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<p>Laurent cartas a um che caminhos no mundo</p><p>ELSEVIER Laurent Suaudeau cartas a um jovem chef caminhos no mundo da cozinha CAMPUS 4a Edição</p><p>ABDR ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE DIREITOS o DIREITO Preencha a ficha de cadastro no final deste livro e receba gratuitamente informações sobre os lançamentos e as promoções da Elsevier. Consulte nosso completo, últimos lançamentos e serviços no site www.elsevier.com.br</p><p>2004, Elsevier Editora Ltda. Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19/02/1998. Nenhuma parte deste livro, sem autorização prévia por escrito da editora, poderá ser reproduzida ou transmitida sejam quais forem os meios empregados: eletrônicos, mecânicos, fotográficos, gravação ou quaisquer outros. Projeto Gráfico: Folio Design Editoração Eletrônica: Estúdio Castellani Copidesque:Shirle Lima da Silva Braz Revisão Gráfica: Edna Cavalcanti e Roberta Borges Fotos de capa: Luciana Cattani e Gabriel Boieras Projeto Gráfico Elsevier Editora Ltda. Conhecimento sem Fronteiras Rua Sete de Setembro, 111 16° andar 20050-006 - Centro - Rio de Janeiro - RJ - Brasil Rua Quintana, 753 - 8° andar 04569-011 - Brooklin - São Paulo - SP Brasi Serviço de Atendimento ao Cliente 0800-0265340 sac@elsevier.com.br ISBN 978-85-352-2722-2 Nota: Muito zelo e técnica foram empregados na edição desta obra. No entanto, podem ocor- rer erros de digitação, impressão ou dúvida conceitual. Em qualquer das hipóteses, solicita- mos a comunicação ao nosso Serviço de Atendimento ao Cliente, para que possamos esclare- cer ou encaminhar a questão Nem a editora nem o autor assumem qualquer responsabilidade por eventuais danos ou perdas a pessoas ou bens, originados do uso desta publicação. CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte. Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ S933c Suaudeau, Laurent Cartas a um jovem chef : caminhos no mundo da cozinha / Laurent Suaudeau. - Rio de Janeiro : Elsevier, 2004 - reimpressão. (Cartas a um jovem-) ISBN 978-85-352-2722-2 1. 2. Culinária. 3. Cozinheiros. 4. Orientação profissional. I. Título. II. Série 04-2358. CDD - 641.013 CDU - 641</p><p>Ao meu pai minha mãe</p><p>SUMÁRIO 1 Gastronomia e cultura 1 2 Começar bem é importante 15 3 0 papel do mestre 33 4 Os produtos brasileiros 47 5 A expressão e a capacidade gestual 61 6 A humildade para aprender 73 7 As bases da cozinha clássica 87 8 Conhecer os alimentos 99 9 0 quebra-cabeça do cardápio 113 10 0 papel do cozinheiro 127 11 Futuro, a volta ao sabor 137 12 0 decálogo do chef 153</p><p>1 GASTRONOMIA E CULTURA</p><p>que homem primitivo, ao se alimentar, tenha usado seus sentidos de um jeito espontâneo, atraído mais pela intensidade dos cheiros e aromas do que pela quali- dade do gosto. Com a manipulação do fogo, houve a gran- de descoberta da humanidade e deu-se início aos conheci- mentos dos processos de cocção. Aos poucos, a cia e a imaginação aperfeiçoaram seus conhecimentos e o que era simples necessidade transformou-se em prazer. Ao longo dos séculos, o homem aprendeu a manipular os ingredientes oferecidos pela natureza, criando pratos para garantir a sobrevivência da espécie. Depois, descobriu que poderia trabalhar esses ingredientes, de modo a melhorar seu sabor e a torná-los mais atraentes. Surgiu, assim, a gastronomia, que faz parte da história do desenvolvimen- to da humanidade. Comer bem é um atrativo para o ho- mem desde o nascimento das primeiras civilizações e tor- nou-se um componente cultural para os antigos egípcios, gregos e romanos. Mas em nenhum país do mundo a gas- tronomia é um bem cultural tão precioso como na França. Os cozinheiros franceses descobriram como ninguém as propriedades dos alimentos, aperfeiçoaram as técnicas de cocção, preocuparam-se com todos os detalhes, desde corte perfeito dos legumes até a química interna dos pro- A dutos, e criaram uma verdadeira metodologia da boa mesa. A história desses cozinheiros notáveis teve destaque 3</p><p>com Taillevent, em 1343, Vincent de la Chapelle, em 1738, Antonin Carême, em 1803, prosseguiu com Auguste Escoffier, em 1902, e continua até os dias de hoje. Foi pensando no legado desses grandes chefs franceses, cuja memória respeito, que resolvi escrever estas cartas, para contar um pouco da minha experiência, em como me tornei cozinheiro e consegui com a profissão tudo o que pretendia na vida. Mas, enquanto estava pensando no que ia dizer, vá- rias reflexões me vieram à mente, sobre a importância cultu- ral da alimentação, sobre a sabedoria daqueles que vieram antes de nós e sobre o que realmente distingue um grande chef de cuisine. Este livro é menos teoria e mais prática, fruto do que vi e aprendi com meus mestres, e também do que aperfeiçoei em quase 30 anos de manejo das panelas. 0 que sei tento repassar aos jovens que frequentam a minha cozi- nha e a minha escola e que sonham com um grande futuro na profissão. Não tenho todas as respostas. Aliás, faço muitas perguntas, pois acho que a inquietação, não-conformismo com as coisas, é sempre o mais importante. Antes de mais nada, acho que, para ser cozinheiro, é fundamental que a pessoa goste de comer e de cozinhar. E que tenha o dom. Recentemente, passei uns dias em Manaus, na Ama- em uma pousada pertencente a uma senhora pau- A lista. Em seu restaurante, à beira do rio, sobre uma palafi- ta, a comida é preparada por uma cozinheira nativa, que 4</p><p>usa basicamente brasa ou fritura. Ela me fez uma sardi- nha frita e, quando tirou peixe, reparei que não ficou nem uma gota de gordura no papel absorvente. Aquilo chamou a minha atenção, sem contar que peixe estava delicioso. Quando voltei para São Paulo, já em minha co- zinha, pedi a um estagiário para me fritar umas lâminas de palmito e ele não conseguiu deixá-las com uma cor bonita. Ficaram escuras. Até brinquei, dizendo que ele deveria fazer um estágio com a senhora amazonense para aprender a usar a temperatura adequada. Ela não tem termostato, mas faz aqueles pratos há tanto tempo que sabe qual o ponto adequado para a fritura. É por isso que eu digo que que é ensinado na teoria é válido, mas, para colocar em prática, o cozinheiro precisa ter o dom, que é o início de tudo nesta profissão. Sem ele, todo o co- nhecimento assimilado não terá tradução exata na hora em que se está diante das panelas. A habilidade, a mão, a sensibilidade natural são essenciais. Isso, junto com os conhecimentos teóricos, a técnica, a metodologia e a prática, é que vai fazer do profissional um grande cozi- nheiro ou simplesmente um cozinheiro. A maioria está nesse último grupo. Os bons serão poucos, porque só eles têm o dom, o talento na execução. UN A No meu caso pessoal, desde os seis anos de idade eu já queria ser cozinheiro. Ou até antes, pois eu pegava as 5</p><p>forminhas da minha mãe, enchia de areia e pedrinhas, e saía distribuindo entre as vizinhas, como se fossem bo- los! Na escola primária me perguntaram o que eu queria ser quando crescesse. Eu me lembro que escrevi no cader- no "cozinheiro no France", que era um grande