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E s t é t i c a e H i s t ó r i a d a A r t e J o ã o C o v i e l l o Este livro apresenta a estética como campo do saber que reflete a respeito do belo, e mostra também como essa reflexão se deslocou posteriormente para a arte. No decorrer dos séculos, a estética ampliou o diálogo com outras áreas, principalmente a história da arte, marcando a interação mais vigorosa empreendida nesta obra. Problematiza-se a definição de estética, seus aspectos históricos e a capacidade de emitir juízos sobre alguma coisa. Inúmeros pesquisadores e pensadores, durante séculos, procuraram entender por que algo é belo. Também se discute sobre cultura e seu vínculo com a arte, assim como sobre as manifestações culturais e a arte popular. São muitos os temas deste livro, todos tratados sob o ponto de vista da estética e da história da arte, e que podem contribuir para a compreensão da força expressiva da humanidade. Os diversos temas se associam ou se aproximam porque os objetos pesquisados são construídos há milênios. Essa capacidade de criar ou construir é o que fascina a todos. Código Logístico 59304 Fundação Biblioteca Nacional ISBN 978-85-387-6612-4 9 7 8 8 5 3 8 7 6 6 1 2 4 Estética e história da arte João Coviello IESDE BRASIL 2020 Todos os direitos reservados. IESDE BRASIL S/A. Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200 Batel – Curitiba – PR 0800 708 88 88 – www.iesde.com.br © 2020 – IESDE BRASIL S/A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito do autor e do detentor dos direitos autorais. Projeto de capa: IESDE BRASIL S/A. Imagem da capa: Andrei Sikorskii/muratart/Shutterstock CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ C914e Coviello, João Estética e história da arte / João Coviello. - 1. ed. - Curitiba [PR] : IESDE, 2020 122 p. : il. Inclui bibliografia ISBN 978-85-387-6612-4 1. Artes - História. I. Título. 20-62819 CDD: 700.9 CDU: 7(09) João Coviello Doutorando em Filosofia na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Mestre em Filosofia e especialista em História da Arte pela PUCPR. Graduado em Psicologia pela FMU-SP. Atua como professor conteudista na área de Humanidades e como professor universitário nas disciplinas de História da Arte e Estética. Agora é possível acessar os vídeos do livro por meio de QR codes (códigos de barras) presentes no início de cada seção de capítulo. Acesse os vídeos automaticamente, direcionando a câmera fotográ�ca de seu smartphone ou tablet para o QR code. Em alguns dispositivos é necessário ter instalado um leitor de QR code, que pode ser adquirido gratuitamente em lojas de aplicativos. Vídeos em QR code! SUMÁRIO 1 Fundamentos de estética 9 1.1 Definição e objeto da estética 9 1.2 O belo 13 1.3 O sublime 17 1.4 Outras categorias estéticas 24 2 Evolução histórica da estética 31 2.1 A estética clássica 31 2.2 A estética medieval 36 2.3 A estética moderna 40 2.4 A estética contemporânea 47 3 A arte nas diferentes culturas 54 3.1 O que é cultura 54 3.2 O vínculo entre arte e cultura 58 3.3 Arte como construção, conhecimento e expressão 63 4 O conceito de manifestação cultural 71 4.1 O que é manifestação cultural 71 4.2 A manifestação cultural sob o olhar dos artistas 77 4.3 O que é cultura popular 86 5 Aspectos da cultura popular brasileira 95 5.1 Manifestações e origens da cultura brasileira 95 5.2 A cultura popular brasileira 102 5.3 A arte brasileira 107 Gabarito 119 Agora é possível acessar os vídeos do livro por meio de QR codes (códigos de barras) presentes no início de cada seção de capítulo. Acesse os vídeos automaticamente, direcionando a câmera fotográ�ca de seu smartphone ou tablet para o QR code. Em alguns dispositivos é necessário ter instalado um leitor de QR code, que pode ser adquirido gratuitamente em lojas de aplicativos. Vídeos em QR code! Este livro apresenta a estética como campo do saber que reflete a respeito da noção do belo e mostra como essa reflexão se deslocou também para a arte. No decorrer dos séculos, a estética ampliou o diálogo com outras áreas, principalmente com a história da arte, marcando a interação mais vigorosa empreendida nesta obra. O primeiro capítulo traz a definição de estética, elucidando o belo com base em nossas experiências contemporâneas. Existem questões recorrentes há muito tempo, entre elas: por que gostamos do que gostamos? A capacidade que temos de julgar é o elemento ético no cerne dessa questão. No segundo capítulo, estão relacionados os aspectos históricos da estética clássica, moderna e contemporânea. Nossa capacidade de julgar mobilizou e mobiliza um número grande de pesquisadores e pensadores e, portanto, foi necessário selecionar alguns deles a fim de mantermos a objetividade da obra. O terceiro capítulo pretende trazer uma contribuição ao estudo da estética compreendendo o vínculo entre arte e cultura. Definimos o que é cultura e depois analisamos a arte como construção, conhecimento e expressão. Outra contribuição à pesquisa estética está no capítulo quatro, que traz um estudo sobre as manifestações culturais e a cultura popular, além da visão de alguns artistas sobre esses temas. No último capítulo retomamos as manifestações expressivas, dessa vez no contexto dos diversos grupos que originaram a cultura do Brasil. Aqui o estudo recai sobre os aspectos artístico, histórico e social da cultura popular brasileira, encerrando com a noção de arte brasileira. São muitos os temas deste livro, todos tratados sob o ponto de vista da estética e da história da arte, e que podem contribuir para a compreensão da força expressiva da humanidade. Os diversos temas se associam ou se aproximam porque os objetos que pesquisamos são construídos há milênios. Essa capacidade de criar ou construir é o que nos fascina. Bons estudos! APRESENTAÇÃO Fundamentos de estética 9 1 Fundamentos de estética Antes de adentrarmos ao estudo da estética, é importante responder às seguintes questões: o que é estética e qual é o seu objeto? A palavra estética surgiu no âmbito filosófico, no campo de reflexão sobre o belo e depois sobre o fenômeno artístico, mas acabou sendo utilizada também em outras áreas do conhecimento. Junto à estética, também vemos o uso do termo belo, núcleo da discussão em torno desta disciplina, a qual chamamos de esté- tica. Aqui surgem também os primeiros temas de debates: o que é o belo e quem determina que um objeto, uma pessoa ou uma obra de arte é belo. Mais dúvidas surgirão. O belo está no próprio objeto ou nos olhos de quem o vê? Ou seja, o gosto (tratado também como juí- zo) é objetivo ou subjetivo? Gosto se discute? Essa é a razão desta disciplina: mostrar duas posições. Há aqueles que dizem que gosto não se discute e há aqueles que dizem o contrário. Por fim, também abordaremos outras categorias estéticas, como o sublime, o feio, o repugnante e o grotesco. 1.1 Definição e objeto da estética Vídeo Você percebeu que a palavra estética é um substantivo? No dia a dia essa palavra é utilizada em vários contextos, como na atividade profissional voltada à conservação da beleza física, por exemplo. Aconte- ce, porém, que quando nos referimos às qualidades formais de alguma obra de arte ou de um objeto, utilizamos o adjetivo estético. Podemos, por exemplo, nos referir ao aspecto estético de uma mesa e elogiar o trabalho de um marceneiro. Atualmente, usamos também a expressão procedimento estético quando fazemos referência à correção dos dentes, por exemplo. Desejamos que eles fiquem harmoniosos e, portanto, be- los. O adjetivo estético, no decorrer dos séculos, tornou-se sinônimo de belo, e a disciplina que estuda o belo acabou por se chamar estética. Isso leva a muitas questões, dentre elas: uma obra se torna obra de arte apenas por ser bela? Se você respondeu que sim, lembraremos que os modernistas doséculo XX trataram de questionar essa afirma- ção. A arte contemporânea, aquela que se faz agora, tratou de ser ainda mais radical nesse assunto. O termo estética surgiu em 1735 no livro de um jovem doutorando de Filosofia chamado Alexander Gottlieb Baumgarten (1714-1762). No penúltimo parágrafo de sua tese, ele criou a palavra que seria utilizada para sempre. Nele, Baumgarten afirma que as coisas inteligíveis são conhecidas por meio de uma faculdade de conhecimento superior, a lógica; enquanto as coisas sensíveis são objetos da ciência estética (BAUMGARTEN, 1993). A estética, portanto, nasceu sob o signo da desconfiança do próprio criador do termo. Ela não dará conta das coisas inteligíveis, aquelas que só podem ser apreendidas pelo intelecto e que são objetos da lógi- ca. Assim, não é pelo intelecto que o belo é captado, mas pela sensibili- dade humana. Para Baumgarten, a capacidade de apreciar o belo se dá apenas pelos órgãos dos sentidos. Você concorda? Baumgarten cunhou a palavra estética a partir da palavra grega aisthesis, que pode significar sensibilidade, sensação ou percepção por meio dos sentidos. No primeiro parágrafo do livro estética, de 1750, ele afirmou que a estética é a ciência do conhecimento sensitivo (BAUMGARTEN, 1993). Foi assim que essa nova “ciência” surgiu. O filósofo formalizou em uma palavra o conjunto de indagações que estava vivo há séculos na obra de grandes pensadores. Platão, por exemplo, há quase 2.500 anos, escreveu sobre a noção de belo. Hoje, porém, podemos pensar em uma definição estendida da noção de estética, pois ela não está mais vinculada apenas ao belo. O termo estética parece não ter nascido por acaso no século XVIII, período em que há mudanças significativas na relação entre o público e a obra de arte. Nos referimos a um público que tinha condições finan- ceiras para desfrutar do prazer estético de um objeto artístico. Des- se período em diante, um grupo emergente se tornou importante: a burguesia, que detinha o poder econômico, mas não o poder político. Com a derrocada dos regimes absolutistas na Europa, principalmente após a Revolução Francesa e as primeiras décadas da Revolução Indus- trial, ocorreu uma inversão de poder. A definição mais simples de arte contemporânea é a arte feita neste momento, que abrange a arte feita nos últimos 50 anos, já que esse período é muito pequeno quando pensamos em termos históricos. Ela representa uma mudança radical no uso de materiais e suportes utilizados pelos artistas. O uso da expressão arte contemporânea também é útil para diferenciá-la de arte mo- derna, ou seja, aquela realizada pelos artistas vanguardistas do final do século XIX . Saiba mais PPPPPPP/WikimPdiP CommoPP Figura 1 Alexander Baumgarten cunhou o termo estética, utilizado até hoje. 10 Estética e história da arte Fundamentos de estética 11 Portanto, uma nova classe social emergia, com dinheiro, conheci- mento e disposição para desfrutar de obras de arte. A relação entre os artistas e seus contratantes mudou. O mecenas, como era conhecido o protetor dos artistas, já não era mais o clero ou os príncipes. Foi o fim do “artista da corte”, que vivia e trabalhava no palácio. Além disso, a criação do Salão Parisiense permitiu que um público maior tivesse contato com obras até então limitadas àqueles que as encomendavam. Não é por acaso que a crítica de arte nasceu também nesse momento. A criação do primeiro museu, o Louvre, em Paris, é consequência desse movimento de visibilidade da arte. É possível cha- mar esse período de Era da Estética. Daí em diante, a obra e o artista passaram a ser centrais. LANGOIS, N. O Salão de 1699 [Academie Royale de Peinture et Sculpture, Louvre]. 1700. Gravura. Biblioteca Nacional da França. O Salão Parisiense foi criado em 1667, pela Academia Real de Pintura e Escultura. O nome salão se tornou popular quando passou a ser realizado, a partir de 1699, em um dos salões do prédio onde seria criado o futuro Museu do Louvre. W ik im Pd iP C om m oP P O diagrama a seguir (Figura 2) demonstra como se ampliou o inte- resse pela obra de arte. Ela passou a ser discutida em ambientes pú- blicos, como nos jornais, por exemplo, com o início da crítica de arte. Outras áreas de conhecimento também passaram a se interessar pela obra de arte, como a sociologia, que passou a investigar os condicio- namentos sociais e a influência das visões de mundo sobre a arte. A psicanálise é outro exemplo, preocupada em compreender a arte, tan- to a criação artística quanto os efeitos sobre o espectador, do ponto de vista subjetivo. Todo esse processo começou com filósofos e artistas interessados no fenômeno estético. Inauguração do Museu do Louvre. 1793 Criação da Real Academia de Londres. 1768 Contemporaneidade Grécia Criação da Escola de Belas Artes de Paris. 1635 O Salão Parisiense passou a ser aberto ao público anualmente. 1677 Lançamento do Tratado chamado Estética. 1750 Baumgarten cunha o termo estética em sua tese. 1735 Publicação de História da Arte Antiga, de Johann Joachim Winckelmann. 1763 12 Estética e história da arte Fonte: Elaborada pelo autor. É necessário ouvir o que os artistas têm a dizer sobre suas pró- prias práticas. Uma das tarefas do pesquisador é ouvir. Entretanto, o principal sentido do pesquisador da arte não é ver? Chegamos a uma questão que a estética clássica sempre ensinou: a possibilidade do conhecimento por meio dos sentidos. Assim mesmo, no plural. Se a estética precisou vencer a barreira do preconceito que afirmava ser o conhecimento intelectual mais importante que o sensitivo (ou seja, o estético), não podemos repetir a mesma intolerância com uma forma de conhecimento tão necessária quanto qualquer outra. Agora, é possível perceber por que afirmamos que a estética nasceu em um momento no qual a obra de arte passou a ser visível a um número maior de pessoas. A estética é, portanto, uma das primeiras manifestações do esforço de sistematizar o conjunto de ideias em torno da relação entre obra e espectador. No entanto, vale lembrar que ela não nasceu como uma preocupação específica com a arte, mas como forma de análise das sensa- ções e sentimentos de quando se contempla a natureza ou uma obra de arte. Sua preocupação inicial é compreender aquilo que é fruto de nossa sensibilidade e, com o tempo, a obra de arte passou a ter destaque. Teorias da arte História da arte + Crítica de arte Figura 2 O interesse pela obra de arte PP pp yP ict ur PP /S hu ttP rP to ck /S hu ttP rP to ck Filosofia da arte SociologiaPsicanálise Demais áreas do conhecimento Estética Fundamentos de estética 13 1.2 O belo Vídeo A definição mais simples de belo associa um objeto a proporções simétricas, como na definição grega anterior a Platão. Eles valorizavam principalmente a harmonia das proporções. Platão, por sua vez, achava que o belo estava sempre associado ao bom e, por isso, afirmou que o belo possui uma conotação moral. Também podemos considerar o belo como algo que provoca uma sensação agradável, como os filósofos do século XVIII trataram o tema. Já para os primeiros teóricos da estética, como Baumgarten, o belo é apreendido por meio da sensibilidade, e não pelo intelecto. Isso ocorre pelas qualidades do objeto, como proporção, harmonia e simetria. Nesse caso, somos capazes de denominar algo de belo quan- do nos desperta uma satisfação especificamente estética. Para Arthur Schopenhauer (2005), a fonte da fruição estética reside na tranquilidade espiritual, livre do querer e da individualidade ligada a este. Friedrich Nietzsche (2011) responde que a beleza está onde o querer existe, onde uma imagem não permaneça apenas imagem. Ou seja, para Schopenhauer, só é possível contemplar a beleza silenciando a vontade; já para Nietzsche, é o contrário, a fruição estético ocorre quando se é livre para gostar ou afastar o objeto de amor. Para Schopenhauer, o querer aprisiona; para Nietzsche,liberta. Tratar do belo se tornou uma questão difícil porque há um outro ele- mento em jogo: o gosto. É difícil não acrescentar outra palavra ao termo gosto. Assim, ele vem sempre acompanhado, tornando-se, por exemplo, gosto individual. Antes de responder se o gosto é, de fato, uma questão individual, pense em mais algumas questões apresentadas a seguir. ? ?Se o gosto é só o resultado de uma reação individual, por que discutir o valor do belo? Como investigar um objeto sem utilizar instrumentos racionais? A pergunta mais direta é: por que a arte é apenas para sentir, não para pensar? Um objeto (como uma obra de arte) é autônomo, fruto somente do empenho de quem o criou ou é resultado de condições históricas? Ou ele é o resultado de dois fatores: uma vontade criativa e do ambiente histórico no qual o artista vivia? fruição: Ato de obter prazer a partir de algo. No caso da fruição estética, o prazer é obtido por meio da relação com a obra de arte, principalmente se a consi- deramos bela em si mesma. Glossário 14 Estética e história da arte Você já deve ter ouvido uma frase sugerindo que o gosto é subjeti- vo, como “cada um tem seu próprio gosto”. Também já deve ter ouvido uma outra frase, que sugere objetividade: “ele tem mau/bom gosto”. Essa polarização sempre existiu. Estética, belo e gosto parecem insepa- ráveis. A apreciação (o ato de atribuir valor) de uma obra de arte pode derivar de uma opinião subjetiva, mas também de uma exigência de objetividade, como no caso da crítica de arte. Quando afirmamos que algo não é belo, estamos estabelecendo comparações entre dois objetos. Podemos pensar, então, que estamos usando critérios para fazer essas comparações e concluir que o gosto é objetivo. Nesse começo de discussão, podemos afirmar que o gosto nasce de nossas apreciações, de nossos julgamentos e de nossos senti- dos, como disse Baumgarten. O exame de prós e contras de cada uma dessas posições está apenas no início. Estamos acompanhando um movimento cronológico que come- çou no século XVI e culminou com a fundação do primeiro museu, o Louvre, após a Revolução Francesa. Todas essas revoluções ajudaram a dar visibilidade às obras de arte e à preocupação teórica sobre o belo e o gosto. Além disso, vemos que esses eventos históricos estão direta- mente associados ao nascimento de uma nova classe social, bem como ao nascimento da estética como disciplina autônoma. Percebemos, en- tão, que a noção de belo é, também, uma construção histórica. As transformações históricas, que repercutem até hoje, ajudaram na definição do juízo estético – como Immanuel Kant se referia ao ato de julgar que nos possibilita gostar de algo por si mesmo, livres de quaisquer interesses e desejos – daquele momento. Mas isso não res- ponde a nossa questão principal: por que gostamos do que gostamos? Ou, por que consideramos um objeto belo? Estamos ainda em uma fase especulativa. Neste momento, reflita sobre o fenômeno estético, a ideia de que algo belo tem valor estético – qualidade conferida a um objeto, podendo considerá-lo belo ou não – , pode ser considerado uma consequência dos juízos estéticos. Ou seja, o momento em que o estético passou a ser sinônimo de algo belo, e a decisão ainda estava no sujeito que vive a experiência estética. Voltamos à questão inicial: a experiência é sensorial ou inte- lectual? Quando afirmamos que uma flor é bela, consideramos a harmonia de sua forma e de suas cores, sua perfeição plástica e Picasso 1907 Criação da Real Academia de Londres. 1768 Contemporaneidade Grécia Revolução Inglesa 1640 – 1688 Desenvolvimento do motor a vapor. 1698 – 1777 Revolução Americana 1776 – 1783 Revolução Francesa 1789 – 1799 Criação da Escola de Belas Artes de Paris. 1635 O Salão Parisiense passou a ser aberto ao público anualmente. 1677 Lançamento do Tratado chamado Estética. 1750 Baumgarten cunha o termo estética em sua tese. 1735 Publicação de História da Arte Antiga, de Johann Joachim Winckelmann. 1763 Fundamentos de estética 15 elegância. Além disto, destacamos o prazer estético que ela propor- ciona, uma espécie de deleite misturado com emoções que a flor também é capaz de causar. Provavelmente é assim no cotidiano, quando resolvemos pintar a casa ou comprar um sofá novo. A cor e a forma deverão estar em equilíbrio com as cores das paredes e os outros móveis da sala. PhotogrPphPP.Pu/ShuttPrPtock Figura 3 Um mundo proporcional e harmonioso Nesse exemplo, a escolha das formas e cores é exclusivamente nossa ou a beleza das proporções e o equilíbrio das cores estão nos próprios objetos? Perceba que, na Figura 3, as cores dos móveis combi- nam com a parede e o tapete. Além disso, a perspectiva colabora com a percepção que temos do espaço, tornando-o ainda mais harmonioso, e os objetos parecem belos. A teoria da arte do século XX nos ajuda a resolver esse enigma: quando alguns artistas e teóricos afirmam que o espectador “completa” a obra de arte, eles nos ajudam a responder que a solução do enigma estético está no meio, ou seja, entre o próprio objeto e a nossa subjetividade. Parece uma resposta fácil e isenta de contradições, mas não é. Vejamos o que diz um artista: o heterônimo de Fernando Pessoa (2005, p. 51), 16 Estética e história da arte Alberto Caeiro, no canto XXVI do poema “O Guardador de Rebanhos”, que apresenta as seguintes ideias: Às vezes, em dias de luz perfeita e exacta, Em que as cousas têm toda a realidade que podem ter, Pergunto a mim próprio devagar Por que sequer atribuo eu Beleza às cousas. Uma flor acaso tem beleza? Tem beleza acaso um fruto? Não: têm cor e forma E existência apenas. A beleza é o nome de qualquer cousa que não existe Que eu dou às cousas em troca do agrado que me dão. Não significa nada. Então por que digo eu das cousas: são belas? Sim, mesmo a mim, que vivo só de viver, Invisíveis, vêm ter comigo as mentiras dos homens Perante as cousas, Perante as cousas que simplesmente existem. Que difícil ser próprio e não ver senão o visível! SPPPoPP SPPPgPPkPorPt/ShuttPrPtock Pessoa dedicou todo o canto XXVI de seu longo poema ao tema da beleza. Isso significa que o assunto o tocou. Além disso, Alberto Caeiro é seu heterônimo mais preocupado com os sentidos e, portanto, menos com os conceitos, o escolhido para falar do belo. Ele responde a nossa pergunta: o belo (ou a beleza, como Caeiro escreve) está em mim e não nas coisas. Está nos meus sentidos, ou melhor, no modo como os deixo abertos. Uma flor não tem beleza, apenas existe (cor e forma). Assim, a beleza é aquilo que não existe, é apenas um julgamento que agrada os sentidos. O juízo que passa pelos sentidos do observador não pertence à flor, mas a ele próprio. A posição radical do poeta tem um motivo: Pessoa explica que Caeiro é fundador do Sensacionismo, movimento que prega a relação direta entre sensações e objetos. Para o heterônimo de Pessoa, tudo é sensação: nossa vida, Deus ou a arte. O valor que damos à sensação é o valor estético. É pelos sentidos que chegamos à verdade das coi- Fundamentos de estética 17 sas. Caeiro radicaliza o esteticismo do século XVIII e retoma o filósofo David Hume, para quem a estética era um sentimento. Assim, “gostar” ou “não gostar” de algo não é uma atividade intelectual. 1.3 O sublime Vídeo Se o belo gera tantas questões, outra categoria estética 1 (derivada dele) também gera: trata-se do sublime. Afirma-se que o termo belo já era utilizado e tomou corpo no século XVIII. No mesmo período, o termo sublime também passou a ser usado com mais frequência pelos filósofos. Segundo Kant (2002, p. 93), o belo “pressupõe e mantém o ânimo em serena contemplação”. Já o su- blime possui uma particularidade: ele causa prazer imediato, mesmo causando resistência de nossos sentidos, por ser absolutamente grande. Podemos dizer que esse objeto da natureza determina nosso estado de espírito por causa de sua inacessibilidade. Kant ainda faz a distinçãoentre sublime matemá- tico e sublime dinâmico. O filósofo exemplifica o su- blime matemático com a experiência de se entrar pela primeira vez na Basílica de São Pedro, em Roma. Uma perplexidade capaz de levar o observador a en- tregar-se a tanta grandiosidade. Os exemplos para o sublime dinâmico são as nuvens carregadas, a luz provocada pelos relâmpagos, furacões, o mar revolto, enormes quedas d’água etc. Esses espetáculos são sublimes porque elevam nossa faculdade de resistên- cia e nos encorajam a contemplá-los, são atraentes, ainda que terríveis. A arte, diz Eco (2015), não representa apenas a natureza em um momento sublime, mas busca representar a nossa experiência do sen- timento do sublime. Podemos dizer que, sem a disposição de ânimo do espectador, essa representação artística do sublime não é vivenciada. Edmund Burke (1729-1797) publicou, em 1757, o livro Investigação filo- sófica sobre a origem de nossas ideias do Sublime e da Beleza. Sua preocupa- ção era a paixão causada pelo grandioso e, portanto, sublime. Para Burke, o poder do sublime ocorre antes de nossos raciocínios e o sentimos como uma força irresistível. O filósofo utiliza também a palavra assombro para Usamos a expressão categoria estética, com alguma liberdade, para ilustrar que cada um dos conceitos apresentados (belo, sublime, feio etc.) pode ser abrangido em um mesmo conjunto. 