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<p>https://t.me/bancabr</p><p>https://t.me/bancabr</p><p>https://t.me/bancabr</p><p>Apresentação</p><p>Edição do mês</p><p>1. Flavia Rios disse:</p><p>25 de junho de 2024</p><p>O escritor Mário de Andrade, em foto de 1938 (Benedito Junqueira Duarte)</p><p>Os pardos voltaram a ser tema das manchetes dos jornais. Desta vez, não mais nas</p><p>páginas policiais, e sim nos cadernos de educação. Como matéria de diversas</p><p>polêmicas envolvendo as classificações raciais brasileiras e as ações afirmativas nas</p><p>universidades, a figura do pardo volta a mexer com a sensibilidade dos brasileiros.</p><p>Torna-se assunto de boteco e anima conversas em grupos de WhatsApp, torna-se</p><p>roteiro para filmes, tema de congressos, artigos na imprensa, e até formam numerosas</p><p>comunidades nas redes sociais. Na verdade, os pardos voltam ao posto de onde nunca</p><p>saíram: o lugar da suspeição. Ou seja, o lugar-comum das pessoas racializadas neste</p><p>país.</p><p>Com isso, trazemos para o palco a temática das classificações raciais, jogando</p><p>holofotes para os pardos. Esse movimento é também uma forma de se haver com</p><p>tensões, dilemas e transformações do Brasil. A bem dizer, novos e velhos problemas se</p><p>reencontram. Nossa história é repleta de debates públicos que revelam a cor ou a raça</p><p>dos brasileiros como marcadores de lugares sociais. Boas respostas não faltaram da</p><p>literatura à produção científica.</p><p>Certa vez, Mário de Andrade escreveu em tom autobiográfico: “Se qualquer de nós,</p><p>brasileiros, se zanga com alguém de cor duvidosa e quer insultá-lo, é frequente</p><p>chamar-lhe: negro! Eu mesmo já tive que suportar esse possível insulto em minhas</p><p>lutas artísticas, mas parece que ele não foi lá muito convincente nem conseguiu me</p><p>destruir […]”. Décadas antes, Luiz Gama, em um de seus poemas satíricos, enfrentou a</p><p>mesma questão. Aos seus adversários, que usavam a raça como arma de</p><p>desclassificação social, Gama respondia com uma pergunta: quem sou eu? A questão</p><p>que dá título ao poema pouco a pouco desliza da dimensão subjetiva para a</p><p>coletividade nacional. O escritor faz troça da sociedade brasileira que se assenta em</p><p>hierarquias coloniais para manter seus privilégios, status e posição de classe, negando</p><p>o mérito, a autonomia, a liberdade e a igualdade aos descendentes de povos</p><p>escravizados e originários. O poeta baiano, assim como o escritor paulista, através de</p><p>suas críticas ácidas à sociedade brasileira, mostra que cor – seja pelos marcadores</p><p>culturais, fenotípicos ou de origem – é arma poderosa usada para garantir o controle</p><p>social.</p><p>Como arma de controle social, classificações raciais também são instrumentos do</p><p>Estado para fazer gestão das populações e do território nacional. Mais do que</p><p>construções subjetivas dos sujeitos políticos, categorias raciais estatais são formas de</p><p>desindividualização. São estratégias de agrupamento que acabam por contar a história</p><p>de um povo, de uma nação. Isso porque o Estado conta, descreve e narra as</p><p>populações, bem como inventa subjetividades nacionais. A categoria pardo, como</p><p>todas as demais categorias estatais brasileiras, não escapa a essa trama. Se filha ou</p><p>filho de pais mestiços, de mãe branca e pai preto, ou o inverso, não importa. Tampouco</p><p>importa se de ventre indígena e pai branco ou negro. As múltiplas combinações que</p><p>fazem emergir a figura do pardo e as múltiplas tonalidades de pele que lhes são</p><p>características deságuam num lugar comum: o lugar do mestiço.</p><p>A condição de ser pardo no Brasil, como veremos nos diversos textos deste dossiê, é</p><p>aquela que remete à nossa história de mestiçagem. Com idas e vindas, altos e baixos: o</p><p>pardo foi e continua sendo a pedra de toque das nossas relações raciais. Na história</p><p>dos censos, os pardos foram classificados e reclassificados ao longo desses séculos. As</p><p>oscilações não são aleatórias, mas podem ser explicadas por transformações nas</p><p>ideologias nacionais do país e pelas mudanças entre precariedade e direitos, entre</p><p>desigualdades e oportunidades, entre racismo e antirracismo.</p><p>Afinal, quem é o pardo no Brasil? Essa pergunta é aqui respondida por pensadores,</p><p>filósofos, artistas e ativistas que, de um jeito ou de outro, lidaram com essa questão</p><p>nas suas vidas, em suas pesquisas acadêmicas ou na esfera pública. De Norte a Sul do</p><p>país, autores e autoras interessados/as no tema se valeram da psicanálise, da filosofia,</p><p>do direito, da sociologia, da antropologia, da demografia, da história e das artes para</p><p>decifrar o tema, que, por sua complexidade, merece atenção e profundidade.</p><p>O dossiê também explora a sensibilidade da experiência das pessoas que se</p><p>identificam como pardas no Brasil de hoje. Tais experiências são atravessadas por</p><p>múltiplas dimensões como a política, a educação, a arte, a cultura, entre outras. Os</p><p>atravessamentos diversos movidos pela luta por direitos e oportunidades sociais e</p><p>educacionais têm feito a categoria pardo emergir como tema relevante na sociedade.</p><p>Afinal, o estabelecimento de um estado de direito precisa necessariamente implodir a</p><p>sociedade de privilégios.</p><p>Desde os anos 1970, os pesquisadores Carlos Hasenbalg e Nelson do Valle Silva já</p><p>haviam mostrado a persistência das desigualdades herdadas e transmitidas pelas</p><p>pessoas autodeclaradas pardas e pretas. Por isso, os autores preferiram juntar essas</p><p>categorias presentes nas pesquisas oficiais do Instituto Brasileiro de Geografia e</p><p>Estatística (IBGE) e chamá-los todos de não brancos. O termo hoje pode soar</p><p>politicamente desajustado, posto que é fundado numa negatividade: não ser branco.</p><p>Na época também soou estranho, já que os movimentos sociais antirracistas</p><p>preferiram chamar de negros o somatório de pretos e pardos. Por fenótipo ou por</p><p>origem, ou por ambos, todos seriam negros. Negros aqui não em referência à cor da</p><p>pele, mas à posição numa dada estratificação social. A proposta do movimento negro</p><p>pegou. Meios de comunicação, acadêmicos, organizações da sociedade civil e até leis,</p><p>normas e agências do Estado passaram a chamar de negros os pardos agregados aos</p><p>pretos no Brasil.</p><p>Das produções clássicas desse tempo, ganha de braçada o livro da psicanalista Neusa</p><p>Santos Souza. A autora brasileira embarcou na teoria anticolonialista de Frantz Fanon</p><p>vista em Pele negra, máscaras brancas, aplicou de forma original as teses do psiquiatra</p><p>em casos clínicos no Brasil e, assim, fez nascer seu referencial Tornar-se negro. Da</p><p>psicanálise de Neusa Santos Souza para a filosofia política de Lélia Gonzalez, traduzida</p><p>em pretuguês, registre-se: “A gente não nasce negro, a gente se torna negro. É uma</p><p>conquista dura, cruel e que se desenvolve pela vida da gente afora”. Não há lugar para</p><p>essencialismos. Não há lugar de conforto. Não é lugar de fala. É o lugar da confrontação</p><p>política. Das formas diversas de se fazer política. Nessas interpretações, encontram-se</p><p>as matrizes teóricas para transgredir as fronteiras coloniais.</p><p>Mas esse pacto entre sociedade civil e Estado parece encontrar fissuras nos últimos</p><p>anos. A própria literatura acadêmica mais recente notou que, embora existam</p><p>semelhanças em termos de discriminação e desigualdades entre pretos e pardos, a</p><p>percepção do racismo varia para ambos, conforme estudo da pesquisadora Verônica</p><p>Toste Daflon. Atualmente, a emergência de novas gerações, a consolidação das</p><p>políticas de ações afirmativas, os debates e conversas nas redes sociais, a formação de</p><p>comunidades organizadas por identidades sociais têm levado a uma nova discussão</p><p>sobre quem são e qual é o lugar das pessoas pardas no Brasil. Reivindicando-se como</p><p>sujeitos de direitos e com experiências próprias vividas a partir dos processos de</p><p>racialização do Brasil, as pessoas que se identificam como pardas ora defendem sua</p><p>própria existência, silenciada pelos discursos de branquitude e de negritude, ora</p><p>defendem um lugar de mestiço, produto tipicamente nacional.</p><p>O presente dossiê não encerra a questão dos pardos no país. Mostra que aqui os</p><p>pardos se consolidaram como categoria estatal, seja por meio de estatísticas oficiais,</p><p>seja por meio da produção acadêmica,</p><p>a unificação de todos os</p><p>povos da diáspora africana, não importando a localização geográfica ou a cor da pele.</p><p>Esperamos que, ao nos concentrarmos em dois países dessa diáspora e nos desafios</p><p>semelhantes que enfrentamos como afrodescendentes, possamos continuar a longa</p><p>tradição de diálogo e unificação para fortalecer ambas as nossas comunidades.</p><p>Edilza Sotero é doutora em sociologia pela USP, professora da UFBA e pesquisadora do</p><p>programa A Cor da Bahia (UFBA). Integra a revista Afro-Ásia.</p><p>Gladys Mitchell-Walthour é PhD em ciência política pela Universidade de Chicago e</p><p>professora da Universidade da Carolina do Norte. É autora de The Politics of Survival:</p><p>Black Women Social Welfare Beneficiaries in Brazil and the United States (Columbia</p><p>University Press, 2023).</p><p>Entre o preto e o branco: as parditudes</p><p>como ode à mestiçagem</p><p>Edição do mês</p><p>1. Matheus de Moura disse:</p><p>25 de junho de 2024</p><p>“Preto demais pra ser branco e branco demais pra ser preto / Escuro o suficiente pra</p><p>estar no seu pesadelo.”</p><p>“In Sonia (Sonia in my mind)”, do álbum A salvação é pelo risco: o show do</p><p>JOCA (2019)</p><p>O rapper que assina a epígrafe deste texto verbaliza o sentimento médio de boa parte</p><p>dos pardos brasileiros que se reconhece como negra, mas que, de alguma forma, é</p><p>reticente com essa autoafirmação, por medo de tê-la negada, questionada ou talvez,</p><p>até mesmo, caçoada por algum espírito zombeteiro racista. Ele sabe que sua</p><p>identidade depende tanto de seu posicionamento político quanto do lugar e do</p><p>momento em que estiver, que raça é um fato social relativo, construído e reconstruído</p><p>inúmeras vezes, mas que, independentemente das nuances, no fim ele é escuro o</p><p>suficiente para ocupar os pesadelos mais vis da branquitude brasileira.</p><p>Afinal, ao cair da noite, talvez atravessem a rua ao vê-lo se aproximando.</p><p>Nem todos os pardos, contudo, se situam no mesmo lugar que o de Joca ou o meu;</p><p>sabemos que, mesmo que eventualmente o outro não utilize o termo “negro” para se</p><p>referir à nós, ele, conscientemente ou não, nos racializa como tal. Um bom número de</p><p>pessoas pardas se encontra em outro lugar, um limbo da autoidentificação, diriam eles,</p><p>como é o caso de um conhecido meu, de pele marrom-médio, de tons avermelhados e</p><p>traços finos; um rapaz que teima em se afirmar um mestiço em busca de uma</p><p>identidade. Oriundo de uma família majoritariamente negra de Araruama, o rapaz se</p><p>dizia inicialmente confuso com seu lugar e, por isso, preferia não se identificar como</p><p>negro, embora se reconhecesse como pardo.</p><p>“As categorias que temos hoje não servem mais para explicar a realidade brasileira”,</p><p>proferiu numa conversa que tivemos recentemente.</p><p>No entanto, ele não é o único. Essa obstinação por se ressignificar para longe do</p><p>“asiático” ou do “negro” e do “indígena”, ou talvez até mesmo do “branco”, ressoa com</p><p>um número ainda não quantificável de pessoas que vão às redes sociais esbravejar</p><p>contra os movimentos negros, contra o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística</p><p>(IBGE), dizendo-se até mesmo presas num suposto apagamento étnico enquanto</p><p>“mestiças”. Não há uma data exata de quando isso saiu de pequenas bolhas e começou</p><p>a ocupar a mente da população autodeclarada parda de forma mais ampla no Brasil.</p><p>Um misto de motivações emerge desses discursos pela ode à “mestiçagem”.</p><p>De um lado, o ressentimento contra negros retintos, os pretos. Há, em certas pessoas</p><p>pardas, uma sensação latente de segregacionismo por parte de pessoas de pele mais</p><p>escura. Normalmente essa sensação surge de interações sociais pontuais ou</p><p>frequentes, pessoalmente ou online, em que pessoas mais escuras, marrons ou retintas</p><p>as identificam como brancas. Brancos também fazem isso com pessoas pardas, mas,</p><p>por algum motivo, esse tipo de discurso parece ser mais mal recebido quando o</p><p>interlocutor é preto. Segundo essa interpretação, seria como se as pessoas pretas, em</p><p>razão da experiência da racialização no Brasil, devessem ter maior consciência crítica</p><p>em relação à origem racial dos pardos e seus dilemas étnico-raciais, ao contrário dos</p><p>brancos, que seriam aqueles afeitos às ideologias de acomodação e assimilação raciais</p><p>de matrizes coloniais. Outra motivação para a busca por um distanciamento das</p><p>identidades raciais já estabelecidas no Brasil está no ressentimento contra as bancas</p><p>de heteroclassificação para o acesso ao sistema de cotas. Não são raros os casos de</p><p>indivíduos lidos socialmente como negros ou, pelo menos, como não brancos, que</p><p>acabam impedidos de usufruir de cotas por consequência de uma banca que não os</p><p>considera “negros o suficiente”, no jargão popular.</p><p>Os “movimentos” de mestiços</p><p>Em algum momento, falas desencontradas nas redes e em grupos de amigos, a</p><p>tempestade de discursos da crise identitária parda, encontraram pontos de</p><p>ressonância a conduzi-los para algumas visões centralizadas sobre como lidar com</p><p>essa insatisfação enquanto grupo social. Influencers, acadêmicos e pseudoestudiosos</p><p>das relações raciais aglutinam esses discursos ao redor de si e regurgitam perspectivas</p><p>conservadoras sobre o que é ser pardo, reivindicando de forma mais sistemática que a</p><p>categoria “pardo” seja subtraída do grupo “negro” e vire algo próprio.</p><p>A fama de um discurso conservador não é exatamente controversa entre esses</p><p>indivíduos. Talvez a mais famosa influenciadora a reivindicar essa “identidade</p><p>mestiça/parda” seja Beatriz Bueno, dona do perfil Parditude. Transitando entre o</p><p>conservadorismo brando e o progressismo moderado, Beatriz, uma jovem de</p><p>madeixas cacheadas que prefere não se posicionar pessoalmente em nenhum espectro</p><p>ideológico, tem mais de 90 mil seguidores no Instagram – incluindo meu velho</p><p>conhecido de Araruama.</p><p>Nascida e criada na zona leste da capital paulista, Beatriz é filha de uma mulher negra</p><p>com um homem branco. Ela afirma que nunca se entendeu como branca na vida e que,</p><p>da mesma forma, ninguém nunca a viu assim; por quase toda a existência, o lugar de</p><p>mestiça lhe pertencia confortavelmente. O flerte com a identidade negra surgiu apenas</p><p>na virada de 2013, quando ainda frequentava o ensino médio numa instituição de elite</p><p>na qual, segundo ela mesma, era uma das pessoas mais escuras de todo o colégio.</p><p>Beatriz conta que tentou ser ativista por um tempo, leu os clássicos (Angela Davis,</p><p>Lélia Gonzalez, Abdias do Nascimento etc.), até, eventualmente, no raiar da vida adulta,</p><p>deparar com um grupo no Facebook em que sua negritude foi posta em questão:</p><p>“Nunca tive um fio de cabelo sequer de uma experiência de pessoa branca. A primeira</p><p>vez que tive essa quebra, para mim isso foi esquisito demais, falei para minha amiga: ‘É</p><p>isso que vou fazer, vou estudar a zona cinzenta do Brasil’ ”.</p><p>E foi assim, a partir de um questionamento de sua identidade negra num grupo online</p><p>com desconhecidos, que Beatriz foi para a Universidade Federal Fluminense (UFF), no</p><p>campus de Volta Redonda, estudar produção cultural e, ali, começar seu perfil online,</p><p>em que versa livremente sobre pardos e mestiços. Na UFF, ela, que vem de um estado</p><p>cuja população é composta por mais de 40% de negros, se viu excluída por uma</p><p>maioria retinta, algo que, inclusive, a surpreendeu por sempre ser tida como a pessoa</p><p>mais escura dos ambientes que frequentava.</p><p>O período em que Beatriz se entendeu negra a levou a desenvolver a percepção de que</p><p>pardos são uma categoria própria, mas que devem construir movimento político junto</p><p>de negros e indígenas, indo na contramão de perspectivas que chamarei aqui de</p><p>separatistas. Ela defende que o pardo tem o papel de apaziguar as tensões entre</p><p>brancos e pretos: “A responsabilidade da consciência mestiça: quando a gente coloca</p><p>uma consciência de que somos mestiços de branco com preto, a gente se</p><p>responsabiliza por todas as injustiças que aconteceram no passado. Nossa função é</p><p>integrar paz e união”.</p><p>Para construir isso, ela, que reivindica o “LeoPARDO” como o animal que representa os</p><p>autodeclarados pardos tal qual a pantera negra representa as pessoas</p><p>autodeclaradas</p><p>negras, tenta formular uma perspectiva teórica baseada, principalmente, em Darcy</p><p>Ribeiro e Gloria E. Anzaldúa, intelectual mexicana defensora da identidade mestiça</p><p>(criticada por construir uma noção histórica que apaga negros e indígenas). Antes que</p><p>o leitor atento às discussões raciais na academia pergunte: não, Gilberto Freyre não</p><p>consta nem em sua monografia de graduação, nem no livro que ela está escrevendo</p><p>sob encomenda da editora Planeta. Mas estará na dissertação de mestrado, que deve</p><p>começar em breve na Bahia: “Na dissertação, quero rever a obra dele e ver se tem</p><p>como a gente botar um novo olhar”.</p><p>Apesar do interesse em ver se há algo de reabilitável na obra de Freyre, ela esclarece:</p><p>“A gente não promove o mito da democracia racial”. Isso talvez seja um ponto em</p><p>comum entre todas as pessoas que tentam levantar a bandeira da identidade</p><p>parda/mestiça de forma mais sistemática e até acadêmica: todos creem que há algo a</p><p>ser salvo na obra de Freyre. O psicólogo pernambucano Leonardo Rocha é um dos que</p><p>defendem uma herança positiva de Freyre “numa época eugenista, foi uma das pessoas</p><p>que mais combateram o racismo que via o mestiço como negativo, e isso tem que ser</p><p>celebrado”, afirma em uma entrevista conosco, ao mesmo tempo que renega a</p><p>descrição passiva e positiva da colonização feita pelo autor.