transatlân- tico da época. Na verdade, já estavam associadas aí as ideias de cozinhar e de viajar, duas coisas de que gosto muito. E assim foi. A primeira experiência que tive na co- zinha foi preparar um almoço para a minha família. Eu ti- nha 11 ou 12 anos. Todos os domingos de manhã, meus pais iam visitar minha avó e, um dia, eu lhes disse que não precisavam se preocupar, pois eu iria cuidar do almoço. Fiz salada e salame de entrada, bife e purê de batata. Meus pais não sabiam de onde vinha essa vocação, mas sempre apoiaram o meu objetivo. Minha família não é de cozinheiros. Meu pai era metalúrgico, um homem de princípios, atento às questões sociais de sua época e com ideias muito claras sobre os direitos e obrigações dos tra- balhadores. Uma vez, em um momento em que os operá- rios da fábrica lutavam para melhorar sua situação, ele me disse: "Olhe bem para isso. Seja verdadeiro na vida. Seja você mesmo, não importa que poderá lhe custar. Cumpra sempre o que você fala." Talvez por isso eu seja A meio rebelde e crítico. Eu tinha cinco tias-avós que gos- tavam de cozinhar e duas, pelo menos, eram cozinheiras 6</p><p>de mão cheia. Uma delas até trabalhou em um pequeno bistrô de Paris. 0 primeiro contato real que tive com um grande res- taurante foi no aniversário de uma das minhas tias. 0 marido dela convidou a minha família para a festa, em um restaurante que pertencia a duas Les Soeurs Bardot, perto de Angers, um dos melhores da região do Loire. Eram duas mulheres fortes. Quando souberam que eu falava em ser cozinheiro, me levaram para conhecer a cozinha. Guardo essa imagem até hoje, lembrando do ba- rulho e de uma impressão de cor amarela na cozinha, não sei por quê. Outra lembrança forte vem da adolescência, lá pelos meus 13 anos. Nas férias da escola, comecei a ajudar minha tia Raymonde, que tinha uma mercearia onde vendia frango assado e batata frita. Eu descascava as batatas com tanto perfeccionismo que ela dizia para meu pai que eu era mole e nunca seria cozinheiro! Mes- mo assim, descascava 50 a 60 quilos de batata pela ma- nhã, cortava, fritava, vendia e ainda cuidava dos frangos na grelha. No dia em que fui contratado para trabalhar no restaurante de Paul Bocuse, em Lyon, considerado um dos melhores chefs do mundo em seu tempo, uma das primeiras coisas de que me lembrei foi de tia Raymonde. A Fiquei muito satisfeito ao constatar que a previsão dela a meu respeito falhara redondamente. 7</p><p>Certa vez, um grande empresário jantou em meu restaurante e perguntou se eu estava contente com a mi- nha profissão. Claro que estou. Feliz aquele, como eu, que consegue na vida fazer que gosta. Mas o desejo de cozi- nhar e de comer bem é uma coisa, e a profissão, outra. Acho que a nossa profissão tem algo de sacerdotal, pela necessidade de aprendizagem, pelo fato de você precisar conquistar os postos na hierarquia de uma cozinha e pela existência de um verdadeiro ritual de gestos, tudo regu- lamentado por um determinado conceito. Digo isso pen- sando na cozinha clássica francesa. Hoje, as coisas mu- daram um pouco. Outro dia, vi na televisão um chef euro- peu que faz sucesso e vende muitos livros. A atuação dele na cozinha é, digamos, completamente informal. Você pode até me perguntar se, hoje em dia, é realmente ne- cessária a formação rigorosa de um cozinheiro para ele ser bem-sucedido. Apesar de o comportamento de certos colegas dar a impressão de que bastam a criatividade e algum pragmatismo, acredito, com firmeza, que, na nos- sa profissão, a disciplina e os conhecimentos são impres- cindíveis. A manipulação de alimentos é uma atividade levada cada vez mais a sério no mundo atual, o que se comprova pelo surgimento recente de algumas epide- A mias em vários países, que assustaram muita gente. Mas não vou tratar disso. Na verdade, pretendo falar de comer 8</p><p>bem e das técnicas que os cozinheiros aperfeiçoaram ao longo dos últimos séculos. De fato, nossa profissão proporciona grande realiza- ção pessoal. Permite desenvolver um trabalho que está embutido na evolução de uma sociedade. Com toda a mo- déstia, posso dizer que esse é 0 meu caso. Vim para o Brasil com 23 anos, em 1980, indicado por Paul Bocuse, um dos maiores chefs da França, com quem eu trabalhava em perto de Lyon. Ele era o respon- sável pelo cardápio do restaurante Le Saint-Honoré, do Hotel Méridien, no Rio de Janeiro, e queria que eu fosse o novo chef-assistente da casa. Naquela época, nem se fala- va em gastronomia no Brasil. Felizmente, de lá para cá, se desencadeou um grande interesse pela boa mesa. Não quero dizer que houve só o meu trabalho, mas, certamen- te, este foi um dos ingredientes que ajudaram os jovens a olhar para esta profissão com mais atenção, o que me faz sentir realizado. Há pouco tempo, mandei uma carta para Bocuse, em que mais uma vez agradeci a vinda para cá, pois me deu a oportunidade de participar dessa verdadeira revolução cultural no país. Quanto ao sucesso, ao fato de você ser conhecido e ganhar dinheiro, é apenas conse- quência de um trabalho bem-feito. Entrei na profissão não UN A porque pensasse em êxito financeiro, mas porque gostava de cozinhar. Tive colegas que foram para os Estados Uni- 9</p><p>dos, outros para o Japão, e se deram muito bem. Meu des- tino estava marcado em um país chamado Brasil. Um lado positivo da profissão é a possibilidade de conhecer pessoas, gente de todas as classes. Outro é a oportunidade de buscar dentro das raízes do país em que se está o conceito gestual de combinações e de gosto, que se traduz em novos pratos. Desenvolvi, por exemplo, uma receita de caju com emulsão de cachaça, uma rela- ção que não foi inventada por mim, pois todo mundo sabe que caju e cachaça dão uma mistura muito popular entre os brasileiros. 0 que fiz foi uma reinterpretação dos dois ingredientes. Da mesma maneira, apresento um creme de feijão preto servido com granité de limão verde, que tem tudo a ver com nossa caipirinha. Para quem tem sensibili- dade e bom senso, métier oferece enormes possibilida- des de descobertas, de conhecer um país por meio de seus produtos. Se você correlaciona tudo isso, emerge um conceito de nação e você começa a perceber que a sua profissão é muito mais do que servir comida. A partir des- se momento, não há mais fronteiras. Aalimentação deve ser vista como um conceito cultural, do mesmo modo que a língua, os costumes, as festas mais tradicionais de um povo. Comecei a entender isso não na A França, meu país de origem, mas aqui no Brasil. É uma coisa tão óbvia lá que as pessoas seguem a profissão de cozinheiro 10</p><p>com uma perspectiva comercial, muitas vezes sem a cons- ciência da importância cultural da alimentação para uma po- pulação. Na França, subentende-se que no conceito de viver está embutido prazer de comer e de beber bem. Ao vir para o Brasil, percebi que estava em um país com uma grande ri- queza culinária, mas as pessoas não se davam conta disso. Elas não valorizavam as coisas locais. Os parâmetros culiná- rios eram sempre os europeus. Naquela época, a cozinha que encontrei aqui era a chamada internacional, baseada no classicismo da culinária francesa ou italiana. Achei aquilo es- tranho, triste até. Daí surgiram as ideias de mudança. Há uma expressão em "remise en question", colocar em questão, que reflete bem a saudável inquietude que todo chef precisa ter. 0 bom cozinheiro está sempre se colocando questões, pois nunca julga ter alcançado a perfeição. 