoria de coisas ou</p><p>acontecimentos que provoca um estranhamento, ou seja, produz angústia, tem</p><p>uma proximidade ao que é familiar, mas que permaneceu oculto.</p><p>Freud quer</p><p>dizer com isso que aquilo que é absolutamente novo, ou seja, que jamais se deu</p><p>na experiência, não pode ser temido. Nesse sentido, o estranho (Unheimlich) é</p><p>algo que se repete. Garcia-Roza (1986, p. 25) declara:</p><p>O estranho é algo que retorna, algo que se repete, mas que ao mesmo</p><p>tempo se apresenta como diferente. O Unheimlich é uma repetição</p><p>diferencial e não uma repetição do mesmo. Freud refere essa repetição</p><p>5</p><p>à própria natureza das pulsões, "uma compulsão poderosa o bastante</p><p>para prevalecer sobre o princípio de prazer".</p><p>Ao elaborar sobre a ideia do estranho, Freud nos apresenta uma pesquisa</p><p>com diversas traduções da palavra Unheimlich: no francês é inquiétant, sinistre;</p><p>no espanhol é sinistro; e no árabe e hebreu o estranho tem o mesmo sentido de</p><p>demoníaco. A definição que Freud sublinha é a de Schelling, como algo que</p><p>deveria ter permanecido secreto e oculto, mas veio à luz (Freud, 1996a, p. 278).</p><p>Portanto, a categoria do estranho explicita, em sua terminologia, aquilo que</p><p>Freud define como o estranho familiar.</p><p>No mesmo artigo, Freud faz uma análise do conto “Homem da areia”, de</p><p>Hoffman, que conta a história de Nataniel, uma criança cuja mãe, na hora de</p><p>colocá-la na cama para dormir, dizia: “vá pra cama, porque o homem de areia</p><p>está chegando”.</p><p>Nataniel, sempre curioso a respeito dessa personalidade, certa vez</p><p>perguntou para a babá sobre a veracidade do homem de areia. Ela confirmou a</p><p>sua existência, declarando que o homem de areia é perverso e gosta de jogar</p><p>areia nos olhos das crianças até que eles saltem para fora da cabeça.</p><p>Nataniel ficou muito impressionado com a história contada pela babá. Ele</p><p>passou a associar a figura do homem de areia ao advogado Copélio, um homem</p><p>estranho que visitava o seu pai todas as noites.</p><p>Para o azar de Nataniel, uma vez foi flagrado espionando o seu pai no</p><p>escritório com Copélio. Depois de um ano, o seu pai morreu em uma explosão</p><p>durante uma dessas visitas, o que o deixou bastante perturbado.</p><p>Anos depois, Nataniel se tornaria um estudante universitário. Foi morar</p><p>numa cidade universitária, onde adquiriu o hábito de espionar a casa do</p><p>professor Spalanzani, que morava em frente à sua casa. Certa vez, com uma</p><p>luneta, ele observava a filha do professor, a jovem Olimpia. Era uma moça</p><p>bonita, mas estranha. Nataniel se apaixonou por ela, porém Olimpia era, na</p><p>verdade, uma boneca criada pelo professor, cujos olhos tinham sido colocados</p><p>por Copélio, o homem de areia.</p><p>Para Freud, a estranheza do conto se encontra em dois pontos: o ato de</p><p>arrancar os olhos e a presença da boneca, que fomenta em Nataniel a dúvida</p><p>sobre a sua natureza. Freud afirma que a incerteza intelectual sobre o autômato</p><p>(a boneca) é irrelevante frente à estranheza do ato de arrancar os olhos, que</p><p>pode ser relacionado ao terror da castração sentido pelas crianças. Nesse</p><p>6</p><p>sentido, Freud estabelece uma ligação com o sentimento de estranheza ao</p><p>recalcado:</p><p>Em primeiro lugar, se a teoria psicanalítica está certa ao sustentar que</p><p>todo afeto pertencente a um impulso emocional, qualquer que seja a</p><p>sua espécie, transforma-se, se reprimido, em ansiedade, então, entre</p><p>os exemplos de coisas assustadoras, deve haver uma categoria em</p><p>que o elemento que amedronta pode mostrar-se ser algo reprimido que</p><p>retorna. Essa categoria de coisas assustadoras constituiria então o</p><p>estranho. [...] Em segundo lugar, se é essa, na verdade, a natureza</p><p>secreta do estranho, pode-se compreender por que o uso linguístico</p><p>estendeu das Heimliche (doméstico, familiar) para o seu oposto, das</p><p>Unheimliche; pois esse estranho não é nada novo ou alheio, porém</p><p>algo que é familiar e há muito estabelecido na mente, e que somente</p><p>se alienou desta através do processo da repressão. (Freud, 1996a, p.</p><p>300)</p><p>Portanto, nesse texto Freud estabelece uma relação entre o sentimento</p><p>de estranhamento com uma repetição involuntária, ou seja, uma compulsão a</p><p>repetir, pelo que o estranho é apenas algo que se repete. Esse ponto é essencial</p><p>para elucidar a noção de real na teoria lacaniana. Portanto, guardem com</p><p>cuidado a noção de estranho familiar.</p><p>No ano seguinte, Freud (1920) alinhou as suas elaborações a respeito da</p><p>repetição, chegando a uma formulação final no texto Mais além do princípio de</p><p>prazer, onde concebe a noção de pulsão de morte, considerando a manifestação</p><p>da compulsão à repetição.</p><p>TEMA 2 – REPETIÇÃO DE FREUD A LACAN</p><p>Lacan considera o conceito de repetição como um dos pilares</p><p>fundamentais da psicanálise, pois as suas dimensões abrangem a teoria e a</p><p>clínica. No entanto, Lacan busca primeiramente desfazer o mal-entendido, pois</p><p>percebe que a repetição, em sua época, estava sendo tomada pelo mesmo viés</p><p>da transferência. Garcia-Roza (1986, p. 22) sublinha esse fato:</p><p>Lacan observa que a afirmação segundo a qual a transferência é uma</p><p>repetição tornou-se lugar comum, e que embora a repetição esteja</p><p>presente na transferência, e que foi a propósito desta última que Freud</p><p>abordou o tema da repetição. "o conceito de repetição nada tem a ver</p><p>com o de transferência".</p><p>O que Lacan sublinha aqui é que na transferência ocorre uma</p><p>repetição. O que se repete só faz sentido em uma relação transferencial com o</p><p>analista. Portanto, são conceitos diferentes. Em seu seminário Os quatro</p><p>7</p><p>conceitos fundamentais da psicanálise, Lacan os distingue e os coloca em série</p><p>ao lado do inconsciente e da pulsão.</p><p>2.1 Desenvolvimento da teoria da repetição</p><p>Provavelmente você já ouviu que “nada se cria, tudo se copia!”.</p><p>Analisando brevemente a história da humanidade, podemos concluir que</p><p>estamos sempre a caminho de repetir o mesmo, como se estivéssemos em uma</p><p>roda gigante, fadados a passar pelo mesmo lugar a cada volta.</p><p>A noção de repetição já estava na filosofia. É possível encontrar, em</p><p>ditados populares, frases que fazem referência à repetição, por exemplo: “A</p><p>felicidade é o desejo pela repetição”; “A vida é um eterno dejà-vu”; “Viemos do</p><p>pó e ao pó voltaremos”...</p><p>A repetição, portanto, se coloca para todos, no discurso social, como um</p><p>saber. Freud se dedicou a criar uma teoria que pudesse conceber um sentido</p><p>lógico para a compreensão desse fenômeno tipicamente humano. Assim, o</p><p>sentido mais radical de repetição foi alcançado através do conceito de pulsão de</p><p>morte, a partir do qual Freud apresentou uma tendência a retornar ao estado</p><p>inorgânico submetido ao princípio de nirvana.</p><p>Em seu Seminário 2, O eu na teoria de Freud (1954-55), Lacan faz uma</p><p>releitura do texto Mais além do princípio de prazer, estabelecendo uma relação</p><p>simbólica à pulsão de morte. Afinal, para Lacan, Freud, quando estabeleceu a</p><p>pulsão de morte, estava vislumbrando na verdade uma morte simbólica do</p><p>sujeito, e não a morte de alcance biológico. Coutinho Jorge (2010, p. 62), em</p><p>referência a essa passagem, define que se trata de uma morte da “vivência</p><p>humana, do intercâmbio humano, da intersubjetividade”, pois há algo no humano</p><p>que coage o sujeito a sair dos limites da vida.</p><p>Portanto, Lacan apreende o tema da pulsão de morte pelo registro da</p><p>ordem simbólica, isto é, pela dimensão da linguagem, por meio da qual, o registro</p><p>de um mais além da vida só poder ser inscrito pela linguagem. Coutinho Jorge</p><p>(2010, p. 63-64), descreve:</p><p>O próprio ser humano se acha, em parte, fora da vida, ele participa do</p><p>instinto [pulsão] de morte. É só daí que ele pode abordar o registro da</p><p>vida. Como a ordem simbólica apresenta uma relação de exterioridade</p><p>em relação ao sujeito, Lacan a situa como a própria pulsão de morte,</p><p>vendo nesta uma relação com o símbolo, “com esta fala que está no</p><p>sujeito sem ser a fala do sujeito”.</p><p>8</p><p>Portanto, a repetição como manifestação da pulsão de morte, no início</p><p>dos ensinamentos de Lacan, está relacionada ao vigor da ordem simbólica, ou</p><p>seja, o que se repete é algo que foi vivido e censurado, e que por isso participa</p><p>do registro simbólico de</p><p>forma autonômica. “A linguagem está relacionada com</p><p>a pulsão de morte na medida em que ela determina o ser falante mais além de</p><p>sua condição de vivente” (Jorge, 2010, p. 62).</p><p>No entanto, a partir do seminário 11, Lacan (2008) introduz um novo</p><p>entendimento ao conceito de repetição. Se até o momento a repetição estava</p><p>associada ao rigor do registro simbólico, nesse momento de seu ensino, Lacan</p><p>demonstra que existe algo que se repete e que jamais alcançará a lembrança;</p><p>para além do simbólico, a repetição tem a sua origem no registro real. “O real é</p><p>aqui o que retorna sempre ao mesmo lugar – a esse lugar onde o sujeito, na</p><p>medida em que ele cogita onde, a res cogitans, não o encontra” (Lacan, 2008, p.</p><p>55). Portanto, a repetição, pensada a partir do registro do real, traz uma nova</p><p>dimensão ao aspecto da repetição, pois estaria para além daquilo que o sujeito</p><p>repete como resistência à lembrança, tornando-se uma nova categoria de</p><p>repetição, associada ao O estranho de Freud, por se tratar de algo familiar, ainda</p><p>que indizível.</p><p>TEMA 3 – REPETIÇÃO COMO RESPOSTA DO REAL</p><p>Portanto, a partir do seminário 11, a repetição ganha a dimensão do real.</p><p>Bruce Fink (1997) sublinha que o real da repetição é justamente aquilo que não</p><p>consegue ser encontrado ou rememorado, que está excluído da cadeia</p><p>significante, ainda que faça girar a cadeia significante ao redor: “O analisando dá</p><p>voltas e mais voltas numa tentativa de articular o que parece estar em questão,</p><p>mas não consegue localizá-lo, a menos que o analista aponte o caminho”.</p><p>No texto A carta roubada, de 1956, Lacan demonstra o funcionamento</p><p>significante e sua insistência na cadeia significante, ou seja, a repetição situada</p><p>na ordem simbólica. A carta roubada é uma história escrita em 1844 por Edgar</p><p>Allan Poe. Conta o sucesso do detetive Dupin na recuperação de uma carta</p><p>comprometedora endereçada à rainha. A carta havia sido furtada dos aposentos</p><p>reais na presença do casal real pelo chantagista ministro D.</p><p>A investigação acerca da carta se configura através da modulação</p><p>escópica dos olhares dos envolvidos, pois foi assim que o detetive Dupin</p><p>conseguiu localizar a carta escondida na casa do ministro D, enxergando aquilo</p><p>9</p><p>que nenhuma visão inquieta tinha visto até então. Afinal, a carta roubada havia</p><p>sido deixada exposta justamente para enganar os olhares de quem a procurava.</p><p>Contudo, Dupin, ao se dar conta do plano, dá o troco na mesma moeda,</p><p>surrupiando a carta do surrupiador e deixando uma marca registrada de seu</p><p>gesto exitoso.</p><p>A carta, portanto, é o agente da história, pelo qual todos os personagens</p><p>se posicionam, ordenando três tempos e três olhares:</p><p>• O olhar que nada vê;</p><p>• O olhar que vê que o primeiro nada vê e se engana por ter encoberto o</p><p>que ele oculta;</p><p>• O olhar que vê que os olhares anteriores deixam a descoberto o que é</p><p>para esconder.</p><p>Através dessa analogia, Lacan aponta que a linguagem é o lugar do</p><p>equívoco, ou seja, a fala falada se distancia da comunicação e da informação,</p><p>assim como o olhar de quem está de posse do olhar da carta, que perde o olhar</p><p>2 e 3.</p><p>Assim, o sentido se volta ao mesmo lugar, ou seja, à repetição daquilo</p><p>que se repete. O sujeito, na medida em que pensa, não o encontra, pois está</p><p>radicalmente excluído, por se tratar de uma vivência para além da linguagem.</p><p>Logo, para Lacan, a repetição envolve o "impossível de pensar" e o "impossível</p><p>de dizer", mas que insiste e retorna à cadeia significante.</p><p>Isso significa que o sujeito não consegue estar de posse da totalidade,</p><p>pois existe algo a mais na experiência, que está radicalmente excluído, ainda</p><p>que essa totalidade não se exclui na repetição. Ou seja, como a ordem simbólica</p><p>apresenta uma relação de exterioridade em relação ao sujeito, Lacan a situa</p><p>como a própria pulsão de morte, enxergando uma relação com o símbolo, “com</p><p>esta fala que está no sujeito sem ser a fala do sujeito” (Jorge, 2010, p. 64). Isto</p><p>é, um para além da linguagem.</p><p>3.1 Tiquê e Autômaton</p><p>Em Lacan, podemos situar dois aspectos da repetição, apontados no</p><p>seminário 11: o autômaton, associado ao simbólico, e a tiquê, associada ao</p><p>real. Esses termos foram emprestados do vocabulário de Aristóteles sobre</p><p>princípios, na chamada teoria das quatro causas, exposta no Livro I da</p><p>10</p><p>Metafísica, com respeito aos princípios ou fatores explicativos das coisas. O</p><p>filósofo articula o tema em um conjunto mais amplo, considerando as distinções</p><p>fundamentais de sua filosofia: essência-acidente, ato-potência e matéria-forma,</p><p>no sentido de mostrar que a filosofia consiste fundamentalmente em uma</p><p>indagação de princípios.</p><p>Nesse contexto, as noções de tyche e automaton estão associadas à</p><p>noção de acaso, com referência a algo que acontece sem inteligibilidade da</p><p>razão humana. A tyche designa uma causa oculta para a razão humana,</p><p>enquanto o automaton refere-se uma causa acidental (Garcia-Roza, 1986, p.</p><p>39).</p><p>Lacan usa esses termos para definir os aspectos da repetição. O</p><p>autômaton, como explica Fink (1997), corresponde ao desdobramento</p><p>automático, no inconsciente, da cadeia significante (como o alinhamento dos</p><p>signos que aparecem na rede α, β, ϒ, δ). Contudo, “o real está para além do</p><p>autômaton, do retorno, da volta, da insistência dos signos aos quais nos vemos</p><p>comandados pelo princípio do prazer" (Lacan, 2008).</p><p>Portanto, segundo Lacan, o autômaton está articulado ao simbólico, cuja</p><p>repetição configura o seu aspecto de insistência automática das redes</p><p>significantes, ou seja, de “insistência dos signos”. Garcia-Roza (1986, p. 42-43)</p><p>complementa essa noção de insistência dos signos:</p><p>A insistência dos signos de que Lacan nos fala é a própria insistência</p><p>do desejo; a articulação temporal entre os significantes constituindo-se</p><p>como presença do desejo cujo objeto absoluto falta sempre. O objeto</p><p>presente, ilusão do objeto absoluto, é o que constitui o imaginário,</p><p>marcado pela decepção, pela negatividade, pela castração. Entre</p><p>esses dois objetos – o presente ilusório e o ausente absoluto – é que</p><p>vamos situar a função do real.</p><p>No real, temos a tiquê, que está para além do autômaton, pois nela está</p><p>marcado o encontro com a falta. Afinal, o que se repete sob o jugo da tiquê está</p><p>para além dos jogos dos signos. O seu retorno (no autômaton), por sua vez, está</p><p>para além da fantasia. Ou seja, para além do que é regulado pelo princípio de</p><p>prazer (o autômaton) há o real.</p><p>Assim, o real que se repete é a função que caracteriza a tiquê. O real se</p><p>situa entre dois objetos – o presente ilusório e o ausente absoluto. Bruce Fink</p><p>(1997, p. 241-42), traz um esclarecimento sobre esse assunto:</p><p>O real aqui é o nível de causalidade, o nível daquilo que interrompe o</p><p>funcionamento tranquilo do autômaton, da seriação automática, sujeita</p><p>à lei regular dos significantes do sujeito no inconsciente. Ao passo que</p><p>11</p><p>os pensamentos do analisando estão destinados a perder sempre o</p><p>alvo do real, conseguindo apenas circular ou gravitar em torno dele, a</p><p>interpretação analítica pode atingir a causa, levando o analisando a um</p><p>encontro com o real: tiquê. O encontro com o real não está situado no</p><p>nível do pensamento, mas no nível onde a "fala oracular" produz não-</p><p>senso, aquilo que não pode ser pensamento.