1 Desde o final do século I ou III, não se sabe ao certo, o termo sublime já aparece. Foi publicado um texto atribuído a Pseudo Longino, chamado Tratado sobre o sublime, que falava da poesia e da retórica. No nome do autor está a palavra pseudo, porque também não se tem certeza de quem é. Curiosidade 18 Estética e história da arte designar o momento de grande espanto, admiração ou mesmo terror (BURKE, 2016). Um exemplo pode ser uma enorme onda, vazada pelos raios do sol. Ela poderá representar um grande perigo, mas também pro- porcionar uma experiência sublime, de imensa beleza, a qual teremos dificuldade de expressar em palavras. A obra ao lado é uma das mais reproduzidas quando se pretende dar um exemplo do sublime. É um quadro do pintor romântico Caspar David Friedrich (1774-1840), no qual estão presentes características que Burke achava relevantes ao descrever o sentimento do sublime. Apesar de o personagem estar de costas, é possível imaginar o assombro que sentiu. O ensaio de Burke trata da recepção dessas experiências e como elas influenciam nosso com- portamento. Além disso, Burke dialoga com outros filósofos, dentre eles o próprio Baumgarten, cul- minado por dar forma a um jeito de pensar con- temporâneo: aquele que admite o valor de uma obra se ela for, antes de tudo, bela. Se for sublime, melhor ainda, pois aí teremos o máximo da beleza. 1.3.1 O sublime que se torna sentimento e a arte contemporânea Ora, é da arte contemporânea que se está falando o tempo todo. É pensando nela que todas as perguntas são lançadas, mesmo quando dirigidas à arte do passado. É para ela que o olhar se move e que se faz a pergunta de todas as perguntas, a pergunta mãe: isto é arte? Imagine um crítico que tivesse por volta de trinta anos em 1907, ano do aparecimento de Les Demoiselles d’Avignon, de Picasso. Esse crítico, durante sua juventude, estudou desenho e pintura. Dedicou horas de estudo à perspectiva. Visitou muitas vezes o Museu do Louvre e, como quase todos os estudantes, dedicou-se a copiar os grandes mestres e a entender os cálculos matemáticos que fizeram. Seu esforço foi enor- me. Alguns de seus colegas colocavam o lápis na ponta do nariz, me- diam intuitivamente o espaço do quadro e desenhavam perfeitamente o que estava à frente. Ele, ao contrário, usava régua e esquadro, calcu- lava detalhadamente o ponto de fuga e todas as linhas que para ela Aproveitaremos este momento para começar a introduzir uma discussão sobre a arte contemporânea. Ela é o nosso horizonte. Perceba que estamos falando do passado, mas não podemos esquecer que todas as perguntas que fazemos ao passado possuem bases no presente. O que se quer, talvez, é buscar sentido na arte realizada nos últimos 50 anos. Atenção FRIEDRICH, C. D. Caminhante sobre o mar de névoa. 1817. Pintura a óleo, 94,8 x 74,8 cm. Hamburger Kunsthalle, Hamburgo. confluíam. A dedicação era extrema e seus princípios eram claros e de- finidos, mesmo quando destruía um pouco a figura ou quando exage- rava no uso da cor. Por isso, quando abandonou a pintura e começou a escrever para jornais e revistas, nunca foi duro com a arte moderna que estava vendo nascer. Mas quando o jovem Pablo Picasso apresen- tou suas senhoritas, ele se perguntou: isto é arte? O pintor espanhol tinha quase sua idade e estudou pintura quase no mesmo período no qual o crítico também estudara. Eram, portanto, contemporâneos; mas onde estava a perspectiva, a profundidade, a luz? Quando pensamos o contemporâneo, perguntamos primeiro: contemporâneo de quem ou do quê? Somos contemporâneos das obras realizadas hoje, nada além disso. O crítico contemporâneo, que desistira da pintura, quase desistiu também da crítica de arte. Picasso comprometeu sua segurança e quase o fez perder o controle, mas o final foi feliz. Em vez de transformar sua incapacidade de entender o que fez o gênio espanhol e agredi-lo por desconstruir séculos de tradição pictórica, o crítico parou e refletiu. Demorou muito para concluir que Demoiselles era uma obra de arte. Sempre que topava com uma obra radical, pensava em Picasso e no que sentiu naquele ano de 1907. E o que sentiu passou a ter um caráter mais determinante em seus julgamentos. Passou a prestar mais atenção no efeito que uma obra causava, principalmente sensações de afeto ou rejeição. É difícil dizer se ele se tornou um crítico melhor, mas sua atitude mental o ajudou a ser mais sensível sobre aquilo que o afetava, o que melhorou sua percepção, qualidade necessária a quem se dedica à crítica. Para o jovem crítico do começo do século XX, os quadros de Picasso não eram belos nem sublimes. Ainda assim, tentou compreender suas sensações diante deles. Se não eram para serem contemplados, o que eram? Dizer que algo é belo ou sublime é fazer um julgamento. É assim desde quando a palavra estética foi criada no século XVIII. O psica- nalista Carl Jung (1875-1961) considerava o sentimento uma das funções psicológi- cas básicas. Nele, estariam conjugados subjetividade e julgamento, que seriam fundamentais para o valor que atribuímos a alguma coisa. Para conhecer a obra Les Demoiselles d’Avignon, você pode acessar este QR Code com a câmera do seu celular. Vale a pena dar uma olhada! Dica Bum blP DPP/ShuttPrPtock Figura 4 Les Demoiselles D’Avignon, de Picasso, exposta no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque em 2018. 19Fundamentos de estética 20 Estética e história da arte O sentimento atribui um valor no sentido de aceitação ou rejeição, pra- zer ou desprazer, capaz de alterar até nossa disposição de ânimo, ou seja, nosso humor (JUNG, 2009b). Jung não tinha em mente apenas a experiência estética, mas é difícil não pensar nela quando o vemos destacar o que sentimos não como fenômeno secundário, dependente de representações ou sensações, mas como função psicológica básica e autônoma. A ênfase em uma es- tética da recepção, calcada ainda na reação do espectador, é necessária para a compreensão da nossa relação com a arte, seja ela contempo- rânea ou não. Não é difícil concluir que nossa capacidade de criar ima- gens (artista) e vivenciar as imagens (nós, os espectadores) nascem no psiquismo humano, o ventre de todas as artes e ciências (JUNG, 2009a). É legítimo, então, fazer a associação entre o sublime e o sentimento. Retomemos a disposição de ânimo, da qual fala Jung, e pensemos em nossa reação diante de uma imagem: fixemos nossa análise no pro- cesso de aceitação e rejeição, visto que ele é fundamental para a com- preensão de nossa relação com a arte. Por que rejeitamos determinada obrae outra pessoa não? Jung explica que o sentimento é uma espécie de julgamento; diferente, porém, do julgamento intelectual, pois não busca relações conceituais, e sim aceitação ou rejeição subjetivas. Para Jung, a chave da questão é a valorização, por meio do sentimento, de um conteúdo que percebemos na consciência, mas que independe do estímulo exterior (JUNG, 2009b). Vemos, contudo, que as coisas funcionam como se um espelho estivesse em frente a outro. Não há oposição entre o racional e o irracional nesse caso. O julgamento, tão importante para o juízo estético, torna-se natural no processo de gosto. Apesar de subjetivo, esse julgamento passa pela função racional. É um paradoxo, sim. Por enquanto, com a ajuda de Jung, estamos olhando o sentimento a partir de fora, e estabelecemos que há um sentimento estético que define nossa concepção de gosto, belo e sublime. Estamos falando do valor que estabelecemos para alguma coisa, valor que estabelecemos para um objeto artístico, seja ele qual for. Não é difícil perceber que voltamos ao ponto de partida. Há limites nos conceitos. Essa é uma lição de humildade da estética. Como com- preender o sentimento do sublime se ele é um sentimento incomensu- rável, que não tem medida, que não se expressa por números e que, de tão imenso, somos incapazes de compreender sua grandeza? Fundamentos de estética 21 É curioso como absorvemos determinados conceitos da filosofia e os deixamos mais interessantes. Sublime é um desses conceitos que, com o tempo, transformou-se em algo mais fácil de se entender. Ele é o superlativamente belo, o máximo da perfeição, o grandioso, o que há de mais elevado. Já ouvimos ou lemos essas definições ditas de outra maneira, mas a essência é a mesma, talvez por causa dos séculos nos quais o termo sublime circula. Retornamos à questão do gosto. Tanto as relações humanas quanto as relações com os objetos estão sujeitas a algum tipo de sentimen- to, principalmente pela atração ou pela rejeição. Parece que avaliamos tudo, o tempo todo. Sempre sentimos algo por alguém ou por um objeto, seja atração ou desprezo. Gostar ou desgostar está inserido em um movimento do sentir que estabelece esse tipo de avaliação. Há um sistema de valores mediando tudo isso. Quando o sentimento busca coerência em seus julgamentos, procu- rando maior gradação, o aspecto racional é mais forte, mas a ambivalên- cia, principalmente nos julgamentos estéticos, está sempre presente. A pergunta é: por que algumas pessoas vivem um sentimento vinculativo em relação a uma obra de arte e a outras têm uma reação agressiva, quase violenta? Essas nuances comportamentais demonstram o cará- ter da experiência com a arte contemporânea. A tolerância estética (ou a falta dela) parece rondar as disputas em torno da obra de arte. A defesa que fazemos de nossas reações, geralmente consideradas mais legítimas, demonstra a complexidade em nossos sentimentos. Percebemos então que categorias clássicas da estética, como o sublime, ainda explicam nossas reações. Aquele que prefere a arte abstrata ilustra involuntariamente a noção de conhecimento estéti- co. É um descobrimento sem se submeter ao princípio da razão, como queria o filósofo Schopenhauer, que incluiu a estética em suas preocu- pações filosóficas. Também, Kant, em “Analítica do Sublime”, presente em sua obra Crítica da Faculdade do Juízo, destaca que o sentimento do sublime é marcado por imagens que deixam de depender de nós. O sublime, segundo Kant, causa prazer imediatamente, pois não se submete ao interesse dos sentidos (KANT, 2002). Esse tipo de apreciação não é premeditado; acontece de modo direto, livre dos conceitos, diria ainda Schopenhauer (2005). Clement Greenberg (1909-1994) foi um importante crítico de arte americano, responsável pela divulgação do movimento cha- mado expressionismo abstrato. Greenberg foi considerado um formalista, no sentido de estar mais atento aos aspectos formais do quadro do que à exatidão visual ou ao tema. Por exemplo, ele exaltava os meios que a pintura utiliza (a superfície, o suporte, as tintas) e dizia que devemos ver um quadro como pintura. Hoje, essa afirmação pode parecer óbvia, mas o formalismo de Greenberg foi muitas vezes criticado. Quem? O filme Pollock fala sobre o artista americano Jackson Pollock (1912-1956), expoente mais conhecido do expressionismo abstrato. O crítico Clement Greenberg também é retratado no filme, que é uma oportunidade de conhecer a vida artística americana dos anos 1940 e 1950. Direção: Ed Harris. EUA: Sony Pictures Classics, 2001. Filme 22 Estética e história da arte O crítico americano Clement Greenberg (2002) dizia que o juízo es- tético é intuitivo e, portanto, involuntário. Não se escolhe gostar ou dei- xar de gostar, disse. Tudo depende de nosso foco de atenção. Dessa forma, o juízo estético é acolhido, e não oferecido. Como para Kant e Schopenhauer, para Greenberg também não valorizamos esteticamen- te uma obra pelo raciocínio. Greenberg disse em outro texto, chamado Queixas de um crítico de arte, que os juízos estéticos ocorrem na experiência imediata com a arte, e não depois por meio da reflexão. Eles são intuitivos. Greenberg (2002, p. 37-38), ao discutir a intuição por meio da definição clássica de “apreensão direta e imediata pelo conhecimento de um objeto por si mesmo”, conclui com um exemplo: quando olhamos para o céu e nos perdemos na cor azul, isso é intuição estética; mas deixa de ser quando olhamos para o céu para nos informarmos se irá chover. Intui- ção, nesse caso, é a experiência que vivemos com a cor. Essa explicação didática de Greenberg ilustra o desejo de alguém que prefere obras abstratas e coloridas, pois quer viver a experiência da cor. Nesse sentido, a fruição é uma experiência silenciosa, única e in- transferível. Ela é o ato de obter prazer a partir de algo. No caso da frui- ção estética, o prazer é obtido por meio da relação com a obra de arte, principalmente se a consideramos bela em si mesma. 1.3.2 A arte conceitual e o sublime Na arte conceitual, há o predomínio da ideia (ou conceito) sobre a obra ou sobre sua própria execução. Um exemplo é a Fonte, de Marcel Duchamp, que deslocou para o museu um objeto já pronto (ready-made) com o objetivo de questionar o próprio conceito de arte. Nesse gesto, há várias ideias: refletir sobre quem é o autor, por que a fonte não é uma obra de arte, por que a presença em um museu trans- forma um objeto em objeto de arte etc. Se é um exagero dizer que a arte conceitual nasceu com Duchamp, podemos afirmar que, com ele, tornou-se mais visível, assim como ficou mais visível a tentativa de soterrar as noções de belo, intuição: pode ser definida de duas formas: como conhecimen- to ou percepção, independente de um raciocínio que não percebemos no momento; ou como conhecimento obtido de modo direto e imediato. Glossário DUCHAMP, M. Fonte. 1917. Urinol de porcelana branca: 38.1 cm x 48.9 cm x 62.55 cm. Tate Modern, Londres, Reino Unido. Wi kim Pd iP co m m oP P Fundamentos de estética 23 sublime, autor, obra etc. Para ele, a contemplação não tinha nada a ver com suspensão da vida (no sentido de se perder na obra, de união entre sujeito e objeto), intuição estética ou sentimento intui- tivo; nada de arte bela ou sublime como o máximo da perfeição ou transcendência. Assim, uma obra de arte não precisa ser bela, precisa ser provo- cativa. Duchamp nunca disse essa frase, mas suas reflexões sobre a noção da estética sugerem uma busca por outros sentidos da arte, não somente com as categorias estéticas clássicas, como o belo. Não há dúvida de que é difícil fruir uma obra de Duchamp, mas nem por isso ela é menos significativa. Ela poderá ser (por que não?) provocativa. Milhares de páginas se escreveram e se escreverão so- bre ele, na maioria das vezes para provar que o artista francês es- tava errado. Podemos, porém, tomar um caminho mais seguro, que considera as duasteses igualmente válidas. Há obras que permitem momentos mágicos, como a vivência da intuição estética, que per- mitirá a contemplação do objeto como ele é. Há obras que podem provocar outro tipo de vivência, afastada da ideia de arte como arte bela. Nesse grupo, entrariam as obras de Duchamp. Ainda assim, mesmo que afastadas da noção de belo, rejeitá-las diminuiria nossa oportunidade de viver o vínculo com a arte como experiência e da união entre arte e vida, desejo supremo do artista francês. Ainda é possível viver a experiência do sublime com a arte. Isso não reduz a experiência com a arte conceitual. É apenas uma outra forma de perceber o objeto artístico, mesmo que seja imaterial, como as rápidas performances realizadas por alguns minutos em alguma sala de exposição. Podemos viver uma experiência especial, mesmo que dure pouco tempo e dela nada mais exista além de algumas fotos ou trecho de filme. Se não é uma experiência sublime, como caracterizada desde o nascimento da estética, ela poderá ser uma experiência particular intensa e, assim, ser também uma experiência individual, silenciosa, intransferível e única. Só minha. Que mais podemos querer em um mundo inteiramente compartilhado no qual vivemos? Essa experiên- cia é minha e de mais ninguém. E isso não é pouco. Quando falamos em performance, remetemos imediatamente ao uso do corpo como integrante da obra de arte. Os praticantes usam vários meios: literatura, poesia, música, dança e pintura. Não é algo novo; os artistas dos movimen- tos modernistas do começo do século XX já se expressavam por meio da performance. Ela é uma espécie de arte ao vivo, uma extensão do quadro. Na pintura e na escultura, o espaço é ocupado pelos objetos representados. Nas artes ao vivo, o tempo possui uma relevância menos óbvia, tornando-se o aspecto mais sutil e relevante desta discussão. Saiba mais 24 Estética e história da arte 1.4 Outras categorias estéticas Vídeo Além do belo, a estética tratou de outras categorias, como o feio. É inevitável a pergunta: se a estética é a “ciência do belo”, como tratar do feio no interior dessa “ciência”? O feio é o contrário do belo? Se a res- posta for positiva, a definição é simples: feio é todo objeto sem propor- ção e harmonia. Inspirados em outra definição, a de Kant (2002), podemos afirmar que belo é o que nos dá prazer logo após a faísca do juízo entrar em ação. Nesse caso, o feio não oferece o mesmo prazer estético que obtemos com o belo. Além disso, mudanças históricas alteraram nossa percepção sobre essas duas categorias. O exemplo que será analisado a seguir mostra como a arte consegue criar algo belo a partir do que é considerado feio. Nem sempre, porém, as coisas acontecem de forma tão simples. Manifestações artísticas, que implicam em mudanças do cânone em vigor, provocam reações negativas. Propomos então partir de um exemplo, o expressionismo, movimen- to artístico do início do século XX, cujas principais características são as pinceladas largas, as cores fortes e o desejo de ultrapassar o naturalismo 2 . Esse movimento foi definido por Giulio Argan (1992, p. 240, grifo do origi- nal) como “a primeira poética do feio”. É como se o expressionismo estives- se propondo uma nova estética, não mais como uma filosofia do belo. O caso do pintor norueguês Edvard Munch (1863-1944) é um bom início de discussão, pois ele antecipa características a ponto de parecer um pintor expressionista antes mesmo do movimen- to ser nomeado dessa forma – o que só aconteceu em 1911. Uma de suas obras mais famosas O Grito (1893), reproduzida ao lado, é um bom exemplo. A expressividade dramática dessa obra de Munch é surpreendente e traduz a intensidade dos futuros artistas expressionistas; por isto, se tornou uma das maiores referências desse grupo. cânone: normas ou princípios que o artista deve seguir. Glossário O naturalismo é uma expressão que designa a obra calcada na natureza, mas sem ser cópia dela. Ele é diferente do realismo, que tenta representar objetivamente a natureza. 2 MUNCH, E. O Grito. 1893. Óleo sobre cartão, têmpera e pastel sobre cartão. 91 x 73,5 cm. Galeria Nacional, Oslo. Fundamentos de estética 25 Por que O Grito causou estranhamento? Por que foi considera- do feio? Foi um julgamento objetivo ou subjetivo? A primeira ver- são foi pintada por Munch em 1893, em um período de influência das Academias de Belas-Artes, cujo cânone ainda era a arte clássica, portanto, harmônica e equilibrada. Por isso, O Grito foi considerado feio, má pintura, doente. Quarenta e quatro anos depois, em 1937, o expressionismo continuava a ter a mesma reputação. Esse é o ano de uma exposição, organizada na Alemanha nazista, chamada de Arte degenerada. A maioria dos artistas era expressionista, mas obras de Picasso também estavam presentes. Um ambiente foi criado para reforçar o objetivo do título da exposição: junto às obras estavam presentes desenhos de doentes mentais, para mostrar que eram idênticos aos trabalhos dos artistas profissionais. Os preços eram exageradamente altos para provar que esses artistas ganhavam muito dinheiro. As obras não vendidas, por serem propositadamente caras, foram queimadas. Um outro exemplo do debate entre o belo e o feio é o caso da pintora brasileira Anita Malfatti (1889-1964), que estudou na Alemanha e nos Estados Unidos na segunda década do século XX e entrou em contato com o expressionismo. Quando retornou ao Brasil, apresentou os trabalhos realizados durante seu período no exterior. É possível imaginar o entusiasmo com que ela viu as obras de vanguardas nesse período. Anita estava na Europa no mesmo momento em que aconteciam as primeiras exposições que mostravam a arte moderna a um público mais amplo. É possível fazer outro exercício: imaginar o impacto que o antina- turalismo (por não se inspirar diretamente na natureza e não retratá- -la com fidelidade) das vanguardas históricas causou em Anita, bem como o impacto que suas próprias obras antinaturalistas provocaram no espectador que, em 1917, visitou sua exposição e que nunca tinha entrado em contato com alguma obra de arte moderna. A própria famí- lia, que se esforçou para enviá-la ao exterior, sentiu-se desconfortada quando a artista mostrou os trabalhos que trouxera. Provavelmente, não foi diferente com os amigos. Neste momento, podemos continuar a imaginar a reação da família e dos amigos: as obras eram feias. Ape- sar dos comentários, Anita resolveu expor seus trabalhos no final de 1917. O título que escolheu foi: Exposição de Arte Moderna Anita Malfatti. Essa exposição se tornou famosa e é considerada a primeira exposição de arte moderna realizada no país. Vanguarda artística se refere principalmente a um grupo de artistas que exerce o papel pioneiro no desenvolvimento de novas técnicas e ideias. O termo em português é decorrente da palavra francesa avant-garde, utilizada no meio militar como à frente da guarda. Ela foi absorvida pelo mundo artístico para retratar a aspiração que os artistas modernos tinham de estar à frente e mostrar que criavam uma arte nova, que eram radicais e contrários à imagem realista e ao gosto pelo decorativo. Utiliza-se também o termo vanguardas históricas para fazer referência ao conjunto de movimentos que transformaram a arte na primeira metade do século XX, como o cubismo e o expressionismo. Saiba mais 26 Estética e história da arte A exposição seguiu tranquila nos primeiros dias, até a publicação do artigo de Monteiro Lobato (1882-1948) intitulado “A propósito da expo- sição Malfatti”, no jornal O Estado de São Paulo. Quando o publicou em livro, Lobato alterou o título para “Paranoia ou Mistificação?”. O crítico Lobato valorizava a arte naturalista e os artistas que viam “normalmen- te” as coisas. Não era o caso do expressionismo de Anita. Lobato com- parou o grupo dos artistas antinaturalistas aos pacientes psiquiátricos; por isso, modificou o título do artigo.Para Lobato, as artes eram regidas por princípios imutáveis, por leis. É muito provável que tivesse em mente as medidas de proporção e equilíbrio. Anita, contudo, só pensava no que viu na Europa e nos Estados Unidos. Para Lobato, a “atitude estética” de Anita era forçada e extravagante. Chamou os quadros da artista de “quadrinhos” e utilizou o termo caricatura em seu texto. Eis uma questão interessante: a vanguarda modernista para Lobato era caricatura da cor e da forma, em que não há prazer nem beleza. Para ele, a arte deveria promover o prazer estético e só o belo era capaz disso. A arte deveria ser bela se quisesse ser arte; caso contrário, era mistificação, paranoia, fruto de mentes doentes. O termo caricatura, no entanto, foi um achado importante de Lobato, utilizado anos mais tarde pelo historiador da arte Ernst Gombrich para explicar o expressionismo. O historiador cita uma carta de Van Gogh em que afirma ser seu tra- balho comparável ao de um caricaturista. Gombrich dá razão ao artista, pois acredita que a caricatura sempre foi “expressionista”. Ele explica: ao distorcer a aparência do modelo retratado, o artista expressionista quer expressar seus sentimentos em relação ao outro (GOMBRICH, 2013). A questão levantada por Lobato também é avaliada por Argan (1992): a deformação expressionista não é a caricatura da realidade, mas uma beleza que procura estar mais próxima do real, tornando-se, por isso, feia. Podemos, então, chamar o expressionismo de uma esté- tica do embaralhamento, pois mistura as noções de belo e feio. Argan procura explicar o expressionismo da seguinte forma: o artista expres- sionista revela uma beleza quase demoníaca da cor, acompanhada de figuras feias, segundo os cânones correntes. A força dessas imagens torna-se tão intensa que passamos a achar que nada existe além de- las. Gombrich (2013) concorda com Argan (1992): o que incomodava na arte expressionista não era a distorção em si, mas o fato de que a obra se afastava da beleza. Ainda há dúvidas sobre se a pri- meira exposição de arte moderna realizada no Brasil foi a do artista lituano Lasar Segall (1889-1957), em 1913, ou a de Anita Malfatti (1889-1964), em 1917. Segall havia se associado ao movimento expressionista alemão antes de vir ao Brasil para visitar sua irmã mais velha, que residia em São Paulo. Tempos depois, retornou à Alemanha e voltou ao Brasil definitivamente em 1923. Em 1913, realizou uma exposição com obras feitas na Europa, quase todas de sua fase impressionista e pós-impressionista. Os pesqui- sadores se dividem: alguns dizem que havia um ou dois trabalhos expressionistas; outros afirmam que não, em razão de Segall ter feito uma seleção cautelosa. Essa, talvez, seja a causa da exposição de Segall não ter chamado a atenção, o que não aconteceu com Anita Malfatti em 1917. Saiba mais No capítulo “A minissérie ‘Um Só Coração’ e os anos heroicos do Modernismo”, do livro A novela brasileira e a filosofia, há uma versão ampliada do debate sobre Anita Malfatti e Monteiro Lobato. Naquela ocasião, no início do modernismo brasileiro, estava em jogo um dos temas fundamentais desse livro: o belo na arte, um tema ainda atual. COVIELLO, J. In: SILVEIRA, R. A. T. de (org.). Porto Alegre: Editora FI, 2016. Disponível em: http://www. editorafi.org/134ronie. Acesso em: 6 fev. 2020. Livro Fundamentos de estética 27 O critério de verossimilhança, aquilo que nos parece verdadeiro e plausível, perde-se. Eis o radicalismo de Anita que tanto irritou Lobato: os cabelos da mulher se tornam verdes, o homem se torna amarelo. Para o crítico, isso distorce a realidade, tornando-se caricatura. Desse dia em diante, tudo seria diferente para Anita, e o julgamento de Lobato provoca reações até hoje. O feio não foi a única categoria estética que se juntou ao belo no decorrer da história. No interior da tradição filosófica, Kant, Schopenhauer e Nietzsche usaram também o substantivo alemão ekel, que pode ser traduzido como asco. Alguns tradutores preferem nojo. Schopenhauer utilizou o adjetivo ekelhafte, traduzido também como repugnante ou como nojento (SCHOPENHAUER, 2005). Tanto Kant quanto Schopenhauer utilizaram essas palavras do con- texto da estética no interior de seus sistemas filosóficos. Para Kant (2002), temas como as fúrias, doenças e devastações de guerra podem até ser descritos com beleza na pintura, mas não aquilo que desperta nojo. Nesse caso, não há satisfação estética, pois o objeto se impõe sobre nossa fruição e se torna impossível ser considerado belo. Schopenhauer (2005) vai mais adiante: além do belo, do sublime e do feio, há o excitante, que faz com que o espectador deixe sua posi- ção de pura contemplação necessária para apreensão do belo e excita sua vontade, abandonando sua posição de sujeito do conhecer para se tornar sujeito do querer. Por causa disso, Schopenhauer recomenda que se evite o excitante na arte. Para o filósofo, há também outra forma de excitante; o negativo, que é ainda mais repreensível que o positivo: o repugnante, que destrói a pura consideração estética. Schopenhauer pensa nos objetos de horror. Nietzsche (2011) dirige sua principal crítica a Schopenhauer: nada neste mundo, ainda mais a arte, deixará de ser excitante, nojento ou mesmo nauseante, para silenciar a vontade. O artista que nega o re- pugnante também nega a vida. Ele insiste que suas preocupações são meramente humanas, são preocupações da vida concreta. É provoca- dor: para Nietzsche, há muita sabedoria em haver sujeira no mundo. Isso parece ser uma boa chave de leitura da arte contemporânea (ou de uma parte dela). Os artistas contemporâneos parecem ser bons in- térpretes de Nietzsche, principalmente aqueles que buscam estreitar a relação entre arte e vida. Ernst Gombrich (1909-2001) foi o professor e historiador de arte austríaco que escreveu a conhe- cida História da Arte, publicada pela primeira vez em 1950. Essa obra é influente até hoje. Em 1936, Gombrich emigrou para Londres, onde foi pesquisador, professor e diretor do Instituto Warburg, importante centro de pesquisa em história da arte. Publicou vários livros e tornou-se uma referência nos estudos renascentistas e na psicologia da percepção. Quem? Você pode conhecer todas as pinturas de Anita Malfatti por meio deste QR Code. Recomen- damos a visita às pinturas O Homem Amarelo e A Mulher de Cabelos Verdes, representantes do estilo de Malfatti, que tanto chocou na sua época. Dica 28 Estética e história da arte Há outras categorias estéticas, como o grotesco, que surgiu antes mesmo da ciência criada por Baumgarten. Assim como outras catego- rias diferentes do belo e do sublime, o grotesco nem sempre foi aceito pelos estudiosos. O termo surgiu a partir da descoberta de pinturas ornamentais romanas no século XV, chamadas grotesca, como deriva- ção da palavra italiana grotta (gruta). Chamou a atenção a combinação de formas humanas misturadas com formas animais e vegetais, que causavam estranhamento. Essas formas fantásticas foram muitas ve- zes consideradas monstruosas. É possível, no entanto, perceber traços grotescos em uma variedade grande de artistas, de várias épocas. Com o tempo, o grotesco passou a ser analisado principalmente em contraposição a uma arte que bus- cava apenas o belo. Um exemplo do grotesco é o trabalho a seguir, de Pieter Bruegel, o Velho (1525-1569). BRUEGEL, P. A queda dos anjos rebeldes. 