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ÉTICA CRISTÃ Moisés Sanches 1ª Edição, 2021 Fundado em 1915 — www.unasp.br Missão Educar no contexto dos valores bíblicos para um viver pleno e para a excelência no serviço a Deus e à humanidade. Visão Ser uma instituição educacional reconhecida pela excelência nos serviços prestados, pelos seus elevados padrões éticos e pela qualidade pessoal e profissional de seus egressos. Administração da Entidade Mantenedora (IAE) Diretor-Presidente: Maurício Lima Diretor Administrativo: Edson Medeiros Diretor-Secretário: Emmanuel Oliveira Guimarães Diretor Depto. de Educação: Ivan Góes Administração Geral do Unasp Reitor: Martin Kuhn Vice-Reitor Executivo Campus EC: Antônio Marcos da Silva Alves Vice-Reitor Executivo Campus HT: Afonso Ligório Cardoso Vice-Reitor Executivo Campus SP: Douglas Jeferson Menslin Pró-Reitor Administrativo: Telson Bombassaro Vargas Pró-Reitor Acadêmico: Afonso Ligório Cardoso Pró-Reitor de Educação à Distância: Fabiano Leichsenring Silva Pró-Reitor de Pesquisa e Desenvolvimento Institucional: Allan Macedo de Novaes Pró-Reitor de Desenvolvimento Espiritual, Comunitário e Estudantil: Martin Kuhn Secretário-Geral: Marcelo Franca Alves Faculdade Adventista de Teologia Diretor: Reinaldo Wenceslau Siqueira Coordenador de Pós-Graduação: Vanderlei Dorneles da Silva Coordenador de Graduação: Adriani Milli Rodrigues Órgãos Executivos Campus Engenheiro Coelho Pró-Reitor Administrativo Associado: Murilo Marques Bezerra Pró-Reitor Acadêmico Associado: Everson Muckenberger Pró-Reitor de Desenvolvimento Estudantil Associado: Bruno de Moura Fortes Pró-Reitor de Desenvolvimento Espiritual e Comunitário Associado: Ebenézer do Vale Oliveira Órgãos Executivos Campus Hortolândia Pró-Reitor Administrativo Associado: Claudio Valdir Knoener Pró-Reitora Acadêmica Associada: Suzete Araújo Águas Maia Pró-Reitor de Desenvolvimento Estudantil Associado: Daniel Fioramonte Costa Pró-Reitor de Desenvolvimento Espiritual e Comunitário Associado: Wanderson Paiva Órgãos Executivos Campus São Paulo Pró-Reitor Administrativo Associado: Flavio Knöner Pró-Reitora Acadêmica Associada: Silvia Cristina de Oliveira Quadros Pró-Reitor de Desenvolvimento Estudantil Associado: Ricardo Bertazzo Pró-Reitor de Desenvolvimento Espiritual e Comunitário Associado: Robson Aleixo de Souza Editor-chefe Rodrigo Follis Gerente de projetos Bruno Sales Ferreira Editor associado Alysson Huf Supervisor administrativo Werter Gouveia Gerente de vendas Francileide Santos Editores Adriane Ferrari, Gabriel Pilon Galvani, Jônathas Sant’Ana e Thamires Mattos Designers gráficos Felipe Rocha e Kenny Zukowski Imprensa Universitária Adventista 1ª Edição, 2021 ÉTICA CRISTÃ Imprensa Universitária Adventista Engenheiro Coelho, SP Moisés Sanches Campagnoni, Mariana / dos Santos, Diego Henrique Moreira Formação da identidade profissional do contador [livro eletrônico] / Mariana Campagnoni. -- 1. ed. -- Engenheiro Coelho, SP : Unaspress, 2020. 1 Mb ; PDF ISBN 978-85-8463-172-8 1. Carreira profissional 2. Contabilidade 3. Contabilidade como profissão 4. Contabilidade como profissão - Leis e legislação 5. Formação profissional 6. Negócios I. Título. 20-33026 CDD-370.113 Dados Internacionais da Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Índices para catálogo sistemático: 1. Contabilidade : Educação profissional 370.113 Maria Alice Ferreira - Bibliotecária - CRB-8/7964 Ética cristã 1ª edição – 2021 e-book (pdf) OP 00123_067 Editoração: Gabriel Pilon Preparação: Matheus Cardoso Revisão: Giovanna Sinco, Júlia Galvani Projeto gráfico: Ana Paula Pirani Capa: Jonathas Sant’Ana Diagramação: Enny Weber Caixa Postal 88 – Reitoria Unasp Engenheiro Coelho, SP CEP 13448-900 Tel.: (19) 3858-5171 / 3858-5172 www.unaspress.com.br Imprensa Universitária Adventista Validação editorial científica ad hoc: Hermenérico Moraes Doutor em Educação pela Universidade Metodista de Piraci- caba, SP, com ênfase no ensino da Contabilidade Conselho editorial e artístico: Dr. Martin Kuhn, Esp. Telson Vargas, Me. Antônio Marcos, Dr. Afonso Cardoso, Dr. Douglas Menslin, Dr. Rodrigo Follis, Dr. Lélio Lellis, Dr. Allan Novaes, Esp. Jael Enéas, Esp. José Júnior, Dr. Reinaldo Siqueira, Dr. Fábio Alfieri, Dra. Gildene Lopes, Me. Edilson Valiante, Me. Diogo Cavalcante, Dr. Adolfo Suárez Editora associada: Todos os direitos reservados à Unaspress - Imprensa Universitária Adventista. Proibida a reprodução por quaisquer meios, sem prévia autorização escrita da editora, salvo em breves citações, com indicação da fonte. SUMÁRIO FUNDAMENTOS DA ÉTICA ...................................... 13 Introdução ........................................................................................14 O que é ética? ...................................................................................16 Ética .........................................................................................18 Moral .......................................................................................20 Autoridade ..............................................................................25 Valores .....................................................................................31 Leis...........................................................................................34 Como nos tornamos seres éticos? ...................................................36 Desenvolvimento moral por Lawrence Kholberg ...................37 Nosso cérebro, nosso guia .......................................................43 Como saber o que devo fazer? ................................................50 VO CÊ ES TÁ A QU I Considerações finais.........................................................................69 Referências .......................................................................................72 O CRISTIANISMO E A ÉTICA ................................... 79 Introdução ........................................................................................80 A Bíblia é um livro de ética? ............................................................81 Os 10 mandamentos ...............................................................87 Literatura de sabedoria ....................................................................93 Ética dos profetas .............................................................................97 O que é ética cristã? ........................................................................101 Sermão do monte ..................................................................105 Amor ......................................................................................109 Justiça .....................................................................................112 Liberdade ...............................................................................116 Quais as ênfases da ética cristã? .....................................................119 Agostinho de Hipona .............................................................120 Tomás de Aquino ...................................................................125 Lei natural...............................................................................128 Teoria do comando divino .....................................................131 Considerações finais........................................................................134 Referências ......................................................................................136 PARA OTIMIZAR A IMPRESSÃO DESTE ARQUIVO, CONFIGURE A IMPRESSORA PARA DUAS PÁGINAS POR FOLHA. EMENTA Estudo da ética cristã à luz da perspectiva bíblica e sua relevância para a humanidade no contexto multicultural contemporâneo. CONHEÇA O CONTEÚDO Você alguma vez já se perguntou sobre qual seria a melhor decisão a tomar? Já ficouem dúvidas sobre o que seria o certo em dada situação? Já se perguntou se o cristianismo ou a Bíblia poderiam te ajudar a encontrar uma resposta para um dilema pessoal? Pois se você já se fez alguma destas perguntas, essa disciplina foi preparada para você. Nós iremos fazer uma jornada pelo mun- do da Ética, aprendendo desde conceitos básicos até teorias que ajudaram já muitas pessoas a encontrarem respostas para seus questionamentos morais. Além disto, faremos esse estudo na perspec- tiva cristã, ou seja, temos o desafio não só de conhecermos um pouco da ética e de alguns temas relevantes, como relacionar esse estu- do com as contribuições que o cristianismo já ofereceu para este debate. Espero que você possa perceber o quão útil e importante será o tempo gasto nesta inte- ração e que este conteúdo possa realmente te ajudar, quer seja nas suas relações pessoais ou profissionais. UNIDADE 1 OB JE TI VO S FUNDAMENTOS DA ÉTICA - Compreender os conceitos básicos de ética; - Aplicar modelos éticos no contexto de problemas morais básicos; - Reconhecer a responsabilidade ética para com a sociedade como indivíduo e profissional. 14 ÉTICA CRISTÃ INTRODUÇÃO Ben Carson, neurocirurgião, escritor e político americano, em entrevista à ABC NEWS, declarou que “não há dúvida de que, à medida que a ciência, o conhecimento e a tecnologia avançam, tentaremos fazer coisas mais significativas. E não há dúvida de que sempre teremos que moderar essas coisas com a ética” (ABC NEWS, 2006). No texto acima, lemos uma menção à ética e sua relevância feita por um homem que alcançou notoriedade pelo seu trabalho como médico em cirurgias pioneiras, por sua história de superação de vida e pelo reconhecimento e condecoração recebidos no campo da política dos EUA. Como ele afirma, a ética é uma questão de suma importância para o indivíduo do século XXI, afinal, se trata de uma questão necessária uma vez que a sociedade, por meio de todas as suas camadas, clama por um mundo mais ético. Para alguns estudiosos da área é senso comum a necessidade de que tenhamos relações mais éticas entre as pessoas. Para outros, esse conhecimento pode parecer teórico e de pouco proveito, quando não complexo e tedioso. Gostaria de que repensássemos essa ideia. 