0 Brasil daquela época impunha restrições aos produ- tos importados. Isso também nos levou a buscar outras op- ções. Por exemplo, três semanas depois de minha chegada, os cozinheiros que trabalhavam comigo no Le Saint-Honoré me levaram à feira de São Cristóvão, tradicional ponto de encontro popular no Rio de Janeiro. Eu me deparei com uma diversidade muito grande de produtos, que jamais poderia imaginar. As barracas vendiam de tudo, incluindo comidas A típicas nordestinas, como Buchada de Bode e Sarapatel. Muita gente torce nariz para isso, mas não se pode ignorar 11</p><p>a história que existe por trás desses pratos, uma história de manipulação dos alimentos, de onde eles vêm, como e por que foram criados. Encontrei frutas que nunca tinha visto. Percebi, então, que havia uma cultura alimentar brasileira, relegada a uma feira frequentada principalmente por pes- soas de baixa renda e que não era valorizada pela sociedade. Em outra ocasião, em um domingo, meus ajudantes me levaram para conhecer a família deles, em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense. Era gente muito pobre, que me recebeu de uma maneira extraordinária. Foi ai que conheci a maca- xeira, a mandioquinha, a carne-seca. Aos poucos, eu me dei conta de que tinha realmente uma missão aqui. Bocuse, quando me convidou, disse que eu teria uma missão no Bra- sil, que era reorganizar Saint-Honoré. Certamente, nem ele nem eu poderíamos imaginar que esta missão fosse muito além das fronteiras do restaurante, como aconteceu. Ficou comprovado que é possível fazer grandes pratos com maca- xeira, com mandioquinha, carne-seca ou caju. Há lado do ego, do orgulho, de sentir que você está sacudindo as panelas nesta terra, mas o que realmente fez a diferença foi ajudar as pessoas a perceberem que caqui é um ingrediente nobre e que todos esses produtos podem contribuir para a criação de uma gastronomia nacional, que estava latente e só agora co- A meça a ser reconhecida. As pessoas precisam aprender a va- lorizar os produtos locais, os produtos regionais. 12</p><p>Nem sou eu que defendo isso. 0 célebre gastrônomo francês Brillat-Savarin (1755-1826), autor do conhecido livro A fisiologia do gosto, dizia que, para um país ser con- siderado uma nação, tem de dar valor a seus produtos e à sua culinária. "0 destino das nações depende da maneira como elas se escreveu ele. Uma nação não se limita às fronteiras geográficas, mas nasce da conscienti- zação da importância de sua identidade cultural, da qual a culinária é parte essencial. Muita gente não entende isso. Eu vou ficar feliz quando a gastronomia brasileira tiver seu reconhecimento, como o cinema brasileiro está tendo e a música popular já teve. Nosso cinema está aí, mostrando a realidade nacional, ganhando elogios e prêmios no exte- rior. Não tenho dúvidas de que com a gastronomia vai acontecer a mesma coisa, embora caminho possa ser mais demorado. Tenho certeza de que os brasileiros vão perceber que a boa cozinha é uma arte, como a música, a pintura, a literatura, e que, da mesma maneira, a gastro- nomia é prova do aperfeiçoamento do gênero humano. Frequentemente, estas artes se misturam. Conheci aqui no Brasil um homem muito inteligente e culto, o escritor Antonio Houaiss, que prezava a nossa cultura e gostava da gastronomia. Na França, ocorre a mesma coisa e a gente A encontra na história da literatura muitos escritores que apreciavam os prazeres da mesa, como Molière, Balzac, 13</p><p>Proust, assim como pintor Monet e seus amigos impres- sionistas. A evolução do ser humano, na sua forma de racio- cínio, é acompanhada pelo gosto de comer e beber bem. Isso não tem nada a ver com riqueza, ou pertencer a uma determinada classe, pois não é preciso ter dinheiro para se destacar em muitas atividades. Brillat-Savarin considera- va infelizes aqueles que não sabem apreciar uma boa co- mida e um bom vinho. É uma grande verdade. A 14</p><p>2 COMEÇAR BEM É IMPORTANTE</p><p>Quando se escolhe uma profissão, normalmente a gente busca algo que ajude a ganhar a vida e também permita a realização pessoal. Mas isso não acontece da noite para dia. Na gastronomia, ocorre a mesma coisa que no futebol. Muitos jogam bem, mas são poucos os que chegam ao topo. Para se tornar um chef conhecido, como Alain Du- casse, na França, Daniel Boulud, nos Estados Unidos, ou Claude Troigros aqui no Brasil, o aprendiz tem um longo caminho a percorrer. Os nomes desses chefs me vieram à cabeça, pois todos passaram pela cozinha do grande Mi- chel Guérard, em Eugénie-les-Bains, no sudeste da França, onde também trabalhei. Certamente, Alain Ducasse pode ser considerado, com o espanhol Ferran Adrià, do El Bulli, os dois cozinheiros mais prestigiados do mundo na atuali- dade, embora representem duas linhas culinárias comple- tamente diferentes. Quando entrei para restaurante de Guérard, fui ajudante de Alain, que era chef-de-partie, ou seja, o responsável por um determinado setor da cozinha. Daniel Boulud trabalhou lá por volta de 1976. Não é coin- cidência que todos tenham passado pela casa e se desta- cado no mercado internacional. Isso mostra que a forma- ção é muito importante na carreira de um cozinheiro. Antigamente, a maioria dos jovens que procuravam A emprego em restaurante vinha das camadas mais simples da população. Hoje em dia, muitos jovens de classe média 17</p><p>também buscam seu espaço na profissão. Seja como for, a primeira coisa que observo em um jovem que entra na mi- nha cozinha, independentemente de sua origem social, é se ele tem humildade. Posso dizer a você, sem medo de er- rar, que todos os chefs que conseguiram destaque, aqui, na Europa ou nos Estados Unidos, são pessoas com um grau de humildade muito elevado em sua postura e no respeito à ordem estabelecida na cozinha. São pessoas que querem aprender, que fazem perguntas, que observam caladas, mas com inteligência. Por outro lado, você vê pessoas ex- tremamente talentosas, que não conseguem se enquadrar na equipe. Muitos acham que já sabem tudo e se com- plicam. No meio de uma brigada grande, acabam por en- venenar o ambiente. Para ver se o jovem tem vocação, a segunda coisa que reparo é sua habilidade gestual. Acho isso fundamental. Há cozinheiros que têm o gesto bonito. Na hora de execu- tar uma tarefa qualquer, mesmo simples, a gente pode no- tar a posição da mão, a firmeza, bom senso da execução, a organização do local de trabalho. É aí que se sente a vo- cação. A mão é uma coisa extraordinária, e eu confesso que demorei a ver isso. Há pessoas que se tornam grandes profissionais, mas, quando você as vê trabalhando, obser- A va que têm o gesto brusco, pouco elegante. Estou chaman- do a atenção para isso porque a nossa profissão é artesa- 18</p><p>nal, e o artesão, não só na cozinha, como