1562. Óleo sobre painel. 117 x 162 cm. Museus Reais de Belas Artes da Bélgica, Bruxelas. O grotesco é um bom exemplo das noções em torno do belo. A par- tir desse belo tão discutido neste primeiro capítulo, outras categorias se agregaram, mas pararemos por aqui por enquanto. Fundamentos de estética 29 CONSIDERAÇÕES FINAIS A questão do gosto ainda é central nas discussões estéticas. E não só nelas, pois parece que grande parte das nossas decisões é resultado de nossos próprios juízos (estéticos). Por isso, muitas vezes,lembramos da associação entre ética e estética. Se a ética é uma reflexão sobre nossas ações, a estética é uma reflexão sobre nossos julgamentos. Podemos talvez arriscar e dizer que a experiência estética é funda- mental para a condição humana, porque ela determina nossos julgamen- tos, sejam morais ou artísticos. Será que conseguiríamos viver sem os objetos estéticos que nos rodeiam, sem as obras artísticas? A ênfase cada vez maior nos objetos estéticos legitima a preocupação dos filósofos. Não somos diferentes quando contemplamos uma determinada obra arqui- tetônica. Pense no trabalho dos designers ou dos publicitários. Eis, então, outra afirmativa: parece existir em tudo um fundamento estético que atrai ou repele. É preciso, portanto, estar atento. Neste livro, as discussões sobre a estética transitaram por questões relativas à arte; ou seja, partiram do campo das especulações filosóficas para chegar a um universo de conhecimento que inclui a história, a teoria e a crítica de arte. No começo, o centro da questão era como sentimos ou percebemos o objeto belo. A própria palavra estética deriva do termo grego sensação. Hoje, é possível incluir várias reflexões sobre a arte num campo genérico chamado estética (sim, é possível, mas para efeito didático, sempre tenta- remos mostrar que há vários discursos diferentes sobre a arte). Mostra- mos que a obra de arte permite discursos de críticos e historiadores da arte, de psicanalistas, de sociólogos e dos próprios artistas. O belo, de fato, não é a única variável para medir a reação que temos com uma obra de arte, mas é um bom início de discussão. É o que fizemos neste primeiro capítulo. Contudo, como sempre é saudável apresentar um contraponto, pode-se dizer que o gosto é uma mera descarga elé- trica em nosso cérebro, como pode afirmar algum neurocientista. Ou a sensação do belo continua sendo a única variável? Não se pode esquecer também da afirmação dos artistas modernistas: arte não é só beleza. Se você concluiu que isso é uma discussão infinita, pode ser que sua conclu- são esteja correta, pois é mesmo uma questão complexa, já que uma obra de arte possui várias camadas. Observar e analisar cada uma delas, ainda que estejam invisíveis, é um dos trabalhos que mais satisfaz ou dá prazer aos sentidos do pesquisador da estética. 30 Estética e história da arte ATIVIDADES 1. Como e quando surgiu a palavra estética? 2. Como podemos associar as mudanças na relação entre a obra de arte e o público ao nascimento da estética? 3. Para você, o gosto é objetivo ou subjetivo? Por quê? REFERÊNCIAS ARGAN, G. C. Arte Moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. BAUMGARTEN, A. G. Estética: a lógica da arte e do poema. Petrópolis: Vozes, 1993. BURKE, E. Investigação filosófica sobre a origem de nossas ideias do Sublime e da Beleza. São Paulo: Edipro, 2016. CINTRÃO, R. As montagens de exposições de arte: dos Salões de Paris ao MoMA. In: RAMOS, A. D. (org.). Sobre o ofício do curador. Porto Alegre: Zouk, 2010. ECO, U. História da Beleza. Rio de Janeiro: Record, 2015. GOMBRICH, E. A História da Arte. Rio de Janeiro: LTC, 2013. GREENBERG, C. Estética Doméstica – observações sobre a arte e o gosto. São Paulo: Cosac Naify, 2002. JUNG, C. G. Relação da psicologia analítica com a obra de arte poética. In: JUNG, C. G. O espírito na arte e na ciência. Petrópolis: Vozes, 2009a. JUNG, C. G. Tipos Psicológicos. Petrópolis: Vozes, 2009b. KANT, I. Crítica da Faculdade do Juízo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002. NIETZSCHE, F. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. PESSOA, F. Poesia completa de Alberto Caeiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. SCHOPENHAUER, A. O mundo como vontade e como representação. Tomo I. São Paulo: Unesp, 2005. Evolução histórica da estética 31 2 Evolução histórica da estética A preocupação com o belo ou com a arte é anterior a 1735, quando Baumgarten cunhou o termo estética. Neste capítulo, te- remos a oportunidade de estudar as preocupações estéticas an- teriores e posteriores ao século XVIII. Começaremos com Platão, passaremos pela Idade Média, pela estética moderna, e terminare- mos com uma análise da estética contemporânea. Apesar de serem recortes dentro de um universo mais amplo, os autores e os temas apresentados representam muito bem os períodos a serem estudados. Será possível perceber como os mo- delos se alteraram ou foram substituídos. Neste capítulo, também será possível acompanhar as transfor- mações que expandiram o campo estético, o qual está cada vez mais interdisciplinar e, por isso, mais interessante. 2.1 A estética clássica Vídeo Platão (c. 428 – c. 347 a.C.) é como um guia em várias áreas de pes- quisa, tendo se preocupado com quase tudo: ética, verdade, justiça, amor e, claro, o belo e o papel da arte e dos artistas. É possível que o filósofo grego tenha desenvolvido teses que derivavam de uma longa tradição anterior ao período em que viveu, principalmente a relação entre o belo e o bom. Ou seja, a ideia de que a beleza brota das virtudes. Filósofos anteriores a Platão discutiam as noções de harmonia e proporção, mas é o escultor Policleto (c. 460 – c. 420 a.C.), que viveu também antes de Platão, que será fundamental para as relações entre arte e belo que aqui se buscam. Policleto ficou famoso por causa de um tratado teórico sobre a es- cultura, chamado Cânone, utilizado até hoje. Apesar de ter desapareci- do, foi tão estudado em sua época que os relatos posteriores acabaram 32 Estética e história da arte substituindo o texto original. Policleto construirá o corpo, tendo a cabeça como medida para a altura. Assim, sua escultura Doríforo, considerada o melhor modelo de seu cânone, tem a altura de sete cabeças. O núcleo das teses de Policleto é a noção de pro- porção baseada em princípios matemáticos. Por isso, ele foi apelidado de “o pai da teoria da arte do oci- dente”. Essas noções de proporção e simetria in- fluenciaram e continuam a influenciar o mundo das artes, como podemos observar na imagem que re- presenta a ilustração de um personagem de história em quadrinhos (Figura 1), cujas proporções são exatas. É possível observar o conjunto de regras de Policleto na reprodução de Doríforo, obra copiada durante muitos séculos. Contudo, essas ideias matemáticas de proporção e harmonia que atravessaram o tempo sofreram duro golpe com a revolução artística de Picasso. A comparação com a obra Les Demoiselles d’Avignon, de 1907, permite analisar o processo lento de substituição do cânone elaborado por Policleto. POLICLETO, Doríforo, cópia romana c. 440 a.C. 1 2 3 4 5 6 7 ½ W ikim edia Com m ons Figura 1 Sete cabeças e as HQs IESDE Os jardins de esculturas eram os ambientes mais apreciados nas casas dos homens influentes de Roma. Por isso, é possível contemplar, atual- mente, várias cópias de obras de Policleto em museus do mundo. Curiosidade Obras anteriores ao quadro de Picasso, ainda que revolucionárias, não desconsideravam com- pletamente as noções de proporção, simetria e harmonia. Já Picasso, não contente com isso, também destruiu a noção de perspectiva, ou seja, a revolução empreendida por ele só preser- vou a figura, que viria a ser destruída um pouco mais tarde, com os artistas abstratos, mas o ca- minho já estava traçado. A nova Linha do Tempo incluirá, merecidamente, Policleto e Picasso. Evolução histórica da estética 33 Platão, portanto, fazia parte de uma tradição que pensava a noção de belo com base matemática, mas fez uma leitura pessoal da fatura artística, criticando os artifícios dos artistas durante o processo de re- presentação. A questão estava na noção de mimese (imitação, cópia) – empreendida neste livro como representação da realidade, central para a compreensão da noção histórica de gosto, belo e arte. No dia a dia, a palavra fatura significa o simples ato de fazer algo. No campo da arte, fatura é um termo utilizadopara identificar o modo pessoal de cada artista criar sua obra. É também um fazer, mas um fazer especial. Saiba mais Plínio, o Velho (2004), relata a seguinte história: o pintor Zêuxis, numa disputa com Parrásio, pintou uvas com aparência tão natural que as aves se enganavam e vinham bicá-las. É um bom exemplo so- bre os efeitos da ilusão na pintura. Essa é uma das críticas de Platão à arte. No Livro X de A República, sua acusação é grave: a pintura surge como imitação da aparência, é mera imitação (mimese) da natureza (PLATÃO, 1996). Lá está o famoso exemplo da cama: o pintor é imi- tador das coisas que existem na natureza e imitador das obras dos artesãos. Pior, o pintor é imitador da aparência (a cama criada pelo marceneiro) e não da realidade. O pintor, para Platão, atrapalha o caminho que fazemos para sair da aparência e chegar à essência. O artista, portanto, é um imitador que não entende nada do que real- mente existe, mas apenas das aparências. Segundo o Mundo da Ideias de Platão, há uma única ideia para di- ferentes coisas. Todas as camas existentes partem de uma única ideia de cama: o marceneiro fabrica essa cama a partir da ideia de cama; o artista pinta essa cama imitando aquilo que o marceneiro criou. Esse artista, desse modo, está distante das ideias que constituem a ver- dadeira realidade, fazendo uma imitação da imitação. O Mundo das Ideias é aquele que não pode ser apreendido pelos sentidos. O mun- do material é uma cópia do Mundo das Ideias e, portanto, uma imi- tação. Essas noções permitiram que Platão conferisse ao sentido de belo um papel transcendente, ou seja, algo além da realidade sensível, a realidade que percebemos por meio dos sentidos. Picasso 1907 Contemporaneidade Grécia Policleto 440 a. C. Criação da Escola de Belas Artes de Paris. 1635 O Salão Parisiense foi aberto anualmente ao público. 1677 Baumgarten cunha o termo estética em sua tese. 1735 Lançamento do Tratado chamado Estética. 1750 Publicação de História da Arte Antiga, de Johann Joachim Winckelmann. 1763 Criação da Real Academia de Londres. 1768 Inauguração do Museu do Louvre. 1793 Revolução Inglesa 1640 – 1688 Desenvolvimento do motor a vapor 1698 – 1777 Revolução Francesa 1789 – 1799 Revolução Americana 1776 – 1783 34 Estética e história da arte Segundo Platão, o filósofo é o único capaz de revelar o Mundo das Ideias, logo, o artista não é. Nesse sentido, coloca um interdito ao artis- ta e reduz a atividade artística a um papel inferior, pois ela não conse- guiria chegar à essência das coisas. Todos os personagens foram inspirados em filósofos ou artistas. Estão representados Plotino, Michelangelo, o próprio artista, entre outros. No centro estão Platão e Aristóteles. O primeiro aponta para cima, o Mundo das Ideias, e o segundo indica o que está ao redor, o mundo natural. W ik im ed ia C om m on s SANZIO, R. Escola de Atenas. c. 1511. 1 Afresco, 500 cm x 700 cm. Palácio Apostólico, Vaticano. A visão que Platão tem da arte é diferente de sua visão do belo. Para o filósofo grego há um parentesco entre o belo, o bom e o ver- dadeiro. A perfeição está na unidade formada pela união desses três princípios. Algo não pode ser considerado belo se não for bom e ver- dadeiro. Assim, não basta que algo seja belo, é preciso que seja mo- ralmente belo. Isso é determinante de tudo, é o caminho verdadeiro. Além disso, o belo precisa ser belo em si mesmo, independentemente de qualquer outra necessidade. O belo platônico existe por si mesmo e reside no objeto que é proporcional, simétrico e harmonioso intrin- secamente. Muitos séculos foram precisos para essa tese ser questio- nada e é possível perceber que ela coloca o homem numa posição de centralidade em relação ao mundo. Evolução histórica da estética 35 Aristóteles (384-322 a.C.) foi aluno da Academia de Platão, a escola que o mestre fundou em Atenas. Contudo, discordava de que a reali- dade estava além daquilo que percebemos e, por isso, se afastou do Mundo das Ideias, da repartição entre modelo e cópia e do belo como algo supremo ou divino. Por incrível que pareça, Aristóteles pensou em questões artísticas concretas e formais que parecem ainda atuais. Ao idealista Platão, contrapõe-se o realista Aristóteles. Chama-se Poética o livro de Aristóteles que traduz suas preocupa- ções estéticas. Para ele, o belo está na ordem e na proporção adequada. Por isso, um objeto, ou qualquer ser vivo, não poderá ser muito grande ou muito pequeno. De Poética restaram apenas alguns fragmentos. O tema é a “arte poética”, do grego poietikè tékhne. Nessa tradução há um aspecto a ser analisado: a palavra tékhne, traduzida como arte e não técnica. A derivação para arte é por causa da tradução latina da palavra gre- ga como ars. Tékhne é definida no Vocabulário grego da filosofia, de Ivan Gobry (2007, p. 142) como “atividade humana que, em vez de se dobrar às leis da Natureza, permite que o homem aja segundo sua própria natureza”. Mesmo assim, essa transformação da natureza em obra de arte não deixa de ser uma imitação. Para Aristóteles, a arte também é imi- tação. Ele utiliza a palavra poiesis, que significa fabricação, criação. A seu ver, arte não se trata de criação aleatória ou divina, mas de um fazer que parte da natureza para criar a obra de arte. O artista imita a natureza, mas o resultado é algo novo. Se Platão condena a mimese, Aristóteles a trata como procedimento artístico e, por isso, a estudou. Procurou entender como ela acontece e quais são suas formas de ma- nifestação. Por esse motivo, dedicou-se à construção de uma teoria para investigar os processos criativos de seu tempo, principalmente a tragédia, que considerava o ápice da arte poética. Não por acaso poiesis estava no centro de suas preocupações. Na Poética, portanto, Aristóteles analisou diversas manifestações artístico-poéticas, como a epopeia, a comédia e a tragédia. Ao tratar da tragédia, ele desenvolveu sua teoria da catarse (kátharsis), cuja tradução literal é purificação. Aristóteles (2015) diz que na tragédia a mimese possui um caráter elevado, contrariando a posição de Platão. 36 Estética e história da arte A catarse acontece na tragédia por causa da imitação de certas emoções, como a compaixão e o pavor, que são dramatizadas no palco. A partir da experiência contemplativa do teatro trágico, o espectador consegue purgar suas paixões. Os gregos usavam o termo catarse tam- bém em outras situações, como na religião ou na medicina. A palavra purgação, no sentido de purificação, também tinha um sentido moral. Aristóteles trouxe para a filosofia a discussão sobre o papel da arte em aliviar conflitos e paixões. 2.2 A estética medieval Vídeo Considera-se a queda de Roma, em 476 d. C., como o início da Idade Média. Para surpresa do mundo conhecido, o Império Romano do Oci- dente foi derrotado, mas conseguiu se manter de pé no Oriente, insta- lando sua capital na pequena cidade grega Bizâncio – atual Istambul, na Turquia –, que veio a ser conhecida como Constantinopla durante o Im- pério Bizantino. Por isso, a arte que lá floresceu é chamada de bizantina. A única instituição que não caiu e permaneceu independente foi a Igreja Cristã, que floresceu depois de o cristianismo se tornar a religião oficial do Império Romano, em 380 d.C. Em 313 d.C., por influência de Constantino, foi concedida a tolerância religiosa ao cristianismo, que depois de três séculos de perseguição, deixava de ser uma religião proibida. A luta pessoal dos papas contra os invasores fortaleceu ainda mais a unidade cristã. Todos esses aspectos explicam a predominância da Igreja sobre as artes e a política durante os séculos seguintes. Um dos principais estudiosos do período medieval, o francês Jacques Le Goff (1924-2014), publicou um livro chamado A história deve ser dividida em pedaços?, no qual explica que o recorte do tempo em períodos é necessário à história. Porém, as divisões que fazemos não são baseadasapenas nos fatos cronológicos, mas também na ideia de mudança em relação ao período precedente. Um exemplo é a visão que os autores do Renascimento legaram sobre a Idade Média, retratando-a como período de obscuridade cultural. Então, aquele período estaria entre a grandiosa cultura greco-romana — cujo marco final é a queda de Roma — e o nascimento do mundo moderno, no século XV. O nome renascimento vem dessa ideia de retomada do esplendor da antiguidade. A Idade Média, desse modo, estaria colocada entre as duas datas, marcada por ignorância e superstições. Evolução histórica da estética 37 Essa tese foi revista por autores como Le Goff e Umberto Eco (1932- 2016), professor, romancista e ensaísta que, em 1959, escreveu o livro chamado Arte e Beleza na Estética Medieval, no qual fez uma síntese das teorias estéticas da Idade Média, em um momento ainda de descon- fiança em relação àquele ciclo histórico. A palavra estética aparece no título do livro como confirmação das preocupações com o belo e com a arte que existiam no período. Eco justifica o uso do termo por entender que está vinculado a todo discurso que se ocupa da beleza, da arte, da produção e apreciação de obras de arte, e “às relações entre arte e outras atividades e entre arte e moral, à função do artista, às noções de prazer estético, de ornamental, de estilo, aos juízos de gosto e também à crítica destes juízos, e às teorias e práticas de interpretação dos tex- tos” (ECO, 1989, p. 9). O autor nos dá uma definição de estética que poderá ser utilizada em qualquer época, desde que não se tenha o objetivo único de veri- ficar se ela se confirma em um período distante. O cuidado que todo pesquisador deve ter é de não ser anacrônico, ou seja, atribuir ideias que são de uma época a outro tempo. Em palavras mais simples, po- de-se definir anacronismo como o ato de se analisar um determinado fenômeno do passado, com os “olhos” de hoje. Os adeptos dessa tese, dizem que evitar o anacronismo é impossível. Mesmo assim, Eco nos deu, de modo claro, alguns dos objetos de nossa disciplina. A estética da Idade Média se inspirou primeiro na filosofia platônica e seus seguidores, como Plotino. Essa perspectiva de mundo se ade- quou bem aos pontos de vista cristãos, principalmente a noção de transcendência. O belo transcendente, divino, adaptou-se à Idade Média — período em que se desconfiava do belo sensível (vinculado à maté- ria) — e tinha o texto bíblico como essencial. Santo Agostinho, um dos filósofos e teólogos mais importantes para a consolidação do cristianis- mo, foi influenciado por Platão e Plotino, tornando-se partidário da be- leza inteligível e não da beleza sensível, ainda que ambas tenham sido criadas por Deus (segundo a crença cristã). No Livro X das Confissões, Agostinho explica que as coisas realizadas por artistas ultrapassam o uso necessário e acrescentam tentações aos olhos. Diz que é preciso compreender que a beleza trazida pelas almas às mãos dos artistas vem da beleza que está acima delas, ou seja, vem de Deus (AGOSTI- NHO, 2017). Agostinho se preocupa com os fabricadores de belezas ex- teriores, pois derivam delas os critérios de julgamento; também se O nome da rosa, filme de 1986, é baseado no romance homônimo de Umberto Eco. A trama se passa na Idade Média, em que há uma grande Biblioteca e um misterio- so livro, que parece ser a segunda parte perdida da Poética, de Aristóteles. Direção: Jean-Jacques Annaud. Itália; Alemanha Ocidental; França: Warner Bros. Pictures, 1986. Filme 38 Estética e história da arte preocupa com o prazer operado pelos sentidos, principalmente o olhar. O prazer busca o que é belo, ele afirma. Por isso, a separação que faz entre o belo sensível e o inteligível é consequência da superiori- dade da alma sobre o corpo, assim como Plotino também estabeleceu. As ideias de Agostinho foram preponderantes por quase mil anos, quando surgiu o pensamento de São Tomás de Aquino. A predominância, agora, não será mais só de Platão, mas também das ideias de Aristóteles, fruto da redescoberta feita pelos árabes. Os filósofos árabes que viviam na Espanha trataram de traduzir os livros de Aristóteles para o árabe e depois para o latim. Foi assim que as obras do filósofo grego chegaram até Tomás de Aquino. No livro Suma Teológica (2013), encontram-se referências ao belo: 1) Belo é a mesma coisa que o bom; 2) Belo é o que apraz (do verbo aprazer, que causa prazer); 3) Não há diferença entre virtude e o belo espiritual. Portanto, são os mesmos fundamentos morais da associação entre belo e bom presentes em Platão. No entanto, há uma afirmação em outro livro, Contra gentios (2013), que apresenta influência de Aristóteles. Tomás de Aquino (2013, p. 62) afirma que o bem é a causa do mal acidentalmente, e completa que a mesma coisa ocorre na arte: “A arte imita de fato a natureza em seus movimentos, e os defeitos podem ser encontrados tanto em uma parte quanto em outra”. O autor parece enfatizar a noção aristotélica de imitação. Figura 2 Plotino Na antiguidade tardia, Plotino (205-270 d.C.) desenvolveu teses sobre a arte e o belo, cuja influência chegaria até o Renascimento. Sua leitura dos textos clássicos, principalmente de Platão, fez com que ganhasse o título posterior de neoplatô- nico. Sua obra Enéadas (de ennéa, nove em grego) é formada por nove partes, uma delas intitulada “Sobre o belo”. Ali escre- veu: “Quase todo mundo afirma que a beleza visível resulta da simetria das partes, umas em relação às outras e em relação ao conjunto, e, além disso, de certa beleza de suas cores. Neste caso, a beleza dos seres e de todas as coisas seria devida à sua