</p><p>Além de participar de debates públicos, Rocha mobiliza seguidores no Instagram e na</p><p>Medium sobre ser pardo. Amigo de Beatriz, o pesquisador agora integra um doutorado</p><p>focado em estudar a questão oficialmente. Tal como a colega, ele passou a levantar a</p><p>bandeira da mestiçagem conforme foi sendo colocado e recolado em locais sociais</p><p>diferentes. Neto de indígenas, cresceu vendo as pessoas chamando-o ora de branco,</p><p>ora de indígena, em especial após seu cabelo negro e liso crescer até abaixo dos</p><p>ombros. “Eu não me considero indígena, pois isso exigiria eu pertencer a uma aldeia</p><p>ou etnia, e eu não sei essa origem, assim como a maioria das pessoas no Norte e no</p><p>Nordeste do Brasil que são pardas, mas de ascendência indígena”, explica. Como</p><p>solução para o impasse do indígena, ele propõe outras categorias de análise: caboclo</p><p>(considerado ofensivo em alguns territórios do Norte, o que ele mesmo reconhece),</p><p>mulato (considerado ofensivo por pessoas negras em geral) e moreno (para ele,</p><p>pessoas como Caetano: “brancos não tão brancos”) – todos dentro da categoria pardo,</p><p>que, segundo o psicólogo, não deve mudar no IBGE sem uma pesquisa que comprove a</p><p>eficiência de uma mudança possível.</p><p>O pernambucano acredita que o problema da categoria pardo não está no IBGE, mas</p><p>no artigo 1º do Estatuto da Igualdade Racial onde consta: “IV – população negra: o</p><p>conjunto de pessoas que se autodeclaram pretas e pardas, conforme o quesito cor ou</p><p>raça usado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ou que</p><p>adotam autodefinição análoga”. Ele afirma que isso foi uma manobra política do</p><p>“movimento negro” que apagou a diversidade dentro da categoria pardo. Essa crítica é</p><p>compartilhada por outros influenciadores dessa vertente conservadora branda, como</p><p>o historiador Denis Moura, autor do livro Pardos: A visão das pessoas pardas pelo</p><p>Estado brasileiro (2021), citado com frequência na bolha das redes sociais.</p><p>Moura, assim como Rocha e Beatriz, é muito presente nas redes e em debates</p><p>retóricos, mas ele extrapola um pouco esse ponto e busca mobilizar seus seguidores a</p><p>se engajarem em prol de mudanças na legislação e em outras ações institucionais. Por</p><p>exemplo, em seu Instagram, usou inúmeras postagens para frisar a importância de se</p><p>defender que a categoria “pardo” fosse retirada do corpo da categoria “negro” na PL nº</p><p>1.958, de 2021, que defende o destacamento de uma cota de 20% das vagas de</p><p>concursos de serviço público para pessoas negras (pretos e pardos). O maior</p><p>representante dessa pauta no Senado é o senador Plínio Valério, um jornalista e</p><p>radialista branco filiado ao PSDB.</p><p>Também defensor de uma atribuição positiva a partes da obra de Freyre e a autores</p><p>como Antonio Risério, benquisto nesse meio, Moura não é o único a se engajar</p><p>minimamente no debate institucional. No espectro mais radical da direita “mestiça”,</p><p>um grupo político se articula desde o princípio dos anos 2000. Nação Mestiça, como é</p><p>chamado, é um movimento de Manaus que se alinhou ao governo Bolsonaro,</p><p>inicialmente contrário às cotas e que considera que chamar pardo de negro seria um</p><p>ato racista, como ressaltado em um dos manifestos em seu site oficial: “Classificar</p><p>pardo como negro é racismo, pois significa considerar ser ‘de raça’ mais importante ou</p><p>superior a ser misturado, uma crença do racismo. É racismo também porque considera</p><p>as origens não pretas dos mestiços como menos importantes do que sua origem preta.</p><p>A classificação dos pardos como negros é racista também por sua origem, pois foi uma</p><p>classificação inventada por racistas para apagar seu parentesco com os mestiços e os</p><p>pretos resultante da miscigenação. Racismo ‘anticunhadista’ ”.</p><p>A aproximação com o bolsonarismo, que eles justificam publicamente no asco às</p><p>políticas raciais do PT desde o primeiro governo Lula, acaba fazendo com que os</p><p>defensores mais “centristas” da identidade mestiça fiquem reticentes com o apoio</p><p>irrestrito ao Nação Mestiça. Todavia, o incômodo que sentem pessoas como Beatriz,</p><p>Moura e Rocha não é suficiente para afastá-los de vez. Para esses defensores centrais</p><p>da mestiçagem, o Nação Mestiça faz um trabalho importante com seu ativismo pela</p><p>retificação da Lei de Cotas e pela mudança na PL das cotas do serviço público, uma vez</p><p>que defendem separar pardos como uma categoria própria à parte de negro.</p><p>Em todos esses discursos apresentados nas agências e nos discursos atuais sobre</p><p>pardos e “parditude”, o ressentimento contra negros ou contra a categoria negro</p><p>parece imperar tácita ou explicitamente. As movimentações de grupos que</p><p>reivindicam a mestiçagem como uma identidade à parte no Brasil seguem crescendo e</p><p>ganhando novos contornos conforme essas pessoas vão aglutinando seguidores em</p><p>redes sociais e lançando livros que dialogam com as angústias de uma população</p><p>negra, branca e indígena que tem dificuldade em se reconhecer como tal, seja por qual</p><p>motivo for. Tudo parece começar por uma suposta incompreensão social em relação</p><p>aos pardos no Brasil, seja pelo aspecto cromático, seja pelo aspecto de origem.</p><p>Contudo, muitas dessas comunidades e narrativas acabam por andar na corda bamba,</p><p>ora segurando a mão do conservadorismo centrista, ora se apoiando nas franjas da</p><p>extrema direita.</p><p>Matheus de Moura é jornalista e sociólogo baseado no Rio de Janeiro, com foco em</p><p>temas como segurança pública, raça e direitos humanos. É doutorando na UFF, onde</p><p>pesquisa chacinas policiais e genocídio negro. Autor de O coronel que raptava</p><p>infâncias (Intrínseca, 2021).</p><p>Relato de um pardo implodido</p><p>Edição do mês</p><p>1. Érico Andrade disse:</p><p>25 de junho de 2024</p><p>"Operários" (1933), de Tarsila do Amaral (Acervo Governo do Estado De São Paulo)</p><p>Durante muito tempo, eu me apegava à categoria de pardo como se ela fosse um</p><p>manto protetor que poderia me esconder diante das assertivas racistas, conforme as</p><p>quais meu destino só poderia ser aquele de servir àquelas pessoas que nasceram para</p><p>ser servidas como atestava a sua cor branca. Essa proteção me parecia inata porque</p><p>vinha na forma de batismo. Certidão. Tudo era dito para que eu pudesse me conformar</p><p>àquilo que me afastava do feio, daquilo que não se confia, do que fede e do que</p><p>ninguém deseja ser num subúrbio de classe média em Recife. Numa palavra: do negro.</p><p>Nos anos 1990 – ontem, portanto –, corria publicamente pelas dilatadas ruas dos</p><p>subúrbios ou nos esquálidos becos da favela a compreensão de que ser negro era estar</p><p>perto daquilo do qual se deve estar longe. O pardo era a forma de atenuar esse destino</p><p>de negação de si. Afinal, não era um negro. Não precisava abdicar do próprio corpo.</p><p>Bastava me identificar com um</p><p>não lugar. Mas não seria se identificar com um não</p><p>lugar a experiência de viver sem um corpo?</p><p>A distância para o corpo branco estava dada. Os brancos me ensinaram isso. Quando</p><p>um deles perdeu pela enésima vez uma partida de xadrez para mim, restou-lhe as vias</p><p>de fato. Tocou na própria pele e, com orgulho, propalou para si e para todas as pessoas</p><p>em volta que era branco. A cor da sua pele, sobre a qual ele deslizava os seus dedos em</p><p>frenético movimento, não deixava dúvida de que, mesmo perdendo no xadrez, ele</p><p>seria superior a mim. Eu que achava que não tinha cor, nem lugar, via naquele colega</p><p>de rua que eu não era como ele. Como eles. Como um branco.</p><p>Outras tentativas seriam engajadas por mim para me tornar um não lugar. Estudar</p><p>filosofia como se a filosofia europeia fosse o espelho do universal, válida, portanto,</p><p>para qualquer território e para qualquer momento da História. Aliás, foram os</p><p>europeus que criaram a História, ou pelo menos o modo de contá-la. Quem me dizia</p><p>isso era Hegel, conforme apontei em Negritude sem identidade (2023). E eu estudava</p><p>toda filosofia moderna como se com ela eu pudesse me identificar e assumir um lugar</p><p>de conforto. Pensava que o universal iria me abarcar. Afinal, o universal era um não</p><p>lugar, ou pelo menos ele não se reduziria a um lugar palpável, muito embora todas as</p><p>vezes que ouvia esse universal ele coincidia com o modelo de civilização da Europa e</p><p>dos seus agregados brancos.</p><p>A filosofia era a máscara que se adequava ao meu rosto para que eu pudesse me sentir</p><p>pardo naquilo que ele teria de próximo com os brancos. E eu me vestia de conceitos,</p><p>palavras estrangeiras, fala lapidada nas assertivas sobre teses da história da filosofia.</p><p>Tudo aquilo que me parecia familiar na filosofia era anunciado sempre por um corpo</p><p>diferente do meu. O pardo não me tornava branco ou da cor de todos aqueles</p><p>pensadores que me acompanhavam. Eu pensava que a cor era apenas um detalhe, até</p><p>me dar conta de que os filósofos não tinham dúvida nem sobre a cor que possuíam,</p><p>nem sobre a prioridade da cor branca para o trabalho de reflexão. O iluminismo, como</p><p>escrevi em “A opacidade do iluminismo: O racismo na filosofia moderna” (2017), tinha</p><p>a sua opacidade quando se tratava de corpos negros. Percebi que a própria filosofia</p><p>tinha cor quando comecei a me perguntar sobre o meu próprio corpo.</p><p>Ora, se apenas os brancos tinham acesso ao universal, o que significava então a</p><p>categoria de pardo? Negro e pardo seriam diferentes quando o padrão identitário era a</p><p>branquitude? O que me distinguia de fato do negro?</p><p>Não se tratava de reconhecer a máxima, em certo sentido racista, de que todo mundo</p><p>tem um pé na senzala. Como escrevi recentemente, a questão não é quem tem o pé na</p><p>senzala (na forma de um parente mais ou menos distante que funciona muitas vezes</p><p>como passaporte diplomático para falar sobre a negritude e não de branquitude), mas</p><p>quem tem mãos, bocas, cabelo, olhos: o corpo, como pontuei em Negritude sem</p><p>identidade. Nesse momento, ocorriam-me os ensinamentos de Beatriz Nascimento</p><p>sobre a experiência singular da negritude brasileira. É evidente, pelas razões já</p><p>elencadas por Lélia Gonzalez em Por um feminismo afro-latino-americano (2020), que</p><p>a violência foi um dos traços da mestiçagem no Brasil. Penso na minha própria</p><p>história. Na relação do senhor de engenho com a minha avó, empregada do engenho,</p><p>que resultou na vinda da minha mãe ao mundo e também de sua expulsão do engenho.</p><p>É evidente que o Brasil é miscigenado. Qual parte do mundo não é? A questão não é a</p><p>miscigenação, mas o destino político que é dado a ela.</p><p>Volto-me para o meu próprio corpo. Percebia que, além de sua cor negra, ele deveria</p><p>ser entendido como documento. Novamente, Beatriz Nascimento era a minha</p><p>companhia. E, com ela, eu começava a gingar em direção ao que me impedia de me</p><p>tornar negro. Era a leitura de Neusa Santos Souza que me desorganizava de modo</p><p>definitivo, e sentia que era preciso seguir os seus passos porque já não era apenas a</p><p>filosofia, área na qual me formei inicialmente, que se apresentava como um projeto de</p><p>branquitude, mas também a própria psicanálise com a qual iniciava a minha estrada</p><p>rumo à negritude. Seria preciso retirar algumas máscaras brancas para me tornar</p><p>negro, para fazer referência a Frantz Fanon.</p><p>Foi em Negritude sem identidade que me dei conta de que o pardo era uma barra. Uma</p><p>barreira, para ser preciso. Um instrumento da branquitude que dividia as pessoas</p><p>negras numa escala, tão bem mapeada por Clóvis Moura em Sociologia do negro</p><p>brasileiro (2019), que nunca nos permitia ser brancos. Isto é, numa escala que nos</p><p>indicava um limite. Nesse limite, estava o racismo. Na ponta, a branquitude, e do outro</p><p>lado, “as pessoas de cor”. Longe de me desfazer da ideia de que o racismo incide mais</p><p>sobre os irmãos e as irmãs retintos/as, comecei a entender que o racismo me</p><p>atravessou desde a escolha da minha família pela certidão de pardo à escola e à vida</p><p>acadêmica. Relatar os inúmeros episódios de racismo poderia desviar o foco do que</p><p>importa. O tornar-me negro como postura política.</p><p>Eu que já fui brown, marrom, chocolate, nego, preto e negão. Eu que sempre tive a</p><p>negritude tatuada no modo como as pessoas se referiam a mim não poderia mais</p><p>vestir a máscara branca do pardo. Meu ponto é que, para pessoas como eu, e somos</p><p>várias, como pude perceber nos diversos lançamentos do meu livro, a categoria de</p><p>pardo funcionou como uma negação da negritude que, em alguns momentos, poderia</p><p>ser entendida como um mecanismo de defesa psíquico (afinal, a negritude sempre</p><p>esteve associada a tudo que é deficitário ou insuficiente) e, em outros momentos, era</p><p>uma forma de me desidentificar com a experiência estética de ser racializado, como se,</p><p>por ser pardo, eu estivesse livre do racismo.</p><p>Essas fantasias só começaram a ser desfeitas quando percebi que o pardo fala muito</p><p>mais de uma estratégia política e colonial de imposição do padrão de branquitude e da</p><p>sua reafirmação ideológica de si mesmo do que algo com o qual eu poderia me</p><p>reconhecer. O ponto é que a miscigenação, além de sua violência de origem – na minha</p><p>origem isso fica claro, como escrevi –, pode se manter no registro da violência quando</p><p>serve para apagar a negritude em nome de uma proximidade com a branquitude</p><p>completamente fantasmática, visto que as pessoas brancas só reconhecem como</p><p>brancas aquelas que de fato as espelham numa suposta “pureza da raça”. Pouco</p><p>importa se as próprias pessoas brancas são, em algum grau, miscigenadas diante do</p><p>fato de que as pessoas miscigenadas com traços de negritude são negras e tratadas</p><p>como tais. A questão é assumir a negritude como uma experiência de abertura de um</p><p>território que até então as pessoas pardas achavam que poderiam apagar, como se o</p><p>nosso corpo não fosse, conforme Beatriz Nascimento em O negro visto por ele</p><p>mesmo (2022), o nosso documento.</p><p>Nessa perspectiva, o pardo foi sendo dissolvido por mim para que eu pudesse viver o</p><p>meu território como corpo político. E assim fui me tornando negro, entendendo que a</p><p>negritude é um ponto de partida e não de chegada. Que ela é muito mais um processo</p><p>do que um lugar já pronto e acabado. E que a negritude é um dos meios de</p><p>experienciar uma forma coletiva de vida.</p><p>Chego ao fim deste texto certo de que tanto a negritude quanto a própria condição de</p><p>indígenas ou mesmo de afro-indígenas deveriam implodir a abstração da categoria de</p><p>pardo para que o Brasil possa, nas suas diversas identidades, reconhecer a</p><p>complexidade do seu povo. Somos uma imensidão de possibilidades que a categoria de</p><p>pardo, por meio do projeto da branquitude, desejou apagar. E, apesar de todos os</p><p>esforços na promoção do epistemicídio, não conseguiram aniquilar o nosso poder de</p><p>se transformar no que também somos: negritude.</p><p>Notas sobre a morte do mulato</p><p>Edição do mês</p><p>1. Matheus Gato disse:</p><p>25 de junho de 2024</p><p>Poucos fatos sociais evidenciam com tanta clareza as mudanças na constituição e o</p><p>delineamento</p><p>das fronteiras raciais no Brasil contemporâneo que o progressivo</p><p>desuso da categoria mulato como forma de classificação social. Com efeito, os pardos</p><p>de hoje não são como os mulatos de antigamente. A categorização perdeu muito</p><p>daquela conotação de mediação cultural e biológica entre mundos diversos, de</p><p>“mestiçagem” como intermediação social entre os nominados “brancos” e “pretos”,</p><p>ponto de conciliação e fusão dos extremos, espécie de não lugar racial sempre a</p><p>escorregar de classificações rígidas e significados fixos. Assim, enquanto os mulatos de</p><p>ontem podiam ser definidos como um grupo social específico, intermediário, nem</p><p>preto, nem branco, os usos políticos e estatais correntes da categoria pardo tendem</p><p>enfatizar, não sem polêmica, a origem e o pertencimento afrodescendente e o status</p><p>socioeconômico semelhante aos classificados como pretos. À diferença de como era</p><p>num passado nem tão distante, “mulatos” e “pardos” já não são termos plenamente</p><p>intercambiáveis na cultura brasileira.</p><p>Esse sutil deslocamento entre os velhos significados de mulato e o campo de disputa</p><p>aberto em torno da categoria pardo é um ponto de partida para interrogar quais</p><p>ideologias organizam os sentidos culturais de “raça” e “cor” no Brasil contemporâneo.</p><p>Em primeiro lugar, porque a categoria “mulato” designava um grupo social específico e</p><p>diferenciado, malgrado a largueza de fronteiras sociais e simbólicas. Em segundo,</p><p>porque essa classificação estava associada a uma certa maneira de se relacionar com o</p><p>mundo e de dar forma às relações entre os diferentes grupos sociais. Um estilo</p><p>comportamental avesso ao formalismo, malandro, dado à improvisação, rápido em</p><p>assimilar outras culturas, cordial, amigo das variações e ludibriador da ordem. Estilo</p><p>que Gilberto Freyre sintetizou na expressão “foot-ball mulato” para explicar a maneira</p><p>brasileira de jogar bola como expressão e metáfora de valores e práticas contrários ao</p><p>cultivo da pureza racial, do arianismo, em favor da mistura entre os povos e da troca</p><p>cultural entre diferentes grupos de cor. Em terceiro, a categoria mulato era uma</p><p>representação e um símbolo da própria nação, como nos testemunha o cancioneiro</p><p>popular desde Ary Barroso, que dizia ser o país “um mulato inzoneiro”, até os</p><p>Paralamas do Sucesso, que, ainda jovens, cantavam altissonantes: “Essa mulata tem a</p><p>cor do Brasil”. Aliás, o país era o paraíso das mulatas representadas como signos da</p><p>sexualidade nacional.