em qualquer área, precisa ter habilidade manual. A mão é a expressão do pensamento, de uma reflexão. Se o cozinheiro não gos- ta do que faz, acaba passando esta sensação na hora de executar o serviço. Quando a pessoa gosta do que faz, sen- te prazer e isso parece ficar evidente em seu trabalho. São detalhes que chef precisa observar e que, dentro da equipe, levam a valorizar aqueles que são realmente mais talhados para a profissão. Depois, obviamente, en- tram os outros ingredientes, que são a rapidez, executar sem repetição. Isso é importante. Tem gente que acerta na hora, enquanto outros precisam repetir a tarefa três vezes até acertar. Aí você vê que ser humano é complicado, complexo, e que cada um é diferente do outro. Até hoje, no Brasil, em 24 anos, não consegui ter dois cozinheiros iguais. Cada um tem sua particularidade, que não deixa de ser interessante. Por causa das diferenças individuais, cada um tem condições de definir seu próprio estilo e pode buscar seu espaço na equipe. Por outro lado, não se deve esquecer que a vocação é alimentada acima de tudo pela paixão. Eu, pessoalmente, digo que vou parar de cozinhar no dia em que não tiver mais prazer. E é óbvio que nem to- dos têm essa paixão. A grande maioria trabalha por uma A questão de sobrevivência econômica. Só de alguns poucos pode-se dizer: "Esse cara nasceu para ser cozinheiro." 19</p><p>Mas vale a pena manter a chama. Apesar das dificul- dades, é uma profissão que pode proporcionar grandes alegrias. É o prazer de fazer o que gostamos que nos leva a vencer todos os obstáculos e a seguir em frente. Comigo também foi assim. Quando entrei pela primeira vez em uma cozinha profissional, devia ter uns 15 anos. Foi du- rante as minhas férias na escola. Meu pai achou que, já que eu queria ser cozinheiro, deveria conhecer de perto o métier e me levou a um restaurante nas proximidades de Cholet, minha cidade, chamado Le Belvédère, junto a um lago. 0 chef-gerente era Yvon Garnier, um "compagnon du Tour de France", ou seja, integrante de uma organiza- ção corporativa voltada para a formação de artesãos em várias áreas. Garnier aceitou me ensinar e senti uma grande felici- dade. Minha primeira tarefa foi lavar alfaces. Logo aprendi o ritual: colocar bastante água na bacia, lavar folha por folha e trocar a água várias vezes. Aos poucos, passei a fazer uma vinagrette e outras coisas simples. Eu gostava tanto do ser- viço que muitas vezes nem voltava para casa, principalmen- te quando ficava tarde, pois eu ia de bicicleta. Dormia lá mesmo, no subsolo, junto à adega do restaurante. A brigada trabalhava muito, entrava às 7 horas da manhã e ia até as A 11 horas da noite. Mas Garnier, além de grande cozinheiro, tinha um lado de liderança extraordinário. A gente acabava 20</p><p>a mise-en-place, isto é, a preparação dos ingredientes que faziam parte do cardápio, às 11 horas da manhã e ia jogar bola por uma meia hora. banho e começava a servir os clientes. Garnier gostava de mim. Lembro que, um dia, eu estava passando um molho na peneira, ele parou, pegou mi- nha mão direita, olhou, olhou. "Você não pode ser cozinhei- ro", disse ele, "tem de ser pâtissier". Até hoje me pergunto o que ele viu na minha mão para falar que eu seria confeiteiro. Só sei que não segui o conselho! Eu tinha 16 anos e precisava continuar a escola. Ain- da assim, nos fins de semana, ia trabalhar no restaurante e também nas festas de fim de ano. Garnier era muito habili- doso, um artista, fazia ânforas de gelo para colocar nas ja- nelas do restaurante e as iluminava como fogos de Benga- la. Certa vez, no Réveillon, ele reproduziu uma pintura fa- mosa, "La verseuse de lait", cujo nome faz referência a uma mulher que está num campo de trigo e despeja leite de um jarro que traz às mãos. Garnier refez todos os deta- lhes da obra apenas com grãos de cores diferentes. Impres- sionante. Com ele, aprendi também a ter sempre à mão 0 Guide culinaire, escrito pelo grande Auguste Escofier em 1902, verdadeira bíblia da cozinha clássica. Lembro que havia um quadro-negro em que Garnier marcava o nome A de todos os aprendizes que formara. Quase todos conquis- taram título de "Prémier apprentis de France", isto é, Pri- 21</p><p>meiro Aprendiz da França, nos concursos da época. Eu di- zia para mim mesmo: um dia ainda vou ter o meu nome nesse quadro. Infelizmente, Garnier precisou deixar res- taurante e não pude continuar com ele. Naquela época, a legislação educacional francesa estava mudando e ele re- comendou a meu pai me colocar em uma escola técnica de culinária, pois um diploma poderia ter serventia no futuro. Lá fui eu, então, com 16 anos, para o Lycée Technique em Guérande, terra das salinas e do sal, a 150 km de Cho- let, onde conheci outro grande mestre, Jean Guerin, com quem me comunico até hoje. Novamente me dividi entre teoria e prática. Ainda no primeiro ano, durante as férias escolares, tomei um trem, viajei 800 km e fui trabalhar no restaurante de um hotel em Contrexéville, uma estação de águas, indicado pelo chef Yvon Garnier. A equipe era gran- de, com uns 20 cozinheiros, e, apesar de jovem, descobri que esta profissão nos permite fazer amizades maravilho- sas pelo resto da vida. 0 chef do garde-manger, o setor de frios e saladas, era um rapaz um pouco mais velho do que eu, Gilles Renusson, de 18 anos. Depois, ele largou a cozi- nha e foi exercer a função de pâtissier no Fauchon, em Pa- ris. Mora em Chicago e, na década de 1990, foi considera- do melhor confeiteiro dos Estados Unidos. Renusson tem A uma escola de pâtisserie nos Grands Rapids. Ainda mante- nho contato com ele. 22</p><p>Voltei para a escola e, no segundo ano, fiz a tempora- da com Jean Guerin. Foi ele, efetivamente, que me abriu as portas do mundo da alta gastronomia. Nas férias escolares do segundo ano, trabalhei no Luculus, em Batz-sur-Mer, onde o chef-proprietário era o próprio Guerin. Enfim, tirei meu diploma (BEP) em Culinária e, como tinha boas notas, recebi uma indicação para continuar os estudos na escola de hotelaria de Estrasburgo, na Alsácia. Mas eu sabia que a escola era voltada para uma carreira administrativa e pre- feri não ir. Mais uma vez, Guerin me ajudou. Ele escreveu cartas de recomendação para Paul Bocuse, Pierre Troisgros e outros grandes nomes da cozinha francesa. Certa noite, recebemos um telefonema de Michel Guérard, dono do Les Pres et Les Sources e do L'Oustau de Beaumanière, na Pro- vence. Disse que estava interessado em mim e que eu de- veria me apresentar imediatamente. No dia seguinte, pe- guei novamente o trem, deixando namorada e tudo mais, e viajei cerca de 600 km até Eugénie-les-Bains. Estavam me esperando na estação dois jovens da equipe de Guérard: Jacky Lanusse, o segundo chefe, e Alain Ducasse. Trabalhar naquela cozinha, com aquelas pessoas, foi muito impor- tante na minha carreira. Não sei se é uma questão de sorte, de estar no lugar certo, na hora certa. Mas, com certeza, é A preciso agarrar as oportunidades que aparecem. No nosso métier, o jovem precisa ser movido pelo "feu sacré", fogo 23</p><p>sagrado de gostar de cozinhar e, em segundo