15 FUNDAMENTOS DA ÉTICA A ética está presente em muitas situações de nosso cotidiano; quando acordamos e decidimos o que iremos comer, se seremos pontuais, por onde navegaremos na internet e assim por diante, mas é claro que ética não é só isso. Ela se estende por temas menos corriqueiros e mais reflexivos, como quando queremos descobrir o que devemos fazer como cidadãos, profissionais e mesmo como pessoas religiosas. E pode sim, se aprofundar na análise de conceitos mais profundos como liberdade, justiça, amor, igualdade etc. Nossa investigação propõe que nos aproximemos da ética por um viés particular; por meio do cristianismo. Isso é, refletir no modo como Cristo e seus seguidores se questionaram sobre o que é certo e errado, e na busca por alguma estratégia bíblica para descobrirmos como devemos agir. Dessa forma, à luz da perspectiva apresentada, gostaria de convidá-lo(a) a explorarmos os caminhos e possibilidades deste campo do conhecimento por meio de três questionamentos: • O que é ética? • Como nos tornamos seres éticos? • Como saber o que devo fazer? Bem-vindo à ética! 16 ÉTICA CRISTÃ O QUE É ÉTICA? A Ética é um tema que ganha cada vez mais importância à medida que os indivíduos sentem a sociedade cada vez menos ética. Em dezembro de 2018, Tim Cook, CEO da Apple, foi premiado pela Liga Antidifamação (ADL), uma organização não governamental, por combater discursos de ódio por intermédio de sua plataforma iTunes. No evento em que recebeu o prêmio Coragem contra o ódio, ele fez um discurso contra a supremacia branca e teorias conspiratórias. Relembrou também as dificuldades que o Facebook passou relacionadas à privacidade dos dados de seus clientes e declarou “se não podemos ser claros quanto a questões morais como essas, temos grandes problemas. Na Apple, não temos medo de dizer que nossos valores conduzem nossas decisões cuidadosamente”, e continuou, “acredito que a coisa mais sagrada que cada um de nós recebe, é nosso poder de julgar, nossa moralidade, nosso desejo inato de separar o certo do errado” e em dado momento afirmou, “temos apenas uma mensagem para aqueles que procuram empurrar o ódio, a divisão e a violência: vocês não têm lugar em nossas plataformas” (ADL, 2018). O discurso do executivo é muito interessante por várias razões, mas gostaria de destacar somente o valor que ele dá 17 FUNDAMENTOS DA ÉTICA à moralidade, não só como “o que há de mais sagrado no ser humano”, mas também como um valor que ele quer que seja vivido em sua empresa. Claro, Tim Cook não é o único no século XXI que, diante dos graves problemas éticos de nossa sociedade, apresenta a moralidade como algo mais que teórico, algo que deve permear as relações sociais e comerciais. Mesmo em locais onde no passado havia uma fama moral negativa como Hollywood, hoje há mobilizações exigindo um comportamento ético de seus integrantes, como o que foi visto em 2017 no movimento desencadeado pela hashtag #metoo (eu também). Várias atrizes e empregados da indústria cinematográfica vieram a público para fazer denúncias de abusos sexuais cometidos por figuras importantes do setor, gerando escândalos envolvendo personalidades como o produtor Harvey Weinstein e o ator Kevin Spacey (VARY, 2020). Há uma luta pois, se por um lado temos algumas vozes clamando por um nível moral mais elevado, por outro, o cenário mundial parece repleto de ações e modelos antiéticos criando em alguns um senso de descaso e desânimo. É preciso lembrar que diante desse cenário, há aqueles que deliberadamente se opõe à vida ética, preferem viver sem se preocupar como o certo e o errado, assim como os 18 ÉTICA CRISTÃ que desconhecem os meios para tomar boas decisões e até mesmo os que desconhecem essa possibilidade. Por isso, é importante perceber na ética um campo de aprendizado, pois não viemos à vida com instruções de como vivê-la bem, nem de como nos comportarmos em nosso meio. Além disso, precisamos reconhecer que nem todas as pessoas que falam sobre ética sabem de fato o que ela significa ou como utilizá-la, todos precisam se desenvolver nessa área. Em função disso, comecemos nossa investigação a partir dos elementos mais básicos da ética. Tratemos de 5 conceitos principais: ética, moral, autoridade, valores e lei. ÉTICA Desde sua origem, esse termo já apresentava um problema, pois no grego temos duas palavras com grafias diferentes e a mesma pronúncia, ethos (hqoz e eqoz), que são apontadas como tendo gerado a palavra ética. A primeira (hqoz) tem o sentido de morada, abrigo, lugar costumeiro, caráter ou índole (BEEKES, 2010, p. 511). A princípio, essa palavra era utilizada para se referir a um local de proteção, como uma casa onde o ser humano podia ser acolhido e ser ele mesmo, se mostrar como realmente era (FIGUEIREDO; GUILHEM, 2008, p. 31). Ainda no 4º século a. C, essa mesma palavra já apresentava 19 FUNDAMENTOS DA ÉTICA a ideia de traços comportamentais, mais próxima do sentido de caráter. Já a segunda palavra (eqoz) carrega o sentido de hábitos, uso, costumes e tradições, aqui mais no âmbito social (BEEKES, 2010, p. 378). Dessa forma, temos, grosso modo, os seguintes sentidos, ética como caráter e ética como hábitos (LIDDELL; SCOTT, 1996, p. 480 e 766; NULLENS; MICHENER, 2010, p. 8). A relação dos significados é próxima e faz eco ao entendimento que temos do termo hoje. Uma vez que por meio da etimologia podemos entender ética dessas duas maneiras, como área de estudo, o conceito de ética pode ser definido de várias formas. Uma maneira de o definirmos é como a “ciência da conduta” (ABBAGNANO, 2003, p. 380) ou o “estudo filosófico da moralidade” (DEIGH, 2010,p. 7). Há ainda conceituações mais elaboradas como a que diz ser a ética uma “reflexão crítica sobre os costumes [..., o] pensamento metódico sobre a moralidade” (NULLENS; MICHENER, 2010, p. 9) ou a teoria “do comportamento moral dos homens em sociedade” (VAZQUEZ, 2013, p. 23). Observando essas definições, pode-se perceber que a recorrente menção à moral torna os dois conceitos próximos; o que é de fato. Por isso, para explicarmos um, precisamos apresentar o outro. Antes disso, percebamos também que a ideia de ética permanece mais no âmbito teórico, do estudo, do pensamento 20 ÉTICA CRISTÃ metódico etc. Sintetizando, podemos identificar a ética como a reflexão sobre a moral, ou seja, a ética tem como objeto de estudo a moral (VAZQUEZ, 2013, p. 24). Para entendermos melhor essa ideia passemos para o segundo conceito. MORAL Como vimos no tópico anterior, a ética pensa e reflete sobre a moral, e etimologicamente, a palavra moral procede da expressão latina mos ou mores que significa costume ou uso e tem o mesmo significado de ethos (eqoz) no grego. Essa aproximação fez com que historicamente os termos fossem usados com o mesmo sentido (MAUTNER, 2011, p. 509). Isso, porém, tem mudado, sobretudo a partir da segunda metade do século XX, quando surgiu uma tendência de distinguir os conceitos das duas palavras (BUNNIN; YU, 2004, p. 229). Desse modo, a moral, quando diferenciada da ética, costuma ser entendida como a parte prática. Temos moral como um “conjunto de normas ou regras adquiridas por hábito” (VAZQUEZ, 2013, p. 24), ou “parte da filosofia que trata dos atos humanos, bons costumes e deveres dos homens” (REIFLER, 1992, p. 17). Como é possível perceber a partir das definições acima, moral aproxima-se mais da ideia de conduta, ou das ações 21 FUNDAMENTOS DA ÉTICA que são geradas a partir da ética e sua reflexão. Então temos ética como o refletir sobre o certo e o errado e a moral como as normas do bom comportamento. Ao pensar em estruturar ou organizar essas ideias, podemos concluir que o indivíduo que reflete sobre como deve agir, faz ética, e guiará sua vida em direção a uma boa conduta, uma vida moral. Dessa forma, podemos relacionar os dois termos de forma que uma boa ética gera uma boa moral e uma má ética gera uma má moralidade. Mas nem sempre é assim. Vamos pensar um pouco sobre a diferença entre estes dois termos. É possível que haja uma ética sem moral ou uma moral sem ética? Vejamos um caso. Em 2013, Edward Snowden, um funcionário público de empresas de inteligência americana como a CIA e NSA (Agências de segurança nacional) expôs ao mundo, mediante entrevistas aos jornais americanos The Guardian e The Washington Post, o sistema de vigilância massivo que os EUA usam para espionar sem autorização todo o planeta. Esse ato de divulgar ao público informações confidenciais, as quais ele não estava autorizado a fazer, provocou reações do governo americano o acusando de traidor do país, o que o mantém em asilo político em outro país. Analisemos essa situação à luz dos conceitos aprendidos, se entendemos que moral é o conjunto de regras que um indivíduo 22 ÉTICA CRISTÃ deve seguir, ele quebrou essas regras ao revelar os segredos do governo americano, ou seja, ele cometeu um ato contra a moral americana. Como funcionário público deveria guardar essas informações em segredo, assim deveria ser seu comportamento. É incorreto divulgar informações confidenciais do seu país, isso é errado e ponto. Contudo, também não é correto os EUA espionarem o mundo sem autorização, e o ato de Snowden, apesar de moralmente incorreto, se justifica, ao menos para ele, por ser mal menor (O’NEILL, 2013). Desse modo, para ele, apesar do ato (denunciar o governo) não ser moral, é ético, pois uma regra foi quebrada para um bem maior; manter o direito de privacidade das pessoas. Em outras palavras, uma boa ética pode gerar um ato imoral. Situações como essa podem ser encontradas até na Bíblia. No livro de Daniel, por exemplo, temos a história de três jovens que deliberadamente agiram contra as normas estabelecidas, cometendo então, um ato contra a moral. No terceiro capítulo do livro de Daniel, lemos que Sadraque, Mesaque e Abedenego, jovens judeus, participaram de uma festividade real na Babilônia e foi exigido deles, juntamente com o restante dos oficiais do reino, que a um sinal combinado se curvassem e adorassem a estátua do rei. Esses 23 FUNDAMENTOS DA ÉTICA três jovens, por seus princípios religiosos, não concordaram com isso, e refletiram que agir assim seria errado, pelo menos de acordo com seus valores. O sinal sonoro foi tocado e eles não se curvaram, o rei furioso ordenou que fossem punidos com a morte, sendo lançados numa fornalha em brasa. Observe, o costume e as normas do local determinavam que eles se curvassem, porém, eles foram contra a moral local, pelo fato de entenderem que manter seus princípios de adoração a Deus, seria uma ação moralmente superior à homenagem ao rei e sua estátua. Podemos perceber mais uma vez que nem sempre uma reflexão ética coerente pode levar a um ato moral correto. Vejamos outro caso. Em 1997, uma reportagem do The New York Times apresentou uma estratégia para diminuir as “colas” na Universidade de Maryland. Meryle Freiberg, a presidente do Conselho de honra dos estudantes, tinha uma situação singular: o número crescente de alunos reprovados nas disciplinas por “desonestidade acadêmica”, uma margem de 100 por ano. Para tentar reverter a situação, ela teve a ideia de convidar os alunos a assinar uma declaração de honestidade, se comprometendo a não entregar trabalhos copiados da internet nem “colar” nas provas. Os que assim fizessem voluntariamente, receberiam um cupom de descontos de 10% a 25% no comércio local (HERRING, 1997). 