</p><p>Nesse sentido, aquilo que denomino de “morte do mulato” é a transformação correlata</p><p>destas três dimensões na sociedade brasileira contemporânea: 1) o modo de</p><p>fabricação dos grupos de cor e suas fronteiras; 2) as concepções sobre a forma da</p><p>sociabilidade entre diferentes grupos raciais; 3) a representação da nação. Uma das</p><p>razões mais importantes para compreender esse processo são os significados políticos</p><p>que a identidade racial galgou ao longo da democratização do país. A emergência do</p><p>movimento social negro contemporâneo no contexto da ditadura militar (1964-1985)</p><p>tencionou a denúncia da violência policial contra a juventude negra, da concentração</p><p>da pobreza entre pretos e pardos, e a contestação da vigência da branquidade como</p><p>padrão supremo de beleza na indústria cultural, a combinação entre o mito da</p><p>democracia racial e a ideologia do branqueamento. O racismo se tornou uma das</p><p>maneiras pelas quais a forma das relações sociais pôde ser imaginada, e os que eram</p><p>classificados como mestiços, antes valorizados socialmente de forma positiva como</p><p>não negros, ainda que não brancos, puderam, aos poucos, se transformar em negros de</p><p>pele clara. Esse processo foi reforçado pela forma como o Estado brasileiro incorporou</p><p>tais demandas, com o reconhecimento do racismo como crime na Constituição do país,</p><p>a adoção da categoria “negro” por instituições estatais de pesquisa, a criação de</p><p>secretarias especiais e do Ministério da Igualdade Racial, a promoção de ações</p><p>afirmativas e políticas de cotas nas universidades federais e estaduais do país.</p><p>Tal contexto redefiniu a relação entre raça, acomodação e conflito na sociedade</p><p>brasileira, transformando o modo de constituição dos grupos e as fronteiras da cor.</p><p>Em primeiro lugar, ocorreu um enrijecimento das fronteiras sociais da branquidade.</p><p>Os classificados brancos se tornaram, à sua maneira, “pessoas de cor”, cada vez mais</p><p>socialmente marcados pela brancura, identidades sociais menos múltiplas aos olhos</p><p>dos outros. O antropólogo Peter Fry dizia que enquanto no Zimbábue ele era um</p><p>branco e ponto, em Moçambique se sentia um branco e vírgula. Os que eram</p><p>classificados como brancos no Brasil, podemos dizer, também tinham vírgulas. No</p><p>famoso “Samba da bênção”, Vinicius de Moraes se dizia “o branco mais preto do Brasil,</p><p>direto da linha de Xangô”, enquanto Gilberto Gil, numa canção em homenagem à</p><p>apresentadora de TV Xuxa Meneghel, a concebe como uma “sudanesa travestida de</p><p>alemã”. Mas essas vírgulas estão indo embora. Vejamos a força do debate acerca da</p><p>“apropriação cultural” e a crítica colorista às “branquinhas de turbante” nas redes</p><p>sociais.</p><p>Essa transformação reposicionou o lugar dos que se autoclassificavam como brancos</p><p>no campo político do antirracismo cujo passe é a “consciência do privilégio branco”, a</p><p>enunciação objetiva da particularidade de sua cor enquanto “lugar de fala”, a vigília</p><p>constante do deslize colonial entre a ideia branco e a representação da pessoa</p><p>humana, e a recusa ativa do protagonismo como liderança política ou intelectual. No</p><p>polo conservador, observa-se certo recrudescimento, entre os setores militares</p><p>mobilizados na política pela extrema direita e por sua base civil, do nacionalismo</p><p>autoritário como fábula de três raças, bem como a aposta em projetos regionalistas</p><p>que tradicionalmente investiram na construção de uma branquitude brasileira e ponto</p><p>ao estilo da bandeira “o sul é o meu país”.</p><p>Em segundo, a formação de uma maioria nacional negra (pela junção de classificados</p><p>“pretos” e “pardos” nesse grupo) alterou a representação da nação de “país da</p><p>mestiçagem” para, como destaca o ativismo antirracista, “país mais negro do mundo</p><p>depois da Nigéria”. Faz mais sentido agora pensar, como Guerreiro Ramos, que o negro</p><p>é povo no Brasil. Essa mudança gera conflitos no campo da esquerda pois alçou os</p><p>ativistas negros de “lideranças étnicas”, afro-brasileiras, para “lideranças populares”</p><p>que vocalizam os anseios de mais da metade da população brasileira. A acusação de</p><p>“identitarismo” pretende reduzir o alcance político do discurso das lideranças negras</p><p>na esfera pública e funciona como arma simbólica na disputa por recursos e posições</p><p>dentro dos partidos políticos e nas definições de candidaturas-chave nos pleitos</p><p>eleitorais.</p><p>Mas se a reelaboração das fronteiras da negritude fez com que a cor deixasse impedir</p><p>a formação desse coletivo enquanto sujeito político, esta termina por gerar, dentro do</p><p>grupo racial redefinido, lutas por autenticidade, prestígio e direito. A esfera da cultura</p><p>é um desses campos de batalha, pois a televisão, o teatro e cinema são um terreno</p><p>fértil para o colorismo. A cantora Fabiana Cozza foi constrangida ao pretender</p><p>interpretar a famosa sambista Dona Ivone Lara por não ser “retinta o suficiente”. Por</p><p>outro lado, entre as diversas críticas dirigidas ao filme Marighella (Wagner Moura,</p><p>2019), havia a de que o cantor Seu Jorge era “escuro demais” para o papel principal.</p><p>Pautas feministas negras, como a questão da racialização das escolhas afetivas,</p><p>também chamam atenção para essas diferenças, pois o problema da solidão da mulher</p><p>negra, reiteram as estatísticas, não é o da solidão da mulher parda. Em outra direção, o</p><p>desrespeito e a insegurança quanto ao direito dos que se classificam como pardos de</p><p>usufruírem plenamente das políticas de ações afirmativas e cotas raciais nas</p><p>universidades brasileiras têm o efeito de valorizar a clivagem entre “pretos” e</p><p>“pardos”.</p><p>Os significados da categoria pardo também estão se transformando. No</p><p>Censo de 2020,</p><p>foi aberta a possibilidade de autoclassificação “indígena”, antes restrita aos grupos</p><p>reconhecidos pela Funai, para qualquer pessoa que assim se identifique. Essa</p><p>possibilidade abre a chance de que as pessoas migrem da classificação pardo, hoje</p><p>contado entre os “negros”, para a categoria “indígena”, que tende a crescer. Por outro</p><p>lado, começa a circular no debate público a categoria “afro-indígena”, que imprime</p><p>novos sentidos à ideia de “pardo” e tem significados distintos se articulada no mundo</p><p>urbano ou no rural. Neste último, a categoria tem o potencial de ressignificar</p><p>politicamente antigas formas de classificação como “caboclos”, além de criar um</p><p>campo aproximado de lutas e reinvindicações pela terra entre comunidades negras</p><p>rurais, quilombolas e indígenas.</p><p>Por sua vez, existem ainda os porta-vozes de uma “parditude” contemporânea – ver o</p><p>perfil do grupo Leopardos, no Instagram – que, pressionada pela instabilidade dos</p><p>seus direitos quando classificados entre os negros, preterida da liderança política no</p><p>antirracismo e sem gozar do lugar social e do prestígio dos que são classificados como</p><p>brancos, reelaborou o lugar simbólico do pardo como negação de qualquer</p><p>identificação racial rígida. Ressurreição do mulato? Penso que não – a nova</p><p>“parditude” não reivindica a cordialidade, o jogo de cintura do velho mulato, nem a</p><p>sensualidade exuberante que deu os contornos da figura da mulata. Em sua oposição</p><p>diametral, a “negritude”, lutando contra “negros de pele clara”, reconhecendo por</p><p>vezes a existência do racismo, mas sem qualquer plataforma de combate às</p><p>desigualdades sociais, é uma movimentação identitária no sentido exato bradado à</p><p>esquerda. Não possui legitimidade, no momento, para se alçar à posição de síntese e</p><p>fusão de representante por excelência da nação como foram os pardos que outrora</p><p>eram mulatos, restando-lhe enunciar nas redes sociais o drama da ambiguidade racial</p><p>como uma experiência específica, no solo já plantado da linguagem de reivindicação da</p><p>diferença cultural, como mais um “tude” entre outros.</p><p>Em terceiro lugar, temos a valorização simbólica da categoria “preto”. O grupo dos que</p><p>são enquadrados nessa categoria dobrou nos últimos quarenta anos, passando de</p><p>cerca de 5% nos anos 1980 para 10,5% da população conforme o último Censo. Os</p><p>usos políticos do termo têm desmentido cada vez mais o antigo adágio da militância</p><p>antirracista segundo a qual “preto é cor, negro é raça”. Em certos contextos, a</p><p>classificação tem sido alargada como um equivalente da palavra “negro” no sentido de</p><p>representar todo o grupo racial, como no caso do Movimento Pretas (PSOL), liderado</p><p>pela deputada estadual Monica Seixas, de São Paulo. A categoria também tem seu</p><p>campo semântico ampliado no uso conjugado com outras palavras quando se fala em</p><p>nome dos “pretos, pobres e periféricos”, em que o sentido da cor se articula com</p><p>marcadores de classe e condição social, e o “preto” se torna a representação do pobre</p><p>por excelência, enquanto a pobreza extrema é simbolizada como negra. O movimento</p><p>hip-hop é certamente um dos principais responsáveis por ressignificar, articular e</p><p>difundir a categoria preto nesse sentido específico.</p><p>Todavia, “preto” também pode ser articulado para expressar barreiras específicas</p><p>enfrentadas pelos “negros retintos”, que às vezes aparecem no debate público como</p><p>um grupo à parte no universo dos não brancos. É possível assistir a um conjunto</p><p>expressivo de influenciadores digitais vociferando em canais do YouTube, com</p><p>visualizações na casa dos milhares, que “pardo não é preto”. Essa tendência, um tanto</p><p>marginal no debate contemporâneo, mas complementar ao discurso da parditude,</p><p>reduz as possibilidades de vocalização política de um “povo negro” brasileiro</p><p>enquanto reivindicações de uma minoria étnica encerrada em políticas de identidade.</p><p>Nesse quadro complexo, não é fácil discernir as consequências políticas da “morte do</p><p>mulato” a serem decididas pelas lutas simbólicas e materiais por distinção social, bem</p><p>como a força de sua vocalização na esfera política. Nos dias que correm, os diferentes</p><p>“pardos” em disputa não são imaginados como mediadores e articuladores entre os</p><p>diferentes grupos de cor, agentes que permitiriam acomodar a tensão racial na</p><p>comunidade imaginada da nação. A desvalorização da categoria mulato é correlata à</p><p>valoração da raça como linguagem cultural legítima do conflito social na democracia</p><p>brasileira. Os seus usos marcam o senso político da diferenciação elite/povo, e a</p><p>mundialização de repertórios de ação antirracista fomenta uma solidariedade entre</p><p>pessoas negras de várias partes do globo. Mas se o “pardo” não pacifica a nação, a “cor”</p><p>fratura, por dentro, o afrodescendente como sujeito coletivo. A heterogeneidade</p><p>constitutiva do grupo racial redefinido e as lutas por autenticidade, prestígio e direitos</p><p>nele originadas tencionam a conversão do discurso político negro em representação</p><p>genuína dos anseios do Povo brasileiro, com P maiúsculo. Numa frase: a morte do</p><p>mulato retirou do espaço simbólico da nação a capacidade de síntese de seus</p><p>contrários claros e escuros sem garantir qualquer integralidade a um sujeito político</p><p>da raça.</p><p>Matheus Gato é professor do Departamento de Sociologia do IFCH/Unicamp,</p><p>coordenador e pesquisador do Núcleo Afro do Centro Brasileiro de Análise e</p><p>Planejamento (Cebrap) e coordenador do Bitita – Núcleo de Estudos Carolina Maria de</p><p>Jesus (IFCH/Unicamp). É autor de O massacre dos libertos: Sobre raça e república no</p><p>Brasil (Perspectiva, 2020).</p><p>Não sou negra, não sou branca. Sou uma</p><p>pessoa parda de ascendência indígena</p><p>Edição do mês</p><p>1. Manuella Bruta disse:</p><p>25 de junho de 2024</p><p>"Mulher mameluca" (1641), de Albert Eckhout (Wikimedia Commons)</p><p>Eu não sou negra, não sou branca. Sou uma pessoa parda de ascendência indígena. É</p><p>assim que me classifico atualmente. Vivo essa dubiedade de quem tem a origem parda.</p><p>Sei que não sou branca. Também não me vejo como uma pessoa negra. Mas, quando</p><p>me olho no espelho, para as minhas origens, para a minha família, para a minha</p><p>ancestralidade, sei que tenho minhas raízes indígenas.</p><p>Mas a história indígena que tenho é marcada por apagamentos intencionais da</p><p>sociedade e do Estado. É uma história difícil de reconstruir linearmente. Por isso,</p><p>recorro a detalhes da memória e das formas de vida dos meus familiares, nos quais me</p><p>encontro e me reencontro sem saber mesmo onde tudo isso pode dar. A retomada</p><p>indígena é um desejo meu, como é para muitas pessoas pardas que têm conhecimento</p><p>de suas ancestralidades indígenas no Brasil.</p><p>Nesses detalhes da minha experiência e da minha trajetória de jovem estudante, são</p><p>postos para mim muitos desafios de uma identidade em construção, reconstrução e,</p><p>sobretudo, de retomada. Isso significa diversas dúvidas, inseguranças, desafios e</p><p>também constrangimentos e enfrentamentos cotidianos com o Estado e com a</p><p>sociedade brasileira.</p><p>Não sou negra, não sou branca. Sou uma pessoa parda de ascendência indígena. E eu</p><p>me chamo Manuella Bruta. Tenho 20 anos. Sempre pensei sobre a temática das</p><p>identidades. Mas só agora consigo falar. Minha família nuclear nasceu no Ceará. Mas,</p><p>na verdade, faz parte da minha numerosa família vem do Maranhão, precisamente de</p><p>Timon, cidade que fica na divisa entre Maranhão e Piauí. A família do meu avó materno</p><p>migrou para o Ceará muito por conta do roubo de terras das comunidades indígenas</p><p>no Timon, eles não tinham recursos e passavam dificuldades alimentares. Então, foram</p><p>se deslocando em busca de um lugar melhor. Migraram para ter acesso a trabalho e</p><p>por melhores condições de vida. Com isso, foram se esquecendo de suas origens. Meu</p><p>avô, que é octogenário, sabe que é indígena, mas não lembra mais do nome do seu</p><p>povo.</p><p>Nossa história migratória é passada de geração para geração. Sempre pelo mesmo</p><p>motivo: necessidade de buscar melhores condições de vida. Eu nasci no Paraná, e</p><p>meus irmãos, no Rio de Janeiro. Meus pais tiveram</p><p>de mudar em diferentes momentos</p><p>em busca de emprego. Somos migrantes. Vivo no Rio de Janeiro hoje. Mas sempre</p><p>soube que a minha família tem uma ascendência indígena, especialmente pela</p><p>narrativa do meu avô, um homem indígena de pele escura. Ele é meio negro, meio</p><p>indígena.</p><p>Adotei o nome Manuella Bruta porque tinha vergonha do meu sobrenome de família.</p><p>Apesar de sempre estudar em escola pública, eu me sentia mal porque outras pessoas</p><p>tinham nomes diferentes. Alguns tinham sobrenomes italianos. Mas a maioria tinha o</p><p>sobrenome como o meu. Era só mais uma Silva. Por alguma razão, eu me sentia mal</p><p>com esse sobrenome. No jogo de futsal na escola, chamavam-me de bruta pela forma</p><p>de jogar. Achei interessante esse apelido e o ressignifiquei na minha vida. Pensei que</p><p>ele poderia compor meu nome, enquanto um nome artístico. Isso me diferenciaria</p><p>daquele universo de sobrenomes comuns, que – depois viria a perceber – eram nomes</p><p>típicos de pessoas pardas, indígenas e negras no Brasil. Pessoas que tiveram seus</p><p>nomes originais apagados pela História. Então comecei a perceber que aqueles</p><p>sobrenomes significavam uma ancestralidade que me foi roubada. Esses sobrenomes</p><p>eram uma herança maldita da escravatura. Isso não só diz sobre a história da minha</p><p>família. Por isso, comecei a me chamar Manuella Bruta. Um nome inventado. Como são</p><p>inventados os nomes comuns e coloniais da minha família.</p><p>Eu não sou negra, não sou branca. Sou uma pessoa parda de ascendência indígena.</p><p>Mas, quando entrei na universidade pública, não me senti segura para recorrer ao</p><p>sistema de cotas de corte racial. Não quis arriscar. Não quis perder a vaga. Vi na</p><p>imprensa que fulaninho perdeu a vaga porque não foi aprovado pela comissão de</p><p>heteroclassificação. Beltraninho foi denunciado nas redes porque não era considerado</p><p>negro. Não quis passar por esse constrangimento. Fiquei com medo de ser julgada.</p><p>Dentro de mim, sei que tinha direito, porque não sou branca. Mas toda essa situação</p><p>me levou a entrar pelo sistema de cotas apenas pelo critério de estudante de escola</p><p>pública.</p><p>Tive receio de me candidatar pelas cotas raciais porque as pessoas têm um</p><p>essencialismo. Para essas pessoas, o indígena precisa ser puro. Entendo que o purismo</p><p>racial é fundamental para legitimar o racismo. O discurso de raça pura é a forma de</p><p>legitimar o apagamento que negros e indígenas vivem e viveram no Brasil. Isso é</p><p>utilizado por uma manobra de apagamento. Por isso, meu processo de me identificar</p><p>como uma pessoa indígena ainda é meio estranho. Quando entrei na Uerj, as pessoas</p><p>me chamaram para debater a temática indígena. Mas é difícil se legitimar. Não é a</p><p>outra pessoa quem vai validar a sua história. Para ser considerada uma pessoa</p><p>indígena, você precisa ser reconhecida por um povo. Mas os meus familiares, com os</p><p>quais aprendi a me pensar com ancestralidade indígena, não se lembram mais de qual</p><p>povo eram ou a que etnia pertencem. O que carregam são as práticas de agricultura,</p><p>artesanato, memórias já fragmentadas do meu avô Moisés Caburé. Desceu do</p><p>Maranhão para o Ceará.</p><p>Sempre me considerei uma pessoa parda. Nunca me considerei uma pessoa branca.</p><p>Quando cheguei à faculdade, senti uma pressão dos meus amigos, e as pessoas sempre</p><p>me perguntavam o que eu era. Uma vez um colega chegou ao nosso grupo e disse:</p><p>“Aqui somos todas as pessoas negras do curso”. Outra pessoa disse: “Mas a Manuella</p><p>não é negra”. Tudo isso foi muito nebuloso para mim. A forma de explicar minha</p><p>identidade e meu pertencimento ainda causa estranhamento nas pessoas, e também</p><p>em mim. As pessoas não entendem que posso ser uma pessoa parda, mas não</p><p>necessariamente me considerar uma pessoa negra. Cada vez mais tenho percebido que</p><p>se declarar indígena é uma escolha política e social. E que devo fazer isso. Contudo,</p><p>ainda encontro muitas dificuldades para essa retomada indígena de mim mesma.</p><p>Explico. Certa vez, fiz um grafismo indígena no braço. Minha mãe não gostou. Ela é de</p><p>outra geração. Já sofreu demais, muito preconceito. Ela não quer que eu passe por isso.</p><p>Por essa razão, aconselhou-me a não mexer com essa história. Ela acha que isso pode</p><p>trazer muito sofrimento para mim e para nossa família. Sinto que, dentre os</p><p>descendentes do meu avô, ninguém quer comprar essa briga do reconhecimento</p><p>enquanto indígena, embora todos saibam de suas origens.