lugar, tentar aprender ao lado de quem sabe, para desencadear o pro- cesso de crescimento nesta profissão artesanal. Assim, com 17 anos, eu era o mais jovem da brigada de Michel Guérard, que, naquele ano, conquistou a tercei- ra estrela do famoso Guide Michelin. Para comemorar a premiação, Guérard ofereceu um jantar a todos os donos das outras casas francesas detentoras das três estrelas. Naquela noite, eu estava na cozinha e, de repente, levei um tapa brutal nas costas. Virei assustado e vi que era Paul Bocuse. Nunca vou esquecer. Falei que jamais iria traba- com aquele homem, que tinha mão pesada e fama de durão com seus cozinheiros. Guérard era exigente em ma- téria de técnicas culinárias, mas, com ele, a disciplina não era tão rígida. Muitos chefs, na época, não admitiam cozi- nheiros com cabelo um pouco mais comprido, por exem- plo. Bocuse era um deles. Guérard não era tão rígido nes- sas questões. Para ele, valia mais a expressão de cada um em seu trabalho. Permitia que os subordinados participas- sem da criação dos pratos e tinha uma coisa que faço até hoje em minha cozinha: não decido nada de uma forma dogmática - deixo que aqueles que realmente têm condi- ções manifestem sua opinião. A A temporada em Eugénie-les-Bains ia de abril a no- vembro. Nos quatro meses seguintes, em que o Les Pres et 24</p><p>Les Sources fechava, eu precisava fazer alguma coisa e Guérard me mandou trabalhar com um ex-cozinheiro dele, Jean Ramet, que estava no Le Chapon Fin, em Bordeaux. Era um restaurante muito conhecido na década de 1950, tinha sido fechado e estava reabrindo. Tempos depois, Guérard foi conhecer a casa, jantou lá, entrou na cozinha. Ele queria que eu voltasse, enquanto Ramet pretendia que eu ficasse. Talvez eu devesse ter retornado para Eugénie, pois Guérard se tornou um chef da maior importância na cozinha francesa e mundial. Mas eu tinha uma namorada em Bordeaux, estava feliz com Ramet e decidi permanecer por lá. Com 19 anos, eu já era responsável pela cozinha e ganhava um salário muito decente. Foi uma experiência interessante, uma casa pequena, familiar, com um método de trabalho parecido com o de Guérard. Ramet permitia o trabalho em equipe, o desenvolvimento de pratos novos. Foi muito bom, porque, em um ano e meio de funciona- mento, conseguimos a primeira estrela no Guide Michelin. Depois veio uma fase menos engraçada, pois tive de fa- zer o serviço militar. Servi na Base Aérea de Dijon. A comida lá era muito ruim, por isso fiz de tudo para não trabalhar como cozinheiro. Quando os militares descobriram que eu havia passado por restaurantes com tanto destaque, quise- A ram me colocar no serviço dos oficiais. Inventei que estava com verrugas nas mãos, mas a desculpa não adiantou. Eles 25</p><p>me mandaram para hospital, onde os médicos tiraram as verrugas, e, na volta, tentaram de todo jeito me pôr na co- zinha. Foi difícil convencê-los de que não queria mesmo. Quando faltava pouco tempo para minha liberação, eu me dei conta de que precisava arrumar um local para trabalhar. 0 barman da cantina dos oficiais da Base Aérea era meu amigo e o pai dele possuía uma propriedade em Nuits- Saint-George, na Bourgogne. Como esse meu amigo tinha carro, pedi que me ajudasse a procurar emprego. Fomos pri- meiro ao restaurante de Georges Blanc, também 3 estrelas. Ele me recebeu muito bem e lamentou que a brigada esti- vesse completa. Decidi, então, tentar o maior, Paul Bocuse. Apesar da lembrança daquele tapa nas costas, iria me atirar na boca do leão! Era um domingo, Bocuse não estava. Quem me recebeu foi o segundo chefe, Christian Bouvarel, que chamou o chef, Roger Jaloux. Ele pediu o meu currículo e, quando soube que eu havia trabalhado com Michel Guérard e Jean Ramet, percebi um brilho em seus olhos. Deixei as in- formações sobre local onde estava e voltei para Dijon. Três dias depois, tocou o telefone na sala do comandante da Base Aérea. Era Jaloux me convidando para trabalhar com Bocuse. Não acreditei. Ele queria que eu estivesse lá já no dia seguinte. Falei que deixaria o serviço militar só dentro de A 15 dias. Dessa forma, ele mandou que eu me apresentasse imediatamente após. 26</p><p>No dia em que saí, peguei um trem para Paris e, de lá, outro para Bordeaux, onde estava minha namorada. Eu já ha- via combinado com ela para me esperar na estação, com as minhas roupas de cozinheiro. Peguei outro trem na mesma hora e, finalmente, cheguei em Lyon às 7 horas da manhã, depois de viajar por quase 24 horas. Às 8 horas, estava na porta de Bocuse. Era dia 31 de Maio de 1977. Naquela épo- ca, o nome da casa era L'Auberge de chamada por todos de restaurante de Paul Bocuse. Cheguei e fui imediatamente para a cozinha, onde me mandaram descascar laranjas. Na época, a casa era um verdadeiro quartel. Era a elite da elite da alta culinária naquele momento, mas não conheço nenhum lugar com uma disciplina tão rigorosa. Quando você entrava na equipe, parecia um nada. Não havia uma palavra de ami- zade, de aproximação. Era apenas "sim, chef", "não, chef". Não tinha espaço para conversa, ninguém contava piada, não havia brincadeiras. No início, foi um choque muito grande. Sempre digo que fiz o serviço militar com Bocuse, não na Base Aérea de Dijon. Lembro que, naquele primeiro dia, fui cozinhar vagens e os outros cozinheiros ficaram me gozando. Havia um clima de pressão constante em cima dos novatos, para ver até onde eles iriam aguentar. 0 chef do gar- de-manger, encarregado das saladas, me recebeu, me levou A até a câmara fria, mostrou as prateleiras e avisou: "Está ven- do isso aqui? É meu, ninguém mexe." 27</p><p>Em situações desse tipo, é preciso ser forte. E eu fui. Bocuse dizia que eu era meio rebelde, não aceitava esta- blishment, talvez por influência de meu pai, que era um homem politizado, um líder sindical. Eu era cozinheiro, mas já tinha lido Marx e Engels. Por isso, não gostava mui- to daquele clima pesado e, quando entrava outro novato, eu procurava dar dicas e conselhos. Quantos passaram por ali e não suportaram! Alguns cortavam a mão de propósi- to, com a intenção de serem mandados embora. Um aprendiz teve uma crise de choro e ficou no chão, chaman- do a mãe dele. Hoje, como chef, sou favorável à disciplina. Às vezes, você entra na cozinha e sente que o clima não está adequado para encarar o serviço que virá pela frente. Aí, eu dou bronca mesmo, e as coisas se encaixam rapida- mente. No final da noite, a gente conversa amigavelmen- te, e até brinca. Acho que hoje é assim que se deve coman- dar. Não é fazendo a equipe ter medo que você conseguirá o melhor resultado. Ao contrário, os ajudantes acabam se perdendo, e quem paga o pato é o cliente. De qualquer forma, trabalhar para Bocuse era como entrar para uma equipe de Fórmula 1. Quem conseguia chegar lá podia se considerar a elite da elite entre os jo- vens cozinheiros que disputavam o mercado. Talvez por A isso o clima fosse pesado, de extrema competitividade. Mas logo vi que não era nenhum bicho de sete cabeças. 