simetria e à sua proporção” (PLOTINO, 2007, p. 20). O filósofo parte dessa afirmação para desenvolver a tese de que o belo é a ideia visível. Ele também pergunta como podemos atribuir a causa das belas condutas à simetria. Seu raciocínio segue a filosofia platônica para questionar o princípio que relaciona o belo às coisas materiais. Tudo que não seja dominado por uma ideia e pelo pensamento (logos) é feio. Há belezas que são diferentes das belezas sensíveis, que Plotino considera meramente materiais, ainda que encantadoras. As belezas não sensíveis são as mais elevadas e não podem ser percebidas pelos sentidos, pois são vistas apenas pela alma. Uma frase de Plotino influenciará os filósofos medievais: “Tais belezas só podem ser vistas por aqueles que veem com os olhos da Alma” (2007, p. 25). Só assim é possível contemplar a verdadeira be- leza. Mais adiante, afirma: “Eis o que experimentamos quando entramos em contato com a beleza: o maravilhamento, um súbito deleite, o desejo, o amor e uma alegre excitação” (2007, p. 25-26). Apesar de a linguagem de Plotino exprimir o sentimento de futuros teóricos da estética, também exprime uma crítica a Policleto, já que sua principal tese é que o belo está além dos sentidos. Saiba mais Wikimedia Commons Se, em termos filosóficos, a estética medieval é tributada aos gregos, ela é diferente em termos formais, pois, além das preocupações meramente morais, passaram a existir preocupações religiosas, principalmente. Pode-se afirmar que a arte medieval abandonou o cânone de Policleto e o substituiu por outro, que desmaterializa a obra, pois nenhuma imagem poderia rivalizar com Deus. E qual seria esse novo cânone? Evolução histórica da estética 39 • A obra de arte tem uma finalidade: aproximar o homem de Deus ou evangelizar com imagens aqueles que não sabem ler. Essa questão é importante no caso da Iconoclastia. • As figuras não poderão ter corporeidade; elas devem ser desma- terializadas (não no sentido contemporâneo, mas no sentido de perder o aspecto material e espiritualizar-se). • A obra deverá ser bidimensional, sem profundidade. Para isso, não se utilizará a modelagem, pois não haverá representação da espacialidade. Eram aceitas apenas a altura e a largura. • As figuras pintadas não poderãosugerir movimento, pois não ha- verá representação da temporalidade. • O uso das cores é regido por regras simbólicas, como o céu pinta- do de ouro. W ik im ed ia C om m on sHá um momento da história cujo destino da arte foi definido por causa de um monge, que depois se tornou papa, e viveu em um dos momen- tos mais conturbados da Europa. Seu nome é Gregório I, que foi papa de 590 a 604 d.C., justamente no período após a queda de Roma. São Gregório achava que devia difundir as palavras dos Evangelhos aos povos que dominavam parte do que era o Império Romano e continua- vam a atacar Roma. Ele próprio precisou defender a cidade. Como eram povos que não dominavam a escrita, São Gregório achou que deveria levar o conteúdo das Escrituras por meio de imagens. Foi quando proferiu a famosa frase: “a imagem é o livro daqueles que não sabem ler”. Essas palavras foram usadas em defesa contra aqueles que se opunham ao uso de imagens. O iconoclasta (aquele que destrói imagens) tinha medo da adoração de imagens religiosas e se amparava em trechos das Escrituras que condenavam as imagens. Apesar de ser uma questão inacabada, o uso delas possibilitou que o clero se transformasse no maior patrocinador da arte por muitos séculos, o que geraria um patri- mônio artístico sem precedentes. Esse é mais um exemplo das questões que envolveram a arte durante a Idade Média. De olho na arte O ícone, criação bizantina do século V, é a representação da mensagem cristã. Um dos ícones mais famosos é uma representação da Virgem, atribuída a São Lucas. Tal representação viria a ser conhecida como Nossa Senhora de Vladimir. Teótoco de Vladimir (autor desconhecido). 1100. Têmpera e painel, color., 104 x 69 cm. Galeria Tretiakov, Moscou, Rússia. O cânone da proporção caiu em desuso apenas em seu aspecto prá- tico, na fatura das obras de arte. A noção de belo, contudo, permaneceu como algo transcendental. A proporção continuou sendo válida na natu- reza, cuja beleza era considerada superior à da arte. A obra de arte ainda não atingiria a dignidade da era moderna. 40 Estética e história da arte Não se pode esquecer, também, que há duas grandes influências sobre o cristianismo: a cultura hebraica e a grega. Umberto Eco (1989, p. 28) lembra a influência do conceito platônico: “a beleza do mundo como reflexo e imagem da beleza ideal”. O mundo ainda era superior à imagem criada pelo artista. Eco (1989) conclui que a estética da pro- porção era sempre uma estética quantitativa, e não um gosto qualitativo capaz de provocar prazer perante a cor e a luz, como nós, visitantes contemporâneos, experimentamos nas grandes catedrais medievais, principalmente as góticas. Por tudo isso, há novos acréscimos na Linha do Tempo. As reprodu- ções de pinturas medievais foram escolhidas para permitirem a compa- ração com a arte clássica e para a compreensão da arte renascentista. 2.3 A estética moderna Vídeo Até este momento, um dos objetivos foi mostrar que a noção de es- tética depende de certas matrizes de pensamentos. Matriz, nesse caso, é utilizada no sentido de origem, lugar ou mesmo como o primeiro, o mais notável. Já passamos pela matriz grega, que ainda hoje repercute na nossa forma de lidar com a obra de arte, como as noções de pro- porção de Policleto e a associação de Platão entre o bom, o belo e o ver- dadeiro. Passamos também pela matriz medieval e sua relação íntima entre arte e concepção de mundo baseada nos valores religiosos. Para entender essas matrizes de pensamento é preciso analisar de onde vêm. Desse modo, há dois traços na Linha do Tempo que está sendo preenchida enquanto se avança nesta análise. É como se os fa- tos (a história) e as ideias (as teorias estéticas) sobre o objeto artísti- co andassem juntos. Quando o assunto é a obra de arte, as ideias em torno dela e a história se juntam. A noção é importante porque nesta seção será examinada a passagem do homem medieval ao homem moderno. É um momento decisivo, tanto para a arte quanto para as transformações que ocorreram no mundo. Para os historiadores, a Era Moderna é inaugurada com a queda de Constantinopla e com a chegada de Cristóvão Colombo à América. Para os filósofos, o período moderno se inicia com René Descartes. Foi também nesse período, entre os séculos XIV e XVI, que aconteceu a primeira revolução moderna na arte, o Renascimento. É um período de mudanças em todos os sentidos, não só nas artes. Evolução histórica da estética 41 Nem todos concordam com essa explicação. Para Le Goff (2015), a Idade Média é mais longa do que imaginamos, uma vez que não have- ria mudanças fundamentais entre o século XVI e XVIII que justifiquem a separação entre a Idade Média e um novo período, o Renascimento. O historiador francês estima que o final dessa longa Idade Média está na metade do século XVIII. Coincidentemente, este é um dos períodos analisados neste livro, o período da estética, quando a palavra é cunhada e uma série de eventos (salões, museus, novos patrocinadores) transformaram a relação entre obra de arte e o espectador. Jacques Le Goff (2015) explica que a palavra renascimento surgiu no século XIX, como um período da história. Quem cunhou a palavra, em 1838, foi o historiador francês Jules Michelet (1798-1874). A partir desta data o Renascimento passa a ser grafado com “R” maiúsculo. O historiador da arte Jacob Burckhardt publicou, em 1860, o livro A civilização da Renascença na Itália, que consolidou a forma como tratamos este período hoje. A segunda parte do livro é sobre o desenvolvimento do indivíduo e a terceira sobre o “renascimento” de um passado glorioso. É importante destacar que a palavra Renascimento é recente, assim como sua periodização. Saiba mais A palavra renascimento está ligada à ideia de retomada de valores (principalmente estéticos) do período greco-romano, que, no início deste capítulo, chamamos de clássico. Para tanto, os intelectuais re- nascentistas traduziram livros e estudaram detalhadamente as obras clássicas. Ainda que Le Goff questione, ocorreram, de fato, mudanças científicas, filosóficas e a retomada da noção de belo que tinha como fonte os teóricos gregos, como Policleto. A convicção de que a Idade Média representava a “Idade das Trevas” germinou nesse momento. Em termos formais, retomou-se o cânone de Policleto e a proporção harmoniosa do corpo humano. Isso resultou na retomada da ideia de imitação, como já existia em Aristóteles, ou seja, a imitação da natureza. Para os renascentistas, a imitação era a tentativa de recriar, da melhor forma possível, aquilo que era visível, mesmo que fosse necessário provocar a sensação de ilusão. O artis- ta era um leitor da natureza, um investigador. Daí derivou, também, a noção de autoria, que era uma grande novidade em relação aos artis- tas da Idade Média, que não assinavam suas obras, pois elas eram a expressão de Deus. Apesar da relação comercial entre o contratante e o artista, o desejo autoral era forte. Surge, então, a noção de gênio, principalmente com Michelangelo (1475-1564). Picasso 1907 Contemporaneidade Grécia Queda de Roma 476 d. C. Colombo chega a América 1492 Publicação do livro Das revoluções das esferas celestes, de Copérnico. 1492 Nascimento de René Decartes. 1596 Galileu é detido pela Inquisição. 1633 Real Sociedade 1661 Publicação do livro Princípios Matemáticos da Filosofia Natural, de Isaac Newton. 1687 Publicação do Ensaio acerca do Entendimento Humano, de John Locke. 1689 O Homem Vitruviano, de Leonardo da Vinci, simboliza o ideal renascentista. 1490 A Escola de Atenas, de Rafael Sanzio. 1509 Michelangelo conclui a pintura do Teto da Capela Sistina. 1512 42 Estética e história da arte O artista deixava de ser um artesão, no sentido medieval de traba- lhador de oficina, e passava a ser um artista. Isso não foi tão simples assim, pois a ideia era de que o trabalho artístico fazia parte das artes mecânicas (ou seja, manuais) e nãoliberais (como a poesia, a arte mais valorizada). As artes mecânicas não tinham o mesmo prestígio social das artes liberais, que eram associadas às atividades intelectuais. O fato fez com que Leonardo da Vinci (2005) defendesse a pintura como “um saber maravilhoso”, capaz de conservar a beleza que poderá desapa- recer a qualquer momento. A questão levou Leonardo (2006) a afirmar ainda mais diretamente: a pintura é mental, como a música ou a geo- metria. Leonardo da Vinci fez uma defesa inédita da pintura. Para atingir a perfeição, os artistas renascentistas utilizaram os avanços da geometria e da matemática a fim de mostrar que a obra do pintor é superior à própria natureza. Mais uma vez a noção de imitação aristotélica era defendida pelos renascentistas. A ilusão da realidade era obtida com a terceira dimensão (tridimensionalidade), conseguida com técnicas sofisticadas, como o uso da perspectiva. O livro A Religiosidade Bra- sileira e a filosofia, de João Coviello, traz em detalhes, no capítulo “Da Vinci, Volpi e a Imagem Religiosa”, o debate ocorrido na Idade Média, em torno do uso de imagens pelo cristianis- mo. Comenta-se também a Santa Ceia, de Leonardo da Vinci, e o trabalho de Alfredo Volpi, importante artista do modernismo brasileiro. SILVEIRA; R. A. T.; LOPES, M. C. Porto Alegre: Editora FI, 2016. Disponível em: http://www.editorafi.org/religiosidade- brasileira. Acesso em: 12 fev. 2020. Leitura perspectiva: técnica que utiliza a geometria para obter a ilusão de um espaço idêntico à realidade dentro do espaço plano da tela. Glossário DA VINCI, L. A última ceia. 1495-97. Estuque. 460 cm × 880 cm. Refeitório de Santa Maria delle Grazie, Milão. Figura 3 A última Ceia, de Leonardo da Vinci e o uso da perspectiva. W ik im ed ia C om m on s W ik im ed ia C om m on s Linha do Horizonte Ponto de fuga http://www.editorafi.org/religiosidadebrasileira http://www.editorafi.org/religiosidadebrasileira Evolução histórica da estética 43 No desenho, a perspectiva é simples: o ponto de fuga está centra- lizado, assim como a linha do horizonte, e todas as linhas convergem para eles. Na Última Ceia, de Leonardo da Vinci (1452-1519), todas as li- nhas convergem para a figura de Cristo, que está também centralizado. DEGAS, E. Aula de Dança. 1875. 1 óleo sobre tela, 85 x 75 cm. Museu d’Dorsay, Paris, França. Figura 4 Aula de Dança, de Degas e o uso de perspectiva. L P O Na obra de Degas, artista impressionista, a perspectiva é mais com- plexa: o ponto de fuga não está centralizado e a linha do horizonte está na altura dos olhos do espectador. É um exemplo do uso do espaço renascentista por um artista considerado moderno. O Renascimento introduziu ainda algumas noções estéticas impor- tantes, como ilusão, autoria e gênio, e retomou a noção de imitação. Esses novos termos passaram a ser utilizados com frequência. A pers- pectiva se tornou um cânone empregado até hoje, a despeito do abalo provocado por Picasso em 1907. Apesar de intocada no decorrer dos séculos, ela começou a ser questionada pelo movimento romântico ini- ciado no final do século XVIII. Em seu diário, Eugène Delacroix (1798- 1863), o mais importante pintor romântico francês, escreveu: “Arte não é álgebra” (2005, p. 98). O romantismo não questionou apenas a perspectiva, mas a própria objetividade do belo, discutindo com mais força o papel da subjetivi- dade. Passou pelo movimento impressionista e chegou até aos movi- W ik im ed ia C om m on s 44 Estética e história da arte mentos de vanguarda do início século XX. Antes desses movimentos pioneiros encabeçados por Picasso, o espaço renascentista, composto pela figura e pelo uso da profundidade para provocar a ilusão da ter- ceira dimensão, parecia inquestionável. O Romantismo foi um fenômeno histórico que iniciou no século XVIII e seguiu influenciando o mundo. Preocupado com os aspectos profundos do homem, acabou por revolucionar a arte. É no interior do romantismo que ressurge o gênio intuitivo, investido de uma força capaz de criar arrebatamento. Era como o próprio Michelangelo se via no Renascimento, mas agora o sujeito romântico era dotado de complexidade psicológica jamais descrita. Estamos falando da arte, mas é preciso lembrar que o espírito romântico pairou sobre todas as atividades humanas da época. O belo, portanto, também foi questionado. O “belo romântico” não censura situações angustiantes ou “feias”, pois seu mundo é subjetivo, ainda que sua fatura esteja filiada à tradição renascentista, que estava em voga há mais de três séculos. Contudo, havia algo de diferente, que acabou por antecipar o impressionismo: a ênfase na imaginação do artista, que questionava a imitação pura e simples. W ik im ed ia C om m on s De olho na arte DELACROIX, E. Liberdade guiando o povo. 1830. Óleo sobre tela. 260 cm x 325 cm. Museu do Louvre, França. Tratamos das transições formais que ocorreram desde a Idade Média. Chegamos até o impressionismo. Antes de entrar no século XX, será importante verificar, também, as mudanças que aconteceram na visão de mundo nesse período. As transformações estéticas estão liga- das às mudanças que ocorrem na forma como percebemos o mundo. Vimos que a Filosofia considera o pensamento de Descartes o iní- cio da Idade Moderna, com uma crença inabalável na razão. Tinha uma teoria adequada à nova era que estava vendo o nascimento da ciência (associação entre arte e ciência que ocorreu no Renascimento). No en- tanto, Descartes foi um pouco além. Pela primeira vez alguns pensadores se voltaram para o sujeito, para o conhecimento que podemos ter. Antes de conhecer as coisas, devemos saber como podemos conhecê-las. A partir de mim, portanto, começa a verdade. E se começa a partir de mim, começa a partir dos meus sentidos, ainda que eles possam se enganar. Por isso, antes do conhecimento da natureza das coisas, preciso conhe- cer a mim mesmo. Há aqui uma reconstrução radical do conhecimento. Ou seja, a descoberta do pensamento: um ser que pensa e tem dúvidas. Evolução histórica da estética 45 Assim, as coisas são da forma como eu vejo. Há a valorização da subjetivi- dade. Descartes (2011, p. 70) usa a famosa frase: “Penso, logo existo”. Há um eu nessa frase, o eu que pensa e existe. Podemos formulá-la de outra forma: “eu sou, eu existo”. Descartes está refletindo, também, sobre as coisas que se originam do conhecimento sensível. Como ocorreu com Baumgarten, ele des- confiava que as sensações nos enganam, ainda que não estivesse pen- sando na experiência estética. Se estivesse, confirmaria a tese de que o conhecimento inteligível (aquele que é apreendido pelo intelecto) é superior ao sensível (apreendido pelos sentidos). Outro filósofo importante é John Locke (1632-1704), que inaugura as ideias liberais na política, descartando a tese em favor do direito divi- no dos reis e proclamando que todos os homens são iguais. Essa mes- ma afirmação aparecerá na Declaração da Independência dos Estados Unidos (1776) e na Constituição Americana (1789). As repercussões po- líticas posteriores levaram a grandes transformações da Europa. Nesse mundo de mudanças, a estética e a arte também foram afetadas, e não por acaso a estética nasceu nessa época. Ao contrário de Descartes, o filósofo inglês Hume não acreditava que a razão era a base do conhecimento. Ao contrário de Baumgarten, Hume valorizava as sensações. Os juízos – que nos causam interesse como estu- diosos da estética – resultam das experiências que temos e dos sentimen- tos que essas experiências despertam. Alguém, enfim, dava importância ao sensível. Não um artista, mas um filósofo. Não apenas nossos juízos são determinados pela sensibilidade, mas também nossa forma de agir e pensar. Como empirista, Hume acreditava no papel central da experiência na constituição do conhecimento. Em 1758, Hume publicou no livro Ensaios morais, políticos e literários, um ensaio chamado “Do padrão dogosto”, no qual, logo na primeira frase, afirma que a variedade de gostos e opiniões não pode deixar de ser notada. Daí seu interesse. E também opinou: a beleza existe para quem contempla e, por isso, cada um de nós percebe uma beleza di- ferente (HUME, 2013). Não há uma regra, então, para se conseguir um acordo com as diversas opiniões. O que impede um padrão de gosto é a experiencia individual com o objeto artístico. Logo, Hume afirma que “o sentimento está sempre certo” (2013, p. 95). empirismo: referente à escola filosófica que defende a tese de que o conhecimento se origina da experiência. Glossário 46 Estética e história da arte Nesse caso, aquele que gosta tem a si mesmo como referencial. Dessa forma, todos os sentimentos despertados pelo objeto estão certos, uma vez que nenhum desses sentimentos está em conformidade com o objeto. É o paradoxo do gosto, para Hume. Quem pratica a contemplação do belo contribui para aprimorar seu talento e diferenciá-lo dos outros. A prática, diz ele (HUME, 2013, p. 102), facilitará a apreciação de qualquer obra, que é comparável com sua execução. Há uma relação de igualdade entre artista e espectador. A prática da contemplação da beleza é valorizada por Hume. Kant é um autor muito citado quando se discute estética. Foi leitor de Hume e tentou, a seu modo, conciliar o papel da experiência e o papel da razão na forma como conhecemos algo. Uma de suas principais contribui- ções é a afirmação de que não conhecemos os objetos em si mesmos, mas somente enquanto fenômenos, como aparecem em nossos sentidos. Por- tanto, todas as coisas, enquanto fenômenos, não existem em si mesmas, mas em nós. Ou seja, conhecemos apenas o nosso modo de percebê-los (KANT, 1980). Isso modifica dois milênios de tradição antropocêntrica, que afirma a centralidade do homem em relação a todas as coisas. Um dos aspectos mais importantes da estética kantiana é a ausência de regras para o reconhecimento do belo. De modo simples, segundo Kant, pode-se definir o belo como sem interesse, sem conceito, sem fim, mas necessário. Ou seja, nosso sentimento em relação ao belo é desin- teressado, sem avaliações ou julgamentos e sem finalidade. Quando Kant fala em julgamentos, quer dizer que o juízo estético é di- ferente do juízo lógico (ou racional), e que a fonte de referência desse tipo de juízo é o próprio sujeito. A estética kantiana possibilita uma experiência subjetiva, livre de qualquer conceito, cuja imaginação torna possível uma satisfação tão livre que não interessa se os objetos são ou não coerentes. Kant não escreveu diretamente sobre a arte, mas sempre derivamos sua Terceira Crítica para ela. A Crítica da faculdade do Juízo não estuda obras, nem artistas, mas sempre é citada nos debates sobre arte, mes- mo a contemporânea. Quando Kant afirma que o sentimento em relação ao belo é desin- teressado, afasta a apreciação estética de qualquer finalidade prática ou moral. Com isso ele alimentou uma discussão tipicamente moder- na: a questão da autonomia da arte. Livre, portanto, até mesmo das instituições. A arte contemporânea levará o desejo de autonomia a um momento de maior intensidade. Evolução histórica da estética 47 2.4 A estética contemporânea Vídeo O estudante Arthur Danto estava em Paris no princípio de 1960, quando viu a reprodução em branco e preto de uma obra de arte pop publicada em uma revista. Era a pintura O beijo, de Roy Lichtenstein (1923-1997). Danto ficou espantado, sem ter certeza sobre o que pen- sar e desconfiado de que o trabalho de Lichtenstein não era arte. Tudo lembrava uma pintura realizada da forma como se faz há séculos, com o mesmo suporte de sempre: tinta a óleo sobre tela. No entanto, a ima- gem era bidimensional e as cores foram aplicadas de modo uniforme, sem meios-tons. Não havia modelagem ou contraste. A imagem pare- cia ser um recorte de alguma história em quadrinhos. Lichtenstein pin- tou vários trabalhos com o mesmo tema: beijos inspirados em HQs. A imagem a seguir é uma das primeiras da época descrita por Danto. Durante a temporada em Paris, Danto aproveitou para refletir e concluir que aquilo era arte. Na volta para os Estados Unidos, resolveu ver mais trabalhos da arte pop. Em 1964, viu a segunda exposição de Andy Warhol, relatando ter sido uma experiência transformadora (DANTO, 2012). Essa “experiência transformadora” fez, segundo as próprias palavras de Danto, com que ele se tornasse um filósofo da arte. Admitiu que unir filosofia e arte não era um de seus interesses, mas, então, como era essa exposição que o transformou? A exposição continha objetos comuns de supermercados, incluindo caixas de um sabão muito conhecido nos Estados Unidos, chamado Brillo. O nome Brillo Box refere-se àquela caixa que é guardada nos depósitos dos armazéns e supermercados. Foram essas caixas que o levaram a refletir sobre como definir a arte. Lembre-se de que Duchamp se apropriava de um objeto já pronto, o que chamou de ready-made, e o levava para o espaço de exposição. A Brillo Box foi criada com madeira compensada e aplicação de serigrafia. W ikiart LICHTENSTEIN, R. O Beijo V. 1964. 