</p><p>Como tenho refletido muito a respeito, penso que essa negação histórica pela qual</p><p>passaram pessoas indígenas que saíram de suas aldeias gerou em nós, seus</p><p>descendentes, uma perda coletiva de memória e de reconhecimento das nossas</p><p>ancestralidades. O Estado não se preocupou em estabelecer políticas públicas para as</p><p>pessoas indígenas que se deslocaram para as cidades e metrópoles em busca de</p><p>melhores condições de vida. Penso que os indígenas da cidade necessitavam de um</p><p>marco legal, voltado à especificidade histórica de expropriação de terras, de</p><p>deslocamentos forçados por razões econômicas. Se esse olhar mais sensível para as</p><p>populações indígenas que sofrem com distorções de suas identidades e das suas</p><p>formas de existência nas cidades fosse uma preocupação do Estado brasileiro,</p><p>certamente os dados demográficos das populações indígenas do IBGE (Instituto</p><p>Brasileiro de Geografia e Estatística) seriam outros.</p><p>Eu não sou negra, não sou branca. Sou uma pessoa parda que deseja se reconhecer e</p><p>ser reconhecida como uma pessoa indígena.</p><p>Manuella Bruta estuda relações públicas na Uerj e é estagiária de gestão imobiliária e</p><p>licenciamento de eventos na Rede Globo. Formada no Colégio Pedro II, vive no Rio de</p><p>Janeiro. Pesquisa por conta própria etnicidades indígenas e movimentos de retomada</p><p>de jovens com ascendência indígena.</p><p>Preto é cor, negro é raça: depoimento de um</p><p>militante do movimento negro</p><p>Edição do mês</p><p>1. Amauri Mendes Pereira disse:</p><p>25 de junho de 2024</p><p>Ato público de fundação do Movimento Negro Unificado, em frente ao Theatro Municipal de São Paulo, em 1978</p><p>(Arquivo Nacional)</p><p>A expressão do título deste texto, corrente e sempre reiterada entre a militância negra</p><p>do Rio de Janeiro a partir dos anos 1970, foi ensinada pelos mais velhos. O objetivo era</p><p>arredar divisionismos ameaçadores à unidade das lutas contra os estigmas e os</p><p>prejuízos materiais e simbólicos, que afetavam todos os descendentes de escravizados,</p><p>quase 90 anos depois da abolição formal e legal.</p><p>Em 1980, os dados do Censo geral do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística</p><p>(IBGE) comprovavam que pretos/as e pardos/as eram assolados/as pelas piores</p><p>condições de vida – indicadores praticamente iguais de habitação, saúde, segurança,</p><p>saneamento etc. – em todas as regiões do país. Assim, pesquisadores do próprio IBGE</p><p>passaram então a utilizar a categoria negro como a soma de pretos e pardos, as</p><p>categorias oficiais do Censo demográfico. Foi decisiva, nesse sentido, a atuação de um</p><p>grupo de militantes, que procuraram dirigentes do IBGE, demandaram a inclusão do</p><p>item cor e convidaram a direção para uma palestra no Instituto de Pesquisas das</p><p>Culturas Negras (IPCN), em 1979.</p><p>Tal evidência das condições de vida de pessoas pretas e pardas instigou Joel Rufino</p><p>dos Santos, que, em artigo publicado em 1985, discute a dificuldade do Movimento</p><p>Negro de enfrentar a ideologia da democracia racial, sedutora e conveniente para as</p><p>elites brancas, tornada um mito fundador da nacionalidade brasileira e acreditada</p><p>internamente e internacionalmente. E o quanto era frustrante para negros/as que –</p><p>mesmo com alto custo – conseguiam alguma ascensão social.</p><p>O negro como raça tem sido um apelo forte apenas para negros de classe média,</p><p>trabalhados por frustrações específicas e localizadas – a barragem em clubes e em</p><p>certos empregos; o mau tratamento em “locais de brancos” etc.</p><p>Para a militância do movimento negro naquele período, além de denunciar o “mito” da</p><p>democracia racial, era essencial assumir e difundir o valor do negro. Aquela geração</p><p>não sucumbiu e não se deixou levar por desvios e racionalizações,</p><p>elegendo e</p><p>mantendo o foco nas prioridades, e, em meio a batalhas tão difíceis, soube se valer das</p><p>vantagens de uma conjuntura de eventos admiráveis.</p><p>Internamente, nos anos 1970, o “milagre brasileiro” na economia exigiu mão de obra</p><p>mais qualificada e rápida absorção de mais e mais mão de obra, e essas oportunidades</p><p>foram aproveitadas por uma ávida juventude negra. Pela segunda vez, amplos</p><p>segmentos da população negra tiveram maior acesso ao mercado de trabalho formal (a</p><p>primeira vez fora com a Lei dos 2/3, de 1930, ao decretar que dois em cada três</p><p>empregos deveriam ser ocupados por trabalhadores nacionais, o que oportunizou o</p><p>escurecimento de um mercado de trabalho que fora tomado por imigrantes de origem</p><p>europeia). E explodiram de vez a insurgência (que vinha desde longe) e a conquista de</p><p>visibilidade e prestígio social das manifestações culturais em todo o país: os exemplos</p><p>mais conhecidos do samba, no Rio de Janeiro e em São Paulo; das religiosidades de</p><p>matrizes africanas, em toda parte, com destaque para Bahia, Rio de Janeiro,</p><p>Pernambuco, Maranhão; da capoeira, que em todas as regiões também passou “de uma</p><p>luta perseguida a esporte nacional”. E venciam obstinadamente a gama de obstáculos –</p><p>os estereótipos, preconceitos e ignorância sobre tudo o que se referisse “ao negro” –</p><p>que, “tradicionalmente”, levava à crença de sua inferioridade biológica e, portanto, em</p><p>termos de inteligência, de moral, como se fôssemos sub-humanos.</p><p>Hoje há pesquisas que comprovam a importância de inúmeras lideranças negras em</p><p>quase todos os contextos da vida social brasileira – nas artes, nas ciências, na política,</p><p>na educação. Mas, além de impactada/perplexa com a resistência, as “ousadias” e a</p><p>“volta por cima” dos avanços e protagonismos negros, a intelectualidade brasileira</p><p>dominada pelas teorias do “racismo científico”, predominantes na Europa ao longo do</p><p>século 19 e nas décadas iniciais do século 20, também estava “perdida” perante os</p><p>avanços das ciências propriamente ditas, e após a derrota do nazismo e da crença na</p><p>supremacia da raça branca, na Segunda Guerra Mundial. Daí se ancorar no “mito” da</p><p>democracia racial que, aos poucos, também se mostrava inconsistente.</p><p>Na seara internacional, os processos de descolonização africana e asiática, as</p><p>conquistas das independências ao longo dos anos 1960 (só em 1960 foram 17 na</p><p>África), as vitórias das lutas de libertação nas antigas colônias portuguesas e os</p><p>processos e personalidades que emergiram nas lutas por direitos civis nos Estados</p><p>Unidos – como não lembrar de Martin Luther King, de Malcolm X e de tantos/as</p><p>outros/as. Tudo isso era “lenha na fogueira”, que fazia arder a militância do</p><p>movimento negro brasileiro.</p><p>Era muita coisa a aprender, muitos desafios pela frente. Como consolidar o movimento</p><p>negro que renascera na década de 1970 e se mantivera arduamente, perante uma nova</p><p>conjuntura “avassaladora” a partir dos anos 1980? Porque em 1979, a anistia a presos</p><p>e perseguidos políticos inaugurava sua “distensão lenta, gradual e segura”, a última</p><p>fase da ditadura civil-militar. E esse fato trouxe de volta antigas lideranças políticas</p><p>com imenso prestígio, reinstalou a disputa política aberta, a criação de novos partidos</p><p>políticos e uma tendência a empurrar/manter a questão racial “para baixo do tapete”?</p><p>A militância negra mais ostensiva, que “vivia por conta de Zumbi”, sofrera com a</p><p>tragédia do provável suicídio do intelectual negro (hoje seria visto como pardo?)</p><p>Eduardo de Oliveira e Oliveira – cuja tese vinha sendo sistematicamente bloqueada</p><p>por professores da sua pós-graduação na USP –, mas aprendera com sua análise que</p><p>era uma armadilha ver o “mulato” como um obstáculo epistemológico” – em artigo na</p><p>revista Argumento, em 1974, Oliveira discutia a visão de Carl Degler, um brasilianista</p><p>estadunidense que, em sua pesquisa de doutorado sobre a questão racial no Brasil,</p><p>compreendera que havia aqui um diferencial nas relações raciais: a existência do</p><p>mulato era uma “válvula de escape”, ou seja, dependendo das circunstâncias, seria</p><p>possível ele se passar por branco, o que poderia atenuar conflitos raciais.</p><p>Para se manter firme, ocupar, mas sem se render à sedução dos “novos espaços</p><p>concedidos”, em governos e em setores prestigiados da chamada sociedade civil, a</p><p>unidade, o pleno entrosamento entre negros/as de pele mais clara e de pele mais</p><p>escura foram decisivos para os avanços do movimento negro e a difusão da</p><p>consciência negra – valor do negro e necessidade de enfrentar o racismo – que se</p><p>capilarizou na vida social brasileira.</p><p>Ainda está por ser devidamente valorizada a maturidade daquela militância de</p><p>maioria jovem, cuja empolgação e cujo efetivo engajamento foram capazes de</p><p>realizações memoráveis – parte delas disponível no acervo do canal Cultne, no</p><p>YouTube. Arredando questões de gênero, de classe, de “colorismo”, de religiosidades</p><p>etc., que, criando arestas entre nós, favoreceria manipulações e novos jeitos e</p><p>reconstituições do racismo, capazes de atrasar nossas lutas.</p><p>Desse jeito – e chegando junto a manifestações culturais e religiosas, sua riqueza,</p><p>diversidade e a potência cotidiana de segmentos importantes entre as maiorias negras</p><p>e pobres – é que foram plasmados sentidos mais profundos e coerentes de consciência</p><p>negra.</p><p>As condições e características que determinaram o “terceiro impulso” merecem</p><p>mesmo pesquisas e análises mais atentas. Pois, a partir dos anos 1970, o movimento</p><p>negro não foi engolido, submergido, pelo ardiloso e abrangente racismo cordial-</p><p>estrutural-institucional brasileiro, como acontecera no “primeiro impulso” (com a</p><p>Frente Negra brasileira e o conjunto do movimento negro, nos anos 1920 e 1930) e no</p><p>“segundo impulso” (com o Teatro Experimental do Negro e a liderança de Abdias do</p><p>Nascimento, o Teatro Popular do Negro e a liderança de Solano Trindade), além de</p><p>incontáveis frentes combativas, que se haviam fortalecido nas décadas de 1940 e</p><p>1950. Com certeza, novas pesquisas e análises sobre a envergadura e a importância</p><p>histórica desses processos virão, de parte da juventude negra engajada, que – com</p><p>ciência, consciência e atitude – vem povoando graduações e pós-graduações em</p><p>universidades de toda parte deste país.</p><p>Esse legado precioso conquistou muitos corações e mentes negros/as e não negros/as,</p><p>e legitimidade para a “causa negra”. E atraiu a atenção da cooperação internacional,</p><p>favorecendo um salto de qualidade na atuação do movimento negro, agora também</p><p>através de ONGs cuja eficácia foi notória nos processos que redundaram nas pressões</p><p>sobre o amplo espectro da institucionalidade… e chegamos então à era das ações</p><p>afirmativas.</p><p>Por que e para que, já adiantado um novo século e acumuladas tantas vivências e</p><p>conquistas, alguém que se deseja e se vê como militante negro/a pretende trazer de</p><p>volta divisionismos que só servem mesmo a mistificações e perpetuação da</p><p>branquitude? Pois foi a partir da superação desses divisionismos, e da construção da</p><p>unidade na luta e na consciência negra, que se forjaram a visibilidade do ser e das</p><p>vidas negras – existencial, cultural, política, histórica – e a ocupação de tantos espaços</p><p>ainda concedidos, insuficientes, mas que representam avanços.</p><p>Com a palavra, as novas gerações que assumem o movimento negro e a luta contra o</p><p>racismo e toda forma de preconceitos-opressão-exploração, como pauta inarredável</p><p>das agendas políticas nacional e global. Consciência e atitude são imprescindíveis.</p><p>Nossas ancestralidades fizeram muito para que chegássemos até aqui. Sem esquecer</p><p>que preto é cor, e isso significa que pardo também é cor, e negro é raça, cada geração</p><p>precisa dar conta dos novos desafios que se apresentam. Termino com o poema</p><p>“Coração tição”, da querida Ana Cruz, que traduz o espírito que sempre me orientou:</p><p>Quero me lambuzar nos mares negros, para não me perder,/ conseguir chegar no meu</p><p>destino/ Não quero ser parda, mulata. Sou afro-brasileira-mineira. Bisneta/ de uma</p><p>princesa de Benguela./ Não</p><p>serei refém de valores que não me pertencem./ Quero</p><p>sentir sempre meu coração como um tição./ Não vou deixar que o mito do fogo entre</p><p>as pernas iluda/ e desvie homens e mulheres daqui por diante.</p><p>Amauri Mendes Pereira é militante do movimento negro e capoeirista. Doutor em</p><p>ciências sociais pela Uerj. Foi presidente do Instituto de Pesquisas das Culturas Negras</p><p>e diretor da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros. É autor de artigos e livros</p><p>sobre África, movimento negro, teoria social e raça, racismo e antirracismo, educação e</p><p>relações étnico-raciais. É professor da UFRRJ.</p><p>Anamnese</p><p>Edição do mês</p><p>1. Maria Cristina Martins disse:</p><p>25 de junho de 2024</p><p>(divulgação, reprodução, Arquivo Nacional)</p><p>Adorno, por que não seria possível</p><p>fazer poesia após Auschwitz</p><p>se foi possível durante e após</p><p>trezentos anos de escravidão?</p><p>É preciso fazer a faxina</p><p>como diz Wislawa</p><p>mas também é preciso recordar</p><p>como diz Conceição Evaristo</p><p>A poesia é possível após qualquer barbárie</p><p>talvez seja a coisa mais possível</p><p>a única coisa possível</p><p>antes de tomarmos impulso</p><p>Maria Cristina Martins, 46 anos, é revisora e editora da revista Acervo, do Arquivo</p><p>Nacional. É autora de Ovos de ferro (7letras), Farândola (Autografia), e Tudo que foi</p><p>dito é uma língua desconhecida (autopublicação)</p><p>A Oficina Literária é uma seção dedicada exclusivamente à publicação de textos</p><p>literários inéditos, poéticos ou em prosa. Os originais, com no máximo 3.000</p><p>caracteres com espaços, devem ser enviados para oficinaliteraria@revistacult.com.br e</p><p>inseridos no próprio corpo da mensagem, na qual deverão constar também nome</p><p>completo, idade, ocupação e endereço do participante. Avaliados pela equipe da</p><p>revista, os textos não serão devolvidos nem comentados. O envio de qualquer trabalho</p><p>para a seção implica o reconhecimento do direito não exclusivo de reprodução da obra</p><p>pela Cult. A autoria e o conteúdo dos textos são de responsabilidade única e exclusiva</p><p>do autor, devendo a legislação autoral vigente ser respeitada. A Editora Bregantini, ao</p><p>receber os inéditos, está autorizada pelas pessoas participantes a publicar o material,</p><p>de forma integral ou editada, na Cult impressa ou online.</p><p>O pardo é o negro no Brasil</p><p>Edição do mês</p><p>1. Fábio Nogueira disse:</p><p>2 de julho de 2024</p><p>Parafraseando as palavras do sociólogo Guerreiro Ramos (1915-1982), que afirmou</p><p>que “o negro é o povo no Brasil”, podemos afirmar que é o pardo, categoria estatística</p><p>do IBGE, quem representa o negro brasileiro. Essa afirmação contrasta com certas</p><p>interpretações do colorismo que retomam o conceito biológico de raça, sugerindo uma</p><p>hierarquia social baseada na cor da pele, na qual os “pardos” teriam uma vantagem</p><p>sobre aqueles com pele mais escura. Ao retomar ideias como a “pigmentocracia”, de</p><p>Alejandro Lipschütz nos anos 1940, e a “válvula de escape do mulato”, do historiador</p><p>Carl Degler nos anos 1960, o conceito de pardismo colorista acaba por deslocar o</p><p>“pardo” do núcleo do protesto político negro. Assim sendo, o “pardismo colorista”</p><p>facilita as coisas para os que procuram restabelecer em novas bases o mito da</p><p>democracia racial entre nós. Por exemplo, o editorial da Folha de S.Paulo “Cotas</p><p>sociais, não raciais”, publicado em 4 de junho de 2024, ilustra essa tendência ao</p><p>separar os “pardos” do movimento político negro e contribui para perpetuar uma</p><p>visão distorcida das questões raciais no Brasil. Essa abordagem fragmentada e</p><p>descontextualizada das identidades raciais da luta coletiva contra o racismo e para</p><p>minar a eficácia das políticas de ação afirmativa e reparação histórica.</p><p>Os dados mais recentes do Censo do IBGE indicam que os “pardos” compõem a maioria</p><p>entre os “não brancos” ( %) e são identificados pelo movimento negro brasileiro,</p><p>desde o período pós-abolição, como negros. Essa é uma questão de grande</p><p>importância, pois revela a necessidade de compreender a raça dentro do contexto</p><p>histórico como resultado do colonialismo e da escravidão. As categorias raciais são,</p><p>portanto, construções históricas, conforme o marxismo negro já apontava desde a</p><p>publicação de Os jacobinos negros por C. L. R. James em 1938. É fundamental</p><p>reconhecer a historicidade da raça no Brasil, um país que manteve em escravidão 40%</p><p>de toda a diáspora africana por séculos. Ao lado da expropriação das terras e do</p><p>genocídio indígena, o trabalhador escravizado africano desempenhou um papel</p><p>fundamental na consolidação do modo de produção colonial-escravista e</p><p>agroexportador, que são as raízes do capitalismo dependente brasileiro. Após a</p><p>abolição, testemunhamos um processo de estímulo à imigração europeia, que</p><p>consolidou a base econômica do país no centro-sul.</p><p>Nesse contexto, a imprensa negra, que começou a se destacar no século 19 e se</p><p>fortaleceu na primeira metade do século 20, juntamente com os intelectuais negros</p><p>que dela se utilizavam, reagiram enfatizando o caráter “nacional” do negro brasileiro e</p><p>sua influência predominante na formação econômico-social do país. O negro brasileiro</p><p>não se via como uma “minoria”, mas como uma maioria, o que justifica a reivindicação</p><p>do “pardo” em sua identificação com o grupo negro. Essa reivindicação de</p><p>pertencimento ao grupo negro pelo “pardo” reflete a busca por uma narrativa mais</p><p>abrangente e inclusiva da identidade racial no Brasil, algo que se manteve por todo</p><p>século 20.</p><p>A identificação do “pardo” como negro brasileiro tem implicações significativas.</p><p>Encorajar o reconhecimento da identidade racial do pardo é crucial para confrontar o</p><p>racismo antirracialista brasileiro que, historicamente, negou essa identidade,</p><p>ignorando a complexidade das questões raciais e seu impacto nas estruturas sociais. O</p><p>racismo no Brasil é um fenômeno concreto e universal, sendo necessário considerar as</p><p>diversas realidades e particularidades que se manifestam em diferentes regiões do</p><p>país. Isso não anula a importância da identificação do pardo como parte do grupo</p><p>negro.