24 ÉTICA CRISTÃ Acredito que todos podemos concordar com a ideia de que a honestidade é um comportamento moral que todos devemos seguir e que se todos formos honestos teremos uma sociedade melhor, mas o quanto a motivação que nos faz tomarmos certas atitudes contam em nossas ações? Não podemos saber o que se passou na mente dos alunos que assinaram a declaração e receberam os cupons, mas se sua honestidade se baseou somente no desejo de receber os cupons, parece que não houve muita ética na situação. Com isso, podemos perceber uma reflexão pobre sobre o que é certo e errado e que mesmo assim reproduziu um comportamento moral correto. Um detalhe curioso sobre o caso é que se qualquer um dos alunos que assinou a declaração fosse pego em alguma “desonestidade acadêmica” naquele semestre, precisaria devolver todos os descontos à Universidade. No Novo Testamento, no livro de Mateus, há uma afirmação dura de Cristo a um grupo de religiosos que mantinham um bom comportamento, uma moralidade exterior elogiável, mas em seus pensamentos e reflexões eram condenáveis. Jesus disse que essas pessoas eram como sepulcros caiados, ou sepulturas pintadas, por fora limpas e belas, mas escondiam dentro de si “ossos de mortos e toda imundície” (Mt 23:27, NVI). Uma imagem forte para descrever uma boa moral sem boa ética. 25 FUNDAMENTOS DA ÉTICA Em suma, até agora vimos que a ética é a reflexão sobre o que é bom e correto, e a moral o comportamento ou conduta adequados. Identificamos também que nem sempre esses dois conceitos, apesar de próximos, se relacionam de forma harmônica. No geral, ser ético produzirá uma moral positiva e não ser ético uma moral negativa. No entanto, pode acontecer de uma ética positiva gerar uma ação contra a moral, e uma ética negativa, uma moral acertada. Passemos para os próximos conceitos. AUTORIDADE Um outro conceito muito importante para organizarmos a nossa estrutura ética é o de autoridade. Essa palavra deve ser entendida aqui na sua definição fundamental, de base. Ela se liga à ética, pois quando buscamos saber o que é certo e errado, a resposta precisa ser justificável e real (verdadeira),precisa de uma base, um parâmetro. Há algumas teorias que classificam quais seriam as fontes de autoridade moral (SMITH, 1962, p. 447; JENSEN, 1997, p. 331), mas de forma geral podemos agrupá-las em três possibilidades. Podemos basear a ética na autoridade individual (1), ou seja, a própria pessoa é quem determina 26 ÉTICA CRISTÃ o que é o certo e errado, e somente ela, a partir de suas experiências e conhecimento. A segunda fonte de autoridade são os coletivos sociais (2), nesse caso temos a sociedade ou grupos associados que mediante um acordo mútuo estabelecem o que se deve fazer, e por fim temos as fontes externas (3), divididas em conceitos, figuras de autoridade ou divindades. Vamos analisar cada uma delas: 1. Individual – Nesta categoria temos o próprio individuo como fator determinante do certo e errado. Por meio de sua razão ou emoção, ele determina como deve agir. Historicamen- te temos o crescimento dessa forma de jus- tificar a tomada de decisão ética a partir do século XVII, junto com o início da moderni- dade. Desde então, a sociedade tem passado por uma crise de autoridade. Os líderes, que até então eram prestigiados, têm perdido a credibilidade e respeito por causa de escân- dalos e mal exemplo, o que tornou o indiví- duo cada vez mais descrente em qualquer líder. Há de se notar que ao indivíduo se es- tabelecer como autoridade, isso não significa que qualquer ação que ele tomar estará cor- reta. Esse tipo de fonte propõe reunir aqueles 27 FUNDAMENTOS DA ÉTICA que não apoiam suas decisões na autoridade de nenhum elemento externo, somente em si próprio. Ele estabelece suas próprias leis podendo até mesmo ser condenado por elas. 2. Coletivos sociais – Essa autoridade se susten- ta no poder do grupo e no estabelecimento de normas de comum acordo. Toda vez que indivíduos se associam e estabelecem regras para reger o espaço partilhado, temos esse tipo de autoridade. Essa regulamentação pode ser formal como num condomínio, numa empresa, num país ou pode ser infor- mal como na expectativa de tratamento entre amigos de infância ou das atitudes de grupo de turistas. Uma das características desse tipo de autoridade é que se reconhece que as orientações são restritas ao grupo e ao local compartilhado. Um fator importante dessa categoria, é que o indivíduo tem algum tipo de participação no grupo, quer diretamente na criação das leis ou por outros identifica- dores que o submetem àquela autoridade, como a tradição, cultura, local ou lugar de nascimento por exemplo. 28 ÉTICA CRISTÃ 3. Fontes externas – Esse último tipo reúne qualquer fonte que o indivíduo adote, se abstendo de participar do processo deci- sório. Faz parte desta categoria aqueles que seguem um líder político, professor, pai, guru, cantor, divindade ou divindades cumprindo suas ideias sem criticá-las ou analisá-las. Juntamente a esses, temos os que adotam uma ideologia, como o marxis- mo ou ateísmo; religião ou conceito, como o prazer, fama, dinheiro etc., sujeitando-se à sua lógica e prestando obediência cega. É importante deixar claro que aqueles que têm uma ideologia de vida, uma religião ou buscam a fama, mas que o fazem mantendo essas coisas sob sujeição de sua racionali- dade e estabelecendo limites, se situam no primeiro grupo, somente estão aqui aque- les que renunciam ou desistem de fazer o exame crítico para depender de uma razão e autoridade alheia a si mesmos. Cada pessoa que busca respostas a dilemas éticos precisa, antes disso, refletir sobre o problema em si, estabelecer qual parâmetro determinará o que é certo e errado. Em 29 FUNDAMENTOS DA ÉTICA nossa mente, buscaremos uma dessas fontes de autoridade citadas acima para gerar as justificativas a favor ou contra determinada atitude. Por exemplo, se somos questionados sobre o dever de falar a verdade, alguns argumentos possíveis à pergunta poderão ser usados, a saber: “porque Deus diz nos mandamentos ‘não dirás falso testemunho’”, ou “por que a mentira trai a confiança e fere as pessoas“, ou “tenho como princípio nunca mentir, não importa a situação”. Observe a autoridade que está por trás da resposta, na primeira, a justificativa se sustenta na autoridade divina, o indivíduo se abstém da análise moral e recorre a alguém que, para ele, garanta a qualidade da decisão e se submete à sua orientação; os que partilham dessa ideia se encontram no grupo 3. Na segunda situação, a argumentação se apoia numa autoridade coletiva anônima representada pelas “pessoas” que, por experiência ou suposição, cremos que ficarão chateadas se alguém mentir para elas. A última afirmação apoia em si mesma a decisão e argumentação que valida a escolha. Cada uma dessas autoridades irá afetar o processo de decisão ético de uma forma diferente. O que significa eticamente, por exemplo, escolher abdicar de suas próprias percepções ou experiências a fim de seguir o que um indivíduo determina que você faça? Seria ainda assim ético? 30 ÉTICA CRISTÃ Ainda há uma questão que precisa ser levada em conta: qual a melhor fonte de autoridade entre as três? Se por um lado a autonomia moral parece ser melhor que simplesmente seguir uma ideia alheia, todos sabemos que os indivíduos são falhos e podem julgar errado. Então, como posso me estabelecer como autoridade quando sei que posso errar? Ou ainda, por que escolher a autoridade de um grupo social, quando já está implícito nesta categoria a relatividade de sua aplicação, ou seja, a extensão restrita àquele grupo? Reconhecendo a falha humana, seria uma opção seguir um ser transcendente que por suas subentendidas características morais elevadas poderia garantir a ética correta? Se preferimos a autoridade individual ou coletiva estamos fadados à falha e ao erro, já que homens e grupos são falhos, se abdicamos e nos apoiamos em uma divindade podemos incorrer numa obediência cega e irracional. O que fazer? Há de se considerar ainda o fato de algumas pessoas não terem uma fonte de autoridade exclusiva, umas podem se posicionar como a fonte de autoridade em casa, no trabalho adotar uma postura de acordo social e na igreja de sujeição à divindade. Podemos questionar da situação apresentada a viabilidade e coerência do trânsito de fontes de autoridades da mesma forma que se transita em diferentes espaços, mas apesar disso, até certo ponto, é comum às pessoas utilizarem essa estratégia. 