28</p><p>Uma cozinha rigorosa, dogmática, sim. Bocuse ficava possesso se um cozinheiro cortava um alimento de forma pouco ortodoxa, amarrava um frango de modo incorreto ou não iniciava caldo de acordo com a melhor técnica. As bases culinárias eram seguidas rigidamente. Era igual- mente exigente com a disciplina pessoal, observando corte de cabelo, sapato engraxado, avental azul para a mise-en-place, avental branco na hora de servir, todo mundo de toque-blanche na cabeça. Éramos uma briga- da de 12 cozinheiros fixos. 0 total, com os estagiários, chegava a 18 ou 20 pessoas. Bocuse sempre dizia que comparava sua casa a um navio e todos nós, marinheiros, devíamos fazer tudo certinho para navio andar na fren- te. E éramos marinheiros mesmo: a quantidade de vezes que a gente lavava o chão por dia não era fácil! Não havia espaço para brincadeiras. A gente entrava às 7 horas da manhã. Bocuse ia pessoalmente ao mercado muitos dias por semana. Quando voltava, às 9 e meia, 10 horas, todos tinham de largar o que estavam fazendo e ajudar a guar- dar as compras. A palavra de ordem era: chegou "le papa", papai, o apelido dele. A brigada inteira se envol- via, do chef aos sous-chefs e cozinheiros. Tudo se fazia sem gritos, como numa orquestra. Cada um acabava de A guardar sua mercadoria e voltava para a cozinha, para terminar a mise-en-place. 29</p><p>11 horas a esposa dele entrava na cozinha e per- guntava pela comida de seus meninos - os três cachorros. Cada um era de tamanho diferente e, por isso, havia a ração pequena, a média e a grande. Quem cuidava da comida dos cães era o ajudante do garde-manger - e eu tive essa mis- são por três meses. Depois, a gente almoçava rapidamente, também obedecendo à hierarquia. 0 chef de cozinha, Ro- ger Jaloux, ficava em uma mesa com o chef e os chefs- de-partie. Os comis almoçavam no fundo da cozinha. Eu tive uma ascensão rápida nessa escala e, em menos de seis meses, fui promovido a chef-de-partie garde-manger. Logo passei a rôtisseur, encarregado de todos os assados. Aí eu tinha contato direto com Bocuse, pois, no inverno, a gente fazia as carnes assadas na lareira do salão - pato, cordeiro, frango capão. Era preciso cuidar do fogão e do fogo da la- reira. Se o fogo ficava fraco, o "papa" vinha e dava uma bronca. Eu, pessoalmente, sempre fui tranquilo e levava aquilo na esportiva. Mas muitos jovens cozinheiros não aguentavam a pressão e tremiam de medo. Era uma escola completamente diferente da de Michel Guérard. Aliás, um dia, ele entrou na cozinha e perguntou: "Quem foi o cara que trabalhou com Guérard?". Pensei que estava frito, mas me apresentei. "Aprende, então", disse ele. "Aqui não é um A laboratório medicinal. Aqui é uma cozinha, que trabalha com creme, manteiga e vinho." Peguei o auge do prestígio 30</p><p>de Bocuse e ele vivia cercado pela imprensa do mundo todo. Pelo menos uma vez por semana, vinha uma equipe de televisão a que era chato e atrapalhava o serviço, porque precisávamos parar tudo e preparar os pratos para serem filmados. Ao mesmo tempo, o contato com a mídia não deixou de ser uma grande ex- periência para todos nós. Do ponto de vista da disciplina, não havia outra casa igual na França, talvez apenas a de Joel Robuchon. Os dois eram conhecidos por esta característica. A gente entrava às 7 horas da manhã, ficava até as 3 da tarde, voltava às 5 e saía às 11 horas da noite. Folga, apenas um dia por sema- na, designada pelo chef. Nunca era no mesmo dia da se- mana e somente os casados tinham essa vantagem. Para relaxar, quando a pressão era muito grande, nós saíamos à noite. Geralmente, comer em algum restaurante e depois, obviamente, íamos a uma discoteca. Eu liderava a turma e Roger Jaloux me chamava de "pássaro da noite", não sei por quê! Nas discotecas nos apelidavam de "les singes de Bocuse", os macaquinhos de Bocuse. Acho que tinha um duplo sentido: poderia ser a brigada que agia rá- pido ou aqueles que faziam tudo que velho mandava. Foi o chef mais duro que tive. Era um homem distante, A quando entrava na cozinha, não havia diálogo. Era apenas "Oui, Monsieur Paul", "Non, M. Paul", não se passava disso. 31</p><p>Mas, quando me aproximei dele, descobri uma outra per- sonalidade. Ele sabia o que se passava com cada um de nós. Certa vez, meu pai ficou muito doente. Bocuse me chamou e se colocou à disposição para o que fosse preciso. No grande navio que ele dizia ser sua cozinha, Bocuse era 0 almirante. Havia também um respeitado capitão: Jaloux. Não conheci até hoje um chef de cozinha tão dedicado e apaixonado como ele - veloz, preciso e um ótimo caráter. Fiquei quase dois anos e meio no restaurante de Paul Bocuse. Foi algo extraordinário, até pela dificuldade inicial de conquistar meu espaço. Gostaria que outros tivessem a mesma oportunidade. A 32</p><p>3 O PAPEL DO MESTRE</p><p>alguns anos, comecei um trabalho em Ouro Preto (MG), no Hotel Nossa Senhora do Rosário, cujo restau- rante ajudei a montar. Nesse período, conheci mais de perto as obras de Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho (1730-1814), que enfeitam as principais igrejas da cidade. Descobri que o Aleijadinho teve um mestre, Manuel Francis- CO Lisboa, seu pai, e que ele mesmo formou um sem-número de pessoas em seu tempo. Lembro isso porque é uma histó- ria que se repete com os cozinheiros e com todas as profis- sões artesanais. Começa com alguém que tem o conheci- mento, e vai passando para outros. 0 bonito nesta relação é quando existe o respeito, tanto respeito daquele que precisa aprender quanto o daquele que sabe. É uma pala- vra que muitos esquecem: respeito. 0 aprendiz precisa ter a humildade perante aquele que detém conhecimento, da mesma maneira que aqueles que sabem têm de respei- tar os que desejam aprender. Muitos pensam como eu: é preciso dar valor à formação e respeitar professor. Seja na escola, onde você vai aprender a história do seu país, a geografia, a matemática, seja na vida profissional. É muito importante aprender uma profissão, assegurando a pos- sibilidade de um futuro melhor. Atualmente, a gente vê muitas situações de violência envolvendo jovens, aqui no A Brasil, na Europa, no mundo todo. Na verdade, acho que isso acontece por falta de mecanismos adequados para in- 35</p><p>serir os jovens, de origens diferenciadas, na sociedade. Um desses mecanismos, sem dúvida, é o trabalho. A integração passa, necessariamente, pela educação e pela formação. A partir desse momento, o personagem cen- tral é o professor, no sentido intelectual, ou o mestre, quan- do se trata de uma profissão artesanal como a gastronomia. Talvez no Brasil essa distinção não seja bem compreendida, pois aqui os pais sempre querem que o filho seja advogado ou médico, seja um "doutor", mesmo quando ele não tem vocação para isso e poderia se dar melhor em um métier ar- tesanal. Mas o quadro está mudando, e a prova é próprio sucesso de nossa profissão. Pessoalmente, acredito que não existe dissociação entre o intelectual e o prático. Repito: fe- liz aquele que, como eu, pode fazer na vida que gosta. Por isso mesmo, acho que tenho obrigação de passar para ou- tros conhecimento que adquiri com meus mestres. Quem está começando pode aprender sozinho ou com alguém que