</p><p>Os privilégios sociais oriundos do racismo tendem a beneficiar de forma desigual a</p><p>população branca em detrimento dos pardos e pretos. Essa distribuição diferenciada</p><p>de privilégios ressalta a complexidade das questões raciais e a necessidade de</p><p>combater o racismo que perpetua essas disparidades. Além disso, é essencial</p><p>compreender as desigualdades raciais como uma realidade complexa e multifacetada.</p><p>Apesar de contraditório, o aumento da autodeclaração dos pardos – seguidos dos</p><p>pretos e indígenas conforme observado no último Censo – é uma conquista do</p><p>movimento negro em um país em que o ideal de embranquecimento racial e social foi</p><p>a norma por séculos. Desde pelo menos a década de 1930, a ideologia oficial da</p><p>democracia racial tem sido amplamente hegemônica, convertendo o</p><p>embranquecimento em ideal de nacionalidade e promovendo uma visão de identidade</p><p>nacional baseada na mestiçagem. Nesse contexto, ser branco era o ideal em um país</p><p>que negava sua negritude e, de maneira hipócrita, promovia o mestiço como símbolo</p><p>da “unidade nacional”.</p><p>Devemos lembrar, ademais, que as recentes leis de cotas nas universidades e no</p><p>serviço público – de 2012 e 2014, respectivamente – tiveram um impacto muito</p><p>positivo na promoção da integração da população negra brasileira em espaços antes</p><p>restritos à população branca. Porém, o mito da democracia racial, embora fragilizado,</p><p>ainda permeia discursos na extrema direita e em setores liberais, que minimizam a</p><p>questão racial no país. A conjuntura atual, marcada por neoliberalismo, ativismo</p><p>negro, políticas de ação afirmativa e ascensão da extrema direita, reflete a complexa</p><p>dinâmica das identidades raciais no presente contexto histórico. Diante desses</p><p>desafios, é necessário retomar a tradição radical do movimento negro brasileiro</p><p>(representada por Abdias do Nascimento, Lélia González, Clóvis Moura e Beatriz</p><p>Nascimento, entre outros) que articulou “pardos” e “pretos” como parte de uma</p><p>mesma categoria política e histórica: a negritude.</p><p>Por fim, a questão econômica</p><p>não pode ser desvinculada das questões raciais. A</p><p>desigualdade econômica no Brasil é fortemente influenciada pela discriminação racial</p><p>presente em diversas esferas da sociedade. A falta de oportunidades igualitárias, a</p><p>segregação no mercado de trabalho e a exclusão de pardos e pretos de setores-chave</p><p>da economia contribuem para a manutenção das disparidades socioeconômicas</p><p>baseadas na raça. Os índices de desemprego, subemprego e informalidade são mais</p><p>altos entre a população negra, demonstrando a persistência de estruturas que negam</p><p>oportunidades iguais e perpetuam a marginalização econômica desses grupos.</p><p>Nesse sentido, é fundamental manter e ampliar políticas públicas que visem combater</p><p>o racismo e promover a igualdade de oportunidades para todos os grupos raciais no</p><p>país. A implementação de ações afirmativas, como as cotas raciais em universidades e</p><p>em concursos públicos, representa passos importantes na correção das distorções e na</p><p>promoção da equidade racial. Mas devem ser acompanhadas por medidas concretas</p><p>que enfrentem as desigualdades econômicas e sociais que afetam de forma</p><p>desproporcional os pardos e pretos.</p><p>Diante disso, é crucial transcender a política econômica de viés neoliberal e priorizar o</p><p>investimento público em áreas e territórios essenciais para o fortalecimento das</p><p>comunidades, tanto nas cidades quanto no campo. E também abordar a economia</p><p>política do racismo, destacando como a superexploração e a precarização do</p><p>trabalhador negro contribuem para a segregação socioespacial, sustentada pelo</p><p>racismo como justificativa ideológica para a violência estatal contínua, incluindo</p><p>assassinatos e chacinas, nos territórios negros urbanos e rurais. Igualmente necessário</p><p>é discutir a devastação causada pelo neoliberalismo em nossos territórios, incluindo a</p><p>atual política de desinvestimento público e a supressão de direitos trabalhistas</p><p>essenciais, como carteira assinada, férias remuneradas, 13º salário e aposentadoria.</p><p>O racismo brasileiro sempre recorreu à estratégia de dividir os explorados e</p><p>oprimidos para manter o controle. Essa abordagem é comum nos sistemas fundados</p><p>na exploração do trabalho. Ao alienar o trabalhador de sua atividade e história,</p><p>principalmente no contexto capitalista, ocorre uma desconexão do trabalhador negro</p><p>com sua própria narrativa, sua cultura e seus valores enraizados em séculos de</p><p>resistência contra a opressão do escravismo e da superexploração do trabalho.</p><p>Resgatar a identidade do pardo como negro, promovendo o orgulho e a conexão com a</p><p>cultura e a identidade negras, reforça a importância da política como terreno para a</p><p>construção de significados e práticas contra-hegemônicas, embasadas na História e</p><p>nas realidades que moldaram a exclusão e o racismo em nossa sociedade. Tanto</p><p>estatisticamente quanto politicamente, o pardo representa o negro brasileiro em sua</p><p>expressão histórica e concreta. É a partir desse reconhecimento que o movimento</p><p>político negro deve revitalizar sua tradição radical, subvertendo expectativas,</p><p>reinventando horizontes utópicos e redesenhando os padrões de nossa inserção na</p><p>nacionalidade brasileira. A superação do capitalismo e do neoliberalismo como</p><p>limitações históricas para nossa raça exige uma visão que transcenda o status quo,</p><p>abrindo caminho para um futuro mais igualitário e emancipado da exploração</p><p>econômica baseada em critérios raciais.</p><p>Fábio Nogueira é sociólogo e professor adjunto do Departamento de Educação da</p><p>Uneb. Coordenador da Rede Nacional do Marxismo Negro. É autor de Clóvis Moura:</p><p>Trajetória intelectual, práxis e resistência negra (Eduneb, 2015).</p><p>seja ainda por meio das políticas públicas de</p><p>enfrentamento às profundas desigualdades. Revela que a agência de grupos políticos</p><p>disputa a categoria pardo no país. E que as ambiguidades que a categoria herda do</p><p>passado recebe novos contornos no presente. Os autores e as autoras convidados/as,</p><p>de alguma forma, desnudam estatísticas e até suas vidas para mostrar que estamos</p><p>longe ter um consenso sobre a questão. Mas, em conjunto, uma afirmação parece</p><p>certeira: todas as identidades e classificações raciais são produtos de nossa história</p><p>colonial. Transgredi-las é tarefa urgente.</p><p>Flavia Rios é doutora em sociologia pela USP, professora da UFF e pesquisadora do</p><p>Afro/Cebrap. É coorganizadora, entre outras obras, de Dicionário das relações étnico-</p><p>raciais (Perspectiva, 2023).</p><p>Pardos no Brasil e os desafios para as</p><p>políticas públicas</p><p>Edição do mês</p><p>1. Antonio Sérgio Alfredo Guimarães disse:</p><p>25 de junho de 2024</p><p>No Brasil do século 21, raça passou a ser aglutinador de grupos em luta pela garantia</p><p>de oportunidades e de direitos. Isto é, na edificação de fronteiras raciais que já não são</p><p>apenas construídas para oprimir socialmente como no século 19 e na maior parte do</p><p>20, nem para resistir à opressão, como nas lutas dos movimentos negros, mas também,</p><p>principalmente, para garantir a igualdade de oportunidades de vida. Com esse</p><p>diagnóstico social, vale indagar: como podemos ler as classificações raciais brasileiras</p><p>e suas oscilações ao longo do tempo e como elas se relacionam com as transformações</p><p>das ideologias nacionais e os avanços de políticas e direitos no Brasil? Um caminho</p><p>possível para analisar as dinâmicas de grupos e seus contextos históricos é ler, pelas</p><p>lentes das estatísticas demográficas, o desenvolvimento da categoria pardo no país.</p><p>Como evoluiu no Brasil o número de pessoas que se definem ou são definidas como</p><p>pardas? A que se deveu tal dinâmica classificatória? Como as recentes políticas</p><p>públicas que procuram beneficiar os negros, definidos como pretos e pardos, afetam</p><p>ou são afetadas por tal evolução?</p><p>Começo por lembrar os dados censitários do Instituto Brasileiro de Geografia e</p><p>Estatística (IBGE) sobre o modo como a população brasileira foi classificada</p><p>racialmente ou se classificou de 1940 até hoje. No gráfico a seguir, podemos ver que,</p><p>com exceção do intervalo entre 1991 e 2000, a população parda cresceu constante e</p><p>regularmente. O que motivou tal crescimento e por que a oscilação ocorreu justamente</p><p>nos anos 1990?</p><p>Fonte: Ibge/Censos Demográficos</p><p>Notemos, de imediato, que o decréscimo dos pardos na referida década se deu em</p><p>detrimento de brancos e pretos. Ou seja, algo se passou na sociedade brasileira para</p><p>que os pardos fossem chamados a se reclassificar ou fossem reclassificados como</p><p>brancos ou como pretos. Minha interpretação integra três argumentos.</p><p>Primeiro, não houve alterações significativas no que os demógrafos chamam de</p><p>crescimento vegetativo (diferença entre natalidade e mortalidade), nem aportes</p><p>migratórios relevantes que pudessem explicar seja a tendência de longo prazo (1940 a</p><p>2022), seja a oscilação da década de 1990. Segundo, as razões para o crescimento dos</p><p>pardos entre 1940 e 1991 não se aplicam para a mesma população entre 2000 e 2022.</p><p>Terceiro, no período 1940-1991, vivíamos o apogeu do que poderíamos chamar de</p><p>pacto social da democracia racial; enquanto no período 2000-2022, ingressamos num</p><p>novo pacto social que chamarei preliminarmente de multirracialismo. A década de</p><p>1990 seria, portanto, um momento de transição e redefinição.</p><p>O que chamo de pacto social é um arranjo de forças políticas (partidos, poderes</p><p>constituídos, grupos de pressão etc.) e forças sociais (movimentos, organizações civis</p><p>e militares etc.) em torno de um sistema de representação de interesses e de</p><p>distribuição de vantagens econômicas e simbólicas dos diversos grupos sociais e seus</p><p>indivíduos. Isso não significa forçosamente ausência de contestação da ordem, como</p><p>bem demonstrou a recente tentativa de golpe de Estado. Mas significa que uma tal</p><p>ordem institucional se mantém durante um período relativamente longo, soldada por</p><p>uma ideologia nacional. Devo lembrar também que a nova ordem do multirracialismo</p><p>parece ainda contestada por diversos setores insatisfeitos, desde os que a acusam</p><p>de identitarista aos que veem a nova focalização da política social como comunista.</p><p>Fonte: Ibge/Censos Demográficos</p><p>Fonte: Ibge/Censos Demográficos</p><p>Voltemos aos pardos. O que se passou na década de 1990 sinaliza que houve um</p><p>retorno classificatório de afrodescendentes que antes se diziam pardos para a</p><p>categoria preta, mas também uma eleição da categoria branca como preferencial,</p><p>demonstrando, provavelmente, que a bipolaridade branco-negro passara a ter</p><p>repercussão social mais ampla. Lembremos que a bipolaridade racial fez parte, desde</p><p>os anos 1970, da mobilização das entidades negras em torno de direitos civis (contra o</p><p>racismo, a intolerância, a discriminação e, por fim, em favor das cotas raciais para</p><p>negros).</p><p>Para além dessa reacomodação da década de 1990, é muito provável que o</p><p>crescimento dos pardos no século 20 se deva à força da ideologia</p><p>do embranquecimento, ou seja, da crença generalizada, desde o final do século 19, de</p><p>que a nação brasileira iria se embranquecer paulatinamente, seja por imigrações</p><p>europeias, seja pelo casamento e por uniões inter-raciais, que não encontrariam</p><p>barreiras morais ou legais dado o pacto da democracia racial. Isso significava, na</p><p>prática, que o recenseador, ou o membro da família entrevistado por ele, procurava</p><p>enquadrar os que fossem “socialmente brancos”, isto é, os bem situados</p><p>economicamente, como pardos – se tivessem traços negroides. Na curva ascendente da</p><p>população parda (Gráfico 1), vemos, de fato, crescer o número de pardos em</p><p>detrimento dos pretos e brancos, entre 1940 e 1991.</p><p>No entanto, olhando para o crescimento de cada grupo de cor/raça em particular,</p><p>vemos que o grande aumento da população parda ocorre marcadamente entre 1940 e</p><p>1980, sobretudo em detrimento da população preta, que chega a diminuir entre 1940</p><p>e 1950 (ver as tabelas 1 e 2). Mas também em detrimento dos brancos, que, como</p><p>percentual da população total, também perdem importância (Gráfico 1). Ou seja, a</p><p>ideologia do embranquecimento parece operar em sua plenitude.</p><p>Já no século presente, a população parda avança sobretudo em detrimento da</p><p>população branca, como podemos ver na Tabela 2. Ou seja, pessoas que antes eram</p><p>classificadas ou se classificavam como brancas passam a se definir como pardas. Trata-</p><p>se agora, sugiro, do estertor da ideologia do embranquecimento – as pessoas já não</p><p>tiram prestígio ou benefícios em declarar-se brancas e preferem se definir ou ser</p><p>definidas como pardas.</p><p>Se minha interpretação estiver correta, no entanto, ela nos impõe um novo desafio</p><p>político.</p><p>Como categoria definida por exclusão – ou seja, pessoas que não se classificam ou são</p><p>classificadas nas outras categorias (branca, preta, indígena, amarela) –, o termo pardo</p><p>pode vir ocasionalmente a designar grupos com sentidos e projetos políticos</p><p>representativos diferentes e bem definidos. É o que estamos assistindo hoje com os</p><p>que se reivindicam pardos por terem uma origem indígena, mas não africana; ou os</p><p>que se reivindicam produto de uma mistura de várias raças e não apenas de duas.</p><p>Esses pardos não são hoje acolhidos por políticas públicas, as quais, mesmo definindo</p><p>negros como a soma de pardos e pretos, visam apenas aos afrodescendentes. Eles, os</p><p>pardos, são, portanto, sistematicamente recusados pelas comissões de verificação de</p><p>autoidentificação pelo simples motivo de que tais políticas não os inclui.</p><p>Fonte: Ibge/Censo 2022</p><p>O desafio tem dois componentes. O primeiro é quanto à amplitude da política pública –</p><p>manter-se ou não o entendimento atual de que essa política visa beneficiar apenas a</p><p>população afrodescendente –, excluindo, portanto, os pardos que não o são. O segundo</p><p>é de caráter</p><p>geográfico e regional – à medida que a economia e a população do</p><p>interior, fora das antigas áreas de colonização e escravização litorânea, se adensar, o</p><p>peso relativo de pardos sem origem ou aculturação afrodescendente provavelmente</p><p>aumentará, pela simples retenção da população no interior do país. Será possível</p><p>manter, a longo prazo, uma política nacional regionalmente enviesada? Terão</p><p>sustentação popular políticas que apenas beneficiem áreas de colonização escravista,</p><p>sem incluir áreas nas quais prevalece a população de origem indígena ou cabocla? De</p><p>fato, alguns estados que concentram maior percentual de população parda estão em</p><p>áreas de colonização mais recente, de expansão da fronteira agrícola, ou maior</p><p>presença indígena (ver Gráfico 2).</p><p>As respostas a essas perguntas, obviamente, dependerão muito mais da mobilização</p><p>social futura do que de qualquer vontade política já constituída. No entanto, dois</p><p>fatores permitem prever a continuidade das políticas atuais por mais algum tempo:</p><p>primeiro, o adensamento do interior ainda é lento. Entre 2010 e 2022, por exemplo, a</p><p>população litorânea decresceu apenas 1%, segundo o IBGE. Segundo, a discussão das</p><p>políticas é, e continuará sendo por um bom tempo, catalisada pelas fraudes de</p><p>autodeclaração, mais frequentes no Nordeste, no Sul e no Sudeste, por isso é</p><p>importante observar, como no Gráfico 2, a distribuição de pardos no território</p><p>nacional. Por ora, as incongruências classificatórias no contexto das políticas públicas</p><p>envolvem os pardos sem fenótipos africanos. Enquanto o que estiver em discussão for</p><p>o enquadramento de pessoas na categoria “negro”, há uma grande chance de que a</p><p>política atual perdure no país, o que também é alimentado por um amplo debate sobre</p><p>as identidades sociais e raciais brasileiras, posto que os tensionamentos dos</p><p>movimentos sociais antirracistas se opõem frontalmente às ideologias tradicionais</p><p>que, por muitos anos, alimentaram nossa brasilidade.</p><p>Antonio Sérgio Alfredo Guimarães é doutor em sociologia pela University of Wisconsin</p><p>e professor titular do Departamento de Sociologia da USP. É autor, entre outras obras,</p><p>de Preconceito e discriminação (Editora 34, 2004) e Modernidades negras (Editora 34,</p><p>2021).</p><p>As desigualdades raciais na educação dos</p><p>jovens brasileiros</p><p>Edição do mês</p><p>1. Felícia Picanço disse:</p><p>25 de junho de 2024</p><p>Alunos em escola municipal na ilha de Marambaia, comunidade quilombola no sul do estado do RJ (Tânia</p><p>Rego/Agência Brasil)</p><p>Em rápida passagem de olho por uma novela da Rede Globo, chamou-me atenção a cor</p><p>alaranjada dos personagens que fazem o núcleo principal, uma trama que se passa em</p><p>um Nordeste fictício. Por curiosidade, comparei as imagens disponíveis na internet</p><p>com imagens de outras novelas recentes com tramas também ambientadas no</p><p>Nordeste, e a conclusão foi de que sim, a paleta de cores mudou. Em um momento de</p><p>divulgação dos dados do Censo de 2022 que retratam uma população composta por</p><p>45,3% de pardos, 43,5% de brancos, 10,2% de pretos, 0,6% de indígenas e 0,4% de</p><p>amarelos, não se trata de uma coincidência nem de escolha meramente estética.</p><p>Desde o Censo de 1872, quando o quesito cor foi inserido com as categorias de</p><p>respostas branca, preta, parda e cabocla, as categorias raciais mudaram algumas vezes,</p><p>como também seu significado. Na esteira da produção de dados nacionais segundo</p><p>raça/cor e no caminho aberto pelas pesquisas do Projeto Unesco, que, ao ter como</p><p>objeto o preconceito racial, incorporaram o pardo (mulato ou mestiço) nas análises, os</p><p>estudos sobre estratificação racial emergiram nos anos 1980 definindo outra lente</p><p>analítica. A partir dela, as desigualdades raciais foram mensuradas e explicadas de</p><p>forma dicotômica entre brancos e não brancos, e o Brasil foi desafiado a se repensar</p><p>como país da fluidez e da democracia racial.