31 FUNDAMENTOS DA ÉTICA Por fim, a reflexão sobre quem é a autoridade que escolhemos vai impactar em nossa ética e determina o primeiro nível de nosso processo decisório. Cientes da fonte de autoridade, um novo elemento surgirá, sobre o qual trataremos no próximo tópico. VALORES Os valores são algo de difícil definição. Quando pensamos neles, lembramos de justiça, educação, honestidade, coragem, honra etc., pois eles são os componentes com os quais as autoridades nos presenteiam e que utilizamos ao tomar uma decisão. Alguns autores que pensaram sobre esse conceito, o definiram como “algo que se considera desejável, que justifica nossas ações e funciona como horizonte para organizar a vida” (MAY, 2008, p. 78), ou “elementos, concretos ou abstratos, sobre os quais colocamos alguma importância” (TILLMAN, 1988, p. 11) ou ainda “objetos de preferência ou escolha moral” (ABBAGNANO, 2003, p. 989). Na verdade, os valores são pontos de referência que recebemos das figuras de autoridade, principalmente no início de nossa vida e que se mantêm como marcadores ou limites que gostamos de ter. Portanto, se admiramos alguém que 32 ÉTICA CRISTÃ foi honesto e olhamos para essa característica como algo que desejamos nos identificar, esse valor passa a ser um guia, uma fronteira que quando corre o risco de ser cruzada, cria uma tensão ou alerta em nossa vida. Atravessar um desses marcos ou quebrar um desses valores pode nos afetar negativamente e destruir nosso bem estar, portanto preservamos esses limites como os guardas protegem as divisasentre países. Os valores têm um papel fundamental na ética e criação de regras de comportamento. As vezes eles são explícitos como por exemplo na introdução ou preâmbulo da constituição brasileira, ne qual lemos: Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia nacional constituinte para instituir um Estado democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL (BRASIL, 1988). Os valores acima expostos são os guias do comportamento social brasileiro, e foram utilizados no processo de construção 33 FUNDAMENTOS DA ÉTICA da constituição de nosso país, mas os valores que um indivíduo ou grupo social seguem podem não ser declarados. Uma família pode ter muito forte o senso de união e apoio mútuo, o valor unidade, sem que isso esteja escrito em lugar algum, mas seja simplesmente vivido entre as figuras de autoridade, os pais, e reforçado nas orientações que são dadas aos filhos. Portanto, independentemente de estarem escritos ou não, os valores irão guiar a conduta dos indivíduos. Apesar de podermos concordar com a importância dos valores, isso não quer dizer que todas as pessoas concordem com a definição de cada um deles. Podemos dizer por exemplo, que o respeito é um valor básico em qualquer tipo de relação entre quaisquer pessoas, mas se perguntarmos às pessoas o que é respeito, provavelmente teremos muitas respostas, inclusive pode acontecer de termos respostas em oposição. Pensemos na seguinte situação, um jovem resolve investir todas as suas economias num negócio arriscado, o pai pode analisar a ideia do filho e entender que respeito é deixá-lo tomar suas decisões e apoiá-lo se algo de errado acontecer. Por outro lado, um irmão pode entender que respeito e intervir e orientá-lo a desistir, pois quem tem real afeição e consideração pelo outro não deixa a pessoa tomar decisões que serão prejudiciais sem alertá-la. Dessa forma, neste caso, o mesmo valor, respeito, pode levar pessoas a tomarem direções diferentes. 34 ÉTICA CRISTÃ Em suma, os valores são os elementos que estão dispostos na sociedade e os utilizamos para tomarmos decisões, ainda que sua interpretação possa variar nos diferentes grupos sociais e até mesmo entre elementos do mesmo grupo. Passemos ao próximo conceito. LEIS O último conceito que iremos tratar neste tópico é o de lei. Esta é outra ideia que, além de ser bastante clara para a maioria das pessoas, tem um papel importante em nossa estrutura ética. As leis podem ser definidas como “fórmulas que expressam a necessidade de uma ação” (KANT, 2018, p. 144), dessa definição compreendemos que a lei é o produto da reflexão ética que elabora regras e determinam os deveres do indivíduo. O que é importante notarmos aqui é que essas leis depois de criadas são obrigações para aqueles a quem ela se dirige, precisam ser levadas a sério. Lemos essa ênfase na seguinte definição: “Leis são acordos de caráter obrigatório, estabelecidos entre pessoas de um grupo, para garantir justiça mínima, ou direito mínimos de ser” (PONCHIROLLI, 2009, p. 18). Organizando nossa estrutura, temos que as leis são proposições elaboradas a partir de uma autoridade apropriada, 35 FUNDAMENTOS DA ÉTICA tendo em conta os valores para regular o comportamento ou a moral dos indivíduos. Podemos visualizar a relação entre essas partes na Figura 1 abaixo: Figura 1 – Relação entre os conceitos éticos Ética Valores Autoridade Lei Moral Fonte: elaborado pelo autor Algo importante sobre as leis é que elas são tão relevantes para os grupos ou para o indivíduo que ir contra essas determinações traz conflito interno ou externo; gera punições, isolamento ou mesmo a exclusão do sujeito que rompeu com a moral. Dessa forma, concluímos o primeiro tópico tendo conhecido os conceitos de ética, moral, autoridade, valores e lei. Aprendemos também como esses elementos se relacionam na estrutura ética determinando o comportamento moral. A partir desses conhecimentos podemos nos perguntar, mas como essa estrutura é construída nos indivíduos? Esse é o conteúdo do próximo tópico. 36 ÉTICA CRISTÃ COMO NOS TORNAMOS SERES ÉTICOS? Na maior parte do tempo, imagino, todos queremos que as pessoas ajam de forma ética. Reconhecemos que a ética pode ajudar não somente o próprio indivíduo, mas a sociedade como um todo. Quanto mais somos éticos, mas criamos um ambiente de boa convivência e bem-estar para todas as pessoas. Com isso, a falta de ética fere o desejo ou sonho de um mundo melhor. Já sabemos que existe uma estrutura lógica que nos ajuda a tomar boas decisões, vimos que a autoridade é um fator fundamental nesse arranjo, assim como os valores defendidos por essa autoridade, que acabam por se tornar referências ao refletirmos sobre o que é certo e errado. É sabido também que o bom discernimento e domínio dessas ferramentas irá produzir melhores regras de conduta e por fim um comportamento exemplar. Contudo, mesmo tendo o conhecimento desses diversos fatores, sabemos que nem todos conseguem tomar boas decisões éticas e, às vezes, nem mesmo sabem como tomá-las. Uma vez que por um lado há pessoas que buscam o melhor moralmente para sua vida, por sua vez, um outro lado parece não se interessar muito por isso. Mas onde está o problema? O que acontece com essas pessoas? O que tornou uma pessoa ética e a outra não? 37 FUNDAMENTOS DA ÉTICA DESENVOLVIMENTO MORAL POR LAWRENCE KHOLBERG Essa é uma dúvida não somente nossa, cientistas também já debateram sobre como isso acontece, e uma das teorias mais conhecidas que busca responder essa questão foi formulada por Lawrence Kholberg, um psicólogo americano que, baseado nas ideias de Jean Piaget, elaborou uma teoria do pensamento moral, sendo assim, considerado um dos fundadores da ciência do desenvolvimento moral. Mas o que sua teoria propõe? Para Kholberg, a criança pensa sobre a moralidade diferente do adulto, seu mecanismo ou filosofia moral é organizado de tal forma que sua autoridade e raciocínio terão características próprias e distintas a cada etapa desse processo, até que possa alcançar um estado de “maturidade”. Para ele, esse é um processo pelo qual todas as crianças passam, mas não do mesmo modo, ou seja, elas iniciam de maneira semelhante, porém algumas não conseguem percorrer todo o caminho até o amadurecimento pleno, dessa forma, podemos encontrar adultos no nível convencional, ou mesmo pré-convencional. Os estágios são divididos em níveis, 6 estágios em 3 níveis, e se relacionam da seguinte forma, veja na Figura 2: 38 ÉTICA CRISTÃ Figura 2 – Estágios do desenvolvimento moral de Lawrence Kholberg NÍVEL ESTÁGIOS 1 Pré- convencional 1 Foca nas consequências e é obediente por medo da punição. 2 Age por interesse próprio e cumpre as regras negociando trocas. 2 Convencional 3 Busca a aprovação do grupo e toma as decisões a fim de manter as relações mútuas. 4 Segue rigidamente as regras sociais, pois acha importante manter a ordem social. 3 Pós- convencional 5 Reconhece que dilemas éticos podem ser resolvidos por meio de um contrato moral entre as partes. 6 Utiliza princípios éticos universais para avaliar suas decisões. Fonte: GAZZANIGA, HEATHERTON; HALPERN, 2018, p. 382-383; PAPALIA; FELDMAN, 2013, p. 409 ESTUDO DE CASO Vamos entender essa distribuição utilizando um caso? Em uma escola, está sendo organizada uma excursão para os alunos do 3º ano que estão muito ansiosos pelo evento. Na semana 39 FUNDAMENTOS DA ÉTICA anterior ao passeio, Tiago vê sem querer, um de seus colegas pichando uma parede do colégio. Quandoo ato é descoberto, identifica-se rapidamente que o autor do vandalismo é do 3º ano. O diretor então faz uma reunião com os alunos dessa turma e pede para que o culpado se entregue. Como ninguém se revela, ele ameaça cancelar a excursão se o pichador não se apresentar. Diante dessa situação, o que Tiago deveria fazer? Deve entregar o colega para que a excursão aconteça? Ou deve ficar em silencio e não dedurar o amigo? Se fizéssemos essa pergunta para todos os alunos desta turma, com certeza teríamos respostas diferentes. Kohlberg concordaria com isso, mas afirmaria que as respostas refletiriam o nível moral em que cada um se encontra. Ele também diria que o que é importante perceber nas respostas, não é se ele agiria de um modo ou outro, mas a justificativa, pois a cada estágio poderemos encontrar respostas a favor ou contra, mas a lógica será característica de um momento desse processo. RESOLUÇÃO DO CASO Vamos imaginar então quais seriam as respostas possíveis. Aqueles que estão no primeiro estágio pensariam que o mais importante é evitar a punição, portanto para eles, uma solução poderia ser dizer quem foi culpado para não serem prejudicados: “você deve dizer para não ser punido e não viajar”. 