</p><p>Desse modo a repetição, como apresentada por Lacan, está articulada</p><p>em duas vertentes: autômaton e tiquê, que se manifestam, para o sujeito,</p><p>indissociável, entre o simbólico e real. A repetição é o fenômeno clínico da</p><p>manifestação da pulsão.</p><p>TEMA 4 – PULSÃO NOS ENSINOS DE LACAN</p><p>Freud criou o conceito de pulsão para abordar a sexualidade humana.</p><p>Porém, de acordo com o que vimos, o verdadeiro estatuto da pulsão só foi</p><p>introduzido com a noção de pulsão de morte, como declara Jorge (2010, p. 121):</p><p>“tudo se passa como se o conceito de pulsão fosse sendo construído na direção</p><p>desse ponto de conclusão que é a pulsão de morte”.</p><p>Existia</p><p>um esforço para isolar a parte patológica da estrutura, mas Freud</p><p>teve que admitir certa dificuldade com esse trabalho, pois reconheceu que as</p><p>duas espécies de pulsão (vida e morte) sempre se apresentam amalgamadas,</p><p>ou seja, nunca estão em estado puro, mas sim intrincadas uma na outra. Nesse</p><p>sentido, não haveria a possibilidade de atestar a patologia para uma delas, a não</p><p>ser no desintrincamento dessa fusão, pelo qual a pulsão de morte se</p><p>apresentaria em moldes destrutivos para a vida.</p><p>Assim, a pulsão de morte, em alguns momentos dos escritos freudianos,</p><p>também é chamada de pulsão de destruição, pois tende a voltar ao estado de</p><p>não ser. Lacan (2008), no ensino XIII do seminário 11, destaca a função do</p><p>impossível da pulsão de morte, situando o real: “a questão sobre o possível, e o</p><p>impossível não é forçosamente o contrário do possível, ou bem ainda, porque o</p><p>oposto do possível é seguramente o real, seremos levados a definir o real como</p><p>o impossível”.</p><p>Pelo fato de Freud não ter nomeado uma energia específica da pulsão de</p><p>morte, pois a libido é a única energia das pulsões, no pretenso dualismo pulsional</p><p>freudiano podemos situar desde aí um monismo. Nesse sentido, Lacan dará a</p><p>seguinte interpretação a respeito das pulsões: toda pulsão é um seguimento</p><p>da pulsão de morte.</p><p>12</p><p>Contudo, Lacan não põe em xeque o dualismo freudiano, pois definiu</p><p>desde aí que a pulsão pode assumir diferentes qualidades. Assim, Jorge (2010,</p><p>p. 31) destaca a característica fundamental que estabelece um denominador</p><p>comum entre a pulsão de vida e a pulsão de morte: o seu caráter conservador.</p><p>Freud menciona então duas tendências que, embora aparentemente</p><p>se oponham, são fruto dessa mesma característica comum: tendências</p><p>conservadoras que incitam à repetição e tendências cuja ação se</p><p>manifesta através de formação nova e evolução progressiva. Trata-se,</p><p>para ele, de levar às últimas consequências a hipótese segundo a qual</p><p>todas as pulsões se manifestam através da tendência a reproduzir o</p><p>que já existe. Como já disse o poeta, “Lar é de onde se vem”.</p><p>No seminário VII, A ética da psicanálise, Lacan (2017) demonstra outra</p><p>dimensão da pulsão de morte, que está para além da vontade de destruição,</p><p>considerando a vontade de recomeço, do corte, que abre para o novo,</p><p>convergindo com a pulsão de vida, mas para outro sentido. Continho Jorge</p><p>(2010) aborda o tema a partir da figura a seguir.</p><p>Figura 1 – Pulsão e ser</p><p>Fonte: elaborado com base em Jorge, 2010.</p><p>13</p><p>Ou seja, a pulsão de morte é o que leva o sujeito e o que produz corte em</p><p>uma cadeia significante; é o que produz o novo ao invés do mesmo, em oposição</p><p>ao caminho feito pela pulsão de vida.</p><p>4.1 Toda pulsão é pulsão de morte</p><p>Lacan inscreve o circuito da pulsão por um mesmo denominador, como</p><p>descreve Freud: “uma força constante rumo a um alvo, à satisfação”. Porém, a</p><p>satisfação da pulsão é impossível de ser obtida, pois o objeto de satisfação plena</p><p>é o objeto que Freud chamou das Ding – “a coisa”. Ou seja, ele nunca existiu,</p><p>pois trata-se de um objeto suposto pelo aparelho psíquico. Dessa forma, o</p><p>máximo de satisfação que a pulsão é capaz de obter se liga aos objetos que</p><p>oferecemos, mas logo ela quer outro e outro, sempre em busca de outra coisa,</p><p>pois o que a pulsão quer é das Ding, mas o que recebe é o objeto a. Jorge</p><p>(2010) nos apresenta dois gráficos que nos ajudam a compreender que toda</p><p>pulsão é pulsão de morte.</p><p>Figura 2 – Pulsão: vida e morte</p><p>Fonte: elaborado com base em Jorge, 2010.</p><p>Figura 3 – Pulsão sexual e de morte</p><p>Fonte: Elaborado com base em Jorge, 2010.</p><p>Oferecemos à pulsão os objetos para a sua satisfação, ainda que parcial,</p><p>mas esses objetos em seguida já não a satisfazem, e ela passa a querer outro</p><p>objeto: “Quero outro, quero outra coisa”. Afinal, o que de fato a pulsão visa é das</p><p>Ding, mas o que ela recebe é o objeto a. “E a nossa vida cotidiana é feita disso,</p><p>a vida humana é regida por esse vetor, tendendo a obter a absoluta satisfação,</p><p>impossível de ser obtida. Esse é o dramático, se não o trágico, da existência</p><p>humana” (Jorge, 2010, p. 134).</p><p>14</p><p>TEMA 5 – OBJETO DA PULSÃO</p><p>Vimos então que a pulsão se satisfaz parcialmente como objeto a, mas o</p><p>que ela almeja de fato é das Ding. Mas o que são esses objetos da pulsão?</p><p>Vamos ver a resposta dessa questão ao longo do curso, pois não se trata de</p><p>uma resposta simples. Ela envolve conceitos variados, por se tratar de um objeto</p><p>que faz parte da experiência singular de cada sujeito.</p><p>Freud introduz o conceito de das Ding no Projeto (Freud, 1996b). Das Ding</p><p>significa “a coisa”, ou seja, é aquilo que nos é oferecido, mas não é coisa</p><p>nenhuma, pois não se trata de algo em si. Das Ding se inscreve no psiquismo</p><p>como algo que já esteve de posse do sujeito e foi perdido. Por tanto, a partir de</p><p>Lacan (1960), das Ding não estará no campo da memória, nem da percepção,</p><p>pois a sua relação se encontra com o objeto, a mãe. Assim, das Ding é da ordem</p><p>daquilo que não é predicável, de modo que se mantém igual, enquanto perdido.</p><p>Eu costumo pensar em das Ding como sendo a totalidade da experiência</p><p>da relação materna (mãe-bebê), algo dessa relação que escapa, permanecendo</p><p>como uma incógnita para o ser do sujeito (o que foi isso?), deixando um espaço</p><p>faltoso sobre aquilo que um dia foi pleno em si.</p><p>Para dar conta dessa falta inapreensível, pois ela apenas está lá, o sujeito,</p><p>barrado pela lei, constrói, em sua “inocência”, um objeto para se agarrar. Assim,</p><p>o objeto a estará plantado em sua fantasia para sustentar o seu desejo. No</p><p>seminário VI, Lacan (2016, p. 100), conceitualiza o objeto a como o objeto que</p><p>se vincula à pulsão:</p><p>É porque ela se situa aí, essa articulação do sujeito com o objeto, que</p><p>o objeto ocorre ser essa alguma coisa que não é o correlativo e o</p><p>correspondente de uma necessidade do sujeito, mas essa alguma</p><p>coisa que suporta o sujeito precisamente no momento em que ele tem</p><p>de fazer face, se podemos dizer, à sua existência, que suporta o sujeito</p><p>na sua existência, na sua existência no sentido mais radical, ou seja</p><p>justamente que ele existe na linguagem; quer dizer que ele consiste</p><p>em qualquer coisa que está fora dele, em algo que ele não pode agarrar</p><p>na sua natureza própria de linguagem senão no momento preciso em</p><p>que ele, como sujeito, se deve apagar, se desvanecer, desaparecer</p><p>atrás de um significante, o que é precisamente o ponto, se pode-se</p><p>dizer, 'pânico' em torno do qual ele tem de se agarrar a algo – e é</p><p>justamente ao objeto enquanto objeto do desejo que ele se agarra.</p><p>O conceito de objeto a, nos ensinos de Lacan, ganhará novas dimensões,</p><p>mas em sua relação com das Ding, podemos dizer que é aquilo que faz frente à</p><p>falta inscrita no psiquismo, por meio do qual o encontro com o objeto é sempre</p><p>um reencontro.</p><p>15</p><p>NA PRÁTICA</p><p>Agora, traremos exemplos clínicos para complementar o entendimento da</p><p>teoria. Para vislumbrar a repetição como um fenômeno presente em experiência</p><p>clínica, vamos demarcar alguns recortes.</p><p>Na escolha de objeto de amor, podemos verificar que o sujeito busca,</p><p>inconscientemente, resgatar em seus parceiros algo de sua primeira relação</p><p>amorosa, ou seja, mãe-bebê. Mesmo que para a menina a referência imaginária</p><p>ao pai possa ser mais evidenciada, em análise, impreterivelmente encontramos</p><p>algo dessa relação que retorna, e, uma nova relação de amor.</p><p>Outro exemplo de repetição pode ser evidenciado na própria transferência</p><p>com o analista. Em alguns casos, o paciente, às vezes na entrevista, traz como</p><p>queixa: “Eu não dou continuidade a nada, tudo que eu começo eu não termino”.</p><p>Tal fala pode ser um prenúncio: ele está dizendo que logo vai sair da análise.</p><p>Portanto, cabe ao analista, em momento oportuno, trazer essa questão para a</p><p>análise. Certa vez, uma analisante tinha uma queixa como essa. Quando ela</p><p>começou a faltar, o tema foi trazido e a questão da falta de continuidade</p><p>último não</p><p>anularia o primeiro. Em última análise, ainda que o princípio de realidade garanta</p><p>a obtenção de satisfação no real, no psiquismo o princípio de prazer continua</p><p>reinando no campo da fantasia.</p><p>2.2 Princípio de prazer – Princípio de constância</p><p>O ponto de vista econômico do psiquismo, ou seja, a busca por manter o</p><p>nível de excitação baixa é regulada pelo princípio de constância. Esse princípio</p><p>está intimamente ligado ao princípio de prazer, já que o prazer é compreendido</p><p>como uma descarga de tensão, e o princípio de constância busca manter</p><p>constante dentro de si a soma de excitação. Laplanche e Pontalis (2001, p. 355)</p><p>descrevem o princípio de constância da seguinte forma:</p><p>Princípio enunciado por Freud, segundo qual o aparelho psíquico tende</p><p>a manter a nível tão baixo ou, pelo menos, tão constante quanto</p><p>possível a quantidade de excitação que contém. A constância é obtida,</p><p>por um lado, pela descarga da energia já presente e, por outro, pela</p><p>evitação do que poderia aumentar a quantidade de excitação e pela</p><p>defesa contra esse aumento.</p><p>Portanto, o princípio de constância aciona o mecanismo de defesa e</p><p>descarrega os aumentos de tensão de origem interna e evita excitações</p><p>externas.</p><p>2.3 O princípio de inércia</p><p>O princípio de inércia foi apresentado por Freud no Projeto (1895). Ele</p><p>não reaparecerá nos textos posteriores, contudo o tomaremos para inserir a</p><p>origem dos pensamentos metapsicológicos de Freud em suas primeiras</p><p>elaborações.</p><p>Ele descreve o princípio de inércia por funcionamento de arco reflexo, no</p><p>qual a quantidade de excitação recebida pelo neurônio sensitivo deve ser</p><p>interiormente descarregada na extremidade motora. A tendência essencial deste</p><p>7</p><p>princípio é se livrar da quantidade de energia externa (Q). Contudo, Freud</p><p>justifica que esse princípio não pode atuar sozinho, pois, se toda energia fosse</p><p>descarregada, não sobraria nada para poder exercer ações específicas</p><p>destinadas a satisfazer as exigências decorrentes dos estímulos endógenos</p><p>(que se formam no interior, como a fome). Nesse sentido, o aparelho psíquico é</p><p>obrigado a reservar uma quantidade de energia, se opondo ao princípio de</p><p>inércia. Esse funcionamento corresponde a um processo secundário, que Freud</p><p>nomeia de lei de constância.</p><p>Desse modo, podemos verificar uma semelhança entre o princípio de</p><p>inércia e o princípio de prazer, como também uma equivalência da lei de</p><p>constância com o princípio de constância, que, a partir do texto da Interpretação</p><p>do sonho (1900), vão se tornando conceitos metapsicológicos, os quais fundam</p><p>a base da teoria psicanalítica.</p><p>TEMA 3 – A EXPERIÊNCIA DE DESAMPARO E SATISFAÇÃO</p><p>Outro ponto que não podemos deixar de abordar para compreender os</p><p>processos de funcionamento psíquico é o sentimento de desamparo. Não é difícil</p><p>chegarmos a um consenso de que o ser humano é o mais vulnerável dentre</p><p>todas as espécies, pois, desde seu nascimento até o decorrer da manutenção</p><p>de sua vida, ele é marcado por sua precariedade constitucional que estará</p><p>sempre presente e o levará a retornar ao seu estado de desamparo.</p><p>No Projeto (1895), Freud nos confronta com essa experiência primária do</p><p>desamparo e da satisfação, que, posteriormente, estará em vários conceitos</p><p>teóricos da psicanálise. Trata-se da confabulação sobre a vivência humana em</p><p>seu início de vida, em que a criança recém-nascida, ao ter uma grande soma de</p><p>excitação endógena (fome) em seu organismo, terá necessidades de</p><p>descarregar e ter suas necessidades satisfeitas. Contudo, devido à sua</p><p>imaturidade, ela não tem possibilidade de realizar sozinha tal função,</p><p>necessitando, assim, 100% do outro para se manter vivo. Freud (1895, p. 370)</p><p>explica assim:</p><p>Nesse caso, o estímulo só é passível de ser abolido por meio de uma</p><p>intervenção que suspenda provisoriamente a descarga de Q no interior</p><p>do corpo; e uma intervenção dessa ordem requer a alteração no mundo</p><p>externo (fornecimento de víveres, aproximação do objeto sexual), que,</p><p>como ação específica, só pode ser promovida de determinadas</p><p>maneiras. O organismo humano é, a princípio, incapaz de promover</p><p>essa ação específica. Ela se efetua por ajuda alheia, quando a atenção</p><p>8</p><p>de uma pessoa experiente é voltada para um estado infantil por</p><p>descarga através da via de alteração interna. Essa via de descarga</p><p>adquire, assim, a importantíssima função secundária da comunicação,</p><p>e o desamparo inicial dos seres humanos é a fonte primordial de todos</p><p>os motivos morais.</p><p>Portanto, a imaturidade humana é, em primeiro lugar, fonte de valores</p><p>morais, pelo qual Freud distingue nesse texto uma forma do estado desamparo,</p><p>no qual o bebê recém-nascido é incapaz de dominar as excitações internas e</p><p>externas, de modo que este necessita da intervenção de um outro que possa o</p><p>proteger contra as forças externas e internas, razão pela qual este último se</p><p>tornará o seu primeiro objeto de amor.</p><p>Essa intervenção específica do outro é a função que Lacan nomeara em</p><p>seu ensino de Outro primordial, lugar para quem executa a função materna,</p><p>não necessariamente a mãe. Essa ajuda externa produz uma marca de</p><p>satisfação psíquica, que inaugura o funcionamento do aparelho psíquico, pois,</p><p>uma vez que o pequeno e imaturo indivíduo volta a ter uma alta carga de</p><p>estímulos, produzindo desprazer, suas memórias serão ativadas, e novamente</p><p>ele buscará reviver a experiência de satisfação, colocando em função os</p><p>princípios que regem o psiquismo.</p><p>Quando a pessoa que ajuda executa o trabalho da ação específica no</p><p>mundo externo para o desamparado, este último fica em posição, por</p><p>meio de dispositivos reflexos, de executar imediatamente no interior de</p><p>seu corpo a atividade necessária para remover o estímulo endógeno.</p><p>A totalidade do evento constitui então a experiência de satisfação, que</p><p>tem as consequências mais radicais no desenvolvimento das funções</p><p>do indivíduo. (Freud, 1895, p. 370)</p><p>Assim, na tentativa de reproduzir a primeira experiência de satisfação, ele</p><p>alucinará o objeto da satisfação. Isso não resolverá o seu problema, então o</p><p>recém-nascido buscará pela motricidade (exemplo: agitação das perninhas) o</p><p>alivio da tensão, mas não ocorrerá, pois, para satisfazer os estímulos endógenos</p><p>de urgências vitais, as descargas motoras não são eficientes. Mas, conforme é</p><p>expresso por Garcia-Roza (2008), em se tratando de um bebê humano, logo</p><p>esses movimentos serão lidos como uma demanda ao Outro.