</p><p>Carlos Hasenbalg e Nelson do Valle Silva, autores centrais nesse campo,</p><p>desenvolveram suas análises baseadas no processo social do “ciclo cumulativo de</p><p>desvantagens” dos pardos e pretos, uma vez que esses grupos somam às desvantagens</p><p>da origem social nos estratos empobrecidos da sociedade as discriminações raciais, e</p><p>os resultados se expressam na desigualdade educacional e social entre brancos e não</p><p>brancos. A tradição que seguiu a partir de então consolidou análises de dados</p><p>estatísticos produzidos pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística)</p><p>baseadas na dicotomia branco e não branco.</p><p>Ao lado disso, o movimento negro reivindicava o uso da categoria negros como</p><p>categoria política, o que implicava utilizar nas análises estatísticas, em vez da categoria</p><p>não brancos, a categoria negros. Essa reivindicação política, somada ao efeito do</p><p>contexto de preparação de Durban (Conferência Mundial das Nações Unidas contra o</p><p>Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e a Intolerância, em 2001), bem como à</p><p>estabilidade das categorias raciais do IBGE, resultou em um gradual, mas não</p><p>consensual, uso da categoria negros como uma categoria estatística para expressar a</p><p>soma dos pardos e pretos.</p><p>Nas últimas décadas, a consolidação das análises estatísticas baseada na junção entre</p><p>pardos e pretos foi sendo tensionada por debates políticos, fortemente oriundos da</p><p>adoção das políticas de ação afirmativa e das comissões de heteroidentificação, e por</p><p>pesquisas comparativas entre brancos, pretos e pardos que procuraram descortinar</p><p>diferenças e compreender como as fronteiras raciais são construídas, cada uma com</p><p>seus objetos, métodos e enquadramentos, conforme podemos ver nos trabalhos de</p><p>pesquisadores como Costa Ribeiro, Verônica Daflon e João Feres, entre outros. O pardo</p><p>se tornou uma questão nacional.</p><p>Qual o retrato das aproximações e diferenças entre brancos, pardos e pretos em</p><p>relação à escolaridade dos jovens? Para essa breve discussão, utilizamos os dados da</p><p>Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua com os dados do segundo</p><p>semestre de 2019, como forma de não captar os possíveis efeitos da pandemia da</p><p>Covid-19 sobre os dados educacionais.</p><p>A evolução da inserção escolar no Brasil já está fartamente documentada e analisada.</p><p>Em termos de mudanças contextuais, os marcos são a obrigatoriedade da escola para</p><p>crianças e jovens entre quatro e 17 anos, a implementação de políticas e programas</p><p>sociais com a condicionalidade da frequência escolar de crianças e jovens, a expansão</p><p>do sistema de ensino superior e a implementação de programas de inclusão no ensino</p><p>superior privado (Fies e Prouni) e público (ações afirmativas).</p><p>No Brasil, a frequência escolar é obrigatória para crianças e jovens de quatro a 17</p><p>anos, e a creche, opcional, mas seu acesso tem um conjunto de implicações</p><p>relacionadas não apenas ao desenvolvimento da socialização e das habilidades das</p><p>crianças, mas à redução da carga de trabalho doméstico e de cuidados, em especial</p><p>para as mães. Os obstáculos são os custos das creches, a ausência de uma rede de</p><p>creches pública com ampla cobertura e o familismo dos cuidados, entendido como o</p><p>modelo no qual a família é a provedora principal dos cuidados e que caracteriza as</p><p>sociedades mais tradicionais em relação aos papéis de gênero (homem provedor e</p><p>mulher cuidadora) – daí a expectativa de baixa presença de crianças de zero a três</p><p>anos.</p><p>O acesso à creche é muito baixo com menos de um ano, cerca de 5%, mas vai</p><p>ampliando para 22% com um ano; 43% com dois anos; e 67% com três anos. A</p><p>variação por gênero só se revela com uma vantagem de quatro pontos percentuais</p><p>(p.p.) para as meninas na idade de três anos. Mas não é tão localizada em uma idade</p><p>quando observamos cor/raça, são as crianças pardas as mais distantes das crianças</p><p>brancas de um a três anos. A distribuição regional e por zonas (rural e urbana) explica</p><p>em parte, mas não tudo, caso contrário teríamos esse mesmo padrão nas idades mais</p><p>avançadas, e, como veremos mais à frente, não é isso que observamos.</p><p>Estudos produzidos por Flúvia Rosemberg, Marília Pinto de Carvalho e parceiras,</p><p>vistos em conjunto, apontam que gênero e cor são marcadores de desigualdades que</p><p>aparecem nas dinâmicas de socialização das crianças e jovens na escola, e têm um</p><p>impacto na percepção dos professores sobre os alunos, nas trajetórias escolares e no</p><p>desempenho escolar, em que os jovens negros são mais propensos a interrupções,</p><p>repetências, menor desempenho, evasão, além de serem classificados como “alunos-</p><p>problema”. Essas dinâmicas e resultados são atravessados pelas questões relativas às</p><p>classificações raciais. Os processos de autoclassificação e heteroclassificação</p><p>(definição da categoria realizada por outra pessoa) raciais são complexos. Daí ser</p><p>insuficiente descrever os jovens segundo a raça, sendo necessário trazer a dimensão</p><p>de gênero para a construção do retrato da frequência à escola.</p><p>Na idade escolar, as diferenças encontradas no acesso à creche se desfazem e voltam a</p><p>aparecer a partir dos 15 anos; por isso, foquemos nossa atenção nos jovens de 15 a 17</p><p>anos. Observando apenas a frequência escolar, portanto, não a adequação série-idade,</p><p>entre tais jovens, a diferença de percentual entre brancos, pardos e pretos aparece a</p><p>partir dos 15 anos de forma mais sutil e se amplia aos 17; nessa idade, a maior</p><p>diferença é de 6 p.p. e se apresenta entre as jovens brancas e as pardas.</p><p>Enquanto a frequência escolar dos meninos de 15 anos varia apenas um p.p., entre as</p><p>meninas varia quatro p.p. em favor das brancas, e aos 17 anos esse perfil de</p><p>diferenciação se mantém.</p><p>Entre os jovens de 15 a 17 anos que estudam, a desigualdade se torna visível de fato</p><p>pela defasagem idade-série. Enquanto 82% das jovens brancas, 77% dos brancos, 75%</p><p>das pardas e 74% das pretas estão no ensino médio, o percentual cai para 65% e 62%</p><p>entre pardos e pretos, respectivamente. Sendo as brancas aquelas que têm o maior</p><p>percentual de estudantes de nível superior (3,2%), seguidas por brancos (1,8%),</p><p>pardas (1,5%), pretas (1,5%) e pardos e pretos que estão abaixo de 1%.</p><p>Entre os jovens de 15 a 17 anos que pararam de estudar, 38% concluíram o ensino</p><p>médio, os demais pararam em séries anteriores. As jovens brancas são aquelas com o</p><p>maior percentual (59%), seguidas por brancos (44%), pardas (39%), pretas (37%),</p><p>pardos (26%) e pretos (20%). Entre esses jovens que não estavam frequentando a</p><p>escola e finalizaram o ensino médio, o motivo mais acionado para parar de estudar foi</p><p>o de ter concluído o ano que desejavam; entre os jovens pretos o percentual de adesão</p><p>a esse motivo foi de 80%, seguido de jovens pretas (58%), brancos (52%), pardos</p><p>(51%), pardas (51%) e brancas (49%). Dois outros motivos são acionados de formas</p><p>distintas pelos jovens segundo gênero e raça: necessidade de trabalhar e falta de</p><p>dinheiro para compra de material, transporte etc. As meninas pretas foram as que</p><p>mais mencionaram a falta de dinheiro (30%), enquanto as brancas e pardas se</p><p>dividiram entre a necessidade de trabalhar e a falta de dinheiro. Os percentuais das</p><p>meninas pardas e brancas e dos meninos pardos e brancos na menção ao trabalho</p><p>como motivo estão próximos, 15% a 12%.</p><p>O destaque para este dado reside em dois aspectos. Primeiro, o trabalho não está na</p><p>linha de frente das justificativas nesse grupo específico, mas, sim, a falta de expectativa</p><p>em relação ao prolongamento da escolarização. O que nos remete às pesquisas sobre</p><p>longevidade escolar das classes populares produzida a partir dos anos 1990 e sobre</p><p>masculinidades negras na educação, mas que, ao explorar marcadores sociais</p><p>específicos, deixa uma lacuna no tratamento da interseção gênero e raça de forma</p><p>comparada. Segundo, a capacidade de entendermos que o salto em direção à transição</p><p>educacional mais robusta precisa enfrentar a barreira da falta de expectativa por essa</p><p>trajetória, em especial entre os jovens pretos, e para as meninas pretas, as barreiras</p><p>socioeconômicas.</p><p>Os motivos ganham outras dimensões quando observamos os jovens que não estão</p><p>frequentando a escola e não finalizaram o ensino médio. Entre os meninos, o</p><p>desinteresse pelo estudo é o motivo mais acionado pelos pardos (48%), seguido pelos</p><p>pretos (45,5%) e brancos (42%). O segundo motivo mais acionado entre os meninos é</p><p>a necessidade de trabalhar, com percentuais muito próximos de 20% por raça/cor.</p><p>Entre as jovens, o desinteresse e a gravidez são os dois motivos acionados em</p><p>percentuais próximos e com pequena diferença por raça, indicando que não há a</p><p>prevalência de um motivo para nenhum grupo racial. Entre as pardas, há um terceiro</p><p>motivo que desponta: ter de cuidar dos afazeres domésticos ou cuidar de crianças,</p><p>idosos ou deficientes (18%). Os jovens que desistiram do estudo aparecem aqui</p><p>movidos pela pouca atratividade da escola e pela colagem aos papéis de gênero</p><p>tradicionais: homens para o trabalho e mulheres para os cuidados.</p><p>As chances de ascensão dos jovens pretos e pardos são menores do que as chances dos</p><p>jovens brancos, mas as aproximações e diferenças apresentadas procuraram</p><p>demonstrar a necessidade de investimento em pesquisas cada vez mais</p><p>interseccionais entre gênero e raça suplantando dicotomias para melhor compreender</p><p>as dinâmicas e os processos que produzem as categorias estatísticas.</p><p>Felícia Picanço é doutora em sociologia pelo Iuperj, professora do Departamento de</p><p>Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da UFRJ.</p><p>Pesquisa desigualdades de gênero e raça na educação, inserção no mercado de</p><p>trabalho e divisão do trabalho doméstico e de cuidados.</p><p>O pardo na política</p><p>Edição do mês</p><p>1. Luiz Augusto Campos e Carlos Machado disse:</p><p>25 de junho de 2024</p><p>Antonio Carlos Magalhães Neto, autodeclarado pardo, em debate na eleição para o governo da Bahia em 2022</p><p>(Reprodução/debate Rede Globo)</p><p>As eleições de 2022 foram marcadas por polêmicas e um acirramento inédito das</p><p>campanhas. Uma das mais curiosas dentre elas talvez tenha sido a autodeclaração de</p><p>raça/cor de Antonio Carlos Magalhães Neto, um dos mais tradicionais nomes da</p><p>política baiana e então candidato ao governo do estado. Autodeclarado pardo nos</p><p>registros do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), mas visto socialmente como branco,</p><p>ACM Neto teve seu registro contestado ao vivo em mais de um programa televisivo e</p><p>se tornou alvo de um sem-número de memes.</p><p>A controvérsia não foi gerada apenas pelas contestações em relação à sua identidade</p><p>racial. Como existem hoje diversas medidas de incentivo às candidaturas pretas,</p><p>pardas e indígenas, incluindo benefícios específicos oriundos dos fundos eleitoral e</p><p>partidário, ganhou força a suspeita de que o candidato estaria mentindo para receber</p><p>mais recursos de campanha. A partir de 2020, o TSE criou cotas mínimas de</p><p>financiamento e tempo de horário gratuito de propaganda eleitoral para candidaturas</p><p>não brancas, proporcionalmente à presença das mesmas nas listas partidárias, e, em</p><p>2021, o Congresso aprovou uma lei que duplica o peso de eleitos desses grupos para a</p><p>definição da distribuição de recursos públicos de campanha a serem recebidos por</p><p>partido.</p><p>Todo esse imbróglio esconde complexidades que a polêmica nas redes sociais não</p><p>considera. Primeiro, nunca é demais lembrar que o uso contemporâneo de raça se</p><p>baseia numa construção social e, portanto, dependente do modo como diferentes</p><p>indivíduos em uma dada cultura classificam uns aos outros. Em outros termos, se raça</p><p>não é um fato da biologia humana, não existem (nem nunca existirão) critérios</p><p>objetivos para defini-la. Segundo, vivemos em um país que, historicamente, negou suas</p><p>divisões raciais e, por isso, incentivou sua população a reconhecer-se como “morena”,</p><p>“mestiça”, “mulata”, “parda”. Ainda que não possamos excluir a má-fé das intenções</p><p>dos atores, em especial quando tanto poder está em jogo, é natural, em certo sentido,</p><p>que esse tema produza dúvidas e confusões.</p><p>Embora as comissões de heteroclassificação venham rapidamente se espalhando nas</p><p>seleções para o ensino superior público e em alguns concursos federais, elas ainda não</p><p>são utilizadas nas eleições, valendo, portanto, a autodeclaração. A rigor, pouco se sabe</p><p>sobre esse processo burocrático de registro dessa informação e há indícios de que o</p><p>preenchimento do sistema de candidaturas do TSE é terceirizado para secretários</p><p>partidários. Logo, a variável raça/cor do TSE tem uma qualidade duvidosa, sendo</p><p>comum depararmos com partidos totalmente “pardos” ou “brancos” nas eleições</p><p>municipais. Em várias eleições, organizamos comissões informais de</p><p>heteroclassificação para estabelecer, a partir das fotos de urna disponibilizada pelo</p><p>TSE, se a raça/cor registrada dos políticos brasileiros correspondia à raça/cor</p><p>percebida por seus eleitores.</p><p>Nas eleições de 2022, o Gemaa (Grupo de Estudos Multidisciplinar da Ação Afirmativa)</p><p>e o Núcleo de Pesquisa Flora Tristán (Universidade de Brasília) submeteram imagens</p><p>dos deputados e deputadas federais eleitos(as) à classificação de três diferentes</p><p>codificadores. Sempre que os três discordassem em uníssono da autoclassificação</p><p>do(a) deputado(a), ele(a) era computado(a) como um caso de inconsistência. Nosso</p><p>objetivo aqui não era definir “a raça objetiva” dos políticos, algo impossível, mas</p><p>apenas determinar casos de discrepância aguda entre o registro oficial e a percepção</p><p>social das pessoas. O resultado foi que 45% (quase a metade) dos deputados pretos e</p><p>pardos eleitos não passaram no teste, sendo classificados como brancos.</p><p>Alguns analistas têm argumentado que esse percentual de discrepância deve ser</p><p>tratado como fraudes ao sistema de cotas de financiamento. Contudo, é preciso cautela</p><p>para lidar com essa possibilidade. Em 2022, os casos discrepantes somavam 11,8% de</p><p>todos os deputados eleitos, índice que segue uma tendência histórica. Em 2018,</p><p>quando não havia nenhum incentivo oficial a candidaturas pretas, pardas ou</p><p>indígenas, a discrepância foi registrada em 13,6%, maior que a de 2022. Vale lembrar</p><p>que as medidas de incentivo financeiro a candidaturas não brancas são tímidas e, a</p><p>rigor, destinam recurso mais para um grupo como um todo do que para candidatos</p><p>específicos. Aliás, dos 29 partidos ativos em 2022, 22 não cumpriram a regra, sendo</p><p>anistiados pelo Congresso no ano seguinte. Finalmente, a distribuição regional dessas</p><p>discrepâncias, predominantes em estados do Norte e do Nordeste do país, sugere que</p><p>parte delas reflete uma ambivalência própria das categorias de classificação racial</p><p>brasileiras.</p><p>Tudo isso indica que os dilemas dos “pardos” nas eleições refletem mais as tensões</p><p>próprias dessa classificação racial na sociedade brasileira do que apenas intenções</p><p>fraudulentas de agentes políticos. Isso não quer dizer que casos de pessoas no geral</p><p>percebidas como brancas, mas que se registram como pardas nas eleições, devam ser</p><p>aceitos ou tolerados. Não só porque isso envolve um beneficiamento espúrio das</p><p>regras eleitorais, mas também porque é preciso que a representação política brasileira</p><p>reflita a perspectiva social daqueles que são discriminados e, por isso, têm suas</p><p>oportunidades sociais e políticas substantivamente reduzidas. Os beneficiários das</p><p>políticas de ação afirmativa devem, portanto, ser pessoas potencialmente vítimas de</p><p>discriminação racial no mercado de trabalho, na educação e em espaços de prestígio e</p><p>poder.</p><p>Luiz Augusto Campos é doutor em sociologia pela Uerj e professor de sociologia e</p><p>ciência política na mesma universidade.</p><p>Carlos Machado é doutor em ciência política pela UFMG e professor no Instituto de</p><p>Ciência Política da UnB . É coautor, dentre outros, de Raça e eleições no Brasil (Zouk,</p><p>2020).</p><p>O pardo nas comissões de</p><p>heteroidentificação</p><p>Edição do mês</p><p>1. Douglas Leite disse:</p><p>25 de junho de 2024</p><p>Comissão de heteroidentificação na UFRJ (Coordcom/UFRJ)</p><p>Quem é pardo no Brasil? Nos últimos anos, na esteira da consolidação de um amplo</p><p>programa de ações afirmativas de caráter social e racial no país, essa pergunta tem se</p><p>apresentado cada vez mais frequentemente no espaço de operacionalização das</p><p>políticas públicas. Tais questionamentos acontecem, sobretudo, em razão de</p><p>denúncias de mau uso da política de cotas – originalmente fundada na autodeclaração</p><p>racial –, o que levou o Estado a atuar na verificação das autodeclarações por meio da</p><p>observação do fenótipo dos candidatos. Essa operação das burocracias, universitárias</p><p>ou não, foi instalada de forma mais sistemática na última década. Assim, o</p><p>funcionamento das comissões de heteroidentificação racial se tornou instrumento de</p><p>validação das autodeclarações, e o lugar ou a condição do pardo como elegível para as</p><p>cotas têm sido objeto de diferentes abordagens. Analisar as formas como se</p><p>instituíram as comissões de heteroidentificação para validar a raça dos candidatos –</p><p>examinando as respostas dadas à pergunta sobre o pardo – nos leva a uma posição</p><p>privilegiada de observação do atual estágio do debate sobre as fronteiras raciais no</p><p>país.</p><p>Oficialmente, os pardos emergiram como categoria censitária nacional no ano de 1872.