40 ÉTICA CRISTÃ Os que estão no segundo estágio, ainda no nível pré- convencional, estariam focados em seu próprio interesse. Poderiam entender que a melhor solução seria não dizer, por que não gostariam de que seu amigo ficasse e não participasse da excursão com todos: “Tiago, não diga a ninguém, pois o diretor não poderá impedir que todos viajem se ele não sabe quem é”. Observe que nas duas respostas não se pensa no certo ou errado mas no desfecho que se espera. No segundo nível, estágios 3 e 4, as respostas são mais direcionadas para o grupo. No terceiro, estágio temos a busca da aprovação dos outros, a lógica para aqueles desse estágio poderia sugerir não se pronunciar: “não diga nada, pois se entregar o colega todos vão achar que você é um traidor”. No quarto estágio, há uma tendência de se cumprir as leis rigidamente, a resolução para aqueles que estão nesse estágio poderia ser contar a verdade, pois isso é algo que todos deveriam fazer: “Tiago, conte quem foi, os alunos devem obedecer ao diretor”. Não sei se você percebeu que até agora há pouca reflexão utilizando valores; não se chega a um resultado pelo qual é formada uma opinião sobre o que é certo e errado. No segundo nível, já se apela às autoridades, mas ainda assim suas regras são aceitas sem questionar a moralidade. 41 FUNDAMENTOS DA ÉTICA Chegando no nível pós-convencional, as respostas já revelam uma reflexão sobre valores. Apesar de Kohlberg afirmar que nem todos chegam a esse nível na vida, ele diz que, no meio da adolescência, alguns começam a desenvolver uma mente com essas características. No quinto estágio, temos uma lógica de contrato social, ou seja, se entende que se deve buscar o bem de todos, mas que há situações em que os valores e as leis podem entrar em conflito, algumas leis não se baseiam em valores corretos e por isso deve-se verificar nos grupos o que é melhor para todos. Talvez você esteja se perguntando, depois da frase anterior: como é possível que o valor esteja em oposição à lei? Mas sim! Existem situações pelas quais a lei está baseada em valores incorretos, por exemplo, entre os anos 1948 – 1994, na África do Sul, foi estabelecida uma política de separação entre negros e brancos conhecida como apartheid, foram criadas leis para a população sul-africana que restringia os direitos dos negros no país, proibindo o relacionamento e a proximidade entre os indivíduos de tons de pele diferentes, ou seja, esse é um exemplo de lei baseada na desigualdade social e no determinismo étnico. Diante das leis da África do Sul daquele período, não importava quem você era, mas simplesmente a sua raça. Se 42 ÉTICA CRISTÃ ela fosse negra, automaticamente você teria menos direitos (BRUCE; YEARLEY, 2006, p. 12). Nesse caso, Kohlberg entende que, percebendo essa incoerência, a pessoa que chegou nesse estágio, reconhece a imoralidade da lei e não a segue. No sexto e último estágio, encontramos uma moralidade autônoma, que não é impressionada pela opinião dos outros e que se volta para os seus valores internos. Para Kohlberg, esse é o alvo, a posição mais elevada que o indivíduo pode alcançar eticamente. Para ele, alguém nesse estágio, poderia pensar numa resposta como a seguinte: “Tiago precisa dizer quem foi, nosso colega estava errado, não se pode danificar a propriedade alheia ou pública, não se deve pintar um lugar que não é sua propriedade sem autorização. Ele deveria ter solicitado e, se fosse autorizado, ok, mas agir como ele agiu é errado!” Essas seriam possibilidades, e você? Se passasse por essa situação qual seria a melhor solução? Veja em que estágio você daria uma resposta para esse caso. Resumindo, todos nós passamos por um processo de amadurecimento moral que começa na infância. Kholberg descreveu seis estágios, cada um com características próprias. Essa estrutura tem sido aceita por eticistas e é uma das mais conhecidas e utilizadas para se estudar o desenvolvimento da moral. 43 FUNDAMENTOS DA ÉTICA Kohlberg admite a influência do meio nesse processo, mas entende que essa é uma teoria universal, quer dizer, se aplicaria a todas as pessoas. Agora depois de entendermos como a criança vai se tornando um adulto moral, vamos examinar quais são os outros fatores que afetam as nossas decisões morais. NOSSO CÉREBRO, NOSSO GUIA Acredito que já saiu da boca de todo ser humano frases como: “não sei o que estava fazendo! Não sei onde estava com a cabeça!” Bem, onde estava sua cabeça quando você não sabia onde ela estava? Vamos ver uma história que vai nos ajudar a refletir um pouco mais sobre essa questão. No início da década de 1940 nasceu, nos Estados Unidos, um menino chamado Charles Whitman. Ele foi criado por um pai rigoroso e uma mamãe religiosa, nesse ambiente ele acabou dominando com destreza certas habilidades. Foi um escoteiro de destaque nacional, aprendeu a usar armas de fogo na adolescência e se tornou um excelente atirador. Na juventude se tornou um fuzileiro e aos 25 anos de idade estudava arquitetura, trabalhava num banco 44 ÉTICA CRISTÃ e era casado. Aparentemente uma vida normal, se não fosse por um incidente chocante. No dia 1 de agosto de 1966 esse jovem subiu até o 28º andar da torre da Universidade do Texas e passou a atirar com uma espingarda nas pessoas que cruzavam as ruas ao seu redor. Antes de subir na torre, ele havia matado sua mãe e sua esposa a facadas. Depois de 90 minutos foi alvejado por um policial e morreu, ele havia atirado em 46 pessoas, das quais 14 não resistiram. O que faz com que uma pessoa aparentemente normal tenha uma atitude tão incompreensível? Essa história se torna mais curiosa pra nós por conta de uma carta que ele escreveu antes do seu ato homicida: Com sinceridade, não me entendo ultimamente. Eu deveria ser um jovem mediano, racional e inteligente. Mas, nos últimos tempos (não consigo lembrar quando começou), tenho sido vítima de muitos pensamentos incomuns e irracionais (...). Depois de minha morte, desejo que seja feita uma autópsia em mim, para verificar se há algum distúrbio físico visível (EAGLEMAN, 2017, p. 33). O seu desejo foi concedido, e foi descoberto um pequeno tumor em seu cérebro que pressionava a amígdala, região responsável por emoções como medo e agressividade. Será então que o seu comportamento foi determinado por essa 45 FUNDAMENTOS DA ÉTICA formação fisiológica doentia? Será que ele, assim como nós, teve suas ações determinadas por seu cérebro, mesmo as morais? Muito bem, a resposta é sim e não. Há um grande debate, principalmente no campo da neuroética, sobre o quanto somos conduzidos por nosso cérebro. Há aqueles que acreditam que um dia a ciência irá descobrir os segredos mais íntimos da nossa mente,quando será possível prever o comportamento humano olhando para o cérebro e seu funcionamento. Do outro lado, estão aqueles que acreditam que nunca poderemos descobrir de fato o seu funcionamento e o fenômeno da consciência. Contudo, independente do posicionamento que você toma, já se sabe que sim, há uma influência de nosso sistema nervoso sobre nosso comportamento. Há alguns relatos de casos por meio uma pessoa pode desenvolver um tumor e comprimir regiões do córtex pré-frontal, região responsável pelo raciocínio lógico e tomada de decisão, modificando seu comportamento habitual, como no caso de Charles Whitman (GAZZANIGA, HEATHERTON; HALPERN, 2018, p. 98). Pessoas que têm, por acidente ou condição de saúde, esta área ou parte dela retirada, desenvolvem certas características como uma certa frieza em tratar determinadas cenas, que em pessoas não lesionadas, provocam fortes emoções, o que já foi caracterizado como “saber mas não 46 ÉTICA CRISTÃ sentir”. Indivíduos com esse quadro podem sofrer grandes perdas e não demonstrarem sentimento, justamente por não o sentirem (DAMÁSIO, 2012, p. 187). A diminuição da racionalidade é acompanhada também por uma diminuição das emoções. Isso tem um impacto quando pensamos em moralidade, pois é um debate histórico, que vem desde Platão, a ideia de que para tomarmos boas decisões precisamos ser racionais, frios, e não emocionais, mas segundo esta proposta nem podemos ser racionais nem morais se não utilizarmos as nossas emoções. Ademais, os Neurônios espelho (ver box) são uma outra descoberta que demonstra como sentimentos como empatia e simpatia são importantes para sermos seres morais. SAIBA MAIS Células espelho Você já passou pela situação de, ao ver alguém se ma- chucando, por exemplo, cortando o dedo, sentir um ar- repio ou colocar a mão na parte do seu corpo em que o outro se feriu? Pois é, essa é uma reação provocada pelos neurônios espelho. 47 FUNDAMENTOS DA ÉTICA As famosas células-espelho são neurônios que se ati- vam quando observamos alguém fazer alguma ação com propósito, como alcançar um copo, construir um armário ou comer, e da mesma forma como o outro tem áreas do cérebro ativadas ao fazer o ato, quem observa também tem áreas semelhantes ativadas. É como se en- trássemos na mente da pessoa para entendermos o que ela está fazendo (GAZZANIGA, HEATHERTON; HALPERN, 2018, p. 259-260). Esses neurônios têm muito a ver com a moralidade, pois funcionam da mesma forma quando “adquirimos” carac- terísticas que observamos especialmente em pessoas senciamos alguém ter uma atitude moral, por causa des- ses neurônios, experimentamos, de certa forma, a expe- riência do outro (ILLES; SAHAKIAN, 2011, p. 344–348). Esses neurônios são a base da empatia (“compreensão do estado emocional do outro”) e simpatia (“sentimen- tos de piedade, preocupação e tristeza pelo próximo”), emoções fortemente ligadas à moralidade pois é por meio dessas emoções que valores morais como justiça e igualdade surgem (GAZZANIGA, HEATHERTON; HAL- PERN, 2018, p. 382). Isso não quer dizer que não utilizamos a razão, pois vimos desde o início que a razão tem um papel muito importante. O que queremos frisar é que ela não é o único fator quando tomamos decisões éticas, inclusive em alguns momentos ela 48 ÉTICA CRISTÃ fica em segundo plano pois alguns juízos morais que fazemos não são resultados de nossa razão, mas das emoções, intuições e absorção de tradições culturais (BLOOM, 2014, p. 236). Talvez uma analogia que possa ajudá-lo seja comparar o nosso processo de decisão moral com uma câmera fotográfica que tenha função automática e manual. Quem já utilizou uma dessas câmeras, sabe que no modo automático só é preciso apertar um botão e o mecanismo da máquina organiza tudo o que é necessário para que a foto seja feita, esse é o papel das emoções. Enquanto no modo manual é preciso se preocupar com abertura do diafragma, velocidade de exposição e sensibilidade à luz. Se alguém escolhe este último modo para tirar fotografias, tem que lidar com vários elementos que podem gerar aos menos experientes, no mínimo, uma certa confusão; esse é o papel da razão (EDMONDS, 2014, p. 326). Um fato ainda curioso sobre o funcionamento desse sistema duplo, é que diante de situações de pressão, estresse ou quando estamos em estado de alerta, buscamos o modo manual e não o automático, o que até certo ponto pode parecer fazer sentido, pois esse estado de tensão pede que tomemos melhores decisões, mas ao mesmo tempo pode gerar uma desorientação da mesma forma que alguns de nós teríamos se tivéssemos que tirar fotos no modo automático. 