14,6 X 15,2 cm. Coleção privada. Danto se questionava por que a Brillo Box era digna de ser conside- rada arte. Por que ela era considerada arte e as caixas comuns de sabão Brillo não tinham esse status? Ao criar suas caixas exatamente iguais àquelas vendidas em supermercados, Warhol mostrou que não havia distinção entre arte e realidade. A mimese foi utilizada sem cul- pa. No entanto, esta análise não é a de Danto. Seu interesse era mos- trar que um trabalho se transfigura (palavra que ele utiliza) em arte quando o mundo da arte, definido por ele como o mundo das obras de arte, aceita recebê-lo. Assim, sob o impacto da Brillo Box ele se tornou um filósofo da arte, e as obras de arte se transformam em exercícios de filosofia da arte. É possível concluir que a arte conceitual se converteu em um exercício filosófico, e que as fronteiras entre a arte e a filosofia caminham para desaparecer (DANTO, 2005). Afetado pela Brillo Box, Danto escreveu e publicou, no mesmo ano da exposição de Warhol (1964), um ar- tigo comentado até hoje, chamado O mundo da arte. O problema que apresentou era o mesmo: “como dis- tinguir obras de arte de outras coisas” (2015, p. 27). Era uma questão estética, sem dúvida, e existia desde os primeiros ready-mades de Duchamp. Nesse artigo, Danto já utilizou sua noção de transfiguração de obje- tos banais em arte. O complicado, para o estreante fi- lósofo da arte, é que a transfiguração não se encaixava em categorias estéticas já existentes, como a imitação da realidade ou a ilusão. A diferença entre a caixa de sabão Brillo real e a obra de Warhol é uma certa teoria da arte, segundo Danto (2015), que recebe a Brillo Box no mundo da arte. Ao ser recebida, ela adquire uma identidade ar- tística, ainda que seja um objeto real. É preciso, assim, que pessoas vejam a Brillo Box como arte, como parte do mundo da arte, e, claro, apliquem a teoria da arte. Uma teoria simples que entende que a Brillo Box é arte porque está na galeria e fora dela é apenas uma cai- xa de madeira compensada pintada. Será que todas as teorias que estudamos até agora não são iguais a essa? Danto (2015) explica que o papel das teorias ar- tísticas é tornar o mundo da arte e a arte possíveis. Arte pop é a contração de arte popular. Os artistas do gênero queriam, antes de tudo, retomar a relação entre arte e vida, que julgavam ter sido abandonada pelos movimentos modernistas anteriores. Por isso, usaram imagens típicas da cultura americana, como histórias em quadrinhos e propagandas de TV. As imagens eram retrabalhadas, mas, mesmo assim, não pareciam diferentes em relação ao que o espectador estava acostumado. Além disso, usavam materiais de todos os tipos, incluindo os industriais. Saiba mais WARHOL, A. Brillo Box. 1964. Galeria Nacional do Canadá, Ottawa, Canadá.W ik ia rt 48 Estética e história da arte Evolução histórica da estética 49 Influenciado pelo artigo de Danto, o professor e estudioso da esté- tica George Dickie desenvolveu sua teoria institucional da arte, na qual defende que as obras de arte são artefatos. Ele entende por artefa- to a mesma definição que está nos dicionários: um objeto feito pelo homem (DICKIE, 2008). Um artefato não precisa ser físico. Um poema não é um objeto físico, mas é um artefato. Há um diálogo nas teses de Dickie com os ready-mades de Duchamp. Ou seja, a preocupação é a mesma de Danto: o que pode ser considerado arte? Será quando um artefato se candidata à apreciação? A tese de Dickie (2008) afirma que uma pintura pode se tornar obra de arte se um representante do mundo da arte conferir o estatuto de ar- tefato e torná-la candidata à apreciação. Essa apreciação é a apreciação estética, sobre a qual já discutimos e que pode ser definida como juízo estético (o estalo que experimentamos com uma obra de arte), valor estético (a excelência que observamos em determinada obra de arte) ou, como consequência, a fruição estética (o prazer que desfrutamos durante a contemplação de uma obra). Ainda que o artista faça parte do mundo da arte, ele mesmo não pode conferir a condição de arte à sua obra. Apesar dessa constatação, Dickie (2008) lembra que os requisitos para uma obra ser obra de arte não podem bloquear a criatividade. Não há restrições, já que uma obra pode nascer de qualquer coisa. No entanto, na última versão de sua teoria, Dickie (2008) alterou sua tese principal: a condição de artefato não pode ser conferida. Quando um objeto qualquer é utilizado como meio artístico, ele se transforma em um objeto mais complexo. É justamente esse objeto complexo que se torna um artefato do mundo da arte. Dickie usa a Fonte, de Duchamp, para ilustrar sua tese: o urinol é um objeto simples, mas é usado como meio artístico para chegar à Fonte, que é um objeto complexo. É possível perceber que, para Dickie, as teorias estéticas tradicionais estabelecem que o artista, como criador de artefatos, é o único a ter papel que institui e firma a propriedade expressiva e simbólica da arte. Dickie mostra que há outros agentes. Como há instituições dedicadas à arte, há papéis desempenhados por outras pessoas com o objetivo de mediar a relação entre artista e público, como o crítico, professor de arte, diretor, curador etc. (DICKIE, 2008). Essa teoria foi resumida por ele mesmo da seguinte forma: Professor emérito de filosofia na Universidade de Illinois, Chicago, George Dickie (1926) escreveu vários livros sobre estética e arte e é um dos mais conceituados teóricos contemporâneos da estética. Quem? 50 Estética e história da arte 1. Uma obra de arte é um artefato com o objetivo de ser apresentado a um público do mundo da arte. 2. Um artista é uma pessoa que participa conscientemente na produção de uma obra de arte. 3. Um público é um conjunto de pessoas cujos membros têm suficiente preparação para compreender um objeto que lhes é apresentado. 4. O mundo da arte é a totalidade de todos os sistemas do mundo da arte. 5. Um sistema do mundo da arte é um enquadramento 1 para a apresentação de uma obra de arte por um artista a um público do mundo da arte. (Adaptado de DICKIE, 2008, p. 145) O termo enquadramento pode ser entendido, nesse caso, como contexto, ou seja, o conjunto de circunstâncias ou fatores que acompanham uma exposição. 1 Dickie abandona as questões tradicionais da estética, como definir se nossa apreciação é objetiva ou subjetiva, a centralidade do papel do artista e a ausência de outros agentes, como críticos e curadores. Se- gundo ele, arte é um conceito cultural e deve haver critérios objetivos para atribuir valor a ela. Sabe-se que esses valores não são só estéticos. No entanto, Dickie defende a liberdade criativa e a coloca como regra fundamental, preocupando-se com a prática. Antes de encerrar este capítulo, vamos retomar a posição forma- lista de Clement Greenberg, que foi influente durante um período do século XX, mas perdeu alguma força por causa do impacto das imagens da arte pop, ainda que continuem válidas e debatidas. O artigo de Greenberg se chama Pintura modernista e foi publicado em 1960, um pouco antes da revolução pop. Nele, Greenberg explica a novidade histórica trazida pelo movimento moderno do século XX. Conta que a arte naturalista (obras que tentam reproduzir a natureza, mas não a copiar) havia escondido os meios que o artista usava para criar, como as tintas, as pinceladas, as marcas humanas deixadas na obra. O mo- dernismo, ao contrário, “usou a arte para chamar atenção para a arte” (GREENBERG, 1997, p. 102). Greenberg valorizava as próprias limitações da pintura, porque é delas que se serve, como a superfície plana, o su- porte e as propriedades das tintas. Até os grandes mestres viam esses aspectos como negativos. O modernismo, ao contrário, via-os como po- sitivos. Há a influência da noção de autonomia da arte presente em Kant, nos elogios de Greenberg ao modo como a arte moderna se preocupa com seus meios de pintar: uma preocupação da arte consigo mesma. Elogiando os pintores impressionistas, Greenberg afirma que eles não queriam deixar dúvidas de que as cores saíram dos tubos de tinta. O modernismo, assim, tornou a pintura mais consciente de si mesma. Com o impressionismo, a questão não era mais uma disputa entre cor e desenho, mas uma experiência óptica. Por causa disso, segundo Greenberg (1997), os impressionistas abandonaram algumas práticas antigas, como o sombreado e a modelagem. Pintura, afinal, não era escultura. A partir dessas perspectivas é possível compreender melhor Les Demoiselles d’Avignon, de Picasso. Nesse sentido, Greenberg encerra seu artigo defendendo que a arte, entre outras definições, é continuidade, não ruptura. Os dadaístas pensavam diferente. A arte, para eles, era ruptura, sim, e pregavam a superação da estética. Nesse caso, a estética estava vincu- lada a tudo que criticavam, como a noção de belo e de contemplação. Importante saber que o dadaísmo foi um movimento artístico cria- do na Suíça, em 1916, ainda durante a Primeira Guerra Mundial. É difícil separar os dois: o dadaísmo e a Guerra. A desilusão e a dor fizeram com que esses artistas questionassem os princípios da estética. Afinal, contemplar o quê? Duchamp se ligou ao grupo dadaísta. Sua Roda de Bicicleta é de 1913, anterior à Fonte, de 1917, e é um exemplo do que queriam os dadaístas. Em 1922 o movimento se encerra, mas sua influência foi decisiva nos anos seguintes. Foi uma rebelião contra a estética, mas também uma rebelião contra aquilo que a estética represen- tava desde o século XVIII. A guerra marcava o auge de um movimento que começara com a instituição de um conceito, a estética, e um grupo que tomou pos- se desse conceito. Para os dadaístas, aqueles que tinham dinheiro e podiam contemplar coisas belas fizeram a guerra e acabaram com todas as possíveis ilusões estéticas. A própria palavra dadaísmo não significa nada. Daí em diante, a estética tomaria ou- tro rumo. 1717 Auge do estilo rococó, principal estilo anterior a Revolução Francesa, marcado pela leveza e cores suaves. 1739 Novos clientes: Os pintores ganham novos clientes: a burguesia, que passa a ter mais influência na França. Novos temas: As paisagens, a natureza-morta e as cenas cotidianas ganham destaque. 1768 Neoclassicismo: Retorno do ideal greco-romano com o neoclassicismo. 1784 Contemporaneidade Falecimento de Diego Velázquez, pintor espanhol. 1660 Real Sociedade 1661 Publicação do livro Princípios Matemáticos da Filosofia Natural, de Isaac Newton. 1687 Publicação do Ensaio acerca do Entendimento Humano, de John Locke. 1689 Declaração de independência dos Estados Unidos. Morte de David Hume. 1776 Criação da Escola de Belas Artes de Paris. 1635 Picasso 1907 Inauguração do Museudo Louvre. 1793 Grécia Publicação de História da Arte Antiga, de Johann Joachim Winckelmann. 1763 Lançamento do Tratado chamado Estética. 1750 W ikim edia Com m ons DUCHAMP, M. Roda de Bicicleta, 1913 (versão 1964). 1,3 m x 64 cm x 42 cm. Museu de Israel. O livro O Belo Autônomo: Textos clássicos de estética representa uma fonte de consulta permanente, pois trata-se de uma seleção de textos de estética que vai de Platão até a estética contempo- rânea. Poucos autores importantes ficaram de fora da seleção. DUARTE, R. (org.). 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2013. Livro Evolução histórica da estética 51 Elogiando os pintores impressionistas, Greenberg afirma que eles não queriam deixar dúvidas de que as cores saíram dos tubos de tinta. O modernismo, assim, tornou a pintura mais consciente de si mesma. Com o impressionismo, a questão não era mais uma disputa entre cor e desenho, mas uma experiência óptica. Por causa disso, segundo Greenberg (1997), os impressionistas abandonaram algumas práticas antigas, como o sombreado e a modelagem. Pintura, afinal, não era escultura. A partir dessas perspectivas é possível compreender melhor Les Demoiselles d’Avignon, de Picasso. Nesse sentido, Greenberg encerra seu artigo defendendo que a arte, entre outras definições, é continuidade, não ruptura. Os dadaístas pensavam diferente. A arte, para eles, era ruptura, sim, e pregavam a superação da estética. Nesse caso, a estética estava vincu- lada a tudo que criticavam, como a noção de belo e de contemplação. Importante saber que o dadaísmo foi um movimento artístico cria- do na Suíça, em 1916, ainda durante a Primeira Guerra Mundial. É difícil separar os dois: o dadaísmo e a Guerra. A desilusão e a dor fizeram com que esses artistas questionassem os princípios da estética. Afinal, contemplar o quê? Duchamp se ligou ao grupo dadaísta. Sua Roda de Bicicleta é de 1913, anterior à Fonte, de 1917, e é um exemplo do que queriam os dadaístas. Em 1922 o movimento se encerra, mas sua influência foi decisiva nos anos seguintes. Foi uma rebelião contra a estética, mas também uma rebelião contra aquilo que a estética represen- tava desde o século XVIII. A guerra marcava o auge de um movimento que começara com a instituição de um conceito, a estética, e um grupo que tomou pos- se desse conceito. Para os dadaístas, aqueles que tinham dinheiro e podiam contemplar coisas belas fizeram a guerra e acabaram com todas as possíveis ilusões estéticas. A própria palavra dadaísmo não significa nada. Daí em diante, a estética tomaria ou- tro rumo. 1717 Auge do estilo rococó, principal estilo anterior a Revolução Francesa, marcado pela leveza e cores suaves. 1739 Novos clientes: Os pintores ganham novos clientes: a burguesia, que passa a ter mais influência na França. Novos temas: As paisagens, a natureza-morta e as cenas cotidianas ganham destaque. 1768 Neoclassicismo: Retorno do ideal greco-romano com o neoclassicismo. 1784 Contemporaneidade Falecimento de Diego Velázquez, pintor espanhol. 1660 Real Sociedade 1661 Publicação do livro Princípios Matemáticos da Filosofia Natural, de Isaac Newton. 1687 Publicação do Ensaio acerca do Entendimento Humano, de John Locke. 1689 Declaração de independência dos Estados Unidos. Morte de David Hume. 1776 Criação da Escola de Belas Artes de Paris. 1635 Picasso 1907 Inauguração do Museu do Louvre. 1793 Grécia Publicação de História da Arte Antiga, de Johann Joachim Winckelmann. 1763 Lançamento do Tratado chamado Estética. 1750 W ikim edia Com m ons DUCHAMP, M. Roda de Bicicleta, 1913 (versão 1964). 1,3 m x 64 cm x 42 cm. Museu de Israel. O livro O Belo Autônomo: Textos clássicos de estética representa uma fonte de consulta permanente, pois trata-se de uma seleção de textos de estética que vai de Platão até a estética contempo- rânea. Poucos autores importantes ficaram de fora da seleção. DUARTE, R. (org.). 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2013. Livro 52 Estética e história da arte CONSIDERAÇÕES FINAIS É possível pensar a vida esteticamente? Para o dadaísmo, não mais. O século XX, que começara com o otimismo de Les Demoiselles d’Avignon, e que anunciava ser possível ir além da novidade impressionista, teve um duro golpe com a Primeira Guerra Mundial. Daí a revolta dadaísta contra qualquer coisa que lembrasse a estética. Como nada, porém, é definitivo, artistas, teóricos e historiadores da arte continuaram, no século XX e nas duas primeiras décadas do século XXI, a refletir sobre o belo, sobre a arte e, principalmente, sobre nossa experiência com o objeto artístico. A linha proposta neste capítulo, com Policleto-Picasso-Duchamp, explica a cronologia dessa experiência que tentamos revelar desde o período anterior a Platão. Este recorte teórico e histórico não reuniu todos os artistas e pensado- res que refletiram sobre os objetos da estética. Agora, sim, pode-se falar em objetos da estética, no plural. Perceba que, com o decorrer do tempo, a palavra estética ganhou novas preocupações, como a Teoria Institucional da Arte, por exemplo. E novas preocupações irão se juntar a essas que foram estudadas até aqui. ATIVIDADES 1. O núcleo das teses de Policleto é a noção de proporção baseada em princípios matemáticos. De acordo com o texto, como essa proporção é aplicada pelo artista? 2. Explique a noção de espaço renascentista e sua influência por tantos séculos. 3. Em termos formais, quais são as principais características da arte medieval? Cite ao menos três exemplos. REFERÊNCIAS AGOSTINHO, S. Confissões. Trad. de Lorenzo Mammì. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. ARISTÓTELES. Poética. Trad. de Paulo Pinheiro. São Paulo: Editora 34, 2015. DA VINCI, L. Tratado da pintura. In: LICHTENSTEIN, J. (org.). A Pintura. Textos essenciais. Vol. 7. O paralelo das artes. Coordenação da tradução: Magnólia Costa. São Paulo: Editora 34, 2005. DA VINCI, L. Trattato della Pittura. Roma: Liber Liber, 2006. https://www.liberliber.it/ mediateca/libri/l/leonardo/trattato_della_pittura/pdf/leonardo_trattato_della_pittura.pdf. Acesso em: 11 fev. 2020. Evolução histórica da estética 53 DANTO, A. C. A transfiguração do lugar-comum: uma filosofia da arte. Trad. de Vera Pereira. São Paulo: Cosac Naify, 2005. DANTO, A. C. Andy Warhol. Trad. de Vera Pereira. São Paulo: Cosac Naify, 2012. DANTO, A. C. O mundo da arte. Trad. de Rodrigo Duarte. In: IANNINI, G.; GARCIA, D.; FREITAS, R. (orgs.). Artefilosofia: Antologia de textos estéticos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015. DELACROIX, E. Diário (1822, 1853, 1854). 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(Coleção Os Pensadores). KANT, I. Crítica da faculdade do juízo. Trad. de Valério Rohden e António Marques. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002. LE GOFF, J. A história deve ser dividida em pedaços?. Trad. de Nicia Adam Bonatti. São Paulo: Editora Unesp, 2015. PLATÃO. A República. Trad. de Maria Helenada Rocha Pereira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996. PLÍNIO, O VELHO. História natural. In: LICHTENSTEIN, J. (org.). A Pintura. Textos essenciais. Vol. 7. O paralelo das artes. Coordenação da tradução Magnólia Costa. São Paulo: Editora 34, 2004. PLOTINO. Tratados da Enéadas. Trad. de Américo Sommermann. São Paulo: Polar Editorial, 2007. TOMÁS DE AQUINO, S. Contra gentios e Suma teológica. Trad. de Rodrigo Duarte. In: DUARTE, R. (org.). O Belo Autônomo: Textos clássicos de estética. Belo Horizonte: Autêntica, 2013. 54 Estética e história da arte 3 A arte nas diferentes culturas Em 1993, o diretor de cinema franco-suíço Jean-Luc Godard fez um curta-metragem de menos de três minutos chamado Je vous salue, Sarajevo, em que refletiu sobre a guerra da Bósnia, ocorrida nos anos 1990. O próprio diretor faz a narração e diz uma frase que ficou famosa: cultura é regra, arte é exceção. Será que podemos separá-las, como fez Godard? Neste capítulo serão analisadas as relações entre arte e cultu- ra. Antes, porém, a definição de cultura ajudará a compreender a provocação de Godard. 3.1 O que é cultura Vídeo Cultura é uma daquelas palavras às quais todos podem atribuir al- guma definição, como com as palavras liberdade e natureza. Nos dicio- nários há vários significados para cultura, como: processo de cultivar a terra; cultivo de células na biologia; criação de algum tipo de animal; referência à pessoa com grande conhecimento; e representação de ati- vidades ou instituições ligadas à criação e difusão de obras de arte. Aqui nos interessa a definição antropológica, que se refere ao “con- junto de padrões de comportamentos, crenças, conhecimentos, cos- tumes etc. que distinguem um grupo social” (HOUAISS; VILLAR, 2009, p. 583). E também outra definição antropológica, presente no dicioná- rio, que se refere à “etapa evolutiva das tradições e valores intelectuais, morais, espirituais (de um lugar ou período específico)”. A expressão cultura clássica é um exemplo deste último conceito. Outra definição quanto à cultura é o uso da palavra civilização como sinônimo. O Dicionário Houaiss refere-se à civilização como “conjunto de aspectos peculiares à vida intelectual, artística, moral e material de uma época, de uma região, de um país ou de uma sociedade” (HOUAISS; VILLAR, 2009, p. 476). Por isso, nos referimos, por exemplo, à civilização No curta-metragem Je vous salue Sarajevo, de Jean-Luc Godard, o diretor reflete a respeito da arte e da cultura por meio de imagens fragmentadas de uma fotografia de Ron Haviv, feita durante a Guerra da Bósnia. Direção: GODARD, J. L. França: Périphéria, 1993. Disponível em: https://www.youtube.com/ watch?v=LU7-o7OKuDg. Acesso em: 10 mar. 2020. Filme https://www.youtube.com/watch?v=LU7-o7OKuDg https://www.youtube.com/watch?v=LU7-o7OKuDg A arte nas diferentes culturas 55 egípcia, pois se usássemos cultura egípcia seríamos igualmente com- preendidos. Contudo, nem sempre foi assim; em alguns momentos, essas palavras foram usadas com significados diferentes. É natural a associação de expressões humanas, como a arte, com a cultura. Obviamente, a cultura de um grupo não é representada apenas por pinturas ou esculturas. O termo expressões humanas indica uma ex- tensão que vai além do campo artístico. Roque de Barros Laraia (2001, p. 25) explica que o termo germânico Kultur já era usado no final do século XVIII para “simbolizar todos os aspectos espirituais de uma co- munidade”. A palavra francesa civilization era utilizada para se referir às realizações materiais de um povo. Laraia (2001) explica que, em 1871, Edward Tylor (1832-1917) sintetizou estas informações no vocábulo culture, que se tornou corrente e utilizado até hoje. Para Tylor, o termo cultura poderia incluir conhecimentos, arte, moral, leis, costumes e há- bitos que adquirimos como membros de um grupo. Na visão de Laraia (2001, p. 25), Tylor conseguiu abranger “em uma só palavra todas as possibilidades de realização humana, além de marcar fortemente o ca- ráter de aprendizado da cultura em oposição à ideia de aquisição inata, transmitida por mecanismos biológicos”. Percebe-se que Tylor incluiu a arte no conjunto de realizações humanas que formam a cultura. No decorrer do século XX, essa primeira definição de cultura pensa- da por Tylor foi ampliada para dezenas de outras definições. Para nós, no entanto, é importante compreender que no interior da definição de cultura como realização humana, encontra-se a arte. Se vemos o mun- do através da cultura que herdamos – que chamamos de herança cul- tural –, vemos o mundo também através da arte. Por isso, trataremos expressões humanas e realizações humanas como similares. Contudo, por causa da especificidade da arte, utilizaremos a primeira. É possível perceber que há outro campo para a estética, resultado da constatação de que a arte é também um fato cultural. Essa é a maior contribuição da antropologia para a estética e abre um campo vasto para a pesquisa sobre a linguagem artística. Se a linguagem é o princi- pal fato cultural (no sentido de nos diferenciar dos animais e estabe- lecer formas de vida social), a linguagem artística a acompanha. Se a cultura é também um conjunto de conhecimentos de um determinado grupo, a linguagem – mais precisamente, a linguagem artística – com- põe um sistema de símbolos também adquirido e transmitido coleti- vamente. Portanto, cultura, linguagem e arte constituem a essência Figura 1 Edward Tylor W ikim edia Com m ons Pode-se definir a antropologia como a área de conhecimento que estuda o ser humano e suas realizações. Tal definição é resulta- do da própria origem da palavra, que é composta por duas raízes gregas: anthropos, que significa homem, ser humano, e logos que significa estudo ou compreensão. Esta é uma definição ampla, já que outras áreas das ciências humanas também estudam o ser humano. A definição de antro- pologia se torna mais específica quando se delimita seu objeto de estudo para os costumes e condicionamentos que compõem a cultura de diferentes grupos. Nesse caso, a antropologia está relacionada com a dimensão cultural. No entanto, é importante lembrar que cultura não é defi- nida apenas como conjunto de crenças e costumes, mas também pela arte e pela moral, entre outros aspectos. Saiba mais 56 Estética e história da arte do que pode ser chamado de vida social. Consequentemente, lingua- gem e arte são manifestações da cultura. Há nesse raciocínio a ideia de universalização da linguagem (e da linguagem artística), e não particularização. A língua é algo particular, vinculada a uma nação, a linguagem é universal. Por isto, um artista de uma região específica do planeta pode apresentar suas obras na Bienal de Veneza, por exemplo, e vê-las desfrutadas por milhares de pessoas, independentemente de onde nasceram. A linguagem da arte é também universal. Tal afirmação parece um pouco romântica, por isso é preciso analisá-la. A frase do historiador da arte Ernst Gombrich (2013, p. 37) pode ajudar a compreendê-la: “ninguém sabe como a arte começou, assim como não se sabe a origem da linguagem”. Vejamos, então, uma das mais antigas imagens criadas pelo homem. W ik im ed ia C om m on s Bisão (cerca de 35.000 a.C.). Caverna de Altamira, norte da Espanha. Pintura do Período Paleolítico, que começou há 2,5 milhões de anos e durou até cerca de 10.000 a.C. É possível perceber que a arte é um dos conhecimentos que com- põem a cultura, ainda que algumas vozes discordem, como a do diretor Godard. Se a arte está em todo lugar e em todas as épocas, parece legí- timo associá-la à cultura. O homem paleolítico, que pintou as paredes e Figura 2 Pintura de bisão do Período Paleolítico I A arte nas diferentes culturas 57 o teto da caverna de Altamira, precisou de utensílios para criar suas ima- gens. Esse homem que faz, que cria, que se preocupa em dar forma a uma pedra para que ela tenha uma função, exibe sensibilidadena esco- lha dos materiais (a pedra certa) e uma grande habilidade para desbas- tar a pedra. Se pensou em Michelangelo desbastando o mármore, ou no designer contemporâneo tentando unir forma e função, você não errou. O jeito de desbastar a pedra na medida certa foi transmitido de mestre para aprendiz. Isso ocorreu nos grupos paleolíticos, nas oficinas de ofícios da Idade Média e nas Escolas de Belas Artes que surgiram a partir do século XVIII. A arte é o melhor exemplo para se entender a noção antropológica de cultura. Do mesmo modo, pode-se analisar os aspectos formais das ima- gens de Altamira. Há um senso de proporção apurado, há sombreado, o que sugere volume. Os homens que pintaram aquela caverna de- senvolveram técnicas para criar e fixar padrões cromáticos. Também precisaram desenvolver um senso de observação apurado ou não con- seguiriam criar imagens naturalistas como as de Altamira e de outras cavernas. Pode-se afirmar que são trabalhos artísticos. Há uma sensibilidade estética nos artistas que pintaram essas ima- gens? Não se sabe qual era a finalidade delas. Especula-se que foram criadas para fins religiosos. Pode-se, contudo, analisá-las esteticamen- te. A aguda observação dos animais, por parte dos artistas, sugere a intenção de copiar a realidade. Eles criaram representações que, pro- vavelmente, faziam parte do universo simbólico daquela sociedade. Não é pouco, se pensarmos que elas foram pintadas há 35.000 anos. A cultura, portanto, engloba também formas simbólicas, como as imagens artísticas, criadas há muitos anos, como as imagens da caver- na de Altamira. A relação do homem com as imagens é antiga e, por causa delas, surgiram nas universidades americanas, a partir dos anos 1980, cursos e seminários sobre um campo de estudos que passou a ser chamado de cultura visual. Os grupos de pesquisadores tinham como objetivo principal estudar a relação entre cultura e imagem. A noção de imagem, nesse caso, inclui aquelas que sempre foram estu- dadas pela estética e história da arte e, também, um grupo de imagens que não tinha o mesmo prestígio acadêmico, como as publicitárias, his- tórias em quadrinhos, games, programas de TV. É possível encontrar também a expressão estudos visuais, pois foi utilizada no início da insti- tucionalização desta nova área de estudos nas universidades, chamada cultura visual. Também está relacionada aos estudos culturais, área interdisciplinar que se ocupa do estudo da cultura. No início dos anos 1990, era possível encontrar programas de universidades americanas com o título Estudos Culturais e Visuais. Com o tempo, a expressão cultura visual passou a ser mais utilizada. O que as torna relevantes é o estudo da cultura e sua relação com as imagens. O termo imagem substituiu pintura ou escultura para valorizar a diversidade de representações visuais que encontramos no mundo. Saiba mais 58 Estética e história da arte Esse novo campo de pesquisas é interdisciplinar e inclui também antropólogos, sociólogos, pesqui- sadores da área de história e cinema, entre outros. Nele, a imagem tem um papel central. A diferença em relação à estética e à história da arte é a amplia- ção da noção de imagem. Agora, todas as imagens são objetos de pesquisa e não apenas aquelas acei- tas como artísticas. Assim, uma imagem não pre- cisa mais ter apenas valor estético, mas também um papel no âmbito da cultura, como definida no começo desse capítulo. A Mona Lisa talvez seja a imagem mais fotogra- fada da história da arte. É uma imagem que não cessa de gerar mais imagens, as quais também são objetos de pesquisa da cultura visual, pois, por vi- sual, entende-se também a imagem digital. As possi- bilidades abertas pela nova disciplina são enormes. É mais um desdobramento do movimento que começou no século XVIII com a abertura de várias áreas de estudos dedicados à arte e à imagem. 