</p><p>Nomeavam uma porção racial intermediária entre brancos e pretos, que, em contagens</p><p>subsequentes, seria reclassificada como mestiça (1890), ou que se confundiria numa</p><p>massa de categorias indefinidas: “outros” (1940), até que voltassem a figurar como</p><p>categoria classificatória no Censo de 1950. Estabelecidos desde então – com a exceção</p><p>do Censo de 1970 –, os pardos dobrariam sua participação na população brasileira</p><p>entre 1940 e 1990 (21,2% a 42,5%), alcançando em 2022 a cifra de 45,3% dos</p><p>residentes no país, ultrapassando assim, pela primeira vez na História, o número de</p><p>brancos.</p><p>A categoria de “cor ou raça” intitulada pardos, tipicamente residual, estabilizou-se e</p><p>cresceu nos indicadores populacionais do país ao mesmo tempo que seu lugar racial,</p><p>historicamente tido como indefinido, passou a ser problematizado no âmbito de um</p><p>discurso étnico mobilizado por atores sociais decisivos para a pauta das ações</p><p>afirmativas no Brasil: os movimentos sociais negros. Recuando até a década de 1970, é</p><p>possível rastrear, dentro dos movimentos, a construção de um discurso que,</p><p>trabalhando a materialidade de uma cultura negra afro-brasileira, deu forma a uma</p><p>comunidade de indivíduos ligados não só por uma ancestralidade comum, como</p><p>também por projetos de futuro compartilhados. Etnicamente definida, a comunidade</p><p>negra brasileira incorporaria pardos recuperados do embranquecimento (como</p><p>demonstra o Censo desde 1990), engajando-os politicamente em demandas por acesso</p><p>a direitos e no combate à desigualdade. Essa configuração racial de pretos somados a</p><p>pardos encontrou respaldo teórico em estudos sociais desenvolvidos entre os anos</p><p>1970 e 1980, segundo os quais, nas estatísticas de desigualdade, a situação</p><p>socioeconômica dos pardos os aproximava consistentemente dos pretos, em oposição</p><p>aos brancos. Feitas as contas, para os movimentos sociais negros da passagem entre os</p><p>séculos, o Brasil, de pretos e pardos, era eminentemente negro.</p><p>A força política desse movimento, de forte reivindicação étnica, contou como um dos</p><p>elementos-chave para a criação de uma pauta definitiva de ações afirmativas no Brasil.</p><p>Marco incontornável desse processo, a Conferência Mundial contra o Racismo da ONU</p><p>(Durban/2001) é vista como o evento que dispara internamente uma agenda de</p><p>políticas de igualdade racial, a partir da qual se pode contar a história da política de</p><p>cotas no Brasil. Pouco mais de uma década pós-Durban, duas legislações federais</p><p>ampliaram para as instituições de ensino superior e para os órgãos públicos da União</p><p>a reserva de vagas de caráter racial. A iniciativa reconheceu no país um movimento</p><p>significativamente difundido por instituições em diferentes níveis da Federação. Em</p><p>dez anos de vigência, a política de cotas se consolidou, mas recorrentes denúncias de</p><p>fraudes acenderam o alerta para a necessidade de controle sobre sua implementação.</p><p>A resposta das comisso es de heteroidentificaça o a</p><p>pergunta sobre o pardo</p><p>Passados alguns anos, o consenso demográfico,</p><p>étnico e político construído em torno</p><p>das políticas de ação afirmativa no Brasil deparou com o quadro de reiterados relatos</p><p>dando conta de que indivíduos brancos usurpavam vagas reservadas para negros em</p><p>seleções públicas. Isso mobilizou diversos coletivos negros e órgãos públicos no ano</p><p>de 2015 para uma audiência no Conselho Nacional do Ministério Público, que se</p><p>tornou um dos marcos das iniciativas voltadas a considerar alternativas para o</p><p>enfrentamento do problema. Revelava-se ali um sério dilema para a política de cotas:</p><p>para obtenção de vantagens competitivas, indivíduos transitavam da condição de</p><p>brancos para a de autodeclarados negros explorando a pele clara cujo componente de</p><p>miscigenação está longe de ser lido de forma polarizada (branco x negro) no sistema</p><p>de classificação racial brasileiro. Em outras palavras, para acessarem as cotas, brancos</p><p>se passavam por pardos, como negros de pele clara. Mas, até ali, a estrutura</p><p>institucional montada pelos concursos era pouco equipada para lidar com essa</p><p>questão.</p><p>É importante frisar que o fundamento original do acesso dos indivíduos negros a</p><p>políticas afirmativas é a autodeclaração racial. Reconhecida internacionalmente como</p><p>critério de pertencimento étnico-racial, a autodeclaração foi, desde o princípio da</p><p>implementação das ações afirmativas, a pedra de toque da identificação de seus</p><p>beneficiários, constituindo assim um modelo que se poderia denominar de</p><p>“identitário”. A experiência, porém, veio demonstrar os limites do modelo “identitário”</p><p>para o fim de distinguir os beneficiários das cotas. Na avaliação de atores sociais</p><p>envolvidos no controle dessa política, processos de validação da autodeclaração, como</p><p>o recurso a documentos de identificação, declarações prévias de cor ou raça, ou</p><p>mesmo relatos pessoais dos candidatos acerca de seu processo de socialização racial,</p><p>não bastaram para fechar a “brecha” no sistema, e indivíduos lidos socialmente como</p><p>brancos seguiram ocupando vagas reservadas para negros nas instituições públicas.</p><p>Esse fenômeno foi acusado na proliferação de comissões de sindicância contra mau</p><p>uso das cotas em diversas universidades do país. Uma demanda social mais forte era</p><p>subjacente a essas iniciativas e vocalizada pelos grupos sociais nelas envolvidos: a de</p><p>que a política de cotas reconhecesse definitivamente seu objetivo como o de</p><p>“empretecer” as instituições.</p><p>A virada nesse processo implicou o uso de um sistema novo no âmbito da política</p><p>pública: a heteroidentificação, complementar à autodeclaração. Vale dizer: a</p><p>identificação por terceiro da cor ou da raça autodeclaradas do candidato às cotas, para</p><p>distinguir e confirmar o indivíduo que, socialmente reconhecido como negro, faz jus ao</p><p>benefício. A novidade é que a heteroidentificação tem como critério não a identidade</p><p>étnica ou a autopercepção racial do indivíduo, tal como autodeclarada, mas o seu</p><p>fenótipo – mais particularmente a leitura social que um terceiro faz do fenótipo do</p><p>candidato como indicativo de sua condição racial. Ou seja, para afastar do acesso às</p><p>cotas o indivíduo branco, a heteroidentificação somou uma resposta própria à questão</p><p>“quem é o pardo”, definindo novo subconjunto populacional ao lado daquele</p><p>previamente mapeado pelo IBGE ou construído etnicamente pelos movimentos sociais</p><p>negros. Segundo essa resposta, o pardo beneficiário das cotas é aquele que, por seu</p><p>fenótipo, pode ser lido socialmente como vítima potencial de discriminação racial, a</p><p>partir da suposta premissa de que, na experiência brasileira, o racismo se manifesta</p><p>particularmente como preconceito de cor.</p><p>O pressuposto que está na base da justificativa para o “modelo fenotípico” se ancora</p><p>em trabalhos comparativos recentes, baseados em relatos de indivíduos analisados</p><p>contra o pano de fundo de uma paleta de cores. De acordo com esses estudos, pardos</p><p>tendem a se identificar como negros acusando experiências de discriminação racial.</p><p>Além disso, observou-se que o tom da pele funciona como marcador relevante na</p><p>definição das linhas de desigualdade entre pretos e pardos, favorecendo os de pele</p><p>mais clara em detrimento dos outros. Tais argumentos têm peso importante na defesa</p><p>do “modelo fenotípico”, mas também revelam que sua adoção é restritiva em relação a</p><p>um universo de indivíduos – pardos de pele clara – que, ainda que possam se</p><p>autodeclarar negros, não somariam ao objetivo de “empretecer” as instituições</p><p>públicas, ocupando vagas e cargos reservados aos negros.</p><p>Reconhecendo a justificativa social construída em torno do modelo fenotípico, a</p><p>fundamentação jurídica das comissões de heteroidentificação se encontra firmemente</p><p>estabelecida em atos normativos e decisões de tribunais no Brasil. A mais importante</p><p>dessas decisões é o acórdão do Supremo Tribunal Federal (STF), proferido na ADPF</p><p>186, em 2012, que declara a constitucionalidade da política de cotas e do modelo</p><p>fenotípico de heteroidentificação racial. Seguiram-se atos normativos do governo</p><p>federal: MPOG, Orientação Normativa nº 1/2016; Portaria Normativa nº 4/2018; e,</p><p>mais recentemente, a MGI, Instrução Normativa nº 23/2023, que, além de reforçarem</p><p>o critério fenotípico, definiram o modelo de funcionamento das comissões.</p><p>A salvaguarda jurídica das comissões de heteroidentificação está diretamente ligada à</p><p>sua prática como um microcosmo administrativo capaz de reproduzir um “olhar”</p><p>socialmente construído em torno da associação entre cor (fenótipo) e discriminação</p><p>racial, operando segundo critérios de respeito à dignidade humana, diversidade,</p><p>transparência, revisão das decisões adotadas e benefício da dúvida. Recomenda-se que</p><p>decisões não confirmatórias das autodeclarações sejam unânimes. Vale dizer: o</p><p>horizonte de decisão da comissão deve ser o de validar a autodeclaração sempre que</p><p>não houver consenso em contrário entre as diferentes percepções dos membros da</p><p>comissão. As consequências desse modelo para um indivíduo que se autodeclara</p><p>pardo segundo os critérios do IBGE, e que se percebe como negro por razões étnicas e</p><p>políticas, incluem, portanto, a possibilidade de que sua identidade étnico-racial não</p><p>seja reconhecida pela comissão de heteroidentificação para efeito do acesso à reserva</p><p>de vagas. A resposta das comissões de heteroidentificação à questão do pardo tipifica,</p><p>portanto, uma espécie de nova categoria administrativa, válida para efeito da política</p><p>pública em especial.</p><p>Os desafios de implementação da política de cotas no Brasil vêm exigindo respostas</p><p>processuais, formuladas no panorama do debate público sobre formas de socialização</p><p>e de identificação racial. Concebidas no curso desse processo, e apoiadas em</p><p>justificativa social própria, as comissões de heteroidentificação representam o esforço</p><p>de construção de uma tecnologia que interfere no universo das categorias raciais à</p><p>disposição no vocabulário brasileiro contemporâneo. Sua adoção evidencia a vigência</p><p>concorrente de duas formas distintas de classificação racial no processo de</p><p>implementação das cotas (“identitária” x “fenotípica”), com temporalidades e</p><p>dinâmicas próprias, e particularmente mobilizadas pela condição racial do pardo.</p><p>Trata-se de um novo capítulo na história das políticas públicas de igualdade racial em</p><p>geral, e das medidas de reserva de vagas em particular, com a promessa de novos</p><p>desdobramentos.</p><p>Douglas Leite é doutor em história social pela USP e professor da Faculdade de Direito</p><p>da UFF.</p><p>“Não me tornei negro numa saga pessoal”</p><p>Edição do mês</p><p>1. Daniela Vieira disse:</p><p>25 de junho de 2024</p><p>(Marcos Pereira Neto)</p><p>Poeta, militante negro e LGBTQIA+, o professor Alex Ratts relembra nesta entrevista</p><p>sua trajetória como ativista e pesquisador, tramada pela formação da própria</p><p>identidade como pessoa negra em um contexto no qual a classificação de pardo desafia</p><p>a noção de pertencimento.</p><p>Professor titular na UFG, Ratts desenvolveu estudos sobre questões étnicas, raciais, de</p><p>gênero e sexualidade em perspectiva interseccional. À Cult, ele</p><p>fala sobre sua</p><p>formação, cotas raciais e afirmação da negritude pelo corpo. “Eu compreendo a</p><p>questão fenotípica que já apareceu desde as ações afirmativas. Mas é também uma</p><p>questão de corporeidade. É uma questão de como o corpo é interpretado.”</p><p>Alex, você pode ser classificado como uma pessoa parda. Quando você se descobriu</p><p>negro e como se deu esse processo?</p><p>Esse tema sempre me acompanha, mas nunca escrevo nem falo muito a respeito. Nasci</p><p>em Fortaleza em 1964 e pertenço a uma família ou duas famílias inter-raciais,</p><p>interétnicas. Convivi muito mais com a família da minha mãe, que é uma mulher</p><p>branca. Mas ela tem irmãos que são pessoas reconhecidas como negras em qualquer</p><p>lugar deste país.</p><p>A família do meu pai quase não tem branco, eu não lembro, apesar do sobrenome que</p><p>eu herdo, Ratts, vir do meu pai. Não fui criado como negro, mas também não fui criado</p><p>como branco. Nos anos 1970, entrando para os 1980, época que coincide com os</p><p>movimentos pela democratização, com a abertura política do Brasil, esse tema passa a</p><p>ganhar mais força na minha família.</p><p>Conte mais como foi esse processo dentro da sua casa.</p><p>Nesse período de maior efervescência política, meu pai começou a falar muito da</p><p>ascendência indígena dele, que é bastante referenciada. Ele passou a narrar mais as</p><p>experiências com determinados lugares. Eu, no entanto, não fui nessa direção. Isso foi</p><p>no início da minha juventude, e fui me aproximando mais do movimento negro. Isso</p><p>aconteceu no Ceará, quando conheci os movimentos negros, no finalzinho da ditadura</p><p>militar. Entrei na faculdade com 18 anos, em 1982, no curso de arquitetura e</p><p>urbanismo. Eu já conhecia um pouco do movimento de mulheres, passei a conhecer</p><p>mais o movimento indígena, os movimentos negros e o movimento dito homossexual</p><p>naquele período. E fui atraído pelo movimento negro. Comecei a participar.</p><p>Como aconteceu essa participação?</p><p>Primeiramente nos eventos do Dia da Consciência Negra. Depois, comecei a fazer</p><p>trabalhos como ilustrador para o movimento negro. De forma que eu tinha essa voz</p><p>familiar do meu pai e do meu avô. Eram os homens negros indígenas. Eu não uso o</p><p>termo afro-indígena, tenho as minhas reservas, mas compreendo a importância. No</p><p>centro de Fortaleza, na rua, passavam o carnaval e a parada militar. Havia o maracatu,</p><p>e o maracatu do Ceará é muito peculiar. Mas minha mãe não deixava que eu fosse, pois</p><p>achava que era “coisa de macumbeiro”. Mas aquilo me atraía, me tocava, embora eu</p><p>não relacionasse aquilo com a coisa da negritude.</p><p>Mas quando você entrou na universidade, a realidade era diferente do seu ambiente</p><p>familiar, não era?</p><p>Exato. Minha atração pelos movimentos sociais não gerou em mim uma identificação</p><p>racial imediata. Mas, quando entrei na faculdade de arquitetura, um curso de bem-</p><p>nascidos, de brancos, a coisa era diferente. Então nos juntamos num grupo, das</p><p>pessoas não brancas. Acho que só tinha uma branca, que era estrangeira, e que</p><p>conviveu com a gente o curso inteiro. A gente não se identificava com aqueles colegas</p><p>do curso. As diferenças de classes eram mais perceptíveis para mim, de forma que não</p><p>me identifiquei com o movimento estudantil.</p><p>Mas, quando conheci o movimento negro e o movimento chamado de indigenista, eu</p><p>não tinha dúvida de que era ali que eu queria trabalhar. É uma coisa de sair dessa base</p><p>mais familiar para uma coisa mais política. Eu ainda não tinha nenhuma dimensão do</p><p>que poderia ser aquilo, da amplitude. Porque eu acredito que há uma dimensão</p><p>espacial das negritudes no Brasil.</p><p>Como foi entrar no movimento negro?</p><p>Quando resolvi entrar para o movimento, eu queria me ver naquilo. Eu queria ver as</p><p>fotos, eu queria me ver no material fotográfico da família. Tanto que o meu tornar-se</p><p>negro foi muito isso. Havia algo na formação familiar, esse choque na universidade.</p><p>Mas, no movimento negro, eu fazia ponta num grupo de dança e a gente foi se</p><p>apresentar. Era atividade de dança pela manhã, discussão política à tarde. E uma</p><p>militante do movimento negro do Ceará chegou para mim e disse: “E aí, negro branco,</p><p>o que você quer aqui? A gente não se vê em você”.</p><p>E qual foi a sua resposta?</p><p>Eu disse: “Você me chamou de negro branco, então, por uma metade eu vou ficar”. E</p><p>permaneci no movimento. No mundo da faculdade, fui me interessando em trabalhar</p><p>com a questão racial. Foi por conta de ter morado por alguns períodos na favela e</p><p>trabalhado na favela como arquiteto. Lá encontrei pessoas negras e famílias negras</p><p>muito gregárias. Elas vinham do interior, e ainda não se tinha a ideia de que aqueles</p><p>lugares eram quilombos.</p><p>Com essa experiência, passei a escrever para o movimento negro, pensando que</p><p>teríamos de trabalhar não só com a cor, mas também com raça, etnia e outras</p><p>dimensões. Isso foi nos anos 1990, quando pude me afirmar mais. Percebi que haveria</p><p>muitos caminhos para se pesquisar no Ceará. Era possível construir nosso próprio</p><p>caminho dentro das negritudes na relação Norte-Nordeste. Nós sabíamos que</p><p>tínhamos uma relação com a África.</p><p>Como foi a sua virada acadêmica para estudar essas questões?</p><p>Esse compromisso político me levou a aprofundar as questões étnicas e territoriais na</p><p>universidade. Fui para São Paulo fazer o mestrado. Na USP, a gente foi se juntando</p><p>novamente. No Ceará, eu já trabalhava com quilombos. Depois fui para o Maranhão,</p><p>onde fui tecendo amizades com o movimento negro de lá, e vez ou outra apareciam</p><p>questões sobre cor. Esse meu trajeto em diferentes contextos brasileiros me fez</p><p>perceber aos poucos os impactos dos lugares nas classificações. No Ceará, eles diziam</p><p>não haver índios. Quando comecei meu trabalho, diziam que naqueles lugares também</p><p>não havia negros.</p><p>Eu me lembro do trabalho em Conceição de Água Preta [comunidade localizada no</p><p>norte do Ceará]. Lá eu ouvia assim numa comunidade negra: “Eu tenho um neto da sua</p><p>cor”. Ou seja, para ela, eu poderia pertencer a um deles. Poderia ser diferente dos</p><p>nossos mais antigos, que se casavam entre si e tal, mas me parecia com os filhos ou</p><p>netos. Em São Paulo, eu era chamado de “larga tinta”, ou me chamavam de pouca tinta.</p><p>Até hoje, eu sei que há lugares em que eu não sou considerado negro. Mas, em várias</p><p>cidades do país, me sinto e sou percebido pelas comunidades e pelos movimentos</p><p>negros como negro.</p><p>E essa passagem junto às mulheres negras, junto ao feminismo negro?</p><p>Eu conhecia feministas negras no Nordeste. Em São Paulo, fui interpelado por Sueli</p><p>Carneiro. Ela me conheceu porque eu colaborava no projeto Geração 21, coordenado</p><p>por Cidinha da Silva. No projeto, tinha participado de palestras e discussões sobre</p><p>pessoas negras de pele clara. Um dia, a Sueli fala assim comigo: “Você é intelectual, não</p><p>é? E negro. Qual é o seu projeto? Aonde você quer chegar?”