49 FUNDAMENTOS DA ÉTICA Enfim, o desenvolvimento moral inclui tanto um processo de maturação que começa na infância e se estende pela vida adulta quanto o equilíbrio, e bom uso de nossas capacidades racionais e emocionais. Por isso, tornar-se um ser ético é como aprender uma linguagem. Leia as duas frases abaixo e pense em qual delas as palavras foram colocadas numa ordem melhor: a. Barulhentos carros pretos, velozes e grandes. b. Grandes carros pretos, barulhentos e velozes. Provavelmente você terá escolhido a opção B, mas se eu pedir para que você justifique o porquê dessa frase ter as palavras melhor organizadas, você provavelmente também terá algum tipo de dificuldade, poderá dizer que soa melhor, mas a verdade é que não existe uma regra clara sobre qual a ordem correta, nós simplesmente achamos que é assim. Para falarmos, utilizamos vários elementos da linguagem: a gramática, nossos diálogos cotidianos, nossa experiência e nossa criatividade, assim, mesmo sendo um processo complexo, conseguimos usá-la e nos comunicamos. De igual modo, a nossa moral funciona com uma série de elementos, racionais e emocionais, conscientes e inconscientes, subjetivos e objetivos, e todos eles se organizam na hora em que vamos tomar uma decisão. 50 ÉTICA CRISTÃ COMO SABER O QUE DEVO FAZER? Em 1967, Philippa Foot, uma filósofa britânica criou o dilema do bondinho, um exercício de ética que acabou se tornando um clássico que todos os que se interessam por ética vão um dia encontrar e tentar responder. Se você ainda não conhece, chegou sua vez (EDMONDS, 2014, p. 27) O problema apresenta uma situação curiosa. Imagine que um bondinho perdeu o freio e está descontrolado pelos trilhos de uma ferrovia e não há nada que se possa fazer para pará-lo. Perto dali, cinco funcionários da estrada de ferro estão consertando os trilhos com seus ouvidos tapados, indiferentes à vinda do bonde, quando eles o virem, será tarde demais, nenhum dos cinco irá sobreviver. Você observa a situação de longe, não tem nenhum meio que possa utilizar para avisar a qualquer um dos funcionários da proximidade do trenzinho, se você tentar correr para avisar, chegará tarde demais pois, pela velocidade do bondinho, ele chegará aos trabalhadores antes de você. Entretanto, há uma coisa que você pode fazer. Perto dali, há uma alavanca que pode ser acionada desviando o bondinho do trilho principal, com os cinco funcionários, para um trilho secundário onde há um único funcionário fazendo reparos. Se você acionar a 51 FUNDAMENTOS DA ÉTICA alavanca, o trem passará para esse outro trilho com esse único trabalhador que infelizmente morrerá. Se você não acionar a alavanca, o bondinho seguirá seu rumo e vai matar os cinco. O que você faria? Acionaria a alavanca ou não? Pense um pouco, escolha uma opção e tenha certeza do que faria antes de prosseguir. Pronto? Já decidiu? Ok, vamos em frente. Agora iremos mudar só um pouco essa história. Imagine agora que o mesmo bondinho descontrolado pelos trilhos está vindo em direção aos mesmos cinco funcionários trabalhando na ferrovia. Você agora está em cima de um pontilhão sobre o qual o bondinho irá passar por debaixo, um pouco antes de encontrar-se com os trabalhadores. Mais uma vez, não há como você avisá-los pois eles estão com seus ouvidos tapados eantes que você consiga chegar até eles, o bondinho já os terá alcançado. Desta vez, porém, ao seu lado há um indivíduo de porte grande que com toda certeza, se você o empurrar do pontilhão nos trilhos irá parar o bondinho e os cinco trabalhadores serão salvos. E agora, o que você faria? Você empurraria esse indivíduo que você não conhece? Ou deixaria o trenzinho tirar a vida dos cinco empregados? Mais uma vez escolha uma opção! Quando este dilema é apresentado e os dados recolhidos, algo interessante acontece, 90% dos respondentes diante do 52 ÉTICA CRISTÃ primeiro questionamento, dizem que puxariam a alavanca e salvariam os cinco. 90% deste mesmo grupo diante do segundo questionamento, escolhe não empurrar o homem do pontilhão embaixo. O que é curioso é que, observando friamente o problema, ele é o mesmo, ou seja, cinco homens diante de um destino fatídico, a opção de um morrer em lugar dos outros e você diante desse dilema. Este quadro curioso pelo qual em uma configuração se tem uma resposta e na mudança de alguns detalhes tem-se outra quase oposta, é justificado por alguns assim: “no primeiro caso é uma questão de salvar cinco em lugar de um, mas no segundo é uma questão de assassinar uma pessoa!” Essa é a meu ver uma boa resposta, apesar de não afirmar que seja a resposta certa. Eu vejo na reflexão feita, a percepção de que no primeiro caso a situação é exposta de modo frio, você está distante, puxa uma alavanca, todas essas ações fazem com que você veja o dilema de modo calculista, “cinco vidas valem mais do que uma”. Já no segundo caso, ao ser inserido ativamente, com suas próprias mãos, a coisa toda desperta um alerta, e a discussão passa para o âmbito dos princípios, matar é errado! “Não posso matar alguém, nem que seja para salvar outras pessoas!” 53 FUNDAMENTOS DA ÉTICA Ainda assim, nas discussões sobre se deve puxar a alavanca ou não, empurrar o homem ou não, é comum pessoas se posicionarem firmemente em seu argumento tendo dificuldades de entender a perspectiva do outro, uns dizem “é lógico que eu empurraria o homem! É a mesma situação, puxando a alavanca ou empurrando o homem, cinco vão sobreviver, as famílias de todos eles irão concordar e me agradecer!”, outros, no entanto reagem, “Não se pode fazer isso! E se fosse alguém conhecido seu, você continuaria a pensar assim?”. Pois bem, essa é uma discussão na maioria das vezes agradável, por meio da qual é preferível continuar se questionando a ter que definir uma resposta, e o mais interessante é justamente isso, tentar pensar quais os elementos que cada um usou e como foi que ele lidou com o dilema. Ao conversarmos sobre o dilema do bondinho, podemos entender um pouco de algumas lógicas que as pessoas utilizam para encontrar suas respostas, isso ajuda muito não só pela possibilidade de compreendermos o raciocínio dos outros, os valores que o outro carrega, mas acima de tudo, ajuda a todos crescermos eticamente, pois ao invés de discutirmos quem está certo ou errado, o que na prática pode não levar a lugar nenhum, trocamos ideias sobre as lógicas e os valores adequados para cada tipo de dilema ético, nos afastamos da 54 ÉTICA CRISTÃ postura de tentar provar que a minha lógica é a correta. A questão de quem está certo ou não pode até ser construída depois, mas a partir da análise dos elementos que usamos em nossa avaliação moral. Por esse motivo, iremos gastar esse tópico tratando justamente disso, as lógicas que as pessoas utilizam para resolver seus dilemas. Entre o vasto número de sistemas éticos existentes, podemos fazer uma separação entre aqueles que procuram criar uma estrutura que dê respostas sobre que ação deve- se tomar e aqueles que têm o foco no aspecto mais a longo prazo do desenvolvimento humano, ou seja, a formação do caráter. Procuraremos então para este tópico, aqueles sistemas éticos que têm a preocupação em dar respostas para as dificuldades do dia a dia. Dois exemplos influentes do tipo de sistemas que estamos procurando, são o utilitarismo de Jeremy Bentham e a deontologia de Immanuel Kant. Ambos foram produzidos na modernidade e pretendem dar uma resposta para a nossa pergunta “e o que eu faço agora?”. Vamos primeiro ao utilitarismo. UTILITARISMO DE JEREMY BENTHAN Jeremy Benthan (ver box Saiba Mais) foi o idealizador do utilitarismo, ele pensava em ajudar a sociedade mediante um sistema ético que fosse simples e funcional. Por aspiração 55 FUNDAMENTOS DA ÉTICA política, pensava em ajudar também líderes a tomarem boas decisões que beneficiassem o povo. Seu sistema é bastante simples e gira em torno dos conceitos de felicidade e maioria e consequência. Benthan sugere de início ser um fato os homens naturalmente buscarem ser felizes ou o prazer, ninguém escaparia a essa lógica, portanto esse valor seria o mais importante, estaria no ponto mais elevado da hierarquia de valores, e tudo estaria sujeito a essa busca pela felicidade. Tão importante quanto entender essa busca para Benthan, é a definição que ele dá para a felicidade: mais prazer e menos dor, ou seja, em Benthan, todos os homens estão em busca do prazer e por sentir menos dor. Um outro elemento significativo nessa ética é a questão da autoridade. No utilitarismo quem define o que é certo é o maior número de pessoas envolvidas numa dada condição, então o que o grupo social decidir ser o correto, é moral. Em suma, o utilitarismo é bem claro em sua aplicação. Para tomar decisões usando essa lógica, só é preciso pensar qual ação trará mais utilidade para a coletividade. Uma boa forma de entender utilidade, é compreendê-la no seu sentido de benefício, dessa forma ao se perguntar: “qual será a consequência desta minha ação? E quantas pessoas serão afetados por ela?” O que se quer dizer é, o que trouxer mais 56 ÉTICA CRISTÃ benefícios como consequência para a maioria das pessoas, isso é o que cada um deveria fazer. Essa forma prática de descobrir o que é correto foi resumida assim: “a maior felicidade para o maior número é a medida do certo e errado” (BENTHAM, 1776, p. II), e pode parecer a princípio se tratar de um pensamento egoísta, mas pelo contrário, é preciso que a todo momento você se coloque como um no meio de todos, nunca é o que vai trazer felicidade para você, mas sim, o que vai trazer felicidade no mínimo, à maioria. Na prática, o utilitarismo funciona como uma forma de avaliar o custo e o benefício de cada ação, o próprio Benthan deu a esse processo o nome imponente de Hedonic calculus, ou cálculo Hedonista. Seria como, diante de um problema, fazer uma lista de tudo de bom, ou o que gerasse prazer em uma dada situação e ao seu lado outra lista com todos os problemas, ou dores, do mesmo caso e se fizesse uma análise. Depois de um “cálculo”, para o lado que a balança pendesse, lá estaria o que é moral, ou seja, se aquilo gerasse mais prazer que dor, estaria correto, e se a balança pendesse mais para o sofrimento, isso não estaria correto (BECKER; BECKER, 2001, p. 1737; SANDEL, 2012, p. 48). 