3.2 O vínculo entre arte e cultura Vídeo O período neolítico marca uma revolução que modificou a vida de todos, nos transformando em homens hábeis em criar artefatos sofis- ticados para a nova vida que surgia. Com o fim do Paleolítico, aproxi- madamente entre 10.000 e 5.000 a.C., segue-se o Neolítico, quando o homem abandonou a vida nômade de caçador e coletor de alimentos para se estabelecer em locais apropriados para plantar e colher. Por causa disso, precisou compreender a natureza e transformar esse mo- mento em um dos mais revolucionários da história. Ele precisou mar- car o tempo e as estações e construir utensílios; dominar o processo de produção da cerâmica – o primeiro processo de indústria que se tem notícia – para armazenar água ou sementes. Os objetos do período neolítico que conseguiram sobreviver são tratados hoje como objetos de arte e contemplados em museus, mas sabe-se que tinham funções utilitárias. Por que transformamos um re- cipiente pré-histórico em objeto de arte? Figura 3 Grupo de visitantes fotografando a Mona Lisa no Museu do Louvre em fevereiro de 2015 Ew a St ud io /S hu tte rs to ck A invenção da cerâmica prova- velmente aconteceu por acaso, quando se descobriu que era possível endurecer o barro com o fogo. Isto permitiu a substituição de vasilhas feitas de pedra ou madeira. Conseguiu-se, assim, certa independência da pedra, um material mais difícil de lidar. Curiosidade A arte nas diferentes culturas 59 Figura 4 Vaso neolítico, aproximadamente 5.000 a.C. Vaso neolítico, argila, aproximadamente 5.000 a.C. Museu da Cidade de Praga. Figura 5 Fragmento de vaso, aproximadamente 4.000 – 3.000 a.C. Fragmento de vaso. Aproximadamente 4.000 – 3.000 a.C. Metropolitan Museum of Art, Nova York. A relação com esses objetos é de outra natureza. O sentimento es- tético que experienciamos ao contemplar um vaso de 6.000 anos não se resume às nossas sensações. A classificação abaixo poderá ajudar na compreensão da transformação pela qual a estética está passando. Estética artística Derivada da nossa experiência com os objetos de arte. 1 Estética cultural Baseada na noção de cultura da antropologia, extraída do conjunto de expressões humanas, da qual a arte faz parte. 3Estética natural Estabelecida por filósofos do século XVIII, como Kant; refere-se à nossa experiência e fruição com o belo natural. 2 Um dos museus mais visitados do mundo, o Metropolitan Museum of Art, de Nova York, possui um departamento de arte antiga, no qual conta com objetos do período Neolítico. A frase que abre seu site oficial é a seguinte: “experimente 5.000 anos de Arte no Met”. Essa frase de divulgação demonstra concordância com a proposição de que artefatos culturais estão no grupo de expressões humanas que chamamos de arte. Quando um antropólogo estuda as técnicas e os artefatos de um determinado grupo, ele chama de cultura. Logo, o resultado dessas técnicas é um artefato cultural, que condensa, entre outras coisas, o passado de nosso grupo e o de outros grupos. Visite o site oficial do Metropolitan Museum of Art (Nova York). Disponível em: https://www.metmuseum.org/. Acesso em: 30 mar. 2020. Site https://www.metmuseum.org/ 60 Estética e história da arte Agora é possível responder à seguinte pergunta: qual a razão de nosso interesse por esses objetos antigos? Mesmo que não sejamos antropólogos, estamos inclinados a vê-los como obras de arte e que- remos colecioná-los. Este desejo é fruto de um vínculo com o objeto que tem como origem um prazer estético ou não, pois poderá ser apenas um investimento econômico em algo que em algum momento se valorizará. No entanto, a devoção a objetos antigos que passaram a fazer parte da história da arte não é recente. Ela ganhou destaque no período que chamamos de estético, a partir do século XVIII, com as primeiras escavações arqueológicas, a criação da estética, da crítica de arte e dos museus. Neste momento, nasceu também a ideia de patrimônio cultural, a noção de bens materiais ou simbólicos de um determinado grupo. Isto não impediu,contudo, que as coleções privadas continuassem a existir. Os grandes leilões demonstram que o desejo de possuir um objeto artístico num local preparado para este fim, com ou sem expo- sição pública, sempre existirá. A sensação de que nenhuma coleção é completa faz com que o colecionador se aventure a dinamizar cada vez mais seu acervo. Isto também ocorre com os museus públicos. Esta é uma possível explicação sobre nossa atração por objetos do período Neolítico. Não é por acaso que a arqueologia, como ciência, nasceu também com a estética e com os museus. Ela lida com proces- sos de escavação e com objetos cuja compreensão precisa de aborda- gens interdisciplinares, por isso, o estudioso da estética e história da arte, muitas vezes, é chamado. Não se trata apenas de objetos mate- riais, mas objetos artísticos e, portanto, estéticos. Um exemplo de colecionador é Sigmund Freud (1856-1939). Esse fato surpreendia até seus pacientes, que não se sentiam em um consul- tório, “mas no gabinete de um arqueólogo”, conta Janine Burke (2010, p. 11). Freud chegou a ter mais de dois mil itens em sua coleção de vasos, estátuas, pedras etc. Freud demonstrava ter consciência do amor que sentia por cada objeto de sua coleção. Apesar do amor pelos objetos artísticos ou cul- turais ser uma explicação lógica, toda coleção oferece várias leituras. Burke (2010) apresenta algumas para a coleção de Freud. Uma de- las chama atenção: seu colecionismo seria um exercício de estética. Picasso 1907 Criação da Real Academia de Londres. 1768 Contemporaneidade Grécia Revolução Inglesa 1640 – 1688 Desenvolvimento do motor a vapor. 1698 – 1777 Revolução Americana 1776 – 1783 Revolução Francesa 1789 – 1799 Criação da Escola de Belas Artes de Paris. 1635 O Salão Parisiense passou a ser aberto ao público anualmente. 1677 Lançamento do Tratado chamado Estética. 1750 Baumgarten cunha o termo estética em sua tese. 1735 Publicação de História da Arte Antiga, de Johann Joachim Winckelmann. 1763 A arte nas diferentes culturas 61 Freud nunca escondeu suas preferências artísticas: preferia obras do passado. Fugia dos artistas do modernismo que queriam contatá-lo, seduzidos pelas ideias psicanalíticas. Escreveu livros sobre Leonardo da Vinci e Michelangelo, e sempre associou a psicanálise à arqueologia por causa da palavra escavação, que relacionava, metaforicamente, ao seu próprio trabalho de psicanalista. O artigo Freud e a arte, publicado na Revista Cult, analisa relatos do pai da psicanálise sobre o modo particular que ele utilizava para observar obras de arte, em especial do campo da literatura e das artes plásticas. No texto, é apre- sentado como, ao contribuir inconscientemente para a formulação do que mais tarde viria a ser chamado de estética da recepção, o próprio Freud confirma a relação estreita entre a psicanálise e a crítica contemporânea das artes. Acesso em: 6 mar. 2020. https://revistacult.uol.com.br/home/freud-e-a-arte/ Artigo O acervo de Freud foi transferido para Londres, quando precisou se exilar após a perseguição dos nazistas em 1938. A casa na qual vi- veu o último ano de vida foi transformada no Museu Freud de Londres (Figura 6). Assim como o Museu Freud de Londres, grandes museus começaram com empenho individual de colecionadores, por exemplo, o Museu de Arte Contemporânea (MAC), da Universidade de São Paulo, fundado em 1963, após as doações dos acervos particulares de Ciccillo Matarazzo (1892-1977) e Yolanda Penteado (1903-1983). W ik im ed ia C om m on s Em 1764, Johann Joachim Winckelmann publicou História da arte da antiguidade – uma das obras mais importantes da história da arte –, em que defende que a arte grega é a origem de tudo. Ao contemplar tantas obras da antiguidade, em Roma, percebeu a inspiração nas fontes gregas. Também valorizou a estética como o alicerce para uma nova forma de sabedoria. Contribuiu, assim, para a união de três saberes que emergiram no século XVIII: a estética, a história da arte e a arqueologia. A estética de Winckelmann se baseava na imitação dos gregos, mas não em sua cópia. Dizia que bastava seguir o cânone de Policleto, “uma regra perfeita da arte” (1975, p. 40). Suas reflexões estéticas nasceram de seu contato pessoal com as obras, muitas vezes quando eram descobertas. Por isso, ele é associado à arqueologia. Saiba mais Figura 6 Estúdio de Sigmund Freud com uma parte de sua coleção Visite o site do Freud Museum London e conheça os objetos que compõem o acervo pessoal de Sigmund Freud. É também uma oportunidade de observar um exemplo de amor à arte e à história da arte, capaz de transformar uma casa em museu. Disponível em: https://www.freud. org.uk/. Acesso em: 30 mar. 2020. Site https://www.freud.org.uk/ https://www.freud.org.uk/ 62 Estética e história da arte Assim que chega ao museu, a Fonte, de Duchamp, é transfigurada em objeto artístico pelo mundo da arte. O fragmento de um jarro neo- lítico de argila torna-se objeto artístico e cultural quando o antropólogo (ou o arqueólogo) o encontra e o leva também para o museu. Parece simples, mas há outros aspectos que envolvem este processo de trans- ferência: 1) a possibilidade de análise e conservação dos objetos; 2) a criação de um vínculo entre o mundo de dentro e o de fora do museu, significando que, sem o visitante, esses objetos não fariam sentido. A crítica afirma que esses objetos não foram criados para provocar apreciação estética. A defesa de uma antropologia da arte explica que é possível analisar esteticamente artefatos produzidos por ou- tros grupos, mesmo aqueles de 5.000 anos atrás. O antropólogo da arte tratará do contexto no qual o artefato foi criado e como foi a recepção pelo seu grupo social. Não fará nenhum julgamento. Com a ampliação do estudo do fenômeno artístico, parece natural que algumas noções sejam modificadas ou ampliadas. É o caso do juízo estético, que deixa de existir em certos casos, como o dos itens cul- turais transferidos aos museus. Será útil analisar os comentários críticos de Teixeira Coelho (2008, p. 17), para quem “nem tudo é cultura”. Ele também aponta para um fato: a cultura deixa de ser substantivo e passa a ser adjetivo. Ela não é mais uma coisa, mas um conjunto de formas diferentes. Por isso, falamos que algo é cultural. Além de uma igreja antiga ou um vaso neolítico, há o patrimônio imaterial, como a dança, a linguagem ou o comportamento das pessoas. Coelho (2008) repete a crítica de Jean-Luc Godard: a cultura é apenas repetição da regra, ela não consegue favorecer o desenvolvimento da exceção. A arte é a única, entre os modos da cultura, que consegue não repetir a regra, sen- do capaz de anular a impessoalidade e respeitar a individualidade e a subjetividade. Ela é a única exceção cultural, tanto para o artista quanto para o espectador. Há outra diferença: o cultural é utilitário, mas a arte, não (COELHO, 2008). Essa questão é importante quando pensamos nos objetos antigos sobre o qual tratamos, que podem ser vistos como documentos, da mes- ma forma como a Mona Lisa, por exemplo. Todavia, como arte, a obra de Leonardo não tem utilidade específica. Nesse sentido, os vasos antigos po- dem ser vistos como documentos de uma época e, também, como objetos inúteis, porém, artísticos. No museu, eles não comunicam nada, como a Mona Lisa. Caso contrário, eles seriam obras de cultura e não de arte. O livro A cultura e seu contrário, do professor, crítico e curador Teixeira Coelho, traz uma visão crí- tica da relação entre arte e cultura, principalmente a visão antropológica de que cultura é tudo. COELHO, T. São Paulo: Iluminuras/ Observatório Itaú Cultural, 2000. Disponível em: https://www. itaucultural.org.br/a-cultura-e-seu- -contrario. Acesso: 30 mar. 2020. Livro https://www.itaucultural.org.br/a-cultura-e-seu-contrario https://www.itaucultural.org.br/a-cultura-e-seu-contrario https://www.itaucultural.org.br/a-cultura-e-seu-contrarioA arte nas diferentes culturas 63 Por fim, para Coelho (2008), cultura é hábito, arte é liberdade. Hábito, nesse caso, significa fazer assim porque assim se faz, o modo usual de se fa- zer algo, ou seja, a regra. A arte não faz concessões, por isto é a mais pessoal de todas as criações cul- turais. Cultura e arte, para Coelho (2008), não são a mesma coisa, apesar da arte fazer parte da cultura. DA VINCI, Leonardo. Mona Lisa, (1452-1519). Óleo sobre tela. 77 x 53 cm. Museu do Louvre, Paris. W ik im ed ia C om m on s Você pode ter pensado: “novamente a Mona Lisa!”, mas ela não é uma imagem qualquer. É um exemplo a que recorremos com frequência, pois tudo parece estar concentrado nesta pequena tela. Até mesmo em um texto especializado, como o de Teixeira Coelho, o autor a utiliza como exemplo. Isto sempre aconteceu. O pintor e arquiteto Giorgio Vasari publicou, em 1550, o livro que é considerado fundador da história da arte: Vidas dos artistas. Trinta e um anos após a morte de Da Vinci, Vasari (2011, p. 448) escreveu: “quem quiser ver até que ponto a arte consegue imitar a natureza, poderá compreendê-lo facilmente observando aquele semblante, pois nele estão produzidas todas as minúcias que é (sic) possível pintar com sutileza”. Depois de descrever cada detalhe da figura pintada, Vasari comenta algo que reflete a preocupação de todos que a contemplam há séculos: nesse retrato “há um sorriso tão agradável, que mais parece coisa divina que humana, tão admirável por não ser diferente do natural”. Mona Lisa nos serve e nos interroga há quinhentos anos. Curiosidade 3.3 Arte como construção, conhecimento e expressãoVídeo Luigi Pareyson (1918-1991) nasceu no norte da Itália e durante 21 anos foi professor de estética na Universidade de Turim. Chamou sua teoria de estética da formatividade. Sua preocupação é a experiência estética, mas também com a experiência do artista, ou, mais precisa- mente, com o “ato de fazer arte” (PAREYSON, 1993, p. 11). Arte é forma- tividade, ou seja, um modo de fazer que, enquanto se faz, inventa-se o modo de fazer. Produção é, ao mesmo tempo, invenção. Será interessante analisar uma teoria que se propõe, também, a investigar a experiência estética do ponto de vista daquele que cria a obra. Há algo, no entanto, mais sutil no pensamento de Pareyson: a partir da análise de como o artista criou sua obra, chega-se à obra pro- priamente dita. Ou seja, ao analisar o modo como o artista lidou com 64 Estética e história da arte a matéria 1 , a técnica que utilizou, o tema que escolheu, onde estudou etc., chega-se ao núcleo da obra, que se revela na forma. Entretanto, é a partir da matéria que a forma será verdadeiramente forma. A matéria física é parte constitutiva da arte. O caráter formativo está associado a tudo que fazemos, por isso, pode-se dizer que há um caráter estético em todas as nossas experiên- cias. Pareyson (1993) diz que existe arte em tudo que fazemos, ou me- lhor, precisa-se de arte para se fazer qualquer coisa. Ele chama isso de “fazer com arte”. Em tudo há exigências de arte: da mais simples criação até às maiores invenções. Assim, qualquer obra bem-feita é sempre bela. Ver o “artístico” (ou o estético) em todas as ações humanas não signi- fica diminuir a autonomia e especificidade da arte. Pareyson (1993, p. 25) quer dizer que toda ação humana exige “força produtiva e capacidade inventiva”, isto é, produção e invenção. No entanto, diferente de outras ações, a arte procura a forma por si mesma, sem a intencionalidade das coisas práticas. Alfredo Bosi, professor e crítico literário, percebeu três momentos decisivos do processo artístico na obra de Pareyson, que podem ou não ocorrer simultaneamente: o fazer, o conhecer e o exprimir. Ele os cha- mou, também, de três vias da reflexão estética (BOSI, 2005). Os títulos dos três capítulos de seu livro Reflexões sobre a arte são inspirados nestas três vias: 1) arte é construção; 2) arte é conhecimento; 3) arte é expressão. Bosi (2005) começa o primeiro capítulo lembrando a definição de Pareyson: a arte é um fazer. Um fazer que transforma a matéria forne- cida pela natureza e pela cultura (o papel da cultura e sua relação com a estética retornam com frequência). Ele lembra também que qualquer atividade humana pode ser chamada de artística. É um bom momento para a discussão sobre a técnica, no sentido qualitativo, ou seja, no sentido de perícia, destreza, habilidade. Para Pa- reyson (1993), inventamos e produzimos o tempo todo: no campo mo- ral, nos pensamentos e nas criações artísticas, que exigem uma técnica, seja para pintar ou escrever um poema. Lembramos que techné é como os gregos chamavam o jeito irretocável de fazer as coisas. O próprio artista é o conteúdo da arte, diz Pareyson (1993, p. 30), pois aquele que faz arte é uma pessoa única, já que “para formar sua obra, se vale de toda a sua experiência, do seu modo próprio de pensar, viver, sentir, do modo de interpretar a realidade e posicionar-se diante da vida”. Aquilo que é físico na criação de uma obra de arte: 1) tipos de tinta ou outra substância que possa conferir cor; 2) o suporte, representado por papéis, telas ou qualquer outro material que sirva como base física; 3) outros materiais que o artista resolva aplicar sobre o suporte. 1 A arte nas diferentes culturas 65 O que é ser hábil ou perito? Antes de tudo, há preparo, treino, repeti- ção e paciência para que o ápice seja a habilidade ou a perícia. O artista assume seu ofício e como resultado descobre um repertório de soluções que usa muitas vezes sem perceber. Pareyson (1993) chama de hábito operativo. Uma pequena linha – certeira, segura e bela – é o resultado, muitas vezes, de metros de telas e tintas usadas no processo de criação. Esta é a dimensão construtiva da arte. Agora vamos analisar a “arte como conhecimento”, como definiu Alfredo Bosi (2005). Será que é possível separar conhecimento e construção? O exemplo de Cézanne poderá ser didático. O filósofo Maurice Merleau-Ponty (2004, p. 123), em seu ensaio “A dúvida de Cézanne”, conta que o ar- tista precisava de “cem sessões de trabalho para uma natureza-morta, cento e cinquenta de pose para um retrato”. Pode-se chamar esse esforço de Cézanne de construtivo, no sentido que Pareyson usa formativi- dade. A palavra construção carrega em si uma carga simbólica de grande potência: fabricar, criar, inventar e outras muitas palavras podem descrevê-la. É difícil separá-la da criação artística. Merleau-Ponty (2004, p. 123) descreve assim o esforço de Cézanne: “a pintura foi seu mundo e sua maneira de existir. Ele trabalha sozinho, sem alunos, sem admiração por parte da família, sem estímulo por parte da crítica”. Chegou a duvidar de sua vocação. O filósofo explica como Cézanne seguiu a fatura im- pressionista ao desenhar com as cores, diretamente na tela. Desenho e cor não se distinguem mais. O Renas- cimento valorizava o desenho, assim como as escolas acadêmicas que vieram a seguir. O aluno passava os primeiros anos da academia desenhando sem parar. Os impressionistas aboliram o hábito de se fazer es- boços, o desenho era feito com a cor aplicada direta- mente na tela. Este procedimento alterou um cânone, pois o desenho passou a ser resultado da cor. Antes se desenhava na tela, geralmente com carvão e depois cada um dos espaços era preenchido com a cor. W ik im ed ia C om m on s CÉZANNE, Paul. Autorretrato com fundo rosa, 1875. Óleo sobre tela, 66 cm x 55 cm. Coleção privada. Paul Cézanne (1839-1906) nasceu na ex-comuna francesa Aix-em-Provence, filho de um exportador de chapéus. Em 1861, mudou-se para Paris, com o objetivo de se dedicar somente à pintura. Participou da primeira exposição de impressionistas, em 1871, mas aos poucos, se separou do grupo. Em 1906, o pintor e crítico Roger Fry cunhou a palavra pós-impressionismo para se referir a um grupo de artistas que buscaram superar o impressionismo. Nesse grupo estariam Cézanne,Van Gogh e Gauguin. Em um ensaio de 1917, Fry escreveu que Cézanne inaugurou a maior revolução artística desde que “o impressionismo greco-romano convertera-se, de maneira inevitável, em um formalismo bizantino” (2002, p. 49). Fry se refere ao modernismo artístico que começa com Cézanne, manifesta-se de forma exuberante com Picasso e avança durante o século XX. Quem? 66 Estética e história da arte W ik im ed ia C om m on sO impressionismo, que aconteceu entre 1860 e 1880, é considerado o primeiro movimento moder- no. Perceba que tratamos a arte renascentista como a primeira revolução moderna nas artes visuais. A razão é o espaço renascentista, ainda utilizado como modelo, e é onde a perspectiva e as proporções são empregadas como regras. Não foi diferente com o impressionismo, que se mostrou revolucionário não só ao começar a alterar (não em destruir) a perspectiva, mas também em outros aspectos, como a negação da mimese, provocando mudança brusca na relação com o espectador, acostumado a ver o quadro como uma janela para o mundo, uma cópia da realidade. O nome impressionismo define a tentativa do artista em captar a impressão visual daquilo que vê. Esta liberdade em pintar o objeto “da forma que se está vendo” não foi recebida de forma positiva. O advento da tinta industrial, vendida em tubos, permitiu ao artista impressionista pintar ao ar livre. Antes, a preparação das tintas, a partir de pigmentos, era realizada nos ateliês, o que dificultava o uso externo. A liberdade para aproveitar a luz natural foi um dos ganhos. As possibilidades cromáticas eram tão grandes que esses artistas se permitiram pintar uma mesma paisagem várias vezes, em diferentes momentos e horários. Não foi só uma nova maneira de pintar, mas de ver. O subjetivismo romântico atingiria o ápice. MONET, Claude. Impressão, sol nascente (1872), 48 x 63 cm, Museu Marmottan, Paris. De olho na arte Merleau-Ponty (2004, p. 130) explica que deve ser assim, “se quisermos que o mundo seja mostrado em sua espessura, pois ele é uma massa sem lacu- nas, um organismo de cores”. Se o artista quer ex- primir o mundo, o artista precisa lidar com o todo e juntar cores, linhas, contornos. Sem querer, ante- cipamos o terceiro momento do processo artístico. Como Bosi (2005) afirmou, estes três momentos po- dem ocorrer simultaneamente. É o caso de Cézanne, que meditava uma hora em frente à tela, antes de iniciar o trabalho. A imagem, então, passava a ser construída pelo artista. Cézanne representa muito bem a simultaneidade do fazer, conhecer e exprimir. Ele inaugurou uma nova era e influenciou outra revolução, a de Picasso. Pintou várias vezes a Montanha Santa Victória, como se quisesse provar que a contemplação estética do belo natural não precisará se transformar somente CÉZANNE, Paul. Retrato de Gustave Geffroy. (1839-1906). Óleo sobre tela. 110 cm x 89 cm. Museu d’Orsay, Paris. W ik im ed ia C om m on s A arte nas diferentes culturas 67 em imitação ao ser transportada para a tela. A paisagem quase geomé- trica, a rapidez e irregularidade das pinceladas (para cima, para baixo e para os lados) resumem as preocupações estéticas de Cézanne. W ik im ed ia C om m on s Claude Monet (1840-1926), contemporâneo de Cézanne, também pintou uma mesma paisagem várias vezes. Não era um mero exercí- cio visual. Entre 1892 e 1893, Monet pintou dezoito vezes a fachada da Catedral de Rouen, em diversos horários. Quando a luz se altera- va, o artista começava a pintar outra tela. É a construção de um ins- tante, aquele em que o olhar do artista percebe a transição da luz no decorrer de seu trabalho. Pode-se perguntar: há imitação da realidade no trabalho de Monet? É uma pergunta provocativa, apenas para mos- trar o apagamento dos contornos da Catedral de Rouen e, o que é mais inovador, a diluição de sua forma. Não se pode afirmar que é uma obra abstrata, mas Monet, com o objetivo de retratar a luminosidade, pare- ce dissolver a imagem. Não é, portanto, mera imitação. CÉZANNE, Paul. Montanha Santa Victoria vista de Les Lauves (1902-1906). Óleo sobre tela. 63,5 cm x 83 cm. Kunsthaus, Zurique, Suiça. 