domina conhecimento. Os autodidatas têm seu valor, pois há pessoas que acabam se descobrindo tarde na vida. No entanto, sou favorável a aprender com alguém que sabe, com um mestre. Nos dois casos, é essencial o respeito a uma certa ordem, à disciplina que, como eu disse antes, não en- volve só a execução da tarefa. Há também a disciplina do caráter, do pensamento, da reflexão, da vida. Se profissional da gastronomia não res- 36</p><p>peita isso, vira um mero copiador, produto da sociedade atual que se contenta em reproduzir uma fotografia, um prato, sem ter o necessário conhecimento sobre que está fazendo. Isso vale também para a pintura, para a música, para tudo. Quem apenas copia, sem saber motivo, nunca terá o referencial das coisas que executa. E referencial, no caso da culinária francesa, é dado pela cozinha clássica, cujas bases foram assentadas pelos grandes chefs do passa- do. Isso não quer dizer que não haja espaço para a evolução. Claro que há. Ao longo de nossa vida profissional podemos ter a sorte de encontrar vários mestres e cada um deles nos ensina alguma coisa diferente. Com Yvon Garnier, por exem- plo, aprendi a noção do trabalho em equipe, a necessidade de participação de cada um para o bom resultado final e a importância da execução precisa do gesto. Jean Guerin me deu grandes lições de vida e de prática profissional. Ele é brilhante. Com 30 anos de idade chefiava uma brigada de 50 pessoas, mas resolveu deixar tudo para se dedicar ao en- sino. Escreveu um dos livros de formação mais completos que conheço. Com ele, aprendi que a fronteira do cozinhar ultrapassa as panelas, pois envolve conceitos de química, de física e até de antropologia. Guerin traduziu de uma forma científica a cozinha que está sendo executada atualmente A por grandes chefs. Ele explica que uma molécula, a determi- nadas temperaturas, sofrerá uma transformação que vai 37</p><p>permitir tal ou tal consistência. Disseca os alimentos em seus componentes, como lipídios e glicídios. Parte do prin- cípio de que, conhecendo profundamente o conteúdo do alimento, vai-se saber qual a melhor metodologia de corte e de cozimento. Também me abriu as portas para a criativida- de. Naquela época, ele já fazia pratos completamente dife- renciados, com outros apelos, usando produtos regionais não-valorizados até então. Depois, veio Michel Guérard, que fez uma cozinha revo- lucionária para a época, respeitando a tradição, mas reinter- pretando os conceitos clássicos. Ele nos ensinava a usar as técnicas e conhecimentos clássicos a serviço de uma cozinha evolutiva, mais leve, saborosa, menos pesada. Foi um dos primeiros a defender a abolição do creme de leite, das gordu- ras saturadas, tudo isso traduzido em pratos eloquentes e ex- traordinários. Repensou, por exemplo, a liga dos molhos, dis- cutindo se deveriam ser ligados com farinha ou roux (uma mistura de farinha de trigo puxada na manteiga). Com ele, a gente já trabalhava as emulsões, tão em moda hoje em dia. Modernizou ainda os cozimentos. Estava sempre atento aos novos equipamentos. A cozinha de Guérard foi uma das pri- meiras a ter um forno autoclave, mais forte que os fornos a vapor que se usam hoje ou do que os chamados combinados. A Cozinhávamos um coelho, um frango, e muito mais rápido. Havia menor perda da riqueza de sabor do alimento e melhor 38</p><p>rendimento. Guérard não copiou ninguém. Ele se aprofundou no estudo das moléculas alimentares, traduzindo isso de uma forma diferente - e influenciou muitos outros cozinheiros em todo mundo. Lembro que, em meados da década de 1970, ele foi um dos chefs mais badalados do mundo. Com Jean Ramet, houve uma continuidade dessa experiência. Era uma casa familiar, nova, com uma equipe pequena, jovem, onde não havia limites para a criação. Meu mestre seguinte foi Paul Bocuse, que era o oposto de Guérard. Com ele, contava o rigor, o establishment. Não havia espaço para se criar e a linha de conduta já estava esta- belecida. Não aceitava contestações. Mas era uma cozinha que funcionava com a perfeição de um relógio e fazia muito sucesso. Lá assimilei a noção do métier, a devoção ao serviço exigida pela profissão. Guérard e Bocuse representam duas escolas completamente distintas. Com Guérard, prevalecia o conceito da cozinha para fora, voltada para o mercado, aten- ta a várias coisas que começavam a tomar forma naquela época. Por exemplo, o conceito de comer bem sem precisar engordar, ou a utilização de produtos diferenciados, não ne- cessariamente regionais. Guérard gostava de reinterpretar os clássicos e permitia a participação de seus cozinheiros. Bocu- se defendia o contrário. Não havia espaço para a criatividade. A Ele pregava a utilização apenas dos produtos locais, a valori- zação da cozinha regional. Os cardápios dos dois refletiam 39</p><p>inteiramente seus pontos de vista. Bocuse era a culinária lyonnaise, dogmática, e ponto. Ele dava mais importância a uma salada de hericot vert e vagem, bem temperada, do que a um prato diferenciado, com ingredientes de fora. Seus pra- tos emblemáticos repousam na melhor tradição francesa, como o Dodine de canard à l'ancienne truffée et pistachée, salade de haricot verts. Ficou famosa uma criação de Bocuse para o presidente Giscard d'Estaing em sua primeira passagem pelo Palácio do Eliseu, em 1975 - a Soupe aux truffes noires V.G.E. Já Guérard gostava de conhecer coisas diferentes e es- tava sempre aberto a aprender. Ele tinha no cardápio um Pot au feu aux fruits de mer, o que era uma ousadia, pois nunca os pot au feu eram feitos com frutos do mar; lançou um Ga- teau d'asperges (aspargo) dietético e uma torta de tomate com folha de espinafre. Guérard foi pai da Nouvelle Cuisine, que tanto furor provocou na culinária francesa nas décadas de 1970 e 1980 e que, infelizmente, depois foi mal interpre- tada e mal copiada na França e em outros países. Guérard - como o espanhol Adria atualmente - mexeu com as estruturas da cozinha clássica e, por isso, houve quem o amasse e quem o odiasse. Em uma ocasião, quando eu traba- com Bocuse, encontrei Alain Ducasse em um bar em A Lyon. Na época, ele estava no restaurante de Alain Chapel, duas estrelas do Guide Michelin, que adotava também uma 40</p><p>culinária aberta e evolutiva. Ducasse disse que meu lugar era com Chapel, e não com Bocuse. Talvez ele tivesse razão, mas não me arrependo. Tive a sorte de trabalhar com Guérard e com Bocuse. A experiência das duas cozinhas foi bastante enriquecedora e eu só tive a ganhar com isso. Agora que o tempo passou, e analisando tudo com o distanciamento necessário, se eu tivesse de apontar os refe- renciais da minha cozinha, eu diria que foram Jean Guerin e Michel Guérard. Com Guerin, meu período mais rico foi no restaurante Lucullus, onde conquistamos uma estrela no Guide Michelin e também a indicação de "Melhor mesa da Costa Oeste da França". Guérard foi outra influência mar- cante, por sua grande criatividade. Seu sucesso comprova que o respeito ao que veio antes não impede a evolução, a liberdade de criar. Cabe aqui uma pergunta: afinal, que é a criação? A palavra criatividade está