</p><p>Se um recém-nascido premido pela fome chora e agita os braços e as</p><p>pernas, essas respostas motoras não são eficazes para a eliminação</p><p>do estado de estimulação na fonte corporal. Essa conduta, considerada</p><p>em si mesma, é ineficaz para a obtenção do alimento; no entanto, em</p><p>se tratando do recém-nascido humano, ela se insere num outro</p><p>registro, o da comunicação por sinais, e aparece como demanda,</p><p>demanda ao Outro, deixando de ser um mero behavior ineficaz para se</p><p>constituir numa forma de introdução do sujeito na ordem simbólica.</p><p>(Garcia-Roza 2008, p. 130)</p><p>9</p><p>Assim, o choro será ouvido como uma demanda ao Outro e, na medida</p><p>que ela é atendida, passará a se circunscrever no registro da linguagem. Nesse</p><p>sentido, ao demandar o Outro, o organismo vivo, já não visa apenas às</p><p>emergências vitais, mas à experiência de satisfação, ou seja, uma marca</p><p>pulsional que diferencia a espécie humana de todas as outras.</p><p>TEMA 4 – A REALIDADE PSÍQUICA</p><p>A noção de realidade foi abordada por Freud desde o Projeto, contudo,</p><p>nesse momento o autor se interessou em demonstrar a realidade como uma</p><p>conduta do pensamento: “Quando uma vez concluído o ato de pensamento, a</p><p>indicação da realidade chega à percepção, obtém-se então um juízo de</p><p>realidade, uma crença, atingindo-se com isso o objetivo de toda essa atividade”.</p><p>(Freud, 1996, p. 253).</p><p>Contudo, essa realidade abordada no Projeto não é a realidade psíquica</p><p>relacionada ao inconsciente, mas trata-se daquilo que se</p><p>foi</p><p>associada ao modo como os seus pais tratavam as suas questões na infância,</p><p>pois tudo era tido como sem importância, sem comprometimento. Por exemplo,</p><p>ela teve que iniciar várias vezes o catecismo, até fazer a primeira comunhão,</p><p>pois seus pais sempre interrompiam o curso, por falta de comprometimento de</p><p>levá-la. Assim, vários outros eventos surgiram em análise. Assim, verificamos</p><p>que o não comprometimento dos pais se repetia agora em sua vida adulta.</p><p>Por último, escolhemos trazer um modelo de repetição que chega nos</p><p>consultórios com os dizeres de uma maldição hereditária. Muitas mulheres se</p><p>queixam de que na família todas se casaram com homens alcoólatras – uma</p><p>repetição que podemos localizar no registro real, por se tratar de uma vivência</p><p>traumática. Para que essa repetição possa cessar, é preciso que, em análise ela</p><p>possa ser simbolizada, de modo que aquilo que volta para o mesmo lugar possa</p><p>se ligar a um objeto. Trata-se de uma construção de análise que barra o gozo</p><p>desconhecido do sujeito.</p><p>A clínica psicanalítica é a clínica do real, ou seja, acolhe aquilo que está</p><p>para além da linguagem.</p><p>16</p><p>FINALIZANDO</p><p>• Tópico 1: a repetição foi concebida como um fenômeno clínico ao longo</p><p>da experiência clínica de Freud. Em Recordar, repetir e elaborar, Freud</p><p>define a repetição como resistência que impede a associação livre. Anos</p><p>depois, no texto O estranho, a repetição será pensada por Freud como</p><p>algo que deveria permanecer em oculto, mas se manifesta, causando</p><p>estranheza.</p><p>• Tópico 2: Lacan situa a repetição como um dos conceitos fundamentais</p><p>da psicanálise. Ele distingue a repetição do conceito de transferência.</p><p>Lacan ainda introduz a dimensão do real da repetição como aquilo que</p><p>jamais será recordado, pois está fora da linguagem.</p><p>• Tópico 3: portanto, para Lacan, a repetição se distingue em duas faces:</p><p>autômaton, que surge na cadeia significante, como uma insistência dos</p><p>signos; e tiquê, que está para além do autômaton, vinculada ao registro</p><p>real.</p><p>• Tópico 4: a pulsão vai ser relida por Lacan como seguimento da pulsão</p><p>de morte. Afinal, tanto a pulsão de vida quanto a pulsão de morte almejam,</p><p>em última análise, das Ding.</p><p>• Tópico 5: das Ding é o objeto que se inscreve no psiquismo como falta,</p><p>produzindo força constante da pulsão. Por ser inalcançável, o sujeito fixa</p><p>em sua fantasia o objeto a, que satisfaz parcialmente a pulsão e sustenta</p><p>o desejo do sujeito.</p><p>17</p><p>REFERÊNCIAS</p><p>FINK, B. A causa real da repetição. In: _____. Para ler o seminário II de Lacan.</p><p>Rio de Janeiro: Zahar, 1997.</p><p>FREUD, S. O estranho. In: _____, Obras completas. Rio de Janeiro: Imago,</p><p>1996a. v. XVII.</p><p>FREUD, S. O projeto para uma psicologia cientifica. In: _____. Obras</p><p>completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996b. v. I.</p><p>FREUD, S. Recordar, repetir e elaborar. In: _____. Obras completas. Rio de</p><p>Janeiro: Imago, 1996c. v. XII.</p><p>GARCIA-ROZA, L. A. Acaso e repetição em psicanálise: uma introdução à</p><p>teoria das pulsões. Rio de Janeiro: Zahar, 1986.</p><p>JORGE, C. Fundamentos da psicanálise: de Freud a Lacan. Rio de Janeiro:</p><p>Zahar, 2010.</p><p>LACAN, J. O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da</p><p>psicanálise, Rio de Janeiro: Zahar, 2008.</p><p>_____. O seminário, livro 6: o desejo e sua interpretação. Porto Alegre:</p><p>Associação Psicanalítica de Porto Alegre, 2016.</p><p>_____. Seminário, livro 7: A ética da psicanálise – Rio de Janeiro: Zahar, 2017.</p><p>CONCEITOS FUNDAMENTAIS</p><p>EM PSICANÁLISE</p><p>AULA 6</p><p>Prof.ª Juliana Santos</p><p>2</p><p>CONVERSA INICIAL</p><p>Nesta abordagem, retomaremos o movimento empreendido por Lacan,</p><p>que ficou para nós, psicanalistas em permanente formação, um eterno convite</p><p>de retorno a Freud. Então, aqui vai a lição número 1: ninguém é psicanalista sem</p><p>estudar Freud, sendo assim, o sentido psicanalítico deve sempre ser retomado</p><p>desde Freud.</p><p>Para empreendermos esse caminho trilhado por Lacan, é necessário que</p><p>venhamos a compreender as suas reais motivações a liderar esse movimento.</p><p>Depois, vamos dar mais uns passos em seus ensinos, focando nos conceitos</p><p>fundamentais em psicanálise.</p><p>Lacan, do início ao fim do seu ensino, sempre fez questão de demonstrar</p><p>o seu posicionamento freudiano. Em uma de suas últimas apresentações em</p><p>Caracas, em 1980, ele afirmou: “cabe a vocês serem lacanianos, se quiserem.</p><p>Quanto a mim sou freudiano.” (Roudinesco, 1988, p. 720, citada por Kupermann,</p><p>2012, p. 133).</p><p>Portanto, a referência a Freud está em todos os ensinos de Lacan.</p><p>Contudo, após o seminário 11, algo mudou. Miller (1997, p. 21), genro de Lacan</p><p>e responsável pelos seus direitos autorais, no livro Para ler o seminário 11, nos</p><p>indica que nos primeiros dez anos dos seminários de Lacan, ele sempre adotou</p><p>um texto de Freud para embasar o seu ensino, por exemplo: no primeiro ano –</p><p>seminário 1, foram os escritos técnicos de Freud; no terceiro ano – seminário 3,</p><p>as psicoses, foi o caso Schreber; no seminário 7, a ética da psicanálise, foi “O</p><p>mal-estar na civilização”, entretanto, nesse seminário Lacan não fez isso, nem</p><p>nos seminários seguintes.</p><p>Assim, o seminário 11 representa um corte nos ensinos de Lacan, e para</p><p>entendermos a relevância desse momento, faremos inicialmente uma breve</p><p>jornada sobre esse período, trazendo o contexto que fez Lacan redigir, por meio</p><p>de sua releitura de Freud, os quatro conceitos fundamentais da psicanálise.</p><p>Por fim, trabalharemos a definição lacaniana do inconsciente estruturado</p><p>como uma linguagem, em que, para fundamentar a sua tese, ele se utiliza dos</p><p>conceitos linguísticos “significante” e “significado”.</p><p>3</p><p>TEMA 1 – DA “EXCOMUNHÃO” AO RETORNO A FREUD</p><p>Lacan nomeia de “excomunhão” a abertura do seminário 11. O motivo de</p><p>ele ter escolhido esse nome para a abertura do seu seminário diz respeito à</p><p>situação que ele estava vivenciando naquele momento.</p><p>“Excomunhão” é um termo da igreja católica usado para excluir uma</p><p>pessoa dos ritos religiosos quando esta pratica algum tipo de heresia. Então,</p><p>Lacan comparou a International Psychoanalytical Association (IPA) a uma</p><p>instituição religiosa, sobre a qual declara (1964, p. 11, grifo do autor):</p><p>Que meu ensino, designado como tal, sofre por parte de um organismo</p><p>que se chama Comissão Executiva de uma organização internacional</p><p>que se chama Internacional Psychoanalytical Association, uma</p><p>censura que não é de modo algum ordinário, pois que se trata de nada</p><p>menos que proscrever esse ensino – que deve ser considerado nulo</p><p>em tudo que dele possa vir quanto à habilitação de um psicanalista, e</p><p>de fazer dessa proscrição a condição da afiliação internacional da</p><p>sociedade psicanalítica a qual pertenço. Isto ainda não é bastante. Está</p><p>formulado que essa afiliação só será aceita se derem garantias de que,</p><p>jamais, meu ensino possa, por essa sociedade, voltar a atividade para</p><p>a formação de analistas. Trata-se, portanto, de algo que é</p><p>propriamente comparável ao que se chama, em outros lugares,</p><p>excomunhão maior.</p><p>Miller (1997), ao comentar essa passagem, lembra-nos de que Lacan, ao</p><p>contrário do que muitos acreditam, não foi expulso da IPA. O que ocorreu, de</p><p>fato, é que, em 1953, juntamente com outros colegas, Lacan decidiu deixar o</p><p>instituto francês, a Société Psychanalytique de Paris, pois, para ele, a instituição</p><p>seguia um rumo autoritário. Em seguida, pediram para que seus ensinos fossem</p><p>reconhecidos pela IPA, para que pudesse inaugurar a sua própria escola.</p><p>A IPA é um grande “guarda-chuva” que abriga outras sociedades de</p><p>psicanálise, dando a ela a legitimidade de atuarem como uma sociedade de</p><p>ensino e formação de psicanalistas. Foi nesse sentido que Lacan buscou a IPA,</p><p>para ter seus ensinos reconhecidos. Pois, conforme Miller (1997) nos descreve,</p><p>isso já havia ocorrido em Nova York, quando, após uma cisão de uma sociedade,</p><p>um grupo abriu em seguida sua escola</p><p>e teve seus ensinos reconhecidos pela</p><p>IPA; entretanto, o mesmo não ocorrera com Lacan.</p><p>Em 1963, Marie Bonaparte, integrante do comitê central e amiga de Anna</p><p>Freud, Hartmann, entre outros, convenceu o comitê a recusar Lacan, enviando-</p><p>lhe uma carta na qual lamentavam muito, mas, uma vez que este tinha deixado</p><p>o instituto francês, já não era mais membro da IPA (Miller, 1997, p. 18).</p><p>4</p><p>Assim, o seminário 11 trata-se de um seminário que representa um novo</p><p>começo para Lacan e no qual, segundo Miller, ele se coloca à prova, pois se</p><p>indaga: “estou qualificado (para dar esse seminário)?” – sendo que antes já havia</p><p>ministrado, durante dez anos, dez seminários. Contudo, declara: “considero este</p><p>problema adiado por ora” (Lacan, citado por Miller, 1997, p. 19).</p><p>De fato, o seminário 11 trata de alguém que está recomeçando e, entre</p><p>os 10 seminários anteriores e este, há um corte que aponta para um novo</p><p>começo, ou seja, não é uma continuidade. Foi entre o capítulo 19 e 20 do</p><p>seminário 11 que Lacan funda a Escola Freudiana de Paris. Assim, para Miller,</p><p>os quatro conceitos fundamentais da psicanálise pareceram-lhe um tributo a</p><p>Freud, uma vez que são tirados diretamente da obra freudiana, além da</p><p>atribuição do nome Escola Freudiana à sua instituição. Lacan deseja demonstrar</p><p>que ele não poderia ser colocado como um dissidente, mas que também não</p><p>poderia parar apenas no que tinha sido deixado por Freud, visto que, em seu</p><p>tributo, ele caminhou para ir além de Freud. Explica Miller (1997, p. 20):</p><p>Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise parece ser um tributo</p><p>a Freud, uma vez que os quatro conceitos são tirados diretamente de</p><p>sua obra. Assim como Lacan, na época, chama sua instituição de</p><p>Escola Freudiana, em seu seminário utiliza o termo “conceitos</p><p>freudianos” apenas para provar que não é um dissidente. Mas, dentro</p><p>deste “tributo”, ele tenta ir além de Freud. Não um além que deixe</p><p>Freud para trás: trata-se de um além de Freud que mesmo assim está</p><p>em Freud: Lacan está à procura de alguma coisa na obra de Freud de</p><p>que o próprio Freud não se deu conta. Algo que podemos chamar de</p><p>“extimidade”, já que é tão íntimo que Freud mesmo não o percebeu.</p><p>Tão íntimo que essa intimidade é extimidade. É um mais-além interno.</p><p>Portanto, ao enfatizar os quatro conceitos fundamentais da psicanálise em</p><p>seu seminário, Lacan questionou o posicionamento da IPA e denunciou a</p><p>rejeição dos conceitos, visto que, segundo Lacan, a IPA estava mais preocupada</p><p>em manter um rigor doutrinário do que em manter o sentido conceitual da teoria</p><p>freudiana.</p><p>Desse modo, quando Lacan, em seu seminário, faz algumas perguntas</p><p>de forma retórica sobre algumas questões da psicanálise, Miller sinaliza para</p><p>algo a mais que deve ser escutado:</p><p>A que dizem respeito as fórmulas na psicanálise? O que é que motiva</p><p>e modula esse deslizamento do objeto? Existem conceitos analíticos</p><p>de uma vez por todas formados? A manutenção quase religiosa dos</p><p>termos dados por Freud para estruturar a experiência analítica, a que</p><p>te remete ela? Tratar-se-ia de um fato muito surpreendente na história</p><p>das ciências – o de que Freud seria o primeiro, e permaneceria o único,</p><p>nesta suposta ciência, a ter introduzido conceitos fundamentais?</p><p>(Lacan, citado por Miller 1997, p. 20- 21)</p><p>5</p><p>Assim, ao oferecer um seminário sobre os quatro conceitos fundamentais</p><p>da psicanálise, Lacan se pergunta se realmente os conceitos de Freud devem</p><p>permanecer sendo os únicos válidos em psicanálise.</p><p>Ao se confrontar com tais indagações, Lacan se autoriza e introduz seus</p><p>próprios conceitos. De acordo com Miller (1997, p. 21), trata-se, portanto, do</p><p>seminário 11, o verdadeiro início dos ensinos de Lacan:</p><p>No interior dessas questões epistemológicas e dessa celebração de</p><p>Freud, vemos assim não um desprestígio de Freud, mas o que</p><p>poderíamos chamar de uma substituição. Uma espécie de reescrita de</p><p>Freud, uma versão de Freud que Lacan adota; mas isso é feito em</p><p>segredo, ou ao menos discretamente, porque ao mesmo tempo ele tem</p><p>de provar que é o verdadeiro herdeiro de Freud. A isso se poderia</p><p>chamar de estratégia do seminário.</p><p>O Seminário 11 – os quatro conceitos fundamentais da psicanálise – foi</p><p>mais do que uma espécie de resgate da obra de Freud, mas também o momento</p><p>de reinvenção do próprio Lacan, sendo a negativa da IPA um ato que o levou a</p><p>fundar a sua escola de psicanálise.</p><p>TEMA 2 – QUATROS CONCEITOS FUNDAMENTAIS DA PSICANÁLISE</p><p>Os quatros conceitos fundamentais da psicanálise, tratados por Lacan no</p><p>seminário 11, são: inconsciente, repetição, transferência e pulsão.</p><p>O caro conceito freudiano de inconsciente, naquele momento, descreve</p><p>Miller (1997), estava sendo completamente negligenciado pelos psicólogos do</p><p>eu, a ponto de não ser considerado um conceito fundamental. Usando as</p><p>próprias palavras de Miller (1997, p. 21): “eles não sabem o que fazer com o</p><p>inconsciente porque consideram que a primeira tópica de Freud – inconsciente,</p><p>pré-consciente, consciente – foi completamente superada pela segunda tópica –</p><p>eu, supereu e isso.”</p><p>Assim, para Miller (1997, p. 22), o seminário 11, de um lado, objetiva a</p><p>“revitalização ou celebração de Freud” e, de outro, introduz um novo modo de</p><p>compreensão sobre a psicanálise, em que o autor afirma encontrar uma “nova</p><p>fundação da psicanálise.”</p><p>Para Miller (1997), o modo como Lacan abordou os quatro conceitos</p><p>empreendeu quatro novas formas de ler o inconsciente, visto que, de fato,</p><p>existem quatro maneiras distintas de compreender o que se passa em uma</p><p>análise, portanto, o que foi abordado por Lacan se aproxima da prática analítica.</p><p>6</p><p>“O que é falar?" Como compreendemos o fenômeno da fala em</p><p>análise? Lacan privilegia as falhas, optando por definir o inconsciente</p><p>– e esta é somente uma definição, dentre muitas – como “tropeço,</p><p>desfalecimento, rachadura. Aqui ele está muito próximo da primeira</p><p>descoberta de Freud, uma descoberta rejeitada pelos psicólogos do</p><p>eu, que acham que Freud não sabia tanto quanto eles. Tropeço,</p><p>desfalecimento, rachadura. Numa frase pronunciada, escrita, alguma</p><p>coisa se estatela. Freud fica siderado por esses fenômenos, e é neles</p><p>que vai procurar o inconsciente. Ali, alguma outra coisa quer se realizar</p><p>– algo que aparece como intencional, certamente, mas de uma</p><p>estranha temporalidade. O que se produz nessa hiância, no sentido</p><p>pleno do termo produzir-se, se apresenta como um achado. É assim</p><p>que a exploração freudiana encontra o que se passa no inconsciente.”