68 Estética e história da arte MONET, Claude. A Catedral de Rouen – Fachada (Pôr do sol). (1892-1894). Óleo sobre tela. 100 cm x 65 cm. Museu Marmottan Monet. MONET, Claude. A Catedral de Rouen – Efeito matinal (Harmonia Branca), 1893. Óleo sobre tela. 106 cm x 73 cm. Museu d’Orsay, Paris. W ik im ed ia C om m on s W ik im ed ia C om m on s Monet não se preocupava com o cânone da representação exata da Catedral de Rouen, nem Cézanne se preocupa em representar a Montanha Santa Victória como ela é. O caráter subjetivo é acentuado pela liberdade construtiva dos dois artistas. É o jeito que encontraram para exprimir, no sentido de revelar, a montanha e a catedral. É preciso conhecê-las. Cons- trução, conhecimento e expressão se misturam mais uma vez. A teoria que apresenta a arte como expressão das emoções do artista nasceu no período do romantismo (lembramos que ele é um pouco ante- rior ao impressionismo), a partir das críticas à noção de imitação. Cézanne e Monet são exemplos do abandono da ideia de se copiar a natureza com exatidão. Há, neste caso, uma valorização da arte e do artista como al- guém especial que consegue tornar visível o que nem sempre consegui- mos ver. Pareyson (1997), contudo, acredita que a arte não seja somente expressão, pois há o caráter formativo da arte, que caracteriza o próprio fazer artístico. Pareyson lembra que a arte é também invenção. “Ela é um tal fazer que, enquanto faz, inventa o por fazer e o modo de fazer” (1997, p. 26). Mais que exprimir, a arte cria, inventa, descobre. Assim, para Em 1893, Monet se instalou em um quarto alugado, em frente à Catedral de Rouen, de onde podia ver sua fachada. Isto o ajudou a pintar mais de uma tela durante o dia, conforme a luz mudava. Não foi a primeira série de Monet, que parecia fascinado pela possibilidade de pintar essas mudanças de luz, e, também, pela possibilidade de pintar de uma vez, com pinceladas rápidas. Segundo Rewald (1991), as séries de Monet fizeram sucesso público, mas receberam críticas de especialistas e dos próprios companheiros. Um dos críticos das séries, o pintor Armand Guillaumin (1841-1927), criticou a “absoluta falta de construção” de Monet. É preciso tempo para se compreender um artista. Curiosidade A arte nas diferentes culturas 69 Pareyson, ela não é só expressão, conhecimento ou construção (fazer), mas a simultaneidade desses três momentos do processo artístico. A arte é expressiva porque é forma. Pode-se concluir que os problemas estéticos se resolvem com as próprias ações dos artistas. A liberdade formal, conforme a terminolo- gia de Pareyson, tem como exemplos Cézanne e Monet. A imitação é questionada; arte não é cópia. Nem da natureza, nem da cultura. CONSIDERAÇÕES FINAIS No texto lido pelo diretor Jean-Luc Godard em seu pequeno filme, há uma lista daquilo que considera cultura: cigarro, computador, camisetas, TV, turismo, guerra. Na lista de artistas estão escritores, músicos, pintores e diretores de cinema. Lá estão Dostoiévski, Mozart, Cézanne, entre ou- tros. Pode-se interpretar o texto da seguinte forma: arte é a terapia contra todos os problemas do mundo. Godard separa arte e vida. Contudo, ultrapassar esta separação ajudará na superação de outra divisão: a divisão entre cultura e arte. A obra de arte será o agente destas superações. A ampliação dos limites da estética também será útil nesta tarefa. Compreender as três vias de reflexão estética (o fazer, o conhecer e o exprimir), mesmo com discordâncias, ampliará o repertório de análi- ses da obra de arte, das imagens e daquele que inventa e cria, o artista. O empenho contra as separações (cultura e arte, arte e vida, obra e artista) parece ser o núcleo do debate estético contemporâneo. ATIVIDADES 1. Defina cultura do ponto de vista antropológico. 2.Sobre o vínculo entre cultura e arte, Teixeira Coelho afirma que o cultural é utilitário, a arte, não. O que isto significa? 3. Defina o que é formatividade para Luigi Pareyson. REFERÊNCIAS BOSI, A. Reflexões sobre a arte. São Paulo: Ática, 2005. BURKE, J. Deuses de Freud: a coleção de arte do pai da psicanálise. Trad. de Mauro Pinheiro. Rio de Janeiro: Record, 2010. COELHO, T. A cultura e seu contrário: cultura, arte e política pós-2001. São Paulo: Iluminuras/ Itaú Cultural, 2008. 70 Estética e história da arte GOMBRICH, E. H. A História da Arte. Trad. de Cristiana de Assis Serra. Rio de Janeiro: LTC, 2013. HOUAISS, A.; VILLAR, M. de S. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009. LARAIA, R. de B. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001. MERLEAU-PONTY, M. A dúvida de Cézanne. In: MERLEAU-PONTY, M. O Olho e o espírito. Trad. de Paulo Neves e Maria Ermantina Galvão Gomes Pereira. São Paulo: Cosac & Naify, 2004. PAREYSON, L. Estética: teoria da formatividade. Trad. de Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 1993. PAREYSON, L. Os problemas da estética. Trad. de Maria Helena Nery Garcez. São Paulo: Martins Fontes, 1997. REWALD, J. História do Impressionismo. Trad. de Jefferson Luís Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1991. RUTHES, V. R. M. Introdução à antropologia teológica. Curitiba: InterSaberes, 2018. VASARI, G. Vida dos artistas. Edição de Lorenzo Torrentino, Florença, 1550. Organização Luciano Bellosi e Aldo Rossi. Trad. de Ivone Castilho Bennedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2011. O conceito de manifestação cultural 71 4 O conceito de manifestação cultural A palavra manifestação sugere alguns significados simbólicos. É difícil não a associar à cultura ou à arte. Manifestação lembra reve- lação ou expressão, palavras que vinculamos à descoberta de algo. Outra aproximação é com a palavra desvelar, que significa tirar o véu, mas também pôr à vista. É o que a arte faz de forma específica (porque é especial, individual); e a cultura, de forma geral (porque é universal, totalizante). Contudo, ambas se manifestam e se ex- põem de maneira corajosa. 4.1 O que é manifestação cultural Vídeo Chamamos de cultura o conjunto de comportamentos, crenças, co- nhecimentos, práticas, ideias – entre outros aspectos – de um grupo social. As manifestações culturais revelam ou exprimem esse conjunto de características da cultura. António Damásio (2018) se refere às se- guintes manifestações da cultura: as artes, a investigação filosófica, as crenças religiosas, as faculdades morais, a justiça, a governança política e as instituições econômicas (mercados e bancos). O autor também inclui as ideias, as atitudes, os costumes, as práti- cas e as instituições no conjunto de manifestações da cultura, ou seja, isso permite distinguir um grupo social. Portanto, quando se fala de manifestações culturais, está se falando de manifestações da cultura. No nosso caso, pode-se afirmar que a arte é uma manifestação da cultura. Além disso, optamos pelo adjetivo cultural, por ser mais utilizado e por deixar claro que uma manifestação cultural se refere a uma determina- da característica da cultura. Perceba que há uma tendência em pensar em uma “teoria antro- pológica da arte” por causa da associação entre cultura e arte. Isso é 72 Estética e história da arte novo. As teorias da arte, introduzidas pelos gregos, atingiram o ápice no século XVIII e continuaram a dar frutos durante o século XX, e pare- ciam suficientes para tratar da experiência estética e da obra de arte. Por isso, será útil verificar como ocorreu a transição de uma estética do espectador (na qual o ponto central é a recepção da obra de arte pelo fruidor) para uma estética da obra de arte, cujo objeto de estudo não é mais o sentimento de quem contempla, mas a própria obra. Tam- bém veremos a passagem do termo obra para o termo imagem como referência ao objeto de estudo dos pesquisadores atuais. O seguinte diagrama mostra essa transição: Espectador Obra Imagem Immanuel Kant é o representante da teoria esté- tica que põe em foco o receptor. Para ele, é um movi- mento interno, de dentro para fora. Georg Friedrich Hegel é um leitor de Kant que conseguiu ter ideais originais com base na análise que fez do pensamen- to do mestre. Se Kant dá destaque ao sujeito, Hegel destaca a obra de arte. Eis uma grande mudança. Hegel se tornou professor da Universidade de Berlim em 1818, onde ministrou vários cursos, pu- blicados após sua morte. Um deles, o de estética, foi publicado por seu discípulo Heinrich Gustav Hotho, em 1835, que utilizou os cadernos do próprio Hegel e anotações de seus alunos. No início de Lições sobre a Estética (1997), Hegel afirma que seu curso é dedicado à estética, cujo objeto é o belo, mas seu âmbito é a arte, e tão somente o belo na arte. O filósofo reconhece que a melhor expressão para suas preocupações é a filosofia da arte. Por isso, Hegel é considerado o “pai” dessa área de estudo. Em seguida, Hegel repete, Teoria pode ser definida como modelo explicativo. Nesse sentido, uma teoria da arte é um conjunto de ideias que pretende explicar determinadas obras de arte. Por exemplo, a teoria da arte como expressão. O problema com essa teoria está em como explicar que toda obra de arte é expressão de alguma coisa? Portanto, Anne Cauquelin (2005, p. 10) prefere teorias da arte, no plural, pois “permite pensar na existência de uma atividade contínua à qual diversos autores se dedicaram”. Essa noção de atividade contínua para a teoria da arte é forte, pois expõe o quanto a arte é capaz de despertar diversas reflexões. SANZIO, R. Escola de Atenas. c. 1511. Afresco, 500 cm x 700 cm. Palácio Apostólico, Vaticano (detalhe de Aristóteles). Aristóteles elaborou a primeira teoria da arte com uma reflexão sobre a natureza e as regras da arte. Infelizmente, o Cânone de Policleto, anterior, se perdeu. W ik im ed ia C om m on s Saiba mais O conceito de manifestação cultural 73 com mais ênfase, que exclui o belo natural, pois o belo artístico está acima da natureza. É uma de suas noções filosóficas sobre a arte. Hegel, portanto, desloca os problemas da estética (como o belo) para a obra de arte. Nesse momento, a estética passa a ser tratada como fi- losofia da arte, já que se transforma em uma área de reflexão sobre a arte. A partir de então, os teóricos deixaram de refletir unicamente sobre a essência do belo e passaram a refletir também sobre a arte. Segundo Adolfo Sánchez Vázquez (1999, p. 41), ocorre uma tendência a transfor- mar a estética em “uma filosofia ou teoria que coloca a arte como centro de sua reflexão”. A definição da estética como filosofia da arte também é problemática, pois restringe o campo estético ao artístico. Essa ênfase na obra de arte estabeleceu um modo de tratar as ima- gens. Para Gombrich (1988, p. 57), Hegel é “o pai da história da arte”; para Timmermans (2005, p. 139), Hegel “é o verdadeiro inventor da estética moderna”. De fato, o estudo da arte não é mais o estudo do belo em si, como em Platão, nem sobre o estudo dos nossos juízos a respeito da beleza dos objetos, como em Kant. Hegel transforma uma estética cheia de regras sobre como “ver” a arte em uma estética “aco- lhedora”, que aceita todas as formas e dinâmicas interpretativas. De acordo com Gombrich (1988), Hegel empreende a primeira tentativa de examinar e sistematizar todas as formas de arte. A influência de Hegel em teorias e historiadores posteriores é imen- sa, principalmente na tentativa de se “reconstruir” (expressão de Gom- brich) o espírito de época nas artes. O esforço hegeliano de construção de uma “sequência histórica das artes” influenciou o próprio Gombrich. Giulio Carlo Argan (1994, p. 17, grifo do original) escreveu que a arte “não é um fato estético que tem também um interesse histórico: é um fato que possui valor histórico porque tem um valor artístico, é uma obra dearte”. Assim, a obra de arte de um grande artista é uma reali- dade histórica como as grandes revoluções econômicas e políticas. Ela pode, portanto, ser explicada historicamente. Há influência de Hegel nos comentários de Argan, para o qual os parâmetros do juízo de valor do passado – como o belo, a imitação perfeita da natureza, a confor- midade aos cânones etc. – foram substituídos pelo parâmetro de juízo de nossa cultura, a História. Assim, diz Argan (1994, p. 19, grifo do ori- ginal), uma “obra é vista como obra de arte quando tem importância na história da arte e contribui para a formação e desenvolvimento de 74 Estética e história da arte uma cultura artística”. O reconhecimento da qualidade artística de uma obra de arte precisa estar acompanhado de sua historicidade, ou seja, as condições para fazer parte da história da arte. A história da arte, para Argan, é especial, pois opera em um campo próprio, o da arte, mas que acaba desembocando na “história geral da cultura”. Uma parcela, portanto, dessa história geral da cultura é cons- truída pela arte. Veja que a palavra cultura já aparece em Argan. Não é uma exceção, veremos outros casos, como o empreendimento de Abraham Moritz Warburg, conhecido como Aby Warburg (1866-1929). Gernain Bazin (1901-1990), em sua História da História da Arte (1989), explica o nascimento de uma “ciência” que acreditava no poder da ima- gem, a iconologia. Na segunda metade do século XIX, em Hamburgo, por decisão pessoal e fora das universidades, irá se formar um centro de pesquisas dedicado às artes visuais “pelas quais se procurará atingir o conteúdo através da forma, considerando-se a obra de arte como uma imagem cuja riqueza expressiva deverá ser revelada por uma aná- lise apropriada” (BAZIN, 1989, p. 177, grifo nosso). Bazin está falando de Aby Warburg, que criou uma grande biblio- teca sobre história da cultura e da arte, mais tarde transformada em Instituto Warburg, onde são ministrados cursos e conferências. Ernst Gombrich, que foi seu diretor por muitos anos, e Erwin Panofsky, assim como tantos outros historiadores, formaram-se na instituição. O historiador da arte Robert Klein (1998) emitiu um dos comentá- rios mais repetidos sobre Warburg: ele criou uma disciplina que “existe, mas não tem nome”, baseada em informações científicas e religiosas, expressões simbólicas e artísticas, na astrologia e nos mitos. Essa “disciplina sem nome” tem o objetivo de estudar as obras de arte baseando-se em um ângulo diferente, contrário ao formalismo, mais preo- cupado com a forma e afastado do conteúdo. Warburg propôs um reper- tório capaz de explicar imagens que acreditava serem também símbolos. Warburg rompeu com a ideia de evolução histórica que era hege- mônica desde o século XVIII. Desse modo, buscou identificar nas ima- gens analisadas um modelo de história da cultura. Assim, a imagem passava a ser um documento revelador de significados simbólicos que exigiam o exame de forças sociais, morais e religiosas que nem sempre se manifestam claramente. A iconologia vem do grego eikon: imagem, retrato; e logia: estudo. Para um dos maiores historiadores da arte do círculo de Warburg, Erwin Panofsky (1892-1968), o que separa a iconografia da iconologia é a interpretação. A “leitura” iconográfica da obra é uma aná- lise, ou seja, o estudo de cada parte da obra (qual é o suporte, qual é o período de realização, o que está representado etc.). Já a “leitura” iconológica é uma interpretação, a procura do significado preciso da obra estudada. Para interpretar, a ico- nologia estuda a obra em seus contextos históricos e culturais. O iconólogo trabalha como um detetive. O método proposto por Panofsky (1991) está no artigo chamado “Iconografia e Iconologia: uma introdução ao estudo da arte da Renascença”, publicado no livro Significado das Artes Visuais. Sobre esse método, ele assim explicou: a descoberta de valores simbóli- cos do quadro, que podem ser desconhecidos até pelo artista, é o objeto da iconologia em oposição à iconografia, preocupada mais com a iden- tificação e classificação das imagens. Figura 1 Aby Warburg (por volta de 1900) Saiba mais W ik im ed ia C om oo ns O conceito de manifestação cultural 75 Warburg dizia que sua biblioteca era de “Estudos Culturais”. Isso de- monstra uma de suas convicções, que era a inter-relação da imagem com a religião, o culto e a cultura em geral. Perceba que Warburg representa uma via diferente daquelas até agora analisadas. Ele também antecipa a associação entre a imagem e a cultura, que depois seria o núcleo da disciplina chamada Cultura Vi- sual. Ao estudar a Renascença florentina, deparou-se com a operação de “memória social”, o reviver de imagens da Antiguidade na arte posterior. Para Warburg, há imagens preexistentes transmitidas pela memória. Nas análises que faz de Botticelli, por exemplo, Warburg mostra como esse artista incorporou recursos e elementos tomados da Antiguidade. W ik im ed ia C om m on s W ik im ed ia C om m on s Em sua tese de doutorado chamada O nascimento de Vênus e A primavera de Sandro Botticelli (1893), Warburg comparou as duas pinturas do pintor renascentista, que tratam da mitologia grega, à literatura poética da Antiguidade, principalmente a poesia de Homero. Ele afirma que é provável que Botticelli conhecesse a descrição de “O nascimento de Vênus”, narrada por Homero e nela tenha se baseado. Os hinos homéricos – Warburg informa – foram publicados em 1488, tendo por base um manuscrito florentino. Por isso, ele acredita que os círculos humanistas de Florença já conheciam essa versão. BOTTICELLI, S. O nascimento de Vênus. c. 1485. Têmpera sobre tela, 172,5 x 278,5 cm. Galleria degli Uffizi, Florença. BOTTICELLI, S. A primavera. c. 1480. Têmpera sobre madeira, 315 x 205 cm. Galleria degli Uffizi, Florença. De olho na arte Em 1895, Warburg foi aos Estados Unidos estudar os rituais dos hopis, nação indígena dos Estados Unidos. Lá, percebeu o vínculo entre obra de arte e cultos mágicos. Ampliou, assim, suas preocupa- ções com a cultura e a antropologia. Transformou sua biblioteca em uma “biblioteca de imagens” que se relacionam umas com as outras. A chamou de Atlas Mnemosyne. Todo tipo de documentação faria parte desse Atlas, pois são úteis para a compreensão do significado da arte em um determinado perío- do ou de um determinado grupo, como os índios hopis. 76 Estética e história da arte Nem sempre o objetivo de Warburg em estudar a imagem do ponto de vista da cultura foi bem re- cebido. Carlo Ginzburg (1989) conta que o filósofo italiano Benedetto Croce (1866-1952), autor do livro Estética como ciência da expressão e linguística geral, de 1902, ao ler um livro de um pesquisador do Instituto Warbug, afirmou “que a descoberta das alusões mi- tológicas de uma pintura do Renascimento é irrele- vante para os fins da fruição estética” (GINZBURG, 1989, p. 57). O problema que Ginzburg destaca é o seguinte: uma pintura pode ser relevante para o his- toriador, justamente por apresentar determinadas relações culturais, e importante para o estudioso das imagens, por ser rica em sua simbologia, mas pode ser de pouca importância do ponto de vista estético. Figura 2 Aby Warburg com índio hopi, em 1896. W ik im ed ia C om m on s Aí reside o mérito da relação mútua entre as diversas teorias da arte. Resta ao pesquisador entender as diferentes abordagens e enriquecer sua pesquisa com as diversas fontes. Apresentaremos mais pesquisadores a fim de mostrar a diversidade de teorias sobre a relação entre arte e cultura. Veja que o estudo desse vínculo é antigo. Jacob Burckhardt (1818-1897) foi professor de história da arte na Universidade de Basileia e na Universidade de Zurique. Foi publicada, em 1860, sua obra princi- pal A Cultura do Renascimento na Itália, na qual apresentou a tese de que o Renascimento marcou o período de descoberta do homem e do mun- do. Sua preocupação emestudar conjuntamente arte e cultura coincide com a preocupação de Warburg, que não foi seu aluno, mas enviou sua tese doutoral para o professor. Para Burckhardt, a história da arte pode se conectar a outras áreas e ampliar o conhecimento sobre o próprio homem, sem perder, no entanto, a autonomia da disciplina. Outro pesquisador, o historiador da arte Michael Baxandall (1933-2008), que foi professor no Instituto Warburg, estudou a obra de arte com base no ponto de vista da história social. Em seu livro O Olhar Renascente: pintura e experiência social na Itália da Renascença, de 1972, defende a tese “de que fatos sociais favoreciam o desenvolvimento de faculdades e hábitos visuais característicos, que se transformavam por sua vez em elementos claramente identificáveis no estilo do pintor” (1991, p. 9). Para tanto, embasado em documentos contábeis, como contratos, cartas e registros, Baxandall examinou a estrutura do mercado de pintura do século XV. O conceito de manifestação cultural 77 A primeira frase de seu livro é significativa: “Uma pintura do século XV é o testemunho de uma relação social” (BAXANDALL, 1991, p. 11). Por quê? Porque havia um pintor, que criava o quadro, e outra pessoa, que o en- comendava e podia dar o destino que quisesse à obra. Não havia como fugir dessa dinâmica: alguém encomendava e exigia que fosse realizada conforme suas especificações. Baxandall afirma que “o dinheiro tem uma importância considerável na história da arte” (1991, p. 14). Havia também artistas que trabalhavam para os príncipes e recebiam salários. Baxandall procurou meticulosamente por documentos que não eram utilizados com frequência pelos historiadores da arte, e concluiu que o século XV, o século do Renascimento, foi uma época da pintu- ra sob encomenda. A pesquisa realizada pelo historiador teve base na contribuição do cliente, para mostrar que há uma relação econômica que às vezes esquecemos que existe. Relação típica do século XV, mas que ajuda a compreender o período renascentista de outra forma. Essas abordagens demonstram o quão diversas são as teorias da arte e como elas se completam. 4.2 A manifestação cultural sob o olhar dos artistasVídeo Os pesquisadores sempre valorizaram os documentos produzidos pelos artistas. Não apenas suas obras, mas cartas, diários, bilhetes, fotografias, filmes – entre outros –, que foram e são utilizados, pois ajudam a dar sentido à obra que estudamos e jogar luz sobre detalhes que nem sempre são percebidos. Baxandall não conseguiria realizar sua pesquisa sobre o Renascimento sem a existência de arquivos 1 produzidos por artistas e clientes. Um arquivo tem vários propósitos: organizar, classificar, conservar etc. Sempre fez parte da his- tória da arte. A Biblioteca e o Atlas da Memória (Mnemosyne) de Warburg são bons exemplos da experiência do pesquisador com os arquivos. O Atlas de Warburg é constituído de 63 painéis com cerca de mil imagens referentes à história da arte. Warburg não pensava na história da arte como se- É o conjunto de documentos mantidos, com cuidado, por alguma instituição, para que possa ser consultado por pesqui- sadores. Não estamos falando do artista contemporâneo que utiliza a estratégia do arquivo para criar suas obras, que junta fragmentos, que recolhe e os conecta, ou desconecta, com sensibilidade especial. Esse é o artista-arquivista. A ideia de arquivo, utilizada neste livro, objetiva auxiliar o trabalho do pesquisador. 1 quencial, mas como uma atividade de inter-relação, por isso, a con- servação dessas imagens era necessária. Trataremos, então, do que os artistas disseram. Será um bom exem- plo de uso dos arquivos. Começaremos com Michelangelo Buonarroti (1475-1564), um dos artis- tas mais lembrados por quem aprecia a arte. Leonardo da Vinci e Vincent van Gogh talvez rivalizem com ele, que está entre os artistas anteriores ao século XVIII com maior número de documentos arquivados. Grande parte de sua correspondência está preservada e permite compreender as obras que criou, como a pintura do teto da Capela Sistina, no Vaticano. Na carta de maio/junho de 1509, dirigida ao pai, Ludovico, Michelangelo (2009, p. 34) reclama das dificuldades financeiras em razão da falta de pagamento do Papa Júlio II, que havia encomendado a obra: “Dedico-me a trabalhar tanto como posso. Há já treze meses não recebo dinheiro do Papa”. A relação entre Júlio II e Michelangelo reflete como os artistas li- davam com os contratantes. Em carta de outubro de 1512, também ao pai, o artista informa que terminou o trabalho na Capela Sistina: “o Papa ficou muito satisfeito, mas as outras coisas não saíram como eu No filme Agonia e êxtase, o Papa contrata Michelangelo para pintar o teto da Capela Sistina, no Vaticano, mas surgem conflitos entre os dois sobre a realização do projeto. O núcleo do filme é a relação difícil entre o artista e o contratante. Direção: Carol Reed. Estados Unidos; Itália: 20th Century Fox, 1965. Filme Detalhe da Sibila Délfica W ik im éd ia C om m on s MICHELANGELO. Teto da Capela Sistina. 1508-1512. Afresco, 4.023 × 1.340 m. Palácio Apostólico, Vaticano. Detalhe do Profeta Jeremias 78 Estética e história da arte O conceito de manifestação cultural 79 quencial, mas como uma atividade de inter-relação, por isso, a con- servação dessas imagens era necessária. Trataremos, então, do que os artistas disseram. Será um bom exem- plo de uso dos arquivos. Começaremos com Michelangelo Buonarroti (1475-1564), um dos artis- tas mais lembrados por quem aprecia a arte. Leonardo da Vinci e Vincent van Gogh talvez rivalizem com ele, que está entre os artistas anteriores ao século XVIII com maior número de documentos arquivados. Grande parte de sua correspondência está preservada e permite compreender as obras que criou, como a pintura do teto da Capela Sistina, no Vaticano. Na carta de maio/junho de 1509, dirigida ao pai, Ludovico, Michelangelo (2009, p. 34) reclama das dificuldades financeiras em razão da falta de pagamento do Papa Júlio II, que havia encomendado a obra: “Dedico-me a trabalhar tanto como posso. Há já treze meses não recebo dinheiro do Papa”. A relação entre Júlio II e Michelangelo reflete como os artistas li- davam com os contratantes. Em carta de outubro de 1512, também ao pai, o artista informa que terminou o trabalho na Capela Sistina: “o Papa ficou muito satisfeito, mas as outras coisas não saíram como eu No filme Agonia e êxtase, o Papa contrata Michelangelo para pintar o teto da Capela Sistina, no Vaticano, mas surgem conflitos entre os dois sobre a realização do projeto. O núcleo do filme é a relação difícil entre o artista e o contratante. Direção: Carol Reed. Estados Unidos; Itália: 20th Century Fox, 1965. Filme Detalhe da Sibila Délfica W ik im éd ia C om m on s MICHELANGELO. Teto da Capela Sistina. 