.</p><p>Ela foi assim direta?</p><p>Sim. Penso que isso foi meu ponto de inflexão. Eu já tinha uma militância que dava</p><p>uma sustentação para minha ação no movimento. Fui do comitê de cotas para negros</p><p>na USP, no qual havia uma discussão sobre o tema de raça e classe, com Fernando</p><p>Conceição, Kelly Adriano e demais colegas daquela geração. Então não teve mais jeito</p><p>para mim, era uma questão de afirmação política mesmo ser negro.</p><p>Você caminhou muito pelo país e conheceu diversas realidades sociais e raciais. Conte</p><p>um pouco sobre o Centro-Oeste, onde trabalhou como docente e pesquisador por anos,</p><p>tendo recebido também as primeiras gerações de estudantes cotistas nas</p><p>universidades federais.</p><p>Em Goiânia, eu já cheguei como uma referência acadêmica sobre a temática étnico-</p><p>racial no Brasil. Já tinha feito mestrado e doutorado, tinha uma longa estrada no</p><p>movimento negro. Via aquilo que chamei de movimento negro de base acadêmica.</p><p>Participava ativamente da ABPN [Associação Brasileira de Pesquisadores Negros] e do</p><p>Copene [Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as] desde 2000.</p><p>Eu tinha publicado numa coletânea junto com intelectuais negros. Aí comecei a rever</p><p>meu baú de imagens, acho que por causa dos meus tios que trabalhavam</p><p>em rádio. E</p><p>vejo meus tios, avô da bisavó, eu via aqueles rostos negros, negros indígenas. Então há</p><p>esses ancestrais. Na experiência de trabalho em Goiânia, na UFG, eu já trouxe comigo</p><p>um discurso sobre o território. Ninguém vai chegar à Bahia dizendo que lá não tem</p><p>mais negro. Cadê o indígena da Bahia? Então essa história negro-indígena é muito do</p><p>sertão do semiárido, tem muita conexão, muitos problemas, muitos indígenas foram</p><p>forçados. A documentação mostra isso, a perseguição de pessoas negras e quilombos.</p><p>Acho que isso talvez ainda precise ser visto numa perspectiva de conjunto. Porque a</p><p>gente tinha estudos de relações raciais muito para o urbano brasileiro e muito para</p><p>Rio, São Paulo e Salvador. O Ceará não entrava nesses estudos. No Maranhão, essa</p><p>questão entrava mais na parte da cultura negra e dos quilombos da região. Em Goiânia,</p><p>a visão era de que branco é branco, preto é preto, e o índio está longe. O indígena está</p><p>longe, ele não está ali perto de Goiânia. A comunidade mais próxima deve ficar a quase</p><p>trezentos quilômetros.</p><p>Como ocorreu a afirmação da sua negritude pelo corpo?</p><p>Foram muitos caminhos. Passa pelas roupas afro, por cortar ou não o cabelo, mas não</p><p>havia a necessidade de “vestir-se de negro”. Eu experimentei trançar, mas não era</p><p>aquilo. E nunca tive problemas em usar batas, criar um bloco afro no Ceará. E, claro,</p><p>havia os momentos de performance. Eu não me tornei negro numa saga pessoal, foi</p><p>tudo muito coletivo. E quando cheguei a São Paulo, ouvi de uma colega: “Você é</p><p>nordestino, mas se veste como nós”. Fiquei com aquilo na cabeça.</p><p>Cortei o cabelo quando fui fazer a seleção da USP. Não entendia que aquilo tinha a ver</p><p>com as portas, as passagens, e eu ainda não tinha lido bell hooks. Uma amiga do MNU</p><p>[Movimento Negro Unificado] me perguntou se eu raspava para não deixar o cabelo</p><p>ondulado aparecer; desde então, nunca mais raspei. Pus piercing no dia 19 de abril de</p><p>1994, porque queria demarcar a coisa com a perfuração, a memória indígena, sabe?</p><p>Isso foi negado a nós, indígenas do Ceará. Nas minhas tatuagens, coloco referências</p><p>africanas, indígenas.</p><p>Como você vê a questão do pardo no Brasil contemporâneo?</p><p>É preciso pensar de tempos em tempos nessas classificações. Hoje o uso do termo</p><p>pardo está bastante ligado às políticas públicas das ações afirmativas. No movimento</p><p>negro, a gente tinha de construir aquela ideia de que pessoas de vários tons de pele</p><p>estavam juntas. Não tinha esta coisa de ficar usando o termo pardo, embora estivesse</p><p>lá. E tem uma questão de cor neste país: pessoas de pele escura, mesmo com as ações</p><p>afirmativas, não têm as mesmas oportunidades. Na universidade onde eu trabalho,</p><p>pessoas de pele escura são as africanas e quilombolas. Até hoje, com 15 anos de ações</p><p>afirmativas e cotas. Por que, em maior parte, os mais escuros de vários grupos de que</p><p>participei não ascenderam? Não chegaram à universidade, não fizeram pós-</p><p>graduação? Esse racismo chamado de institucional, eu passo por ele e me incomodo. E</p><p>também é importante dizer que está cada vez mais flagrante que existe racismo contra</p><p>indígenas. E contra pessoas cuja corporeidade e cuja imagem as fazem ser percebidas</p><p>como indígenas.</p><p>Voltando ao pardo: não acredito em sujeito pardo. Não acredito que alguém tenha sido</p><p>criado assim: “Menino pardo, venha cá, pardinho aqui, pardinho acolá”. Acredito que</p><p>existam as marcações de cor, mas sempre entendidas também como marcações raciais</p><p>e espaciais. É uma questão de identificação para o Estado brasileiro, com termos que</p><p>são coloniais, mas que funcionam, que operam. Eu compreendo a questão fenotípica</p><p>que apareceu desde as ações afirmativas. Mas é também uma questão de</p><p>corporeidade. É uma questão de como o corpo é interpretado. Oracy Nogueira falava</p><p>em “preconceito de marca” e “preconceito de origem”.</p><p>Se conversássemos mais sobre corporeidade, conseguiríamos entender mais. Por</p><p>exemplo, eu vou fazer uma fala na geografia agrária, e nessa área não se usam raça e</p><p>cor para entender as pessoas que são mortas no campo. Eu vou mostrar fotografias de</p><p>pessoas que foram assassinadas, veja o caso da Mãe Bernadete [ialorixá, ativista e líder</p><p>quilombola baiana, assassinada com 12 tiros dentro de casa, em 2023]. Isso é</p><p>corporeidade negra. Só mais uma coisinha em termos de referências: eu passei a olhar</p><p>muito para negros claros como Eduardo de Oliveira e Oliveira, Clóvis Moura, e ver</p><p>como eles construíram a incansável negritude deles. Poucos meses depois que Clóvis</p><p>Moura morreu, saiu na Folha de S.Paulo algo assim: “Clóvis Moura, que optou por ser</p><p>negro”. Pensei: “Um dia vão falar isso se mim”.</p><p>Você acha que todo pardo é negro no Brasil?</p><p>Não, porque existe a questão indígena. Há pardos que são indígenas. E indígenas dos</p><p>quais, muitas vezes, foi suprimida a relação com a comunidade étnica, em área urbana.</p><p>Então, não acho que todo pardo seja negro; agora, quase todos os pardos não são</p><p>brancos. Existem os que se afirmam e que são vistos como pardos.</p><p>Daniela Vieira é doutora em sociologia pela Unicamp. Pesquisadora colaboradora do</p><p>Cemi/Unicamp, onde coordena a linha de pesquisa Hip-Hop em Trânsito.</p><p>Coorganizadora de Racionais, entre o gatilho e a tempestade (Perspectiva, 2023).</p><p>Colorismo: da origem ao debate</p><p>contemporâneo nos Estados Unidos e no</p><p>Brasil</p><p>Edição do mês</p><p>1. Edilza Sotero e Gladys Mitchell-Walthour disse:</p><p>25 de junho de 2024</p><p>Gráfico preparado por W. E. B. Du Bois para a Exposição do Negro na Seção Americana da Exposição Universal de</p><p>Paris em 1900. Na publicação já aparece a frase que faria parte do livro As almas do povo negro publicado três</p><p>anos depois: “A questão do século 20 é o problema da linha de cor” (Library Of Congress)</p><p>“A menos que a questão do colorismo – em minha definição, tratamento</p><p>preconceituoso ou preferencial de pessoas da mesma raça baseado exclusivamente na</p><p>cor – seja abordada em nossas comunidades e definitivamente em nossas ‘irmandades’</p><p>negras, não podemos, como povo, progredir. Pois o colorismo, assim como o</p><p>colonialismo, o sexismo e o racismo, nos impede.”</p><p>Alice Walker, Em busca dos jardins de nossas mães (2021)</p><p>A formulação do conceito de colorismo, como usado contemporaneamente, é atribuída</p><p>à escritora estadunidense Alice Walker, em seu livro Em busca dos jardins de nossas</p><p>mães: Prosa mulherista, publicado em língua inglesa há pouco mais de 40 anos. Para a</p><p>autora, colorismo se refere à noção de que a cor da pele de uma pessoa é um indicativo</p><p>de seu valor social, seja estético, seja intelectual, seja de outra natureza. Seguindo essa</p><p>noção, aqueles com pele mais clara tendem a ser vistos como superiores aos de pele</p><p>mais escura, mesmo pertencendo ao mesmo grupo racial.</p><p>Analisando a história dos Estados Unidos e do Brasil, percebemos que práticas sociais</p><p>de discriminação com base na cor da pele existiam muito antes de o termo “colorismo”</p><p>ser cunhado. O sociólogo W. E. B. Du Bois (1868-1963) elaborou um conceito próximo</p><p>ao que hoje chamamos de colorismo, denominando-o “linha de cor”. Em seu célebre</p><p>livro As almas do povo negro, lançado em 1903, Du Bois afirma: “A questão do século</p><p>20 é o problema da linha de cor – em relação às raças de homens mais escuros e mais</p><p>claros na Ásia, na África, na América e nas ilhas dos mares”. Para Du Bois, a linha de</p><p>cor representava uma manifestação do racismo na sociedade.</p><p>A produção contemporânea sobre colorismo se concentra principalmente no</p><p>preconceito e nas vantagens produzidas dentro de grupos raciais. Ainda assim, a frase</p><p>de Du Bois parece ter ares de profecia, nos desafiando desde a virada do século</p><p>passado.</p><p>Se a linha de cor foi a questão do século 20, será o colorismo a questão do século 21</p><p>(ou pelo menos deste primeiro quartil de século)?</p><p>O debate sobre o colorismo no Brasil está em ascensão, com o termo sendo</p><p>amplamente utilizado nos meios de comunicação e nas mídias sociais, em especial em</p><p>discussões sobre a identidade dos pardos. Uma busca no YouTube, por exemplo, revela</p><p>uma</p><p>intensa produção de conteúdo sobre o assunto nos últimos anos, com vídeos</p><p>alcançando centenas de milhares de visualizações. Recentemente, também vem se</p><p>destacando no Brasil uma movimentação que afirma os pardos como um grupo</p><p>distinto de negros e brancos. Essa discussão não é nova e remonta à ideia de</p><p>democracia racial, em que o elogio à mestiçagem aparecia como um elemento da</p><p>originalidade brasileira e, para muitos, como prova da inexistência de racismo no país.</p><p>Na produção acadêmica, o discurso sobre a especificidade dos pardos também tem</p><p>uma longa tradição, exemplificado pela noção de Carl Degler em seu livro Nem preto</p><p>nem branco (1976), no qual ele introduz a ideia de “válvula de escape do mulato”. Essa</p><p>teoria sugere que os mestiços atuariam como um grupo intermediário entre negros e</p><p>brancos, servindo como um tampão e não sendo alvo de discriminação da mesma</p><p>forma que as pessoas de pele mais escura.</p><p>Nos Estados Unidos, a história revela que a regra de “uma gota de sangue” funcionava</p><p>como princípio social e jurídico, juntamente com uma segregação sistemática que</p><p>impedia pessoas negras de acessar espaços públicos, independentemente da cor da</p><p>pele ou da ascendência. Essa história perpetuou a ideia da comunidade negra como</p><p>uma entidade monolítica, mesmo com a presença contínua do colorismo.</p><p>A regra de “uma gota de sangue” significava que qualquer pessoa com ascendência</p><p>africana, por menor que fosse, era considerada negra. No entanto, essa regra não</p><p>descreve com precisão as relações raciais históricas, nem reflete a maneira como as</p><p>dinâmicas sociais relacionadas à cor da pele realmente operaram e continuam a</p><p>operar nos Estados Unidos.</p><p>Para compreender outras narrativas, é importante notar que, em diferentes momentos</p><p>da História, pessoas de origem afrodescendente nos Estados Unidos conseguiram se</p><p>passar por brancas. A historiadora Allyson Hobbs, em seu livro A Chosen Exile: A</p><p>History of Racial Passing in American Life [Um exílio escolhido: Uma história de</p><p>passagem racial na vida americana], publicado em 2016, discute trajetórias de</p><p>afrodescendentes que alteraram suas identidades raciais, demonstrando que a raça</p><p>nunca foi um elemento tão imutável quanto frequentemente se imagina.</p><p>Além disso, nem sempre houve uma divisão exclusivamente dicotômica entre negros e</p><p>brancos nos Estados Unidos. Por exemplo, nos censos demográficos anteriores a 1920,</p><p>a categoria “mulato” era utilizada para reconhecer pessoas com ascendência mestiça.</p><p>A cor da pele tem relevância econômica, política e social tanto nos Estados Unidos</p><p>quanto no Brasil. Pesquisas sobre os Estados Unidos, no contexto de escravidão e pós-</p><p>escravidão, demonstram que a identidade mestiça estava associada a mais</p><p>oportunidades de liberdade, emprego e mobilidade ascendente, em especial através do</p><p>casamento. Em termos históricos, a cor da pele desempenhou um papel relevante na</p><p>escolha de parceiros matrimoniais, com mulheres negras de pele mais clara tendo</p><p>mais chances de se casar do que mulheres negras de pele mais escura. Além disso,</p><p>estudos mostram que a cor da pele influencia significativamente no acesso à</p><p>escolarização, à renda e a status ocupacional, com aqueles de pele mais clara tendo</p><p>mais vantagens em relação aos de pele mais escura.</p><p>No Brasil, estudos sobre desigualdades raciais demonstram há décadas que a cor da</p><p>pele é um preditor eficaz de diferenças educacionais, de renda e de status ocupacional.</p><p>Na dinâmica racial do país, pessoas com pele mais escura são mais propensas a ocupar</p><p>posições menos prestigiadas. Nesse sentido, a dinâmica social no Brasil se assemelha à</p><p>dos Estados Unidos, onde a cor da pele desempenha um papel importante nos</p><p>resultados de vida. Além das diferenças materiais, também existem diferenças na</p><p>percepção do racismo: pessoas de pele mais escura são mais propensas a admitir que</p><p>enfrentaram discriminação baseada na cor.</p><p>O que torna a comparação entre os dois países mais desafiadora não é apenas o uso de</p><p>categorias semelhantes em contextos distintos, mas também os diferentes</p><p>comportamentos em relação a dilemas similares. Historicamente, nos Estados Unidos,</p><p>pessoas mestiças eram, muitas vezes, vistas por outros negros como parte da</p><p>comunidade negra. No Brasil, entretanto, pessoas racialmente miscigenadas nem</p><p>sempre foram reconhecidas como negras pela população em geral. No entanto, vale</p><p>salientar que uma atuação histórica dos ativistas negros no Brasil tem sido a</p><p>conscientização para que as pessoas se identifiquem racialmente como negras. Um</p><p>exemplo disso foi a campanha “Não deixe a sua cor passar em branco – Responda com</p><p>bom C/Senso”, lançada pelo movimento negro brasileiro em 1991. Esse esforço visava</p><p>ampliar a percepção social sobre negritude, incluindo também pessoas miscigenadas</p><p>como parte do grupo racial negro.</p><p>Recentemente, o debate sobre colorismo vem ganhando novas roupagens nos Estados</p><p>Unidos e no Brasil, animando discussões sobre como a cor da pele pode explicar</p><p>variações nas dinâmicas familiares, diferenças salariais e até práticas de</p><p>relacionamento e matrimônio. Por exemplo, estudiosos descobriram que, embora nos</p><p>Estados Unidos os negros muitas vezes sejam vistos de maneira monolítica, a cor da</p><p>pele influencia a vulnerabilidade em situações de violência, o tratamento recebido em</p><p>sentenças judiciais e indicadores como a nupcialidade.</p><p>Da mesma forma, no Brasil, o debate sobre relacionamentos inter-raciais e</p><p>seletividade de cor nas escolhas conjugais está em alta, ainda que esse não seja um</p><p>assunto tão recente no campo das pesquisas. A demógrafa Elza Berquó, expoente em</p><p>pesquisas sobre nupcialidade, demonstrou desde os anos 1980 que, apesar de uma</p><p>tendência à endogamia por cor no Brasil, pessoas pardas têm taxas de casamento mais</p><p>altas do que as pretas. Ademais, o celibato é mais comum entre pessoas que se</p><p>declaram pretas, sobretudo mulheres.</p><p>As diferenças nas chances de vida e nas experiências sociais entre pretos e pardos</p><p>influenciam de forma significativa suas percepções políticas e comportamentos</p><p>eleitorais tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos. Embora esses grupos muitas</p><p>vezes apresentem opiniões políticas variadas, há uma coesão maior no apoio a</p><p>políticas de combate ao racismo e de ações afirmativas. Nos Estados Unidos, o voto</p><p>racial é um fenômeno mais visível, enquanto no Brasil, embora menos relevante em</p><p>larga escala, pesquisas indicam diferenças no comportamento político com base na</p><p>identidade racial, como demonstrado no trabalho de Gladys Mitchell-Walthour. No</p><p>artigo “Politicizing Blackness: Black and Brown Brazilian Color Identification and</p><p>Candidate Preference”, publicado em 2010, a autora demonstra que pessoas que se</p><p>identificam como pretas têm maior propensão a votar em políticos negros.</p><p>Análises acadêmicas ressaltam como a cor da pele molda profundamente as</p><p>experiências dos afrodescendentes. Aqueles com pele mais escura enfrentam maior</p><p>discriminação no mercado de trabalho, resultando em rendas mais baixas e barreiras</p><p>educacionais que se traduzem em menores taxas de conclusão escolar. Exemplos dos</p><p>Estados Unidos mostram que meninas negras de pele mais escura são mais propensas</p><p>a receber suspensão escolar do que as colegas de pele mais clara.</p><p>As diferenças entre pretos e pardos revelam a importância de abordar a experiência</p><p>das pessoas negras em sua totalidade, reconhecendo como a cor da pele afeta suas</p><p>vidas. Compreender essas nuances é crucial para entender melhor as dinâmicas de</p><p>desigualdade e discriminação enfrentadas, e para buscar formas de superá-las.</p><p>Embora seja fundamental reconhecer as diferentes formas como a cor da pele impacta</p><p>a vida das pessoas e o papel de cada sociedade na produção e na reprodução de</p><p>desigualdades com base nas percepções dessas diferenças, o foco deve permanecer no</p><p>desmantelamento da supremacia branca e na promoção da unidade entre os</p><p>afrodescendentes, independentemente da cor da pele.</p><p>Perspectivas como a pan-africanista podem ajudar a garantir</p>

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