</p><p>(Lacan, citado por Miller 1997, p. 22, grifo do autor)</p><p>As referências de Lacan se aproximaram dos textos de Freud:</p><p>Interpretação dos sonhos; Psicopatologia da vida cotidiana; e Chistes e sua</p><p>relação com o inconsciente. Contudo, os analistas freudianos estavam sendo</p><p>atraídos pelos fenômenos. O caminho apontado por Lacan tentava demonstrar</p><p>que, na experiência analítica, algo ocorre de forma invertida, pelo qual “isso” é</p><p>quando ocorre um lapso ou uma falha, visto que é aí o lugar em que encontramos</p><p>o sujeito.</p><p>O sujeito do inconsciente, subscrito no ensino de Lacan, portanto, é algo</p><p>que se encontra entre o ser e o nada, um estranho tipo de ser que aparece</p><p>quando não deveria: precisamente quando uma intenção estranha está sendo</p><p>realizada, conclui Miller (1997, p. 23).</p><p>Outra forma pela qual Lacan nos ensina a ler o inconsciente é por meio</p><p>da repetição, que vai ser apresentada no seminário 11, em sua articulação de</p><p>significante. Essa articulação já tinha sido apontada por Freud, pois em sua</p><p>prática ele pôde se dar conta daquilo que, na fala de seus pacientes, se repetia</p><p>em seus sonhos e na própria prática da associação livre (S1-S2).</p><p>Porém, o que Lacan enfatiza de forma mais radical é que o inconsciente</p><p>não resiste tanto quanto repete. Portanto, isso ia na contramão do que diziam</p><p>em sua época, pois a práxis fundamental do movimento da psicologia do eu</p><p>estava completamente apegada à afirmação</p><p>de que “o inconsciente resiste”, de</p><p>modo que o caminho do tratamento se dava pela superação das resistências.</p><p>Assim, a repetição é a tese defendida por Lacan no seminário 11, em que</p><p>afirma que “a constituição mesma do campo do inconsciente se garante pelo</p><p>Wiederkehr” (Lacan 1964, p. 53). E afirma, ainda, que é aí que Freud garante a</p><p>sua grandeza.</p><p>Sobre a transferência, Lacan a considera como um aspecto do</p><p>inconsciente, portanto não é a mesma coisa que uma repetição. Se, em Freud,</p><p>7</p><p>verificamos que a transferência é uma modalidade da repetição, para Lacan não.</p><p>Ele distingue a transferência da repetição, propondo, assim, uma nova teoria da</p><p>transferência. Miller (1997, p. 24) faz uma ressalva, e pontua que, para</p><p>compreendermos a transferência no seminário 11, temos que ligar a</p><p>transferência a uma realidade ilusória, e a repetição ao real, ou seja, como aquilo</p><p>que não engana. Assim, “quando se apresenta o inconsciente com transferência;</p><p>ele é apresentado como algo que ilude e engana.” Essa é a explicação para</p><p>quando Lacan declara que a verdade tem uma estrutura ficcional e que se revela</p><p>nas falas sobre transferência. Desse modo, a transferência pode ser conectada</p><p>à realidade psíquica do sujeito.</p><p>O último conceito fundamental ensinado por Lacan no seminário 11 é o</p><p>inconsciente como pulsão. A pulsão foi um dos conceitos mais trabalhados por</p><p>Lacan em todo o seu ensino. Como sabemos, a pulsão é uma força constante</p><p>que busca ser satisfeita pelo avassalador, onipotente princípio do prazer, como</p><p>afirma Miller (1997, p. 25). Ela é alguma coisa que não muda, que requer todo o</p><p>nosso sonho e toda a nossa vigília, mas que é, ainda assim, prazer. Em última</p><p>análise, para Lacan, o sujeito, em algum nível, está sempre feliz, sempre tendo</p><p>prazer. Foi isso que Freud (1920) defendeu em seu texto Além do princípio do</p><p>prazer que, de alguma maneira, mesmo que por meio de uma aparente</p><p>infelicidade ou desprazer, o sujeito estará sempre em busca de satisfação, cujo</p><p>alcance é o gozo.</p><p>No próximo tópico, buscaremos compreender as incisões de Lacan sobre</p><p>o conceito de inconsciente. Sabemos que ele, por intermédio da ciência</p><p>linguística, pôde fazer grandes contribuições à teoria psicanalítica: “o</p><p>inconsciente é estruturado como uma linguagem”.</p><p>TEMA 3 – INCONSCIENTE LACANIANO</p><p>O inconsciente foi uma descoberta de Freud. Mesmo que o uso do termo</p><p>já fosse empregado, foi Freud que concebeu o seu funcionamento. A releitura</p><p>dos conceitos feita por Lacan fez surgir um pensamento inteiramente novo,</p><p>embora este fosse, surpreendentemente, o que já estava em Freud. Portanto,</p><p>trata-se de uma interpretação genuína daquilo que Freud escreveu, o que Lacan</p><p>pôde explicar.</p><p>Para Coutinho Jorge (2005, p. 65), Lacan trouxe de volta a originalidade</p><p>implicada nos pensamentos freudianos e ressaltou o segmento nuclear de sua</p><p>8</p><p>obra – o inconsciente como linguagem. No texto Função e campo da fala e da</p><p>linguagem em psicanálise, Lacan (1953) resgata o campo da linguagem na</p><p>psicanálise, pois como já mencionamos, os psicanalistas daquela época haviam</p><p>se afastado do principal preceito freudiano – a fala – e se orientavam mais pelos</p><p>fenômenos.</p><p>Assim, ao afirmar que “o inconsciente é estruturado como uma</p><p>linguagem”, Lacan evidencia o único meio pelo qual a psicanálise pode operar –</p><p>pela palavra do analisando.</p><p>Lacan evidencia que o inconsciente é um saber, revogando o sentido do</p><p>saber introduzido por Descartes, visto que o saber inconsciente é um saber que</p><p>não se sabe, ou seja, escapa à razão. Coutinho Jorge (2005, p. 66) ainda</p><p>destaca que, para Lacan, o ato falho é, com efeito, um ato bem-sucedido, pois é</p><p>por meio dele que a verdade do sujeito se desvela ainda que à sua revelia.</p><p>Nesse sentido, Coutinho Jorge (2005) cita Jean-Jacques Moscovitz, que</p><p>chamou a atenção para o termo “inconsciente” em alemão – Unbewusste. Em</p><p>sua tradução literal, significa “incabível”, ou seja, a consciência é um saber que</p><p>se sabe e o inconsciente um saber que não se sabe.</p><p>Portanto, nos ensinos de Lacan encontramos inúmeras demonstrações</p><p>em que ele assinala o saber do inconsciente. Coutinho Jorge (2005) o destaca</p><p>pela distinção do instinto dos animais, em que o saber inconsciente é aquilo que</p><p>surge para encobrir essa falta nos seres humanos: “o ser humano</p><p>manifestamente não tem nenhum saber instintual”, sendo assim, “só há o</p><p>inconsciente para dar corpo ao instinto.” (Lacan, citado por Jorge, p. 67). Desse</p><p>modo, Lacan concebe o saber do inconsciente como o saber que preenche a</p><p>falta do saber instintual, ou, dito de outro modo, a maneira pela qual somos</p><p>levados a reagir em certas circunstâncias está ligada não a um instinto, mas ao</p><p>saber do inconsciente, um saber que está veiculado aos significantes. No gráfico</p><p>a seguir, Coutinho Jorge (2005, p. 68) tenta esquematizar o saber do</p><p>inconsciente:</p><p>Portanto, Lacan ratifica o saber do inconsciente e afirma que o sujeito</p><p>sabe sem saber que sabe. É desse saber que o psicanalista se vale.</p><p>Núcleo do inconsciente Não saber instintual Real S ( )</p><p>Inconsciente estruturado como uma linguagem Saber Simbólico</p><p>9</p><p>TEMA 4 – O INSCONSCIENTE É ESTRUTURADO COMO LINGUAGEM</p><p>Vimos então que o inconsciente é um saber que encobre a falta de instinto</p><p>no ser humano. Mas, se ele não nasce com esse saber, como este último se</p><p>constitui? Podemos responder a essa pergunta com o famoso aforisma</p><p>lacaniano: “o inconsciente é estruturado como uma linguagem”. Vamos</p><p>entender, a seguir, o que isso significa.</p><p>Lacan valeu-se da linguística na busca de dar um caráter científico à</p><p>psicanálise, pois ele almejava dar contornos sólidos ao situar o sujeito do</p><p>inconsciente, visto que o inconsciente freudiano foi alvo de muitas críticas. “A</p><p>linguística pode servir-nos de guia neste ponto, já que é esse o papel que ela</p><p>desempenha na vanguarda da antropologia contemporânea, e não poderíamos</p><p>ficar-lhe indiferentes.” (Lacan, 1953, p. 286).</p><p>Contudo, ao tomar emprestado o saber linguístico defendido por</p><p>Ferdinand de Saussure, Lacan faz uma inversão de valores, pois é nesse</p><p>momento que ele consegue exprimir sua tese.</p><p>4.1 Lacan x Saussure</p><p>Em Saussure, vemos que os signos são estruturados em duas instâncias</p><p>– significante e significado –, de modo que o significante obedece nitidamente a</p><p>ordem do significado, consentindo por meio deles um signo: “o signo linguístico</p><p>une não uma coisa e uma palavra, mas um conceito e uma imagem acústica”</p><p>(Saussure, 1916, p. 80). Nesse sentido, para Saussure havia uma reciprocidade</p><p>biunívoca entre essas instâncias do signo, em que o signo se torna a relação</p><p>entre um significado e um significante.</p><p>Joël Dor (1989, p. 29) em seu livro Introdução à leitura de Lacan,</p><p>apresenta o gráfico do modelo saussuriano:</p><p>No modelo saussuriano, conforme é possível observar pelas setas,</p><p>conceito e imagem acústica estão atrelados. O conceito tem o valor do</p><p>significado, e a imagem acústica tem o valor do significante, estando eles</p><p>10</p><p>representados por s e S. O signo é o resultado dessa conjunção entre significado</p><p>e significante. Contudo, Saussure aponta para quatro princípios que regem o</p><p>signo; destacaremos dois: arbitrariedade e caráter linear do significante.</p><p>A arbitrariedade atinge o signo em sua totalidade, ou seja, a arbitrariedade</p><p>do signo reside essencialmente por seu caráter convencional, que se explica</p><p>pelas inúmeras línguas, em que os mesmos conceitos alcançam diferentes sons,</p><p>como também pela pluralidade de significados que um mesmo significante pode</p><p>ter. Já o caráter linear do significante atinge especificamente o significante, visto</p><p>que, em seu caráter linear, este, sendo de natureza auditiva, se desdobra com o</p><p>passar do tempo, se tornando uma propriedade de fala.</p><p>Contudo, Dor (1989, p. 37) assinala</p><p>que nem sempre a delimitação de</p><p>elementos significativos é possível, a não ser que ela seja tomada isoladamente,</p><p>visto que o princípio biunívoco (α - α’; β - β’...) confirma a ideia de delimitação,</p><p>garantindo um signo. Entretanto, nem sempre isso é possível, dado que uma</p><p>imagem acústica pode se articular em dois significantes:</p><p>Dessa forma, faz-se necessário considerar o contexto para que o signo</p><p>seja delimitado. Dor (1989, p. 37) declara que é o mesmo que dizer que o signo</p><p>só é signo em função do contexto. “Ora, esse contexto é um conjunto de outros</p><p>signos. A realidade do signo linguístico só existe, pois, em função de todos os</p><p>outros signos, sendo esta propriedade a que Saussure nomeou de valor do</p><p>signo”. Em referência a esse tema, Coutinho Jorge (2005, p. 78) explica assim:</p><p>Assim, a noção de valor revela, por um lado, que os elementos que</p><p>compõem o signo são interdependentes entre si e, por outro, que o</p><p>signo não pode ser isolado do sistema do qual faz parte e do qual</p><p>também é interdependente. Sendo a língua um sistema cujos termos</p><p>são solitários, o valor de uma palavra dependerá da significação que</p><p>lhe confere a presença de todas as palavras do código como também</p><p>a presença de todos os elementos da frase.</p><p>Portanto, observa-se que a língua elabora as suas unidades ao constituir-</p><p>se entre duas massas amorfas, e o signo linguístico corresponde a uma</p><p>articulação entre duas massas amorfas entre si, em que uma ideia se fixa no</p><p>11</p><p>som, ao mesmo tempo que uma sequência fônica se constitui como significante</p><p>de uma ideia. “A língua é comparável a uma folha de papel. O pensamento é a</p><p>face, e o som o verso; não se pode cortar a face sem cortar ao mesmo tempo o</p><p>verso; assim também, na língua, não poderíamos isolar o som do pensamento,</p><p>nem o pensamento do som”. (Saussure, citado por Dor, 1989, p. 38).</p><p>Desse modo, na linguística o surgimento do significante só é possível com</p><p>a intervenção de um corte, visto que na realidade não existe um fluxo de</p><p>significantes. Portanto, é por meio de uma intervenção que surge o significante,</p><p>e ao mesmo tempo que ele surge, se associa a um conceito. “O surgimento do</p><p>significante é, pois, indissociável do engendramento do signo linguístico em sua</p><p>totalidade.” (Dor, 1989, p. 38).</p><p>Lacan, por sua vez, ao tomar a tese saussuriana, vai de imediato trazer</p><p>um novo entendimento; ele inverte o esquema do signo linguístico, em cuja</p><p>justificativa apoia a sua declaração: “o inconsciente é o discurso do Outro”.</p><p>Desse modo, a fala está referida ao discurso do sujeito, bem como ao Outro</p><p>como lugar de alteridade do significante. Assim, o significado não poderia ser</p><p>posto junto ao significante.</p><p>A situação estabelecida por Lacan decorre da própria experiência</p><p>analítica que demonstra que a relação do significante com o significado está</p><p>sempre prestes a se desfazer. Assim, a ideia de um “corte” que uniria o</p><p>significante ao significado, ao mesmo tempo que determina ambos, não se</p><p>sustentaria. Portanto, ele introduz no lugar do corte um conceito original – o</p><p>ponto-de-basta.</p><p>Dessa forma, enquanto em Saussure a unidade da significação é</p><p>determinada por uma série de corte simultânea (α/α’; β/β’; ϒ/ ϒ’), em Lacan a</p><p>significação é dada ao conjunto de sequência falada. Nesse sentido, Dor (1989,</p><p>p. 40) cita Lacan em a Subversão do sujeito: “Vocês encontram a função</p><p>diacrônica desse ponto-de-estofo (ou ponto-de-basta) na frase, na medida em</p><p>que esta só fecha sua significação com seu último termo, cada termo sendo</p><p>antecipado na construção de todos os outros e, inversamente, selando seu</p><p>sentido por seu efeito retroativo.”</p><p>Assim, nos ensinos de Lacan vemos que é sempre retroativamente que</p><p>um signo faz sentido, de modo que a significação surge ao final de sua própria</p><p>articulação significante.</p><p>12</p><p>TEMA 5 – PRIMAZIA DO SIGNIFICANTE</p><p>A compreensão de que o inconsciente é estruturado como uma linguagem</p><p>o trouxe para uma materialidade humana, visto que quebra qualquer corrente</p><p>mística a esse respeito. O inconsciente se encontra nas palavras enunciadas</p><p>pelo sujeito e é estruturado como linguagem, pois é dessa maneira que ele se</p><p>avoluma e ganha a sua dimensão na psique humana.</p><p>Contudo, a frase lacaniana afirma que o inconsciente se estrutura como</p><p>uma linguagem, ou seja, pelas mesmas leis da linguagem, mas Lacan propõe a</p><p>diferença. No lugar do gráfico apresentado por Saussure, Lacan subverte o</p><p>entendimento e inscreve a primazia do significante, retira o círculo que o envolvia</p><p>e designava a sua unidade de signo, como também remove as flechas que</p><p>indicavam que eram indissociáveis o significante e o significado, ficando assim:</p><p>_ S _</p><p>s</p><p>A experiência analítica demonstra que o significante governa o discurso,</p><p>e quem fala não tem acesso livre ao significado, pois ele está separado daquele</p><p>pela barra do recalque que separa o significante do significado. Assim, a barra</p><p>que aparece nesse algoritmo não é a mesma que se coloca para representar a</p><p>relação do significante com o significado, mas sim que separa o significante de</p><p>seu efeito de significado. Com efeito, Lacan implica a função do significante com</p><p>o fundamento da dimensão do simbólico, visto que tudo que é significável se</p><p>encontra no lugar do Outro, ou seja, na linguagem.</p><p>A primazia do significante sobre o significado é reveladora do fato de</p><p>que, no inconsciente, o significado é abolido, e o significante é o que</p><p>representa de modo soberano o sujeito para outro significante. Com</p><p>essa definição aparentemente circular, na qual o elemento que é</p><p>definido (o significante) surge na própria definição (é o que representa</p><p>o sujeito para outro significante). (Jorge, 2005, p. 82)</p><p>Portanto, o significado surge deslizando na cadeia significante, de modo</p><p>que o deslizamento entre os dois produz o ponto-de-basta, o qual se enlaça ao</p><p>significado e significante no discurso analítico, no papel de metáfora e</p><p>metonímia.