57 FUNDAMENTOS DA ÉTICA Além de simples, o utilitarismo parece muitas vezes ser o modo natural como certas pessoas encaram os seus dilemas pessoais. Por vezes, pode-se ouvir em meio a uma argumentação o seguinte: “mas se você fizer isso, terá tal consequência!”, essa resposta revela, grosso modo, a semente do utilitarismo. SAIBA MAIS Jeremy Benthan Jeremy Benthan não era um filósofo, mas se propôs ser um reformador do seu tempo. Nasceu em 1748 numa fa- mília rica que logo cedo percebeu que ele era uma crian- ça prodígio. Aos três anos aprendeu a ler e seu pai muito orgulhoso, gabava-se de seu filho estimulando cada vez mais os seus dons intelectuais. Aos quatro anos de ida- de já lia grego e latim, mas fisicamente era um menino pouco desenvolvido, fraco e baixinho. Começou o seu período de estudos em Westminster, Londres, mas não se lembrava positivamente da escola, onde era alvo de bullying por colegasmais velhos. Depois do colégio, preparou-se para se formar em direito em Oxford, mas também lá viu pouco benefício na edu- cação. Formado, nunca praticou a profissão, mas resolveu ser escritor. Seus interesses eram a crítica da lei e reformas sociais. Chegou mesmo a criar um projeto de presídio modelo, chamado de Panopticon onde um único guarda poderia tomar conta de todo o prédio e seus presos. 58 ÉTICA CRISTÃ Ao final de sua vida conseguiu o reconhecimento como pensador influente, não somente por meio da criação de seu sistema ético, que para ele poderia beneficiar desde os grandes líderes até o povo comum, mas também por ser um dos primeiros a defender os direitos dos animais e a igualdade das mulheres. Chegando aos 80 anos de idade ficou preocupado em como poderia se manter como influência para fu- turos jovens e alunos da escola onde dava aulas, para isso escreveu seu último pedido, que foi atendido após o seu falecimento em 1832. Nele, deixava orien- tações para ser dissecado, mumificado e colocado em uma caixa de vidro nos corredores da University College em Londres, onde está até hoje e disponível para visitação (SANDEL, 2012, p. 48-49; BECKER; BEC- KER, 2001, p. 137-140). Vamos pensar em alguns casos para aplicar o utilitarismo e assim o avaliarmos na prática. Imagine comigo uma situação hipotética, toda a população mundial corre o risco de ser contagiada por um vírus que em alguns casos é fatal. Diante deste quadro, foi estabelecida uma lei pela qual todas as pessoas que estiverem no espaço público devem utilizar máscaras cobrindo a boca e o nariz. Alguns resistem, outros se revoltam com a obrigação e ainda outros disfarçam utilizando a máscara de maneira errada. De acordo com o utilitarismo qual deveria ser a minha atitude? 59 FUNDAMENTOS DA ÉTICA Já conhecemos a estrutura, devemos perguntar ao problema: o que geraria mais felicidade para a maioria como consequência? A resposta não é difícil de saber, a maioria das pessoas será beneficiada se todos utilizarem as suas máscaras, pois além do fator de segurança contra a doença, teremos da parte de quem cumpre a regra e aceita a norma, uma maior tranquilidade nas interações sociais. Dessa forma, a atitude correta é usar a máscara adequadamente pois isso tornará a maioria mais feliz como consequência. Vamos a outro caso. Imagine que em um determinado país, devido a uma crise, foi decretado que 10% da população, pessoas que recebem mais do que cinco salários-mínimos, deverão pagar um imposto correspondente a 1/4 do seu salário a fim de contribuir com a restauração da sua nação. Segundo o utilitarismo esta seria uma lei moral? Acredito que você já percebeu também que sem dúvida seria. No caso nós temos uma minoria que sofrerá para beneficiar o restante da população, 90% dos afetados pela crise. Sendo assim, temos uma maioria que ficará feliz como consequência desse imposto, dessa forma, sim, é um ato moral. Acredito que você já percebeu que o utilitarismo não leva em conta outro princípio que não a felicidade, pois tudo está sujeito a ela. Qualquer outro princípio deve ser desprezado. 60 ÉTICA CRISTÃ Vamos a uma última situação. Foi descoberto e preso um terrorista com sua família, esposa e duas filhinhas bebês, ao chegarem a um aeroporto. Por meio do exame de suas bagagens é detectado que ele havia arquitetado um atentado que pode matar centenas de pessoas nas horas subsequentes. Ele é interrogado pelos policiais, mas não diz nada, ele se mantém calado diante de todas as pressões. Diante da recusa do interrogado em dar quaisquer informações sobre o seu plano, os policiais se reúnem pensando numa forma de extrair informações dele, já que o ato violento pode acontecer a qualquer momento. Um dos policiais sugere a tortura. Segundo o utilitarismo esta seria uma possibilidade moral? Tempo para pensar. Nesses dois primeiros exemplos tivemos respostas sobre as quais, com certas ressalvas, até podíamos concordar, todos devem usar a máscara como modo de proteção e a minoria deve pagar impostos que contribuam para a felicidade da maioria, mas agora algo parece estranho, pois o que trará mais felicidade para a maioria como consequência será torturá-lo. E se o seu sistema de alerta moral ainda não ligou, imagine que ele foi torturado, continuou em silêncio e os policiais têm uma outra ideia, torturar a família dele em sua frente para que ele declare o seu plano. Desse modo, a situação parece passar dos limites, você não acha? 61 FUNDAMENTOS DA ÉTICA Pois bem, em muitas situações, o utilitarismo parece dar uma boa resposta, mas em certos casos, ele irá privilegiar a maioria em detrimento de uma minoria não se incomodando com o sofrimento deles ou qualquer princípio moral, como honestidade, respeito à vida ou justiça, pois todos os valores estão sujeitos à felicidade e em nome dela todos eles podem ser desprezados. Uma última consideração relevante sobre as dificuldades do uso do utilitarismo, é a dificuldade de se avaliar previamente quais serão as consequências de uma determinada ação. Com certeza temos noção do que pode vir a acontecer se tomarmos certa decisão, ainda assim podemos ter grandes surpresas esperando que determinada consequência aconteça e na realidade outro cenário surja. Portanto, basear nossas ações naquilo que supomos, também não parece ser uma base tão segura. Com isso devemos estar cientes das dificuldades que podem surgir com o uso deste sistema ético, apesar de que em muitas situações, pensar no bem que podemos causar para as pessoas como consequência é uma forma bastante ética de direcionar a vida. 62 ÉTICA CRISTÃ DEONTOLOGIA DE IMMANUEL KANT Caso você tenha visto algum valor no utilitarismo, mas ficou preocupado quando ele foi aplicado em certos casos, você não está sozinho. No século XIX, um filósofo conheceu essa ética e não só a criticou, como também, criou ele próprio um sistema que em seu entender daria uma resposta melhor às questões éticas humanas. Esse indivíduo foi Immanuel Kant. SAIBA MAIS Immanuel Kant Antes de conhecermos a vida de Kant, é útil saber que ele já foi considerado um dos maiores filósofos da era moderna (VAUGHN, 2016, p. 102; RACHELS; RACHELS, 2013, p. 122). Immanuel Kant nasceu em 1724 em Ko- nigsberg na Prússia, hoje Rússia. Sua família era pobre, seguia a doutrina cristã pietista e seu pai era um arte- são que fabricava arreios para selas. Sem condições para estudar em bons colégios, foi auxiliado por um pastor que viu o seu potencial e conseguiu os meios para que pudesse ter uma boa educação formal. Trabalhou por algum tempo como tutor para algumas famílias, depois se tornou uma espécie de professor de reforço para os alunos da Universidade de Konigsberg e aos 46 anos de idade, professor de lógica e metafísica da mesma universidade. 63 FUNDAMENTOS DA ÉTICA Viveu uma vida modesta, sempre muito atarefado e com a saúde debilitada. Costuma ser retratado como alguém moralista e metódico, mas essa imagem precisa ser ba- lanceada com a de alguém sociável e professor popular. É dito que seus alunos “nunca deixaram uma de suas pa- lestras de ética sem terem se tornado homens melhores” (BECKER; BECKER, 2001, p. 929). Ele nunca chegou a casar-se ou viajar para muito além dos arredores da sua cidade natal e faleceu um pouco an- tes de completar 80 anos (SANDEL, 2012, p. 136; VAUGHN, 2016, p. 102). Kant foi um filósofo de capacidade analítica muito profunda, seus livros não são fáceis de ler, mas contribuem para discussão de como descobrir o que é certo e errado. Sua ética é conhecida como deontológica, essa palavra remete aos termos gregos deon que significa dever, e logos que pode ser traduzido como estudo e em alguns momentos essa ética se posiciona como crítica ao pensamento de Jeremy Benthan. Sobre o utilitarismo, Kant escreveu: “[O princípio utilitarista] não traz nenhuma contribuição para o estabelecimento da moralidade, visto que fazer um homemfeliz é muito diferente de fazê-lo um homem bom” (KANT, 2007, p. 442). Essa crítica toca num ponto realmente complicado do utilitarismo, afinal a busca pelo prazer levará invariavelmente 64 ÉTICA CRISTÃ o homem para ações morais ou poderá levá-lo a tomar decisões sem princípios éticos? Vejamos a proposta de Kant. Kant conheceu o utilitarismo e corretamente entendeu que a ação era avaliada somente pela sua consequência, não importava o porquê de se agir daquela forma. Se por acaso uma pessoa estivesse diante de alguém se afogando e fosse salvá- lo, o único fator que importava era se o indivíduo havia sido salvo ou não, mas para Kant a motivação fazia muita diferença. Alguém poderia ter ido em ajuda do afogado por compaixão, responsabilidade ou para conseguir uma recompensa, por isso para Kant, o utilitarismo apresentava um sistema sem base moral, pois para ele o motivo da ação era fundamental para determinar seu valor. Sendo assim, em seu sistema, Kant precisava preservar a pureza do propósito da conduta. Para isso ele estabeleceu que todas as ações deveriam ser motivadas pelo dever e só por isso, qualquer outra motivação seria um meio para conseguir algo e, portanto, não era puro. Vamos entender isso melhor. Por que um aluno deve estudar? Bem, há vários motivos tais quais, querer uma boa profissão, ter uma carreira de sucesso, impressionar seus pais ou amigos, para Kant a única motivação correta seria “este é o meu dever!” 