muito em moda hoje em dia. Para alguns, poderia ser uma espécie de intuição para misturar ingredientes. A meu ver, a criação é decorren- te de todo o trabalho de embasamento que se adquire nos anos de formação profissional. Depois que adquiriu a base, o cozinheiro estará em condições de trabalhar a alquimia dos vários ingredientes. Podem ser os alimentos colocados à sua disposição, como também ingredientes culturais, sociais, ou A aqueles descobertos numa viagem, em um gesto ou em uma palavra ouvida ao acaso. Quando qualquer dessas coisas 41</p><p>desperta a sua atenção, conhecimento culinário e os con- ceitos de química e física embutidos na sua formação, as- sim como a reflexão e gesto profundo, vão entrar em ação e fazê-lo chegar a uma receita. Outro dia, em meu restau- rante, um cliente achou interessante uma sobremesa à base de caju e cachaça. Realmente chef precisa ter sensibilida- de e uma certa eletricidade para assimilar que está à sua volta. A sobremesa, além do caju e da cachaça, trazia uma crosta de coco. São elementos da cultura brasileira que eu não conhecia na França e descobri ao chegar aqui. Para de- senvolver a receita, foram usados processos clássicos de mistura, respeitando a tradição, por exemplo, na forma de cozimento do caqui e na quantidade de açúcar utilizado para o xarope. 0 caqui é uma fruta tropical. Tem um sabor que casa bem com a cachaça, também nativa do Novo Mundo, da mesma maneira que o coco. São elementos sim- ples, que permitem uma combinação extraordinária. Há outras parcerias igualmente interessantes, como Creme de feijão preto com granité de limão, que mencio- nei anteriormente, e a Moqueca de peixe en escabèche, geléia de crustáceos e emulsão de coentro. As duas prepa- rações resultam da utilização de técnicas clássicas, com as influências da cultura nacional, às vezes das camadas A mais pobres da população. Eu só traduzi isso, desenvol- vendo uma forma de refinar as receitas. Feijão preto é co- 42</p><p>mida de todos os dias, mas ganhou nova apresentação como creme, junto com o granité, um ancestral do sorvete. No caso do peixe, uso todos os ingredientes de uma mo- queca tradicional. As diferenças: não é um prato quente e é servido em taça, em camadas perfeitamente visíveis. Por baixo, se coloca o peixe, no meio uma geleia de crustáceos e, por cima, a emulsão fria, uma base de infusão de coen- tro. 0 lado técnico, obviamente, está embutido, envolven- do o cozimento, a textura e a apresentação, que é a parte plástica da questão. Não é nada mais do que isso. Na França, as inovações são bem aceitas. Curiosa- mente, um chef francês como eu, que trabalha fora da França, é sempre cobrado quando introduz mudanças, pois somos vistos como da culinária francesa, quase como um produto de exportação. No meu caso, no entan- to, sinto que não tenho como mudar mais meu estilo. vezes, há situações engraçadas. Outro dia, em meu restau- rante, uma senhora não se conformava porque não havia no cardápio "Creme brulée". Ela insistia: "Aqui não é res- taurante francês? Então, tem de ter Creme brulée". Não, não tem, minha senhora, mas há profiteroles de chocolate e ovos nevados (Oeufs à la neige), que também são clássi- cos. Apesar de reações como a dessa cliente, não pretendo A abandonar esse caminho renovador, traçado há muitos anos. Hoje, no restaurante Laurent, estou preso a uma imagem 43</p><p>que construí no Brasil, de uma cozinha francesa criativa, que incorpora produtos brasileiros típicos. É a minha mar- ca. Talvez tenha de completar minha atuação com um bis- trô, onde cliente vai encontrar, aí sim, os pratos clássicos tradicionais. Entendo que é preciso olhar o momento. Muita gente sai de casa querendo comer especificamente deter- minado prato. Pode ser um Coq au vin, um Magret de ca- nard, um Steak au poivre, que são pratos tradicionais dos bistrôs franceses. No restaurante principal, se houvesse apenas um car- dápio clássico, certamente os clientes habituais resisti- riam. Eles vêm ao Laurent em busca de uma gastronomia experimental e pedem a Chartreuse de alho poró com foie gras ou a Mousseline de mandioquinha. Pela minha expe- riência, acho que a solução é trazer para o cliente um refe- rencial clássico e uma interpretação. Você não tem a obri- gação de fazer um Coq au vin exatamente como está des- crito no Escoffier. É possível fazer uma apresentação dife- renciada para agradar ao cliente que gosta de coisas mais refinadas. Executamos, por exemplo, uma rabada com mo- lho de jabuticaba, agrião, polenta e pancetta. Todos esses elementos, por si só, já agradam e são populares na culiná- ria da França, da Itália ou de Portugal. No caso, o diferencial A foi a técnica de preparo e o tratamento que demos ao con- junto, que permitiu refinar um prato aparentemente rústi- 44</p><p>co. Em sua forma original, a rabada tem um excesso de gordura e sabores muito misturados, devido ao cozimento que normalmente recebe. Nesta reinterpretação, a gente limpa e desfia a rabada, que depois é reconstituída, sem osso. Como ela tem muita gelatina e cola naturalmente ao esfriar, é remontada na forma de um salsichão. A seguir, é reaquecida e acrescida do molho, do agrião e da polenta, ou seja, de ingredientes que tradicionalmente acompa- nham prato. É preciso entender conteúdo do alimento para adaptar a metodologia, sem descaracterizar a finali- dade do prato e sabor que dele se espera. Com a nova lei- tura, o cliente vai degustá-lo com mais facilidade de di- gestão e, ao mesmo tempo, vai se lembrar do prato rústico que conhecia. A meu ver, grande problema da cozinha contempo- rânea é a descaracterização do produto, o que provoca a rejeição da clientela. Procuro sempre evitar isso, sem abrir mão das inovações. Fiz um Camarão à Provençal não acompanhado de arroz, e sim com favas brancas e linguiça calabresa. A combinação, um pouco ousada, ficou maravi- lhosa na opinião dos clientes. É preciso, porém, tomar cui- dado com o excesso de criatividade. No estabelecimento de um cardápio, não se pode confundir o cliente. Proponho A um Magret de canard não apenas com a carne do peito do pato, como é tradicional, mas também com a coxa da asa, 45</p><p>vestida de figo. Ainda assim, ao ver Magret de canard no cardápio, o consumidor já tem o referencial do pato à ma- neira francesa. Não é fácil manter o limite de até onde se pode com a inovação. Outros restaurantes que não têm o carimbo da França talvez contornem isso com mais facili- dade. A cozinha francesa é associada a uma grande forma- lização, esperando-se mesmo que repita os pratos da ma- neira como estão descritos nos manuais clássicos. É formal na receita, na decoração do restaurante, na montagem da mesa. Por isso, em minha cozinha, procurei escapar do en- gessamento e fiz a miscigenação: há o referencial dos in- gredientes e da técnica clássica, a utilização de produtos nacionais, a construção de pratos sem a obrigação de re- petir estilos de cinquenta anos atrás e respeito à meto- dologia tradicional de preparo. Pelo menos até agora, tra- ta-se de uma combinação que deu certo. A 46</p><p>4 PRODUTOS BRASILEIROS</p>