</p><p>13</p><p>5.1 Cadeia significante, significantes e significado</p><p>Lacan só conseguiu explicitar por meios científicos aquilo que Freud já</p><p>tinha traçado em seus textos. Por isso, ao compreendermos tais noções dadas</p><p>por Lacan, teremos mais facilidade para ler Freud. Visando facilitar uma</p><p>compreensão a respeito desses conceitos, vamos tentar explicá-los de forma</p><p>breve, visto que vamos nos aprofundar nesse tema mais adiante.</p><p>O significante é, primeiramente, o significante da falta no Outro, ou seja,</p><p>é o efeito de linguagem que se introduz para encobrir a castração. Conforme já</p><p>devemos ter ouvido, quando uma criança está aprendendo a falar, é importante</p><p>que os pais não tentem interpretar o que o filho quer, mas deixar a criança no</p><p>vazio para tentar dizer o que quer, pois isso facilita a produção de linguagem. É</p><p>mais ou menos isso o que Lacan insere sobre o conceito do significante, ele é</p><p>efeito de linguagem e surge para encobrir a falta, uma falta simbólica.</p><p>No entanto, o significante sozinho não significa nada, todavia, quando é</p><p>articulado com outros significantes, ele produz a significação. “Ora, a estrutura</p><p>do significante está, como se diz comumente da linguagem, em ele ser</p><p>articulado” (Lacan, 1957, p. 504). Essa sequência orientada na organização</p><p>significante que Lacan designa como cadeia significante, ou seja, são as</p><p>associações e combinações de significantes, diz Lacan, que fornecem uma</p><p>aproximação, como de anéis cujo colar se fecha no anel de um outro colar feito</p><p>de anéis (Lacan, 1957, p. 505).</p><p>A origem da cadeia significante vai ser explicada por Lacan por meio da</p><p>metáfora paterna, em que o desejo-da-mãe é metaforizado pelo significante do</p><p>nome-do-pai, produzindo uma significação fálica. A partir daí, os significantes</p><p>conscientes e inconscientes são tecidos em conjunto por intermédio das leis da</p><p>linguagem: metonímia e metáfora, as duas funções que geram significados.</p><p>Portanto, a cadeia significante designa uma função: inserir o desejo</p><p>inconsciente do sujeito em seu discurso. Assim, a estrutura é posta em</p><p>desenhos, e sua trama de gozo tecida em sua fala. De modo mais geral, a cadeia</p><p>significante está envolvida em toda causalidade psíquica.</p><p>Leitura complementar</p><p>Para se aprofundar nesse tema, recomendamos a leitura do livro de Joël</p><p>Dor Introdução à leitura lacaniana: o inconsciente estruturado como linguagem.</p><p>14</p><p>NA PRÁTICA</p><p>Poderíamos chamar nosso estudo de introdução aos conceitos</p><p>fundamentais em psicanálise, pois nossa intenção, aqui, foi de apenas apontar</p><p>para os temas fundamentais, visto que são conceitos que demandam tempo de</p><p>cada um para elaborá-los e, assim, poder compreendê-los. Eles não se esgotam</p><p>apenas pelo estudo da teoria, mas imprescindivelmente devem passar pela</p><p>experiência de análise.</p><p>Assim, ao finalizarmos esta abordagem com a questão do inconsciente</p><p>estruturado como uma linguagem, gostaríamos de deixar o convite para que</p><p>pensemos sobre o porquê de uma formação em psicanálise. Assim, podemos</p><p>ouvir quais são os significantes que norteiam essa decisão. De posse desses</p><p>significantes, como eles se associam com a nossa vida e o nosso ser?</p><p>Quando conseguirmos fazer essas associações, acreditamos que</p><p>estaremos mais próximos do real significado que nos trouxe até aqui. E aí, para</p><p>que possamos nos apropriar desse sentido, busquemos a análise pessoal, pois,</p><p>por meio desse percurso poderemos, pouco a pouco, nos autorizar na posição</p><p>de analista.</p><p>FINALIZANDO</p><p>No tópico 1, nos reportamos ao momento de ruptura de Lacan com a IPA,</p><p>a partir do qual Lacan se autoriza ir para além de Freud, sem com isso deixar de</p><p>tê-lo como referência.</p><p>No tópico 2, vimos que o resgate dos conceitos fundamentais –</p><p>inconsciente, repetição, transferência e pulsão – tinha o objetivo, para além de</p><p>resgatá-los do esquecimento do sentido dado por Freud, afirmar perante a</p><p>sociedade de psicanálise a sua posição freudiana.</p><p>No tópico 3, apontamos que, segundo Lacan, o inconsciente é um saber</p><p>não sabido pelo sujeito, sendo o saber do inconsciente que recobre a falta de</p><p>instinto no humano.</p><p>No tópico 4, o inconsciente estruturado como linguagem trouxe mais</p><p>cientificidade para o conceito de inconsciente, pois é possível localizá-lo na fala,</p><p>visto que ele obedece às mesmas leis de linguagem.</p><p>No tópico 5, Lacan, ao inverter a ordem do algoritmo, estabelece a</p><p>primazia do significante para o sujeito. O significante compõe a cadeia</p><p>15</p><p>significante do discurso falado do sujeito, sendo sua relação de significante com</p><p>outro significante que produz a significação, que não está dada.</p><p>16</p><p>REFERÊNCIAS</p><p>DOR, J. Introdução à leitura de Lacan: o inconsciente estruturado como</p><p>linguagem. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989.</p><p>JORGE, M. A. C. Fundamentos da psicanálise, de Freud a Lacan. Rio de</p><p>Janeiro: Zahar, 2005. v. 1.</p><p>KUPERMANN, D. Um sonho de final de mestrado ou A transferência e o saber na</p><p>institucionalização da psicanálise. TransForm. Psicol., São Paulo, v. 4, n. 1,</p><p>2012.</p><p>LACAN, J. (1953). A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud.</p><p>In: _____. Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.</p><p>_____ (1957). Função e campo da fala e da linguagem. In: _____. Escritos.</p><p>Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.</p><p>_____ (1964). Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da</p><p>psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2020.</p><p>MILLER, J. A. Contextos e conceitos. In: _____. Para ler o Seminário 11 de Lacan:</p><p>os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,</p><p>1997.</p><p>apresenta como objeto</p><p>da percepção, que é correlata à consciência pela experiência imediata, cujos</p><p>signos vão colocar em função o princípio de realidade.</p><p>Cinco anos depois do Projeto, a noção de realidade ganha um novo</p><p>capítulo na teoria freudiana. Ela é retomada no capítulo VII da Interpretação do</p><p>sonho (1900) e, agora sim, trata-se da realidade que realmente importa para a</p><p>psicanálise: “O inconsciente é a verdadeira realidade psíquica” (p. 181)</p><p>A realidade psíquica é a realidade que verdadeiramente importa à</p><p>psicanálise, ela se distingue da realidade material, na medida em que é</p><p>dominada pelo império da fantasia e do desejo.</p><p>Se olharmos para os desejos inconscientes, reduzidos à sua</p><p>expressão mais fundamental e verdadeira, teremos de lembrar-nos,</p><p>sem dúvida, que também a realidade psíquica é uma forma especial</p><p>de existência que não deve ser confundida com a realidade material.</p><p>(Freud, 1900, p. 644)</p><p>A concepção da realidade psíquica é resultado de uma escuta clínica,</p><p>pois, antes dela, Freud foi levado a elaborar uma teoria da sedução, uma vez</p><p>que no relato de suas pacientes, havia sempre uma cena de sedução infantil</p><p>responsável pelo surgimento da doença, mas, para que tal teoria pudesse se</p><p>sustentar, todos os pais de meninas histéricas deveriam ser perversos e</p><p>seduziam as suas filhas. Assim, diante desse impasse, Freud abandona a teoria</p><p>10</p><p>da sedução e passa a apoiar a sua ideia de realidade psíquica pela constituição</p><p>de uma fantasia alicerçada no desejo inconsciente.</p><p>Portanto, ao afirmar uma realidade psíquica, Freud demonstra que o</p><p>sujeito se relaciona com a realidade da mesma forma como ele se posiciona no</p><p>laço social, isto é, a realidade refere-se à forma de existência do sujeito.</p><p>Por exemplo: no início da minha prática clínica, atendi uma moça que</p><p>tinha uma enorme repulsa pelo pai. Ela contava que o olhar do seu pai</p><p>era maldoso e que não tem certeza se quando criança ele tentou</p><p>abusar dela, mas a sensação era que sim, mesmo que não tivesse</p><p>clareza sobre o ocorrido. Tentei questioná-la perguntando se aquilo</p><p>não podia ser coisas da sua cabeça, pois queria saber se de fato ela</p><p>acreditava que o pai dela poderia ser esse tipo de pessoa. Esse tipo</p><p>de comprovação de realidade não tem a menor importância para a</p><p>psicanálise, pois o que de fato importa é o que o paciente diz, e se ela</p><p>dizia que acreditava que poderia ter sido abusada pelo pai, é isso que</p><p>deve ser acolhido com verdade, pois o sofrimento vivido por essa</p><p>paciente é real, independe de o pai ter ou não cometido o ato. (Santos,</p><p>[S.d.])</p><p>Portanto, o que Freud nos ensina é que toda apreensão de realidade está</p><p>submetida ao desejo e, dessa forma, a realidade é alucinada (o que não a torna</p><p>menos real). Nesse sentido, os psicanalistas não têm compromisso nenhum em</p><p>comprovar se o que lhe é relatado é verdadeiro, pois a realidade psíquica, a que</p><p>nos importa, é onde encontramos o sujeito sobre o qual a psicanálise opera, o</p><p>sujeito efeito da linguagem.</p><p>TEMA 5 – O PROJETO PARA UMA PSICOLOGIA CIENTÍFICA</p><p>Agora sim, vamos voltar a falar sobre o Projeto, o começo de tudo. É</p><p>curioso pensar que por 42 anos, durante os quais Freud se dedicou à</p><p>psicanálise, o Projeto ficou esquecido por ele, e só voltou a ser lembrado quando</p><p>foi resgatado do poder nazista pela sua ex-paciente Marie Bonaparte (quem tiver</p><p>interesse nessa história, no livro Freud e o inconsciente, Garcia-Roza traz</p><p>comentários). Mas, em 1895, como Freud compreendia a organização do</p><p>psiquismo humano?</p><p>A ideia de um tratamento que fosse para além do corpo fisiológico passou</p><p>a fazer parte dos pensamentos de Freud desde seu encontro com as histéricas.</p><p>E foi com base na sua experiência clínica que ele passou a formular o modo</p><p>como o psiquismo se estrutura e reage aos acontecimentos. Assim, através do</p><p>estudo do Projeto, podemos observar como Freud formula um tratamento que</p><p>operaria desde a alma.</p><p>11</p><p>Nossa tentativa é extrair do Projeto, de forma muito simplificada, o</p><p>primeiro modelo de funcionamento psíquico e, para isso, usaremos a referência</p><p>apresentada por Garcia-Roza (2008, p. 118), na qual declara que Freud concebe</p><p>o psiquismo como um “aparelho” capaz de transmitir e de transformar uma</p><p>energia determinada. Tal aparelho se constitui pelas funções neuronais: ,  e</p><p>, e é estimulado por duas fontes: 1) o mundo externo (exógena); 2) o interior</p><p>do próprio corpo (endógenas). Veja no gráfico a seguir:</p><p>A explicação é a seguinte – formam-se dois sistemas de neurônios:</p><p>1. O primeiro sistema de neurônios – fi () – formado de neurônios permeáveis,</p><p>que não oferecem resistência ao escoamento de Q e destinados à percepção;</p><p>2. O segundo sistema de neurônios – psi () – formado de neurônios</p><p>impermeáveis, dotados de resistência, retentivos de Q e portadores de memória.</p><p>Os neurônios  são alimentados diretamente de fonte externa, enquanto</p><p>os neurônios  são estimulados por fonte endógena. Garcia-Roza (2008)</p><p>complementa essa explicação afirmando que, por conta disso, a carga de Q nos</p><p>12</p><p>neurônios  será muito maior do que a carga nos neurônios , de modo que, em</p><p> não possibilitará a criação de barreiras de contato, pois estas seriam</p><p>imediatamente destruídas pelo excesso de Q. Já nos neurônios , por serem</p><p>menos carregados, podem formar barreiras mais ou menos fortes, constituindo,</p><p>dessa forma, uma memória.</p><p>O princípio que gerencia esse sistema é o princípio de Inércia, que, como</p><p>apresentamos anteriormente, tende à descarga total de Q, mas é impedido por</p><p>uma barreira de contato, pois o próprio sistema precisa manter uma quantidade</p><p>de energia para executar atividades específicas. Assim, de forma secundária</p><p>atua o princípio de constância, cuja função é manter o nível de energia,</p><p>constantemente, o mais baixo possível.</p><p>A função primordial dos dois sistemas neurônicos –  e  – é manter</p><p>afastadas as grandes Qs externas através da descarga. Essa função</p><p>de descarga está ligada à tendência básica do sistema nervoso, que é</p><p>a de evitar a dor ou desprazer resultante de um acúmulo excessivo de</p><p>Q no sistema formado pelos neurônios . Isso faz com que Freud</p><p>praticamente identifique, no Projeto, o princípio de prazer com o</p><p>princípio de inércia.</p><p>A função revelada por Freud, de um princípio que, ao invés de buscar</p><p>prazer, funciona na condição especificada de evitar a dor é decorrente do fato</p><p>de que no sistema psíquico não há barreira de contatos que seja capaz de deter</p><p>um estímulo doloroso, de modo que a própria lembrança desse estímulo já é</p><p>suficiente para provocar sofrimento. Assim, serão os resíduos das experiências</p><p>de prazer e desprazer que vão constituir os afetos e causar o desejo.</p><p>O Projeto tem para nós, estudantes de psicanálise, um valor histórico e</p><p>nostálgico, pois ele nos remete a um jovem Freud, que nos torna íntimos por um</p><p>processo de identificação a essa imagem – não empoderada como a que</p><p>veremos mais adiante – mas de um ser mortal como nós, buscando a</p><p>compreensão de um saber ainda encoberto.</p><p>Em outro momento, veremos os desdobramentos no Projeto, no capítulo</p><p>VII da interpretação do sonho, mas, desde já, podemos avaliar que a psicanálise</p><p>preencheu uma lacuna, pois os elementos que estavam disponíveis nesta época,</p><p>para explicar o funcionamento mental, eram os da neurologia ou os da religião.</p><p>Uma frase de Freud representa esse momento: “É preciso proteger a psicanálise</p><p>dos médicos e dos sacerdotes”. Isso porque a psicanálise se inseriu entre esses</p><p>dois extremos, e Freud queria que fosse assim mesmo, pois, se naquela época</p><p>a psicanálise fosse levada às universidades, seria dominada pelo discurso</p><p>13</p><p>organicista dos neurologistas, e, se fosse dominada pelas religiões, a separação</p><p>mente e corpo continuaria. Freud sabia que mente e corpo eram indissociáveis,</p><p>por isso recomendava que a psicanálise não fosse “encaixada” nos saberes</p><p>dominantes da época.</p><p>Fez dela um novo saber.</p><p>NA PRÁTICA</p><p>As sensações e emoções produzem memórias no corpo e são, portanto,</p><p>experiências psicossomáticas. Quando estudamos que a psicanálise se produziu</p><p>a partir de um discurso médico que não dava conta de explicar todos os</p><p>sintomas, isso quer dizer que nem tudo o que nos adoece ou provoca sofrimento</p><p>pode ser diagnosticado com imagens e exames clínicos.</p><p>Vamos ver um exemplo em que vivências infantis muito arcaicas podem</p><p>deixar marcas no psiquismo, de forma a definir uma posição do sujeito, ou seja,</p><p>um modo de ser que pode ser caracterizado como um problema para a pessoa.</p><p>O exemplo: uma mãe teve duas gestações. Na primeira gestação, seu</p><p>parto foi humanizado – seu filho, ao nascer, veio prontamente para o seu colo e</p><p>permaneceu com ela todo o tempo. A criança cresceu de forma mais</p><p>independente, gostava de dormir em seu quarto, sozinha, pois parecia se sentir</p><p>segura com a presença (internalizada) da mãe, mesmo esta não estando</p><p>fisicamente perto. Na segunda gestação, seu filho não teve o mesmo tratamento.</p><p>Logo ao nascer, foi levado para o berçário, onde ficou chorando por uma hora,</p><p>até ser levado para a mãe. A criança cresceu com uma dependência muito maior</p><p>da presença da mãe, pois esse encontro com a mãe representou uma</p><p>experiência que marcou uma falta anterior. Ou seja, a criança teve a experiência</p><p>de desprazer e desamparo, mas quando foi para o colo da mãe, marcou um lugar</p><p>que ela não queria perder, frente à sua primeira experiência de desamparo.</p><p>Assim, podemos demarcar que o psiquismo registra experiências, desde o</p><p>primeiro momento de vida, que deixarão marcas psíquicas para sempre na vida</p><p>do sujeito.