65 FUNDAMENTOS DA ÉTICA Sua lógica está fundamentada na ideia de que, por exemplo, se a motivação fosse “quero ter sucesso!”, o que o motivava o aluno a agir daquela forma seria o desejo por sucesso, e por isso, seu objetivo seria de fato o sucesso e não a moralidade, e dessa maneira, em busca do sucesso, ele poderia até cometer atos imorais. Se alguém salva uma pessoa de se afogar por conta de uma recompensa, o seu objetivo é a recompensa e não a moralidade, por isso Kant desprezava a lógica da consequência e se apegava à pureza moral que só poderia ser conseguida, segundo ele, relacionando todos os nossos atos ao dever. Esse dever ele ligava a um conceito muito importante em sua ética, o conceito do imperativo categórico. O que ele entendia por essa expressão? Kant definiu em dois momentos o que seria isso e porque só isso manteria a pureza de nossa obrigação moral. O primeiro conceito do imperativo diz que se deve agir “somente conforme aquela máxima pela qual simultaneamente você pode desejar que tal ato torne-se uma lei universal” (KANT, 2007, p. 33), isso posto, pode-se entender que os nossos atos deveriam ser de tal forma que você desejasse que todas as pessoas do planeta agissem do mesmo modo. Ajudar o próximo é algo que todas as pessoas do planeta deveriam fazer? Sim, então pelo primeiro conceito, isso seria um ato moral. 66 ÉTICA CRISTÃ Caso você encontre uma carteira jogada no chão, o que deveria fazer? Se você entende que todas as pessoas do mundo, diante dessa situação, deveriam devolver o objeto ao seu devido dono, então devolver a carteira é o ato moral correto. Você pode agora até perguntar: e se alguém pensar diferente disso? E se alguém raciocina que o melhor seria ficar com o dinheiro pois quem perdeu é descuidado?, Kant apelaria ao bom senso, diria que se todos usassem a sua razão da forma correta, se colocando no lugar do outro, chegariam todos à mesma conclusão, o melhor seria devolver. O outro conceito que Kant utiliza para definir o imperativo categórico é aja “de forma a tratar a humanidade, seja na sua pessoa, seja na pessoa de outrem, nunca como um simples meio, mas sempre, e ao mesmo tempo, como fim” (KANT, 2007, p. 69). Deste outro conceito entendemos que é preciso respeitar todos os indivíduos, não é moral utilizar qualquer pessoa como meio para conseguir algo que eu quero. Se nos lembrarmos do caso acima mencionado da minoria dos indivíduos pagando um imposto para o benefício de uma maioria que era visto como moral no utilitarismo, a deontologia se oporia a essa ideia afirmando que nunca seria moral que um indivíduo, ou uma sociedade, se beneficiassem do prejuízo de outra pessoa ou de um grupo 67 FUNDAMENTOS DA ÉTICA menor. É preciso respeitar a liberdade de cada pessoa, esse é um limite para a ação ética. Com esses dois conceitos em mente podemos avaliar os atos segundo esta ética. Se o nosso dilema ético passar afirmativamente por estas duas definições, “isso é algo que todos deveriam fazer? Estou respeitando todas as pessoas e não usando ninguém como meio para conseguir o que eu quero?” Então o ato é moral, segundo Kant. Em seus escritos, no intuito de manter puros os propósitos de cada ato, Kant chega ao ponto de dizer, por exemplo, que se alguém ajudar uma outra pessoa por compaixão, este não seria um ato moral, apenas louvável, pois diante de nossos dilemas devemos olhar a intenção à luz dos imperativos categóricos, ou seja, ajudar ao próximo é algo que todos deveriam fazer? Sim. Estou respeitando o outro e não o utilizando como meio? Sim. É pela afirmativa às duas perguntas que um ato surge como dever moral, se por acaso sou motivado pela compaixão, essa seria um meio frágil que não garante a moralidade, ou seja, se essa é a motivação, no dia em que não sentir compaixão não ajudarei o próximo, sendo assim a minha ética se torna instável e não garante o que de fato seria certo ou errado. Compreendendo a lógica, parece realmente 68 ÉTICA CRISTÃ que Kant consegue estabelecer uma estrutura não sujeita às variações emocionais, culturais ou de um grupo, que era o caso do utilitarismo. Essas duas éticas, o utilitarismo e a deontologia, são até hoje bastante influentes e usadas como recurso para se descobrir o que é o certo e o errado. Em alguns momentos se opõem, mas há casos em que concordam. O mais importante é que cada uma delas tem seus pontos positivos e negativos; o utilitarismo parece uma boa lógica enquanto lidamos com um número grande de pessoas quando os princípios não são feridos, já a deontologia parece se adequar mais a situações em que um indivíduo precisa definir o que é o certo para ele próprio de acordo com seus valores. Para finalizar então vamos aplicar as duas teorias no problema do bondinho e analisar a resposta que vamos obter. Focaremos na primeira situação, devemos puxar a alavanca? Utilizando a lógica utilitarista devemos pensar na ação que trará mais felicidade para a maioria como consequência, e essa opção seria puxar a alavanca, pois dessa forma teremos cinco pessoas mais felizes, juntamente com seus familiares, e uma pessoa falecida com seus familiares sofrendo. 69 FUNDAMENTOS DA ÉTICA Ao usar a deontologia, devemos nos perguntar: puxar alavanca e salvar cinco ao invés de um é algo que todos deveriam fazer? A resposta neste caso pode ser dividida, e não termos uma resposta precisa. Fazendo a segunda pergunta temos, estou respeitando o outro e não o utilizando como meio? Bem, neste caso é claro que se eu puxar alavanca estarei utilizando o indivíduo da pista secundária como meio para salvar cinco pessoas, isso a deontologia considera errado. Logo, uma vez que eu não encontro uma resposta negativa para qualquer uma das duas definições de imperativo categórico o ato não é moral, então, segundo esta teoria, não devemos puxar a alavanca. Agora que já temos os conceitos básicos de ética, estamos prontos para avançarmos para o próximo tópico por meio do qual discutiremos a ética cristã. CONSIDERAÇÕES FINAIS Como vimos nesta unidade, ao tomarmos uma decisão moral utilizamos uma estrutura processual que funciona em nosso cérebro organizando um complexo sistema de referências, experiência e raciocínio. Saber, tanto como isso funciona em nós, quanto no outro, nos ajuda a sairmos das 70 ÉTICA CRISTÃ conversações corriqueiras dentre as quais se discute quem está certo sem saber como se chegou àquele resultado. Podemos tanto sozinhos, em casa, quanto no trabalho,percebermos como estamos tomando decisões e como as pessoas com quem nos relacionamos também utilizam esses elementos. É importante também lembrar do que aprendemos sobre o desenvolvimento moral com Kholberg, a sua afirmação de que muitas pessoas não conseguem ter um desenvolvimento moral adequado e podem chegar a se tornar adultos incapazes de fazerem análises éticas, refletir sobre valores e que podemos auxiliar essas pessoas a se desenvolverem também. Se começamos essa unidade apresentando os grandes desafios éticos que nossa sociedade enfrenta, um modo de tentarmos ajudar esse cenário é promover um ambiente de trabalho por onde o refletir e a oportunização de crescimento moral possa ser uma realidade. Por fim, ao estudarmos o utilitarismo e a deontologia, foi possível conhecer duas estruturas de análise de tomada de decisão que puderam ser examinadas, não só como auxiliares do pensar ético, mas que foram exaltadas em seus pontos positivos e criticadas em seus pontos negativos. Saber isso, também nos ajuda a perceber se tomamos decisões mais deontológicas ou utilitaristas, seus pontos fortes e frágeis. 71 FUNDAMENTOS DA ÉTICA Espero realmente que este conteúdo tenha sido útil para você e para suas relações profissionais. Nos vemos na unidade 2. RESUMO Nesta unidade aprendemos que: • O processo de tomada de decisão compreende os seguintes elementos: autoridade, valores, ética, leis e moral; • A autoridade é dividida em três fontes, a saber: a individual, em que a própria pessoa é quem determina o que é o certo e errado; a segunda fonte são os coletivos sociais, em que a sociedade ou grupos associados estabelecem o que se deve fazer; e, por fim, as fontes externas que são divididas em conceitos, figuras de autoridade ou divindades; • Os valores são pontos de referência que recebemos das figuras de autoridade, e que se mantêm como marcadores ou limites que gostamos de ter; • A ética pode ser vista de duas formar: como caráter e como hábitos; 72 ÉTICA CRISTÃ • A lei é o produto da reflexão ética que elabora regras e determinam os deveres do indivíduo; • O desenvolvimento moral acontece, segundo Kholberg, em 6 estágios e as emoções têm um papel tão importante quanto a razão; • Existem sistemas éticos que nos ajudam a tomar decisões como o utilitarismo de Jeremy Bentham que tem o foco na felicidade e consequências e a deontologia de Immanuel Kant que propõe o uso da razão para descobrir o dever à luz do imperativo categórico, sempre pesando as intenções. 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