1508-1512. Afresco, 4.023 × 1.340 m. Palácio Apostólico, Vaticano. Detalhe do Profeta Jeremias 78 Estética e história da arte esperava; a isso culpo os correntes tempos, que são muito contrários à nossa arte” (2009, p. 39). A enigmática expressão de Michelangelo, “as outras coisas”, pode ser interpretada de várias formas: os franceses, que invadiram a Itália, e poderiam chegar a Roma; boatos afirmavam que o artista falara contra os Médici, a família que comandava Florença; as discussões que iniciara com o Papa Júlio II sobre a tumba que enco- mendara anos antes; e o mal-estar causado com o roubo dos blocos de pedra adquiridos em Carrara, que estavam na Praça São Pedro porque o projeto da tumba de Júlio II não avançava. Um de seus biógrafos, Martin Gayford (2015, p. 274), afirma que talvez “ele quisesse dizer que ainda não lhe tinha sido pago o saldo de seus honorários de três mil du- cados, razão pela qual teria de esperar até pouco antes do Natal”. Em 31 de outubro de 1512, a Capela Sistina foi aberta. Em fevereiro do ano seguinte, Júlio II morreu. Uma série de idas evindas e novos contratos adiaram a conclusão da tumba para 1545. Esse caso demonstra como a arte reflete momentos histórico-sociais. Baxandall (1991) pretendia mostrar que a arte serve como material para a história social. É importante lembrar que a arte é uma manifestação da cultura. Assim, a relação de Michelangelo com o papa representa o que era a vida social, religiosa e artística do período, que podemos resumir em 80 Estética e história da arte uma palavra: era a cultura da época. O uso de recursos documentais não invalida a história da arte como história das obras de arte. Segundo a ex- plicação de Argan (1994, p. 17), Michelangelo “viveu profunda e dramatica- mente a crise religiosa do seu tempo e, sem levarmos em conta aquela situação histórica, não podemos compreender os afrescos que pintou na Capela Sistina”. Para Argan (1994), Michelangelo esta- va ciente da responsabilidade de seu trabalho no lu- gar mais sagrado daquele momento. Mesmo assim, assumiu uma posição. O artista sentiu que a crise religiosa que Júlio II enfrentava, também era uma cri- se com a arte e a enfrentou como problema da arte, explica o teórico. Os temas da Capela Sistina, tão bem expostos por Michelangelo, eram os mesmos da crise religio- sa da época: a gênese e o destino da humanidade, a salvação ou a queda final, disse o historiador italiano (ARGAN, 1994). Cinco anos depois, Martinho Lutero iniciou a Reforma Protestante, que, para autores como Peter Marshall (2017), criou a Europa moder- na. A relação da Igreja com os artistas seria modifi- cada. Da Contrarreforma, movimento de reação da Igreja contra as ideias de Lutero, surgirá o Barroco, um novo período da cultura europeia. Um novo câ- none artístico surgirá. Desse momento em diante, os artistas foram obrigados a serem mais disciplinados. Esse tipo de análise foi possível por causa dos documentos usados como fontes pelos historiadores da arte. Para Gayford (2015), é possível observar que Michelangelo antecipa as preocupações maneiristas e barrocas. Esse relato visa ilustrar o uso de fontes como cartas, entrevistas, diários, fotografias e textos dos próprios artistas na interpretação das obras de arte. É como se o artista explicasse seu trabalho. As informações que dispomos sobre a pintura do teto da Capela Sistina, além da própria obra em si, são frutos dessas fontes. Ajudam a compreendê-la, principalmente, como manifestação cultural de um determinado período. Gombrich (2013) explica que Michelangelo era considerado gênio pelos jovens estudantes de arte e todos tentavam imitá-lo da melhor forma possível. Como o mestre gostava de desenhar seus modelos nas posições mais difíceis, os jovens achavam que deveriam seguir o estilo. Os críticos não aprovaram essa maneira de se desenhar como Michelangelo e passaram a se referir a esse período como maneirismo. Classifica-se esse período entre 1520 e 1600, entre o final do Renascimento e o início do Barroco. Apesar dos comentários críticos, notam-se algumas características no maneirismo, possíveis de se levar em conta: a imaginação capaz de modificar a figura, como faz El Greco (1541-1614), que não imita nem corrige a realidade. Portanto, nem todos os artistas posteriores a Michelangelo podem ser considerados imitadores da maneira do mestre florentino pintar. Curiosidade: o capítulo do livro de Gombrich que trata do maneirismo tem o seguinte título: Uma crise da arte: Europa, final do século XVI. De olho na arte THEOTOKÓPOULOS, D. – El Greco. O Espólio – O desnudamento de Cristo.1577. Óleo sobre tela, 280 x 170 cm. Sacristia da Catedral de Toledo, Espanha. W ik im ed ia C om m on s O conceito de manifestação cultural 81 Muitas vezes, a própria obra é capaz de ajudar a explicar o terreno no qual foi criada, mas não é seu objetivo, pois ela é, antes de tudo, uma obra artística e, portanto, estética. Isso é uma questão antiga: a obra de arte é um documento da cultura de sua época? Para responder a essa pergunta, daremos voz a mais artistas que deixaram escrito, de alguma forma, o que pensavam sobre a arte, a criação ou o mundo em que viveram. Perceberemos que, algumas vezes, a opinião é apenas intuitiva, mas certeira em “iluminar” determinados assuntos. O mais antigo tratado de arquitetura, chamado Os Dez Livros de Arquitetura, foi escrito pelo arquiteto e engenheiro militar Vitrúvio. É o único tratado arquitetônico da antiguidade que chegou até nós. Foi escrito, provavelmente, entre os anos 30 e 26 a.C., e fornece informações sobre a arquitetura grega. Esse tratado foi recuperado pelos renascentistas, que o utilizaram como apoio para suas teses artísticas. No Capítulo I do Livro III, Vitrúvio (2004, p. 19) escreveu: “Pois não se pode templo algum, sem simetria e proporção, ter uma disposição harmoniosa se não apresentar a exata proporção dos membros de uma pessoa modelada”. Esse cânone, que já existia antes mesmo de Vitrúvio, definiu a beleza dos corpos e se manteve até o final do século XIX. Era o cânone das Academias de Belas Artes. A ligação entre a bela arquitetura e as proporções do homem tam- bém se manteve durante séculos. Essa noção fazia parte da cultura grega, resgatada pelos renascentistas e incorporada pelas gerações de artistas posteriores. A noção de harmonia influenciou Vitrúvio e to- dos os aspectos da cultura grega, não apenas a arte. Werner Jaeger (1986, p. 142) afirma que é incalculável a influência da ideia de harmo- nia na vida grega. Essa influência é visível na arquitetura, na poesia, na retórica, na religião e na ética. Ou seja, existe uma norma sobre o proporcional que não pode ser transgredida. Jaeger chama de “força normativa da harmonia”, uma força que fez parte da cultura grega e modela até o comportamento do homem grego, que deve ter a medida certa. Vitrúvio não escreveu seu tratado por acaso. O pesquisador, portanto, tem um universo documental produzido por artistas, como as pequenas incisões nos vasos neolíticos que possi- bilitaram transformar esses objetos utilitários em objetos de contem- plação. O gesto inventivo de decorar um objeto de argila antes de ser queimado ou o hábito de um artista do século XX de descrever suas inquietações em um diário, oferecem importantes informações aos es- tudiosos da arte. Continuaremos a dar voz a esses artistas que, por al- gum talento especial, conseguiam refletir não só sobre seus ofícios, mas também sobre a cultura da qual faziam parte. É possível verificar que a relação de Michelangelo com a cultura renascentista foi marcada por conflitos típicos desse período. Verificamos que as teses de Vitrúvio são semelhantes às da cultura grega. Retornamos, agora, ao período renascentista para apresentar o primeiro texto sobre a pintura de toda literatura dedicada à arte. Esse texto foi escrito pelo artista, arquiteto e teórico da arte Leon Battista Alberti (1404-1472), que nasceu em Gênova, na Itália. Ele escreveu Da Pintura, em 1435, no período de ascensão das descobertas renascentistas, e queria que seu livro, dedicado ao arquiteto Filippo Brunelleschi, fosse lido também pelos artistas. Segundo Gombrich (2013), o arquiteto Brunelleschi era o líder do grupo de jovens artistas florentinos que estavam revolucionando a arte, e foi fundamental para a descoberta de um procedimento que também usamos com frequência ainda hoje: a perspectiva. Gombrich (2013, p. 170) explica: “Foi Brunelleschi que muniu os artistas dos instrumentos matemáticos para solucionar tal problema – e o entusiasmo despertado em seu círculo de amigos pintores deve ter sido imenso”. Alberti foi um daqueles que ficou fascinado pelas descobertas de Brunelleschi. Seu livro foi escrito quando se en- contrava em Florença. É difícil separar as ideias contidas no livro e a renovação artística pela qual a cidade passava, pois era das mais prósperas da Europa. Burckhardt (1991, p. 211) esclare- ce que não havia as mesmas barreiras que existiam em ou- tras partes. Cidadescomo Florença atingiram um alto nível de desenvolvimento e conheciam a cultura greco-romana. Podiam, então, voltar-se para o “descobrimento do mun- do exterior, aventurando-se em sua representação pela palavra e pela forma”. mi nn am emm mmm mems momk Brunelleschi foi contratado para concluir a Catedral de Florença, de estilo gótico. Muitos tinham tentado, mas só ele conseguiu encontrar a solução para colocar esse grande domo entre os pilares da Catedral. Figura 3 Filippo Brunelleschi. Domo da Catedral de Florença (c. 1420-1436). 82 Estética e história da arte O conceito de manifestação cultural 83 Alberti tinha consciência das mudanças culturais pelas quais passava a sociedade europeia, além da mudança da posição do artista. O ambiente cultural florentino ajudou Alberti na per- cepção sobre a importância do artista. O pintor que salta do livro de Alberti não é um pintor qualquer, mas um pintor ideal: ele é culto, quase um cientista, pois apli- ca as leis matemáticas como ninguém. No fim da pri- meira parte (2009, p. 93), destinada a explicar questões matemáticas, Alberti se desculpa por falar tanto em triângulos, pirâmides e intersecção. É como cos- tumava explicar a seus amigos as questões geométricas que julgava necessárias e funda- mentais aos pintores. É possível vincular, desse modo, a cultura da época e as preocupações de Alberti. Dare- mos, agora, um salto no tempo, para analisar outro tipo de documento útil ao pesquisador: o diário do artista. Nesse caso, utilizaremos o de Paul Klee (1879-1940), filho de pai alemão, que nasceu na Suíça. Sua vida coincide com graves eventos, como duas guerras mundiais, e com o surgimento do modernismo artístico do início do século XX, do qual foi um dos participantes. Ler um diário é entrar no mundo do artista e obriga o leitor a estar desarmado de qualquer julgamento, pois são anotações pessoais sem pretensão de publicação. É o caso de diário de Klee. Nele (1990), anotou que desde muito cedo desenvolveu um senso estético. É útil ao pesqui- sador a compreensão do processo de formação de um artista. É o caso desse diário, que é revelador ao mostrar as escolhas de Klee. Alguns anos depois, empreendeu viagem de estudos à Tunísia, país do norte da Áfri- ca, quando seu diário se transformou em diário de viagem. Klee viajou com dois amigos, os artistas August Macke (1887-1914) e Louis Moilliet (1880-1962). Klee pesquisava um modo próprio de desenhar e pintar, um modo próprio de utilização da cor. Para Günther Regel (2001, p. 30), Klee só atingiu a “ruptura” durante essa viagem: “Foi assim que ocorreu, quase sem sua interferência, aquilo pelo que ele tinha esperado e para o que tinha se preparado fundamentalmente em longos anos de tentativa”. An- tes de descer do navio, Klee escreve em seu diário (1990, p. 321): “A clari- dade colorida em terra, muito promissora. Macke sentiu a mesma coisa. Figura 4 Leon Battista Alberti. Fa- chada da Igreja Santa Maria Novella (1448-1470). Alberti foi contratado para projetar a reforma da fachada da Igreja Santa Maria Novella, Florença. Ele utilizou mármore policromado. sismemsossssmmmmmmemsmomk 84 Estética e história da arte Ambos sabemos que vamos trabalhar muito bem por aqui”. Klee estava otimista. A pesquisadora Susanna Partsch (1993, p. 25) perguntou se foi a paisagem tunisiana, sua luz e suas cores, que fizeram Klee encontrar o caminho que procurava para sua pintura, ou foi o contato com Macke. Alguns dias depois, Klee escreveu que estava fazendo testes. “Um dia há de dar certo”, ele afirmou. O diário possui algumas vantagens, como observar o esforço do artista em chegar ao objetivo imaginado. É um esforço grande. Nove dias depois da chegada à Tunísia, Klee (1990, p. 332) escreveu que, por enquanto, tinha deixado o trabalho de lado para deixar-se levar por tudo aquilo que estava ao seu redor. Aos poucos foi ganhando con- fiança para voltar a pintar: “A cor me possui. Não preciso ir atrás dela. Ela me possui para sempre, eu sei. Esse é o significado dessa hora feliz: a cor e eu somos um. Sou pintor”. Doze dias após a chegada ao porto de Túnis, a capital da Tunísia, os três amigos voltaram para casa. Klee (1990, p. 333) anota em seu diário, no dia 19 de abril de 1914, que está voltando com muitas aquarelas, mas a “maior parte dentro de mim, bem lá no fundo”. Parecia que ia transbordar, ele disse. Apesar de ter compreendido o tamanho de sua tarefa artística, a vida continuou em um movimento intenso. Em junho, começou a Primeira Grande Guerra. Em setembro, Macke morreu em combate. Em 1916, Klee foi convocado para a guerra. Também em 1916, o amigo e pintor Franz Marc (1880-1916) morreu na batalha de Verdun, a mais longa da Primeira Guerra. Apesar de tudo, Klee não deixou de refletir sobre a arte em seu diário de guerra. Em uma das últimas entradas (1990, p. 452), ele escreveu uma de suas frases mais famosas: “Na arte, mais importante do que ver é tornar visível”. O filho de Paul Klee, Félix, que editou o diário do pai, escreveu (1990, p. 457): “Lembro-me como se fosse ontem aquele dia de dezembro de 1918, quando meu pai entrou em casa, um aparta- mento pequeno, modesto e escuro, no bairro de Schwabing, vestindo seu uniforme cinza”. Para o estudioso da Cultura Visual, essa imagem é carregada de sen- tidos. Ela é tão importante quanto uma de suas últimas obras realiza- das na Tunísia, antes de voltar para casa, As portas de Kairouan, pintada no mesmo dia em que disse ter certeza de que era um pintor. Pou- co tempo depois do retorno, Klee pintou outra aquarela, No estilo de Kairouan. Dessa vez, não há mais a preocupação de pintar de acordo com a natureza, é uma obra abstrata. Figura 5 Paul Klee como soldado em 1916 W ik im ed ia C om m on s O conceito de manifestação cultural 85 KLEE, P. As portas de Kairouan. 1914. Aquarela, 20,7 x 31,5 cm. Fundação Paul Klee, Berna. KLEE, P. No estilo de Kairouan.1914. Aquarela, 12,3 x 19,5 cm. Fundação Paul Klee, Berna. W ik im ed ia C om m on s W ik im ed ia C om m on s É possível perceber que não havia uma preocupação antropológica nos três artistas que viajaram à Tunísia. Havia uma preocupação plás- tica, artística, estética. Tinham, como artistas, a percepção atenta para uma cultura diferente da europeia, que, naquele momento, se prepa- rava para a guerra. O mesmo ocorreu com Picasso alguns anos antes. Seu contato com máscaras e esculturas africanas tinha um objetivo artístico, que era diferente daquele para o qual os objetos foram inicialmente criados. Apesar da grandeza da arte africana, as máscaras que Picasso conhe- ceu foram produzidas a fim de serem usadas em rituais e cerimônias especiais. Contudo, elas acabaram influenciando alguns artistas do mo- dernismo do início do século XX. Em 1906, um ano antes de pintar Les Demoiselles d’Avignon, Picasso foi apresentado por Henri Matisse a uma escultura africana, o que o inspirou a produzir uma série de desenhos com rostos femininos desestruturados (PLAZY, 2016). Este contato com a arte africana foi essencial para a criação de Les Demoiselles. O artis- ta fez pesquisas sobre a arte primitiva da África e da Oceania durante alguns meses, passou horas no Museu Etnográfico do Trocadéro, hoje chamado de Museu do Homem de Paris, e usou dezesseis cadernos de esboços. Por fim, Picasso apresentou uma obra surpreendente, mera- mente plástica, no sentido de forma, estrutura e organização. 86 Estética e história da arte É possível pensar que Picasso não teve nenhuma preocupação com a cultura de seu tempo? As personagens de seu famoso quadro pa- recem clamar por autonomia, como se dissessem “isto é só pintura”. Tudo mudou, porém, quando leu a notícia sobre o bombardeio nazista à cidade espanhola de Guernica, em 1937. O impacto foi tanto, que logo após ler a notícia, começou a trabalhar no enorme painel. O mo- dernista puro que só se preocupava com os procedimentos de sua pró- pria pintura, pintou Guernica. 4.3 O queé cultura popular Vídeo Já nos habituamos ao uso da palavra cultura como a totalidade das manifestações de um grupo, de um povo ou de uma determinada so- ciedade. Muitas vezes, as classificações são arbitrárias, no sentido de serem casuais, sem regras ou sem lógica. No entanto, as classificações são necessárias didaticamente, quando, por exemplo, nos referimos às culturas grega e renascentista. É o que se fará agora com a expressão cultura popular. Contudo, corre-se o risco de uma classificação arbitrária, e não didática, que ocorre quando classificamos a cultura como erudita e popular, colocan- do uma em posição de superioridade à outra. Para resolver a questão, W ik im ed ia C om m on s Figura 6 Máscaras africanas em loja de Nairóbi, Quênia. O conceito de manifestação cultural 87 deve-se definir o que é popular. A definição mais simples afirma que popular é relativo ao povo 2 , ou tudo aquilo que faz parte do saber do povo. É esse o objeto de estudo dos folcloristas (de folk, povo), preo- cupados com as lendas, os provérbios, os costumes de um grupo. Por isso, cultura, folclore e popular se confundem. A postura necessária, portanto, é não considerar a cultura popular como algo diferente. O historiador Peter Burke (2010) informa que foi no fim do século XVIII e início do século XIX que o “povo” se tornou um tema de estudos para os pesquisadores. Foi um momento em que a cultura popular tra- dicional começou a desaparecer por causa da industrialização – migra- ção do campo para as cidades – e, consequentemente, do crescimento urbano. Mais tarde, o mesmo fenômeno ocorreu no Brasil, já no século XX. Burke (2010, p. 26) ilustra assim o interesse dos primeiros pesqui- sadores: “Os artesãos e camponeses decerto ficaram surpresos ao ver suas casas invadidas por homens e mulheres com roupas e pronúncias de classe média, que insistiam para que cantassem canções tradicio- nais ou contassem velhas estórias”. Esse interesse pelo povo pode ter várias razões, entre elas, as razões políticas e estéticas. São as estéticas que valorizaremos na análise empreendida neste livro. Para os artistas modernistas, a arte popular poderia ser útil na críti- ca contrária à arte “oficial”. Nesse gesto de aproximação com a arte po- pular havia também uma crítica à estética do século XVIII, uma reação às noções de belo e imitação da natureza, presentes por tantos séculos na arte europeia. Por isso, Picasso e outros artistas ficaram fascinados com a arte popular. O interesse pela arte popular africana é um dos exemplos. No Brasil, os modernistas tiveram o mesmo interesse, quan- do a cultura popular serviu como sustentação para a possível criação de uma arte brasileira, com a “cor local”, segundo Tarsila do Amaral. Analisar o caso da arte naïf poderá ajudar a compreender os signifi- cados de cultura popular. A palavra francesa naïf significa ingênuo, puro. Passou a ser utilizada no século XIX para classificar artistas autodidatas e sem formação em artes visuais. Essa expressão acabou sendo associada à arte popular e à arte primitiva. Há uma forma subjetiva do artista naïf pintar, que usa intuitivamente a perspectiva e as cores. Uma das principais características desse gênero é a representação de todos os detalhes da- quilo que se está pintando. Ainda que uma figura humana esteja distante, ela será representada com todos os pormenores. Conjunto de pessoas que vivem em uma comunidade da mesma região, falam a mesma língua, têm interesses, histórias e tradições em comum. Ou seja, compartilham a mesma cultura. Essa definição se entrelaça ao conceito de nação. A definição anterior, porém, vincula-se à noção de cultura, como tratada neste livro, sem a conotação jurídico-política que o conceito de nação pode sugerir. 2 A coleção A pintura: Textos essenciais traz, em catorze pequenos volumes, uma seleção de textos de artistas e teóricos sobre a pintura. Em cada volume, há uma apresentação geral e uma contextua- lização de cada escrito. A novidade é a inclusão de textos de artistas de todas as épocas. É uma oportunidade de ler o que eles escreveram sobre o belo, as imagens religiosas, a figura humana, o desenho, os gêneros pictóricos etc. LICHTENSTEIN, J. (org.). São Paulo: Editora 34, 2004. (14 volumes). Livro 88 Estética e história da arte Tudo começou com o mais famoso dos pintores naïf: o francês Henri Rousseau (1844-1919). O interesse pela arte primitiva, empreendida pelos jovens pintores de Paris no começo do século XX, levou à descoberta desse pintor ocasional que não havia estudado em nenhuma escola de arte e escolhia temas simples e fantasiosos. Ele era chamado de Le Douanier, que significa funcionário da alfândega. Para os jovens artistas, Rousseau serviu para que questionassem a educação formal, ou seja, as Academias de Arte, que tanto criticavam. Gombrich (2013, p. 455) conclui que, sem saber desenho ou os métodos de pintura, como o impressionismo, há nas telas de Rousseau “algo tão vigoroso, simples e poético que não há como não reconhecer nele um mestre”. Havia uma vantagem natural de Rousseau sobre os jovens: ele conhecia a vida simples que pintava. Gombrich (2013) analisou esta obra de Rousseau e apontou as seguintes características: o uso de co- res simples e puras e linhas nítidas. Além disso, o artista pintou cada folha das árvores e da grama. A arte naïf nasceu, portanto, com a arte moderna, no final do século XIX e começo do XX. São duas orien- tações artísticas, mas sem oposição entre elas. Ao contrário, há influência, diálogo e atenção entre am- bos os grupos de artistas. Para compreender melhor esse momento, é preciso retomar a história da arte. Cézanne foi importante para Picasso; Van Gogh, para o expressionismo. Contudo, há outro artista, que, de acordo com Gombrich (2013, p. 435), compõe o grupo dos “três rebeldes solitários”: Paul Gauguin (1873-1903). Assim como o amigo Van Gogh, começou a pintar por volta dos vinte e cinco anos. Era corretor da bolsa de valores e pintava nas horas vagas. Pode-se dizer que era um autodidata diferente, pois incorporou lições do impressionismo. Van Gogh, que em 1888 o convidou para dividir o ateliê em Arles, também recebeu a mesma influência. Após uma briga, Gauguin deixou a casa do amigo e voltou para Paris. De lá, partiu para o Taiti, ilha francesa localizada no Oceano Pacífico. Antes do encontro com Van Gogh, havia viajado ao Caribe. Gauguin buscava W ik i A mm ROUSSEAU, H. Retrato de Joseph Brummer. 1909. 116 cm x 88,5 com. Coleção particular. O conceito de manifestação cultural 89 experiências diferentes, por isso, deixou Paris, a família e o emprego seguro. Entre os artistas do final do século XIX, havia uma atração pelas culturas que julgavam “primitivas”, como a africana e a das ilhas do oceano pacífico. O quadro Cristo Amarelo é anterior à viagem de Gauguin ao Taiti, e após o período que passou com Van Gogh em Arles. Alguns aspectos o ligam a Rousseau: não há divisão entre realidade e imaginação, o desenho é simplificado e o amarelo da figura central se confunde com a paisagem ao fundo. A obra Arearea foi pintada durante o primeiro período em que viveu no Taiti e nela já aparecem referências à cultura local. É possível afirmar que criou uma arte nova, desprezando regras de muitos séculos, como a ilusão de profundidade e a imitação da realidade. A estética de Gauguin é nova e moldou práticas de artistas do século XX. Ao explicar a ida de Gauguin ao Taiti, Gombrich (2013, p. 424) aborda também o interesse pela cultu- ra que encontrou: o artista buscava uma vida simples, pois estava convencido que a vida na Europa havia se tornado superficial e que havia perdido o maior de todos os dons: “a força e a intensidade das emoções, além de uma maneira direta de expressá-las”. No Taiti, tinha esperança de reencontrar esses dons. O sentimento de Gauguin não era inédito, mas sua viagem ao Taiti acabou por se tornar mítica para asgerações seguintes. Outros artistas, como Eugène Delacroix, viajaram para conhecer