</p><p>Era algo assim que Freud visualizava quando se sentia insatisfeito com</p><p>os elementos e recursos objetivos da ciência neurológica. Ele se dedicou a</p><p>desvendar esse fenômeno, que está na fronteira do somático com o psíquico,</p><p>que deixa marcas, que produz sintomas e que está na raiz do que somos hoje,</p><p>mas que não pode ser diagnosticado por exames de laboratório nem de imagem,</p><p>e sim pelo discurso, pela fala.</p><p>14</p><p>FINALIZANDO</p><p>Nesta etapa, foram apresentados pequenos recortes do Projeto e alguns</p><p>conceitos que nortearam a psicanálise.</p><p>Quando falamos em teoria psicanalítica freudiana, nos referimos à</p><p>metapsicologia, pois foi esse o nome que Freud deu para caracterizar o conjunto</p><p>de sua obra. Destacamos os textos essenciais, que são os que dão eixo para o</p><p>que hoje conhecemos como o método psicanalítico.</p><p>Para a compreensão da psicanálise, é fundamental conhecermos a sua</p><p>teoria e a delimitação conceitual do que é: inconsciente, recalque/repressão,</p><p>pulsão (de vida e de morte), compulsão à repetição, e isso não significa que a</p><p>teoria supere a prática clínica, mas elas devem estar alinhadas e sustentando o</p><p>fazer psicanálise.</p><p>Dentre os psicanalistas pós-freudianos, destaca-se Jacques Lacan.</p><p>Depois de ler toda a metapsicologia freudiana, Lacan apresentou quais, para ele,</p><p>são os quatro conceitos fundamentais da psicanálise: inconsciente, repetição,</p><p>transferência e pulsão.</p><p>15</p><p>REFERÊNCIAS</p><p>GARCIA-ROZA, L. A. Freud e o Inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar</p><p>Ed., 2009.</p><p>_____. Matapsicologia freudiana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008. v. 1.</p><p>FREUD, S. O Projeto para uma psicologia cientifica. In: Obras completas. Rio</p><p>de Janeiro: Imago, 1996. v. 1.</p><p>CONCEITOS FUNDAMENTAIS</p><p>EM PSICANÁLISE</p><p>AULA 2</p><p>Prof.ª Juliana Santos</p><p>2</p><p>CONVERSA INICIAL</p><p>No texto de apresentação da coleção Obras incompletas de Sigmund</p><p>Freud: fundamentos da clínica psicanalítica, Gilson Tavares (2017) escreve o</p><p>seguinte:</p><p>Quais os fundamentos da clínica psicanalítica? O que separa a</p><p>Psicanálise de outras práticas de cuidado, como o tratamento</p><p>medicinal, as diversas psicoterapias ou as curas religiosas? A resposta</p><p>mais direta a essas questões não se esgota em aspectos teóricos; ao</p><p>contrário, remete-nos ao domínio da prática analítica, relativo ao</p><p>método e à técnica, assim como à dimensão ética que dali se</p><p>depreende.</p><p>É com essa reflexão que iniciamos esta etapa, pois é só pela via da</p><p>experiência viva com a prática e o conhecimento da teoria que poderemos</p><p>compreender a real diferença entre a psicanálise e as demais práticas de</p><p>cuidado.</p><p>Assim, para darmos sequência a nossos estudos, vamos adentrar em</p><p>mais um dos textos da metapsicologia freudiana: A interpretação dos sonhos</p><p>(1900). Essa obra marca o início da psicanálise como um novo saber, e é nela</p><p>que encontramos a formulação do funcionamento do aparelho psíquico e de seus</p><p>mecanismos, desvelados por Freud por meio da análise do sonho.</p><p>A primeira tópica, como foi chamada a apresentação inaugural do</p><p>aparelho psíquico, teve seu funcionamento dividido em três sistemas:</p><p>inconsciente, consciente e pré-consciente; cada um desses sistemas funciona</p><p>de forma dinâmica, isto é, se opondo um ao outro, pois o que para um sistema é</p><p>sentido como prazer, não o será para outro.</p><p>Em seguida, buscaremos compreender a noção do desejo, pois, em</p><p>psicanálise, o desejo é inconsciente, e sua satisfação é sempre uma satisfação</p><p>sexual, por isso ele é recalcado. Para encerrar a etapa, buscaremos apreender</p><p>a noção de sexualidade na psicanálise. Será que psicanalistas só falam em</p><p>sexo?</p><p>TEMA 1 – A INTERPRETAÇÃO DOS SONHOS</p><p>A interpretação dos sonhos (1900) é um texto de revelação, pois</p><p>apresenta a verdade da psicanálise: o desejo.</p><p>Como Freud fez isso? A resposta não é nada simples, mas ele visitou</p><p>nossa remota infância, na qual foram tramados os crimes jamais cometidos por</p><p>3</p><p>incompetência ou medo – o assassinato do pai e o incesto com a mãe. Contudo,</p><p>o desejo proibido permaneceu lá, no limite de nossa existência, mas desistiu e</p><p>passou a alimentar nossos sonhos.</p><p>O sonho é isso: a realização de um desejo inconsciente. Ele se realiza</p><p>não em sua forma original, mas de maneira distorcida e disfarçada para nos</p><p>poupar de nós mesmos. Garcia-Roza (2008, p. 10) declara:</p><p>Essa é a verdade fundamental da psicanálise: a verdade do desejo. No</p><p>entanto, os fatos do nosso cotidiano não nos remetem diretamente a</p><p>ela, não nos oferecem essa verdade já pronta, mas dissimulada</p><p>enquanto distorcida. A verdade é um enigma a ser decifrado, e a</p><p>psicanálise constituiu-se como teoria e prática do deciframento.</p><p>Essa trama infantil evocada por Freud em seu texto é puramente</p><p>imaginária, e nem sequer fará parte de nossas lembranças. Entretanto, os efeitos</p><p>aí produzidos perdurarão por toda a vida, como signos de um passado</p><p>esquecido. Garcia-Roza (2008, p. 11) ainda afirma:</p><p>Os signos que compõem esse enigma são portadores de uma</p><p>intensidade análoga à das pegadas que Robinson Crusoé descobriu</p><p>na praia de sua ilha deserta. Enquanto signos, não nos remetem</p><p>apenas a uma outra coisa, mas a um outro sujeito. No entanto, à</p><p>diferença do romance de Daniel Defoe, nosso Sexta-feira habita nossa</p><p>própria interioridade, ou melhor, somos simultaneamente Robinson</p><p>Crusoé e Sexta-feira, sendo que este último teima em se esconder e,</p><p>quando aparece, coloca em questão e deita por terra a onipotência do</p><p>Robinson.</p><p>A história de Robinson Crusoé é a de um homem náufrago e sozinho em</p><p>uma ilha tentando manter suas aprendizagens e costumes, porém, depois de</p><p>alguns anos, encontra pegadas no chão, descobrindo que a ilha era também</p><p>habitada por canibais. Um desses canibais é “domesticado” e posto para lhe</p><p>servir; ele logo ganha um nome: “Sexta-feira”, que se torna parceiro do</p><p>protagonista. Garcia-Roza (2008) propõe uma analogia na qual somos habitados</p><p>por dois seres: um é completamente desconhecido e, quando aparece, ao</p><p>contrário do que ocorre na história, põe por terra a onipotência do primeiro.</p><p>Freud foi testemunha da verdade da psicanálise, pois foi por meio da</p><p>análise de seus próprios sonhos que ele pôde</p><p>criar técnicas para interpretar os</p><p>enigmas oníricos e descobrir o que estava além da consciência e da pré-</p><p>consciência: o desejo inconsciente.</p><p>Assim, Freud evidencia que o sonho é endereçado ao sonhador, ou seja,</p><p>é o próprio inconsciente que se instrumentaliza do sonho para ser ouvido,</p><p>buscando, assim, signos para ser simbolizado.</p><p>4</p><p>1.1 A análise do sonho e sua interpretação</p><p>Freud afirma que todo material que compõe o conteúdo de um sonho é</p><p>derivado de alguma experiência nele relembrada; entretanto, esse material não</p><p>está destinado a ser reconhecido facilmente pelo sonhador, pois é um material</p><p>manifesto, e as imagens do sonho causam estranheza.</p><p>Entre as fontes do material dos sonhos estão as experiências da infância,</p><p>conteúdos que não são recordados, nem utilizados no pensamento de vigília</p><p>(Freud, 1900, p. 35). Conforme Garcia-Roza (2008, p. 26), a importância desse</p><p>conteúdo que se torna matéria-prima do sonho não é seu caráter extraordinário;</p><p>pelo contrário, “são pequenos fragmentos, detalhes sem colorido, experiências</p><p>cinzas, pensamentos vagos e fugidios, que vão se constituir como matéria-prima</p><p>dos sonhos”. Contudo, o resgate dessas experiências é apagado logo que</p><p>acordamos.</p><p>As lembranças no sonho são apenas vagas recordações cheias de</p><p>lacunas; há quem nem se lembre do que sonhou. Nesse sentido, Freud</p><p>acrescenta que, além da deformação que o pensamento latente sofre com o</p><p>sonho, a própria recordação do sonho pode sofrer deformação pelo pensamento</p><p>de vigília; porém, mesmo sofrendo essa deformação, que ele nomeia de</p><p>elaboração secundaria, a interpretação é válida. Dessa forma, Garcia-Roza</p><p>(2008, p. 27-28) conclui:</p><p>O que Freud defende, e esta é uma tese central de sua teoria dos</p><p>sonhos, é que as modificações às quais o sonho é submetido não são</p><p>arbitrárias, mas que obedecem ao determinismo psíquico. Nada há de</p><p>arbitrário nas transformações sofridas por um material psíquico, seja</p><p>ele qual for. A transposição do sonho em palavras obedece a um</p><p>rigoroso determinismo, que é o que torna possível não apenas a</p><p>interpretação dos sonhos, mas também o trabalho de interpretação</p><p>presente na prática psicanalítica em geral.</p><p>O que é importante compreendermos é que o trabalho de interpretação</p><p>de sonhos não recupera o sonho esquecido na consciência, mas nos remete aos</p><p>fatos importantes que eles nos trazem.</p><p>TEMA 2 – O TRABALHO DO SONHO</p><p>O trabalho do sonho é o tema do capítulo VI de A interpretação dos</p><p>sonhos (1900), no qual Freud nos prepara para o capítulo seguinte, que vai tratar</p><p>de um ponto fundamental da psicanálise: a estrutura do aparelho psíquico.</p><p>5</p><p>Freud (1900, p. 276) inicia o capítulo VII apontando para a descoberta de</p><p>sua investigação: “introduzimos uma nova classe de material psíquico entre o</p><p>conteúdo manifesto dos sonhos e as conclusões de nossas investigações: a</p><p>saber, seu conteúdo latente”.</p><p>O pensamento latente é o pensamento do sonho, e ele é inconsciente e</p><p>só surge no sonho recoberto pelo conteúdo manifesto. O campo de</p><p>funcionamento do sonho foi concebido por Freud da seguinte forma.</p><p>• Conteúdo manifesto: é o conteúdo recordado do sonho; é um material</p><p>distorcido e única via para se ter acesso ao pensamento latente.</p><p>• Pensamento latente: é a matéria-prima do sonho; está na origem do</p><p>conteúdo manifesto e é inteiramente inconsciente.</p><p>• Trabalho do sonho: processo que transforma o pensamento do sonho</p><p>em conteúdo manifesto.</p><p>• Trabalho de interpretação: processo oposto ao trabalho do sonho, pois</p><p>parte do conteúdo manifesto para chegar ao pensamento latente do</p><p>sonho.</p><p>• Restos diurnos: são os materiais que comportam as distorções do</p><p>conteúdo manifestos; podem ser desejos ou tarefas inacabadas do dia</p><p>anterior.</p><p>No entanto, nem tudo que aparece no sonho conseguirá ser explicado</p><p>pelos restos diurnos, pois são elementos completamente desconectados; são</p><p>precisamente esses elementos que interessarão mais à psicanálise em sua</p><p>tarefa de interpretação. Pelas palavras de Garcia-Roza (2008, p. 83),</p><p>Quanto mais trivial, disparatado e desinteressante é um elemento do</p><p>sonho manifesto, e quanto mais o sonhador se recusa a fornecer</p><p>associações a este elemento alegando sua desimportância, mais ele</p><p>se mostra significante para o trabalho de decifração, posto que são</p><p>precisamente eles que poderão conduzir ao desejo inconsciente e à</p><p>solução do sonho.</p><p>A dificuldade de levar o analisante a associar o conteúdo do sonho é</p><p>imposta pela resistência, visto que a verdade do desejo inconsciente seguirá</p><p>sendo censurada pela consciência. É nesse sentido que Lacan, em O seminário:</p><p>livro 2: o eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise (1955), informa que</p><p>a censura que se impõe contra a interpretação está no nível do discurso,</p><p>portanto, não diz respeito ao recalque, mas trata-se de uma censura atrelada a</p><p>uma lei advinda do supereu. Portanto, cabe-nos o seguinte entendimento:</p><p>6</p><p>censura e resistência, mas não ao mesmo registro. Garcia-Roza (2008, p. 88)</p><p>nos ajuda nessa compreensão:</p><p>• Censura: segundo Freud, a censura (Zensur) é responsável pela</p><p>deformação a que são submetidos os pensamentos latentes pelo trabalho</p><p>do sonho. É algo que opera na passagem de um sistema para outro mais</p><p>elevado (Ics – P-Cs/P-Cs – Cs). Ao longo de sua obra, a função de</p><p>censura foi atribuída ao eu, terminando por se confundir com a noção de</p><p>supereu.</p><p>• Resistência: é algo diferente da censura; nas palavras de Freud (1900):</p><p>“tudo aquilo que perturba a continuação do trabalho analítico é uma</p><p>resistência”, portanto, trata-se daquilo que se opõe à interpretação.</p><p>2.1 Os mecanismos do sonho</p><p>Após o pensamento latente sofrer censura, os sonhos são transformados</p><p>pelos mecanismos de deslocamento e condensação.</p><p>• Condensação: é o mecanismo que transforma o pensamento latente em</p><p>uma versão abreviada no conteúdo manifesto do sonho; desse modo, o</p><p>conteúdo manifesto é sempre uma versão menor do que o pensamento</p><p>latente, e o contrário nunca se aplica. Por exemplo: no sonho manifesto,</p><p>uma casa pode representar várias coisas do pensamento latente – pode</p><p>ter o aspecto da casa de infância, mas ser um hospital e ser o local de</p><p>trabalho.</p><p>• Deslocamento: esse mecanismo opera por dois meios: 1) substituindo</p><p>um elemento do pensamento latente por outro que faça alusão ao</p><p>primeiro; 2) deslocando o acento de um elemento importante para outros</p><p>sem importância. Desse modo, um elemento importante do pensamento</p><p>latente surge desacreditado de seu valor no conteúdo manifesto.</p><p>Lacan, em A instância da letra no inconsciente (1957, p. 514), nos remete</p><p>à ideia de que o sonho é uma linguagem de uma escrita psíquica, cujas imagens</p><p>não devem ser consideradas em seu valor de imagem, mas em seu valor</p><p>significante: “Essa estrutura de linguagem que possibilita a operação da leitura</p><p>está no princípio da significância do sonho, da Traumdeutung”.</p><p>Portanto, a imagem não porta sua significação, mas ela articula uma rede</p><p>de significantes que, pela sua relação de oposição, vai constituindo o significado</p><p>7</p><p>do sonho. Garcia-Roza (2008, p. 96) declara que “’o efeito de distorção’</p><p>(Entstellung) produzido pelo trabalho do sonho é resultado desse deslizamento</p><p>do significado sob o significante, distorção operada pelos mecanismos de</p><p>condensação e de deslocamento”.</p><p>Lacan aborda a teoria de deslocamento e condensação e lhe dá um novo</p><p>entendimento: metáfora e metonímia.</p><p>• Metáfora: é o que corresponde à condensação.</p><p>• Metonímia: é o que corresponde ao deslocamento.</p><p>TEMA 3 – O APARELHO PSÍQUICO</p><p>O capítulo VII de A interpretação dos sonhos é considerado, por alguns</p><p>autores, o herdeiro do Projeto; no entanto, como salienta Garcia-Roza (2009),</p><p>não há, entre os dois textos, uma linha de continuidade; na verdade, o que há é</p><p>uma mudança de direção, pois enquanto no Projeto se destaca a quantidade de</p><p>energia, A interpretação dos sonhos trata</p><p>do desejo.</p><p>Nesse capítulo, Freud apresenta o seu primeiro modelo topológico do</p><p>aparelho psíquico, denominado de primeira tópica do aparelho psíquico; nele,</p><p>suas localizações representam um lugar metafórico, e não mais uma visão</p><p>anatômica, como ocorria no Projeto. Freud, portanto, elabora um sistema de</p><p>funcionamento dinâmico entre três instâncias: inconsciente, pré-consciente e</p><p>consciente.</p><p>• Inconsciente (Ics): os elementos que compõem o inconsciente são</p><p>conteúdos recalcados recusados pela consciência; contudo, esse</p><p>conteúdo não fica de forma passiva no inconsciente: ele exerce força</p><p>contra os outros sistemas, pois seu único objetivo é a satisfação.</p><p>• Pré-consciente (P-Cs): o conteúdo do sistema pré-consciente não está</p><p>ativamente no campo da consciência, mas ele pode ser trazido à</p><p>consciência quando evocado, pois, diferentemente do conteúdo</p><p>inconsciente, ele não foi recalcado.</p><p>• Consciente (Cs): esse sistema está na periferia do funcionamento do</p><p>aparelho psíquico, isto é, na percepção. Ele recebe informações dos</p><p>mundos exterior e interior. Laplanche e Pontalis (2001, p. 93) descrevem</p><p>a consciência como um receptor de estímulos externos e internos,</p><p>“sensações que se inscrevem na série de desprazer-prazer e as</p><p>8</p><p>revivescências mnêmicas.” O sistema consciente é onde os conflitos são</p><p>gerados, pois ele cria defesas contra as investidas do inconsciente.</p><p>Freud, no momento da elaboração da primeira tópica, buscava definir um</p><p>sentido para o inconsciente; contudo, sua preocupação era apontar para o fluxo</p><p>de seu sentido. Assim, o que importa para o autor não é sua posição no sistema,</p><p>mas a relação que cada um dos sistemas mantinha com os demais. Ou seja, no</p><p>conjunto dos sistemas, cada um possui um sentido ou direção, fazendo com que</p><p>nossas atividades psíquicas se iniciem a partir de estímulos (internos ou</p><p>externos) e finalizam em uma descarga motora.</p><p>O funcionamento do aparelho apresentado por Freud, como salienta</p><p>Garcia-Roza (2008, p. 154), não é apenas um aparelho de sonhar, mas, também,</p><p>de memórias, de pensar, de falar, de fantasiar etc.</p><p>A apresentação gráfica do aparelho psíquico, conhecido informalmente</p><p>como o modelo do pente, é a seguinte:</p><p>Figura 1 – Modelo do pente</p><p>Fonte: Freud, 1900, p. 521.</p><p>A zona perceptiva (Pcpt), que fica na extremidade do aparelho psíquico,</p><p>recebe os estímulos, mas não os associa nem os registra, pois ela permanece</p><p>sempre aberta a novos estímulos. Assim, fica reservada aos sistemas mnêmicos</p><p>a função de receber a excitação e criar traços permanentes, de modo que as</p><p>associações vão ocorrer no interior desse sistema, entre um traço e outro.</p><p>No Ics, Freud localiza o impulso da formação dos sonhos, nos quais o</p><p>desejo inconsciente se liga aos pensamentos oníricos pertencentes ao Pcs/Cs,</p><p>procurando uma forma de acesso à consciência graças à diminuição da censura</p><p>durante o sono (Garcia-Roza, 2009, p. 81).</p><p>Assim, pela posição que ocupa no interior do aparelho, o sistema Ics</p><p>só pode ter acesso à consciência através do sistema Pcs/Cs, sendo</p><p>que nessa passagem seus conteúdos se submetem às exigências</p><p>9</p><p>deste último sistema. Qualquer que seja o conteúdo do Ics, ele só</p><p>poderá ser conhecido se transcrito – e, portanto, modificado e</p><p>distorcido – pela sintaxe do Pcs/Cs. (Garcia-Roza, 2009, p. 81)</p><p>A consciência fica localizada no polo motor (M), visto que é o lugar onde</p><p>o aparelho psíquico descarrega os estímulos; desse modo, a consciência e a</p><p>motricidade se encarregam de aliviar as tensões do aparelho psíquico, mantendo</p><p>os níveis de tensão o mais baixo possível. Portanto, a consciência transforma</p><p>quantidade em qualidade, pois, para Freud, o aparelho psíquico responde ao</p><p>funcionamento do arco reflexo, que obedece ao princípio de prazer.</p><p>Logo, como evidenciamos, Freud pretendia demonstrar uma ordem de</p><p>sucessão temporal para os processos psíquicos, pela qual a excitação faz o</p><p>percurso que vai da extremidade perceptiva à extremidade motora, passando</p><p>pelos sistemas mnêmicos, pelo Ics, pelo Pcs, até atingir o Cs.</p><p>Freud sustenta assim sua tese – de que no psiquismo não há uma</p><p>arbitrariedade nos acontecimentos. E demostra, por meio dos pensamentos</p><p>oníricos latentes que, para que eles possam chegar à consciência, sofrem uma</p><p>deformação por conta de uma censura, um mecanismo de defesa que vela seu</p><p>caráter no sonho.</p><p>TEMA 4 – O DESEJO</p><p>Wunsch (“desejo”), na psicanálise, não é acessível à consciência, pois o</p><p>desejo é, antes de qualquer coisa, inconsciente. Nesse sentido, o desejo não</p><p>está identificado com uma necessidade biológica, que pode encontrar satisfação</p><p>em objetos adequados (como o alimento). O desejo inconsciente está ligado a</p><p>traços mnêmicos, como os apontados por Freud na primeira experiência de</p><p>satisfação.</p><p>Em A interpretação dos sonhos (1900), Freud nos guia para o</p><p>entendimento de que o desejo inconsciente</p><p>tende a realizar-se na reprodução onírica ou fantasística dos signos de</p><p>percepção pelos quais uma experiência de prazer (Lust) ou de</p><p>desprazer (Unlust) foi memorizada no aparelho psíquico, sob a forma</p><p>dos traços mnêmicos que a constituem. (Valas, 2001)</p><p>Assim, para Freud, o desejo se impõe como uma força no psiquismo que</p><p>vai sempre na direção das marcas mnêmicas deixadas pelas experiências</p><p>vividas, pelas quais o objeto de satisfação é sempre um reencontro com o objeto</p><p>perdido.</p><p>10</p><p>Roudinesco (1998, p. 147), no Dicionário de psicanálise, descreve a</p><p>realização do desejo na reprodução, simultaneamente inconsciente e</p><p>alucinatória, das percepções transformadas em signos de satisfação: “Esses</p><p>signos, segundo Freud, têm sempre um caráter sexual, uma vez que o desejo</p><p>sempre tem como móbil a sexualidade”.</p><p>O desejo, portanto, porta em si um móbil sexual que, inevitavelmente, gera</p><p>um conflito psíquico, haja vista que seu objeto de satisfação é proibido. Qual é o</p><p>desejo que se realiza no sonho? De fato, não se trata de qualquer desejo, pois,</p><p>como Freud nos ensina, o desejo diurno, consciente, não é capaz de produzir</p><p>um sonho, a não ser que, paralelamente, ele consiga ascender a outro ponto, o</p><p>inconsciente. É isso que Freud nos ensina em A interpretação dos sonhos: o</p><p>desejo que produz o sonho é o desejo inconsciente. Ele fica à espreita da</p><p>consciência, à espera de uma oportunidade para uma aliança.</p><p>Esses desejos, em estado de alerta permanente, são os desejos</p><p>recalcados, únicos capazes de produzir um sonho (apesar da aliança</p><p>que fazem com os desejos do Pcs/Cs). São desejos infantis que</p><p>permanecem em estado de recalcamento e que, enquanto tais, são</p><p>indestrutíveis. (Garcia-Roza 2008, p. 176)</p><p>Desse modo, podemos compreender que os desejos pré-conscientes ou</p><p>conscientes participam da formação do sonho, fornecendo elementos para a</p><p>realização do desejo inconsciente, os restos diurnos.</p><p>A realização tem como efeito tornar real algo que antes era do campo da</p><p>alucinação; nesse sentido, afirmar que o sonho é a realização do desejo é</p><p>paradoxal, haja vista que a realização do desejo no sonho é alucinatória.</p><p>Todavia, no caso do desejo que se realiza no sonho, ele nos direciona a outra</p><p>ordem, que não é a biológica (cuja realização ocorre na realidade), mas a uma</p><p>ordem não adaptativa, que é definida pelo registro do imaginário, cuja satisfação</p><p>é simbólica.</p><p>Lacan (1955, p. 280), em O seminário: Livro 2..., nos ensina a ler Freud</p><p>pela perspectiva do mundo freudiano, ou seja, um mundo que não é das coisas</p><p>e do ser, mas da falta, pois é desde aí que o desejo pode ser compreendido.</p><p>A origem do desejo estará calcada no Complexo de Édipo, pois é por meio</p><p>do mito que Freud desvela a estruturação do desejo articulada à lei. Da vivência</p><p>edipiana decorrerão dois desejos: a morte do pai e o desejo sexual pela mãe,</p><p>que será recalcado. Quinet (2003, p. 75) sublinha esse acontecimento:</p><p>11</p><p>Que o desejo guarde o selo da primeira infância só faz acentuar suas</p><p>características de proibido, inconfessável e também de indestrutível.</p><p>Uma vez presente, jamais se extinguirá. O desejo só conhece a morte</p><p>como as sombras do inferno na Odisseia que, ao beberem sangue,</p><p>despertam para uma nova vida. O verbo é o sangue do desejo no</p><p>sonho.</p><p>Assim, do mesmo modo como o sujeito deseja, ele repudia a realização</p><p>do seu desejo, sendo essa a divisão do sujeito neurótico de que Freud nos</p><p>aproxima desde o Projeto, quando situa, no psiquismo, o funcionamento dos</p><p>processos primários que correspondem ao inconsciente e no qual só há desejos,</p><p>e os processos secundários que os inibe. As formulações de Freud, destaca</p><p>Quinet (2003, p. 76), são tais que podemos admitir que o inconsciente só “ex-</p><p>siste” graças ao desejo: “Ele é incapaz de fazer qualquer coisa que não seja</p><p>desejar”.</p><p>Portanto, o desejo inconsciente, como uma noção psicanalítica a ser</p><p>compreendida, é aquilo que não pode ser nomeado enquanto tal, tampouco pode</p><p>ser designado; contudo, o sujeito se encontra inferido a ele. “Ele é desejo – sem</p><p>qualificativos, sem atribuições, sem dono, sem nome. O sonho só faz encená-lo,</p><p>e seu relato com suas associações mostra por quais significantes circula”</p><p>(Quinet, 2003, p. 78).</p><p>4.1 Demanda e desejo</p><p>A psicanálise nos ensina que o sujeito se constitui a partir de uma falta.</p><p>Essa falta é nomeada de objeto perdido, pelo qual o sujeito passa a vida</p><p>perseguindo, pois esse seria o objeto capaz de devolver-lhe a satisfação plena.</p><p>Portanto, o objeto perdido desde sempre é a condição essencial do desejo.</p><p>Freud (1900) retoma a experiência de satisfação, descrita no Projeto, no</p><p>subcapítulo “A realização do desejo” de A interpretação dos sonhos. Na</p><p>experiência de satisfação, a percepção do alimento estará associada à marca</p><p>mnêmica do aumento de excitação de uma necessidade fisiológica: a fome.</p><p>Assim, toda vez que a fome surgir, o bebê a associará ao objeto de satisfação.</p><p>De toda forma, é o reinvestimento dessa imagem mnêmica do objeto que</p><p>reconstituirá a situação da primeira satisfação. Esse movimento é o desejo,</p><p>explica Quinet (2003, p. 88).</p><p>A demanda será direcionada a um outro vetor: precisamos inserir na cena</p><p>a imagem da mãe, que Lacan nomeia de Outro primordial, pois é a presença</p><p>desse Outro provedor do objeto que satisfaz a necessidade de que podemos</p><p>12</p><p>situar a demanda, uma vez que, para que uma necessidade seja suprida, é</p><p>necessário que o Outro interprete seu pedido. Assim, a demanda é um apelo ao</p><p>Outro: “A demanda está nesse apelo (grito interpretado como dirigido ao Outro</p><p>da assistência) que o sujeito faz em busca de um complemento que é o objeto</p><p>que pode satisfazê-lo. E nessa demanda se desenrola o desejo” (Quinet 2003,</p><p>p. 88).</p><p>Na clínica, o sujeito demanda do analista: “quero satisfação”. Esse apelo</p><p>deve ser transformado em uma demanda de análise, pois é em análise que o</p><p>sujeito poderá se ver com o objeto perdido e sustentar seu desejo, para além da</p><p>falta.</p><p>TEMA 5 – A SEXUALIDADE NA TEORIA FREUDIANA</p><p>Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905) é um dos mais</p><p>importantes artigos de Freud. Nele, é abordado o desenvolvimento da</p><p>organização infantil, enfatizando que a vida sexual da criança é marcada pelo</p><p>autoerotismo, ou seja, a criança encontra prazer no próprio corpo.</p><p>Os três ensaios contêm as bases da concepção psicanalítica sobre a</p><p>sexualidade, e se fazem atuais até hoje, pois ainda produzem resistência, por</p><p>conterem contribuições originais para o conhecimento humano.</p><p>Na realidade, há um grande mal-entendido na sociedade que pensa que</p><p>na psicanálise tudo gira em torno do sexo. Não chega a ser uma mentira, mas</p><p>tampouco é uma verdade, pois o conceito de sexualidade, para a psicanálise,</p><p>não está relacionado apenas aos órgãos genitais e ao ato sexual, mas a prazer</p><p>e desprazer em sua relação com a pulsão.</p><p>Freud desmontou a noção de patologia relacionada à sexualidade de sua</p><p>época e se opôs ao enquadrando da normalidade da sexualidade “humanamente</p><p>humana”. Coutinho Jorge (2010, p. 84) destaca que, ainda que não seja</p><p>evidenciado pelos historiadores, o que Freud promoveu com sua teoria da</p><p>sexualidade foi um grande corte epistemológico nos estudos da época.</p><p>No entanto, a psicanálise ainda encontra resistência por aqueles que</p><p>ainda não foram capazes de compreender que o sexual não é, em sua dimensão</p><p>teórica, o mesmo que o genital; trata-se de uma ampliação do conceito, que</p><p>desde início foi evidenciado pela pulsão. A sexualidade, na psicanálise, é, em</p><p>suma, uma ruptura com os sexólogos, que reduzem a sexualidade ao sexual</p><p>biológico, no qual são remetidos unicamente ao genital. A própria apreensão de</p><p>13</p><p>Freud a respeito da dimensão mortífera da pulsão, que, em seu artigo O</p><p>problema econômico do masoquismo (1924) aponta para uma oposição entre o</p><p>princípio de constância e princípio de Nirvana – não é abordada pelo viés do</p><p>comportamento sexual, mas com a finalidade de alcançar o enraizamento do</p><p>inconsciente. Portanto, Jorge (2010) afirma:</p><p>é preciso que recordemos o importante lembrete de Foucault, quando</p><p>afirmou que o grande escândalo promovido pela psicanálise foi não</p><p>apenas falar de sexo, mas falar de sexo dentro de uma certa lógica,</p><p>dentro de um certo aparato conceitual consistente.</p><p>NA PRÁTICA</p><p>O sonho foi e continua sendo um dos principais conteúdos para análise</p><p>em nossa prática clínica. Muitas pessoas dizem que não sonham, mas, na</p><p>verdade, o que ocorre é que elas não se recordam de seus sonhos, justamente</p><p>porque o sonho está diretamente ligado ao desejo inconsciente; assim, ao</p><p>acordar, ele sofre uma nova censura. Contudo, à medida que o analisante</p><p>avança em sua análise, ele tem a sensação de estar sonhando mais, mas o real</p><p>motivo para ele estar se recordando de seus sonhos está no fato de ele ter</p><p>afrouxado sua resistência.</p><p>Trabalhar com o material do sonho não é uma tarefa fácil, de modo que</p><p>sua interpretação nem sempre ocorre durante uma sessão; em alguns casos, a</p><p>interpretação pode ocorrer anos depois, ou, até mesmo, no final da análise. Por</p><p>isso, nenhum sonho deve ser descartado, mas mantido como um conteúdo</p><p>passível de ser associado pela associação livre.</p><p>Em um caso clínico, uma paciente relatou um sonho que lhe era muito</p><p>frequente: a analisante caminhava por diversos lugares, sem saber para onde ir;</p><p>uma mulher, que se parecia com ela – mas não era ela, sempre a encontrava</p><p>quando ela estava perdida; essa mulher a levava para casa, e então a paciente</p><p>acordava. O sentimento de estar perdida a colocava em um imenso vazio, pois</p><p>ela dizia que vagava, mas não sabia nem aonde ia, nem se havia um lugar para</p><p>ir.</p><p>A analisante tentava engravidar há anos, mas não tinha sucesso; seu</p><p>desejo de ser mãe existia desde a infância, e sofria muito a cada tentativa</p><p>frustrada. Tempos depois, ela engravidou de uma menina, e ela associa a</p><p>imagem da mulher do sonho ao seu desejo de ter uma filha. Assim, a filha era a</p><p>14</p><p>mulher que dava um destino, uma identidade, um lugar ao seu desejo: a</p><p>maternidade.</p><p>FINALIZANDO</p><p>A interpretação dos sonhos (1900) marca o início da psicanálise como o</p><p>saber de um campo específico, cujo objeto de análise é o inconsciente. O</p><p>trabalho do sonho foi apresentado por Freud por meio dos seguintes elementos:</p><p>• Conteúdo manifesto;</p><p>• Pensamento latente;</p><p>• Trabalho do sonho;</p><p>• Trabalho de interpretação; e</p><p>• Restos diurnos.</p><p>Os mecanismos dos sonhos são: deslocamento e condensação.</p><p>• Condensação: é o mecanismo que transforma o pensamento latente em</p><p>uma versão abreviada no conteúdo manifesto do sonho.</p><p>• Deslocamento: esse mecanismo opera por dois meios: 1) substituindo</p><p>um elemento do pensamento latente por outro que faça alusão ao</p><p>primeiro; 2) deslocando o acento de um elemento importante para outros</p><p>sem importância.</p><p>Em seguida, trabalhamos a primeira tópica do aparelho psíquico, que</p><p>apresenta os sistemas inconsciente (Ics), pré-consciente</p><p>(P-cs) e consciente</p><p>(Cs). Por meio deles, Freud sustenta sua tese de que no psiquismo não há uma</p><p>arbitrariedade nos acontecimentos.</p><p>Na seção 4, apresentamos a noção do desejo para a psicanálise. O desejo</p><p>é inconsciente, visto que não pode ser nomeado como tal, tampouco pode ser</p><p>designado; contudo o sujeito se encontra inferido a ele. “Ele é desejo – sem</p><p>qualificativos, sem atribuições, sem dono, sem nome. O sonho só faz encená-lo,</p><p>e seu relato com suas associações mostra por quais significantes circula”</p><p>(Quinet, 2003, p. 78).</p><p>Por fim, estudamos a noção de sexualidade na teoria psicanalítica: ela</p><p>está além do sexo, referindo-se, no entanto, ao prazer e ao desprazer em relação</p><p>à pulsão.</p><p>15</p><p>REFERÊNCIAS</p><p>FREUD, S. A interpretação dos sonhos. In: FREUD, S. Obras completas:</p><p>volume V. Rio de Janeiro: Imago, Versão digital.</p><p>FREUD, S. Obras incompletas de Sigmund Freud: fundamentos da clínica</p><p>psicanalítica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.</p><p>GARCIA-ROZA, L. A. Freud e o inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,</p><p>2009.</p><p>GARCIA-ROZA, L. A. Matapsicologia freudiana: volume 2. Rio de Janeiro:</p><p>Jorge Zahar, 2008.</p><p>JORGE, M. A. C. Fundamentos da psicanálise: de Freud a Lacan – volume 1.</p><p>Rio de Janeiro: Zahar, 2005.</p><p>QUINET, A. A descoberta do inconsciente: do desejo ao sintoma. Rio de</p><p>Janeiro: Jorge Zahar, 2003</p><p>CONCEITOS FUNDAMENTAIS</p><p>EM PSICANÁLISE</p><p>AULA 3</p><p>Prof.ª Juliana Santos</p><p>2</p><p>CONVERSA INICIAL</p><p>Nesta etapa, propomos trabalhar com o volume XIV das Obras completas</p><p>de Freud. Como veremos, neste volume Freud reúne uma coleção de artigos</p><p>metapsicológicos. O período em que foi escrito esses artigos foi um momento</p><p>importante na história da Psicanálise, pois, com a eclosão da Primeira Guerra</p><p>Mundial, dentro dos muros dessa área do conhecimento eclodia outra guerra</p><p>entre o pai da Psicanálise e seus principais discípulos, Adler e Jung.</p><p>A guerra dentro dos muros da Psicanálise foi narrada por Freud (1914)</p><p>em seu artigo A história do movimento psicanalítico, em que ele responde aos</p><p>confrontos teóricos de Adler e Jung, que quase levaram a cabo a recém-fundada</p><p>Associação de Psicanálise Internacional (IPA).</p><p>A IPA foi fundada em 1910, após o segundo congresso de Psicanálise em</p><p>Nuremberg, que contou com 60 participantes. O objetivo era proteger a</p><p>Psicanálise, e o nome sugerido por Freud para zelar pelo futuro da associação</p><p>e manter a área viva foi o de Jung, seu principal aliado na época. Como nos</p><p>conta Zimerman (1999, p. 25), a Psicanálise se via ameaçada.</p><p>A ideia que inspirou a criação de uma entidade internacional com</p><p>princípios ortodoxos a serem rigidamente cumpridos pelos seguidores</p><p>foi o fato de que, em nome e na sombra do movimento da psicanálise,</p><p>estava-se disseminando não só uma licenciosidade de envolvimento</p><p>sexual como também a indiscriminada prática da “análise silvestre”.</p><p>Contudo, quatro anos após o início da IPA, Freud se desencanta pela</p><p>figura do tão notável médico Jung, o qual ele mesmo chamará de “príncipe</p><p>herdeiro”, e que, nesse momento, passou a ser descrito como uma “pessoa</p><p>incapaz de tolerar a autoridade de outra, mais incapaz ainda de exercê-la ele</p><p>próprio, e cujas energias se voltavam inteiramente para a promoção de seus</p><p>próprios interesses” (Freud, 1914, p. 27).</p><p>Jung, ao longo de sua trajetória, dava sinais de inconformidade com a</p><p>teoria psicanalítica e se mostrava incomodado com a teoria da sexualidade. Mas</p><p>a grande divergência teórica ficou por conta da teoria da libido, pois Jung se</p><p>negava a concebê-la como uma energia sexual e a presumia como um conceito</p><p>designativo da tensão em geral, que, para Freud, soou como uma diluição do</p><p>conceito a ponto de perder toda a sua especificidade. Garcia-Roza (2008, p. 13)</p><p>explica assim:</p><p>3</p><p>As modificações introduzidas por Jung na psicanálise, Freud as</p><p>compara com a famosa faca de Lichtenberg: “mudou o cabo e botou</p><p>uma lâmina nova, e porque gravou nela o mesmo nome espera que</p><p>seja considerada como o instrumento original”.</p><p>Portanto, a História do movimento psicanalítico é um importante artigo</p><p>para os psicanalistas, pois Freud, de forma energética, afastou as</p><p>inconsistências teóricas da Psicanálise, que estava sendo posta pelos próprios</p><p>membros da IPA. E o que vem em seguida é a própria revisão da teoria que foi</p><p>redigida a partir de 1915, com a apresentação dos Artigos sobre a</p><p>Metapsicologia.</p><p>TEMA 1 – O NARCISISMO</p><p>A teoria do narcisismo foi apresentada em 1914, no artigo Um Introdução</p><p>ao Narcisismo. Contudo, já tecendo o seu conceito desde os Três ensaios sobre</p><p>a teoria da sexualidade, quando, em uma nota de rodapé, escrita em 1909, Freud</p><p>apontou para um estádio entre o autoerotismo e o amor objetal.</p><p>O narcisismo está na base de vários conceitos psicanalíticos, assumindo</p><p>uma função primordial na constituição do eu. O termo vem da mitologia grega,</p><p>cuja história é de um jovem de nome Narciso que se apaixona por sua própria</p><p>imagem refletida no rio e morre indo ao encontro dela.</p><p>Crédito: NNNMMM/Shutterstock.</p><p>4</p><p>Para situarmos o estádio do narcisismo, temos que remeter ao texto dos</p><p>Três ensaios, em que Freud (1905) contextualiza o estádio do autoerotismo</p><p>como sendo uma condição da sexualidade infantil, na qual a criança encontra</p><p>satisfação no próprio corpo, sem ter que recorrer a objetos externos.</p><p>Portanto, o autoerotismo é o estado inicial da libido, em que as pulsões</p><p>se satisfazem no próprio corpo. Para que esse estádio inicial possa se abrir para</p><p>dar início a outro estádio, é necessário que uma nova ação psíquica se</p><p>acrescente ao autoerotismo – o eu.</p><p>O eu não está dado, ou seja, ele não nasce de forma originária. Como</p><p>enfatiza Lacan (1957), a criança nasce em sua “estúpida e inefável existência”,</p><p>um pedaço de carne, sendo o narcisismo a condição essencial para a formação</p><p>do eu. O investimento dos pais, ou de quem exerce essa função, faz surgir o</p><p>narcisismo simultaneamente ao eu. Essa primeira moção narcísica funda o eu</p><p>como um grande reservatório de libido, pelo qual, posteriormente, parte dessa</p><p>libido narcísica se transforma em libido do objeto.</p><p>Essa constatação é importante para a teoria, pois, no autoerotismo, a</p><p>pulsão era anarquista, cujo interesse não estava direcionado, pois o eu e o objeto</p><p>não estavam instituídos, era pura busca de satisfação das pulsões parciais. Mas,</p><p>ao ser instituído o narcisismo, o eu passa a ser o seu principal objeto de</p><p>investimento libidinal. Nesse sentido, o sujeito não morre porque ele se ama, e</p><p>não porque tende a um princípio de autoconservação.</p><p>O investimento no eu tornou-se questão para Freud desde o Caso</p><p>Schreber, no qual ele buscava uma maior compreensão sobre o investimento da</p><p>libido no eu, que produzia um delírio de grandeza. E, por meio da elaboração do</p><p>conceito do narcisismo, ele evidencia que o delírio de grandeza se trata de um</p><p>desvio do investimento libidinal ao mundo externo, no qual este é levado a um</p><p>superinvestimento no eu do sujeito. Por meio da concepção da teoria do</p><p>narcisismo, ele evidencia que o movimento de retirada de libido dos objetos</p><p>externos só poderia ser em um segundo tempo do narcisismo, ou seja, algo que</p><p>seria sucessor ao narcisismo primário, que é o narcisismo fundamental para</p><p>instituir o eu como objeto.</p><p>TEMA 2 – AS CONSIDERAÇÕES SOBRE O NARCISISMO</p><p>• Narcisismo primário – são os primeiros investimentos libidinais dos pais</p><p>nas crianças, culminando na integração de um corpo que, antes, no</p><p>5</p><p>autoerotismo, se apresentava fragmentado, e, agora, passa a ser um</p><p>corpo unificado que assume, no psiquismo, o lugar do eu. O eu é, em</p><p>primeiro lugar, uma superfície corporal;</p><p>• Narcisismo secundário – trata-se da libido que retorna ao eu, ou seja,</p><p>“a libido que anteriormente investia o eu passa a investir objetos externos</p><p>e posteriormente volta a tomar o eu como objeto”</p><p>(Garcia-Roza, 2008, p.</p><p>49).</p><p>Ainda sobre o narcisismo primário, Freud (1914, p. 57) evidencia que a</p><p>origem desse investimento nos filhos é a tentativa narcísica dos pais em resgatar</p><p>o seu próprio narcisismo perdido.</p><p>Se prestarmos atenção à atitude de pais afetuosos para com os filhos,</p><p>temos de reconhecer que ela é uma revivescência e reprodução de seu</p><p>próprio narcisismo, que de há muito abandonaram. [...] Assim eles se</p><p>acham sob a compulsão de atribuir todas as perfeições ao filho - o que</p><p>uma observação sóbria não permitiria – e de ocultar e esquecer todas</p><p>as deficiências dele.</p><p>Portanto, o eu que se forma por meio do narcisismo primário e que efetua</p><p>a unidade corporal é o eu da projeção do eu ideal dos pais.</p><p>• Eu ideal – o eu do sujeito funda-se por essa inscrição narcísica dos pais,</p><p>o eu ideal, um estado de onipotência ao qual Freud relaciona o termo</p><p>“vossa majestade o bebê”, ao passo que, ao longo da vida, o eu ideal fica</p><p>apenas como uma inscrição original do narcisismo que os pais tentam</p><p>resgatar nos filhos;</p><p>• Ideal de eu – surge como uma instância diferenciada do eu, e sua função</p><p>é ditar moldes para o eu, a fim de recuperar a posição perdida do eu ideal.</p><p>“O que ele projeta diante de si como sendo seu é o substituto do</p><p>narcisismo perdido de sua infância na qual ele era o seu próprio ideal”</p><p>(Freud, 1914, p. 58).</p><p>Portanto, o ideal do eu, vale lembrar, não surge para substituir o eu ideal,</p><p>lugar narcísico fundamentalmente perdido, mas inscrito psiquicamente e</p><p>insuperável, pois a régua que medirá o ideal do eu será posta pelo seu eu ideal,</p><p>do qual o sujeito jamais abrirá mão (Freud, 1914, p. 62).</p><p>O desenvolvimento do ego consiste num afastamento do narcisismo</p><p>primário e dá margem a uma vigorosa tentativa de recuperação desse</p><p>estado. Esse afastamento é ocasionado pelo deslocamento da libido</p><p>em direção a um ideal do ego imposto de fora, sendo a satisfação</p><p>provocada pela realização desse ideal.</p><p>6</p><p>TEMA 3 – A PULSÃO</p><p>A teoria da pulsão apresentada no texto As pulsões e seus destinos é o</p><p>primeiro texto que compõe os cinco artigos da metapsicologia freudiana e foi</p><p>considerado por Freud a sua mitologia, isto porque se trata do conceito mais</p><p>original de sua teoria, e é nisso que somos lançados no fogo do “caldeirão da</p><p>bruxa” – a bruxa da metapsicologia.</p><p>O primeiro ponto de que devemos ter clareza é que, em algumas</p><p>traduções, o termo alemão Trieb foi erroneamente traduzido para o português</p><p>por instinto, sendo que, no alemão, a tradução de instinto é Instinkt. Assim, o</p><p>correto ao ler nas versões em português é substituir a palavra instinto por pulsão.</p><p>Portanto, a pulsão não pode ser confundida por instinto, pois trata-se de</p><p>conceitos distintos. O instinto é impulso no interior do animal, que o leva a</p><p>executar de forma automática atos adequados às necessidades de sua</p><p>sobrevivência e da sua prole. A pulsão, como veremos a seguir, diz respeito a</p><p>uma carga energética que se encontra na origem da atividade motora do</p><p>organismo, ou seja, ela não é um estimulo que atua sob efeito de um impacto</p><p>único e se resolvendo por uma só ação. A pulsão não incide por meio de um</p><p>impulso momentâneo, ela é uma força constante que existe no âmago da</p><p>constituição psíquica. Contudo, não é a sobrevivência que estará em jogo, e,</p><p>sim, a satisfação.</p><p>Assim, o conceito de pulsão foi sendo elaborado ao longo da obra</p><p>freudiana e sua construção não se limita a noções descritivas, visto que ela</p><p>acolhe uma realidade não observável, ou seja, refere-se a uma ficção teórica. É</p><p>assim que Garcia-Roza a descreve (2009, p. 115).</p><p>São, portanto, autênticas ficções científicas. Esse é o caso da pulsão</p><p>(Trieb) em Freud: ela nunca se dá por si mesma (nem a nível</p><p>consciente, nem a nível inconsciente), ela só é conhecida pelos seus</p><p>representantes: a ideia (Vorstellung) e o afeto (Affekt). Além do mais,</p><p>ela é meio física e meio psíquica. Daí seu caráter “mitológico”.</p><p>Freud (1915, p. 67) conceitualiza a pulsão numa encruzilhada “situada na</p><p>fronteira entre o mental e o somático”, ou seja, um</p><p>representante psíquico dos estímulos que se originam dentro do</p><p>organismo e alcançam a mente, como uma medida de exigência feita</p><p>à mente no sentido de trabalhar em consequência de sua ligação com</p><p>o corpo.</p><p>7</p><p>Garcia-Roza (2009), a respeito desse conceito da pulsão, nos remete ao</p><p>texto de Freud, O inconsciente (1915), no qual foi posto que a pulsão nunca pode</p><p>tornar-se objeto da consciência, e que, mesmo no inconsciente, ela é sempre</p><p>representada por uma ideia (Vorstellung) ou por um afeto (Affekt) (p. 116). Desse</p><p>modo, a pulsão só pode ser acessada por meio de seus representantes. Isso</p><p>significa que, no mecanismo do recalque, o que é recalcado não é a pulsão, mas</p><p>o representante ideativo da pulsão e o afeto.</p><p>3.1 O desmonte da Pulsão</p><p>Freud (1915) descreve a pulsão como uma força constante no psiquismo</p><p>em busca de satisfação. A pulsão constitui-se em função de quatro aspectos:</p><p>fonte, pressão, objetivo e objeto, pois é com esses referenciais que poderemos</p><p>estabelecer sua concepção psicanalítica.</p><p>• Fonte (Quelle): sua origem é corporal e não psíquica. “Embora as pulsões</p><p>sejam inteiramente determinadas por sua origem numa fonte somática,</p><p>na vida mental nós as conhecemos apenas por suas finalidades” (p. 74);</p><p>• Pressão (Drang): a esse respeito, Freud escreve que “compreendemos</p><p>seu fator motor, a quantidade de força ou a medida da exigência de</p><p>trabalho que ela representa” (p. 73).</p><p>O caráter da pulsão é ativo, mesmo quando a tratamos por pulsão</p><p>passiva. A rigor, ela é ativa, o que surge como passivo na pulsão é o objetivo (a</p><p>exemplo, o caso do masoquismo). A pressão é a própria atividade da pulsão que</p><p>coloca em funcionamento o aparelho psíquico. “A pressão é o elemento motor</p><p>que impele o organismo para a ação específica responsável pela eliminação da</p><p>tensão” (Garcia-Roza 2009).</p><p>Em relação ao objetivo (Ziel), Freud afirma que o objetivo da pulsão é</p><p>sempre a satisfação,</p><p>embora a finalidade última de cada pulsão permaneça imutável, poderá</p><p>ainda haver diferentes caminhos conducentes à mesma finalidade</p><p>última, de modo que se pode verificar que uma pulsão possui várias</p><p>finalidades mais próximas ou intermediárias, que são combinadas ou</p><p>intercambiadas umas com as outras. (p. 73)</p><p>Em termos econômicos, Garcia-Roza (2009, p. 121) sublinha que a</p><p>satisfação é obtida pela descarga de energia acumulada, regulada pelo princípio</p><p>de constância. Esse é, porém, o objetivo geral ou objetivo último da pulsão. Mas</p><p>8</p><p>há ainda os objetivos específicos ligados a pulsões específicas, assim como</p><p>podemos distinguir também objetivos intermediários.</p><p>Com base nos Três ensaios e na descoberta da sexualidade infantil, nos</p><p>quais encontramos a noção das pulsões parciais, o objetivo das pulsões será</p><p>alterado em relação à fonte e ao objeto, de modo que o objetivo será explicado</p><p>por meio de uma “ação específica”, que, na pulsão de autoconservação, seria</p><p>aquela que eliminaria a tensão ligada a um estado de necessidade; tratando-se</p><p>do objetivo de uma pulsão sexual, seria menos específico por ser sustentado e</p><p>orientado por fantasias (Garcia-Roza, p. 121).</p><p>Objeto (Objekt), Freud descreve o objeto da pulsão como “a coisa em</p><p>relação à qual ou através da qual a pulsão é capaz de atingir sua finalidade.”</p><p>Isso é o que há de mais variável numa pulsão. Tomando, ainda, a análise de</p><p>Garcia-Roza (2009) sobre esse tema, o autor declara que o objeto é concebido</p><p>como um meio para que o objetivo seja atingido, assim, “o objeto pode ser real</p><p>ou fantasmático”.</p><p>Sob essa perspectiva, o objeto na Psicanálise toma uma dimensão mais</p><p>complexa. Assim, vemos que, nos Três ensaios, o objeto pode estar relacionado</p><p>a uma pessoa, ou uma parte de uma pessoa pode ser real ou fantasmática.</p><p>Desse modo, ele perde qualquer especificidade, não se opondo àquilo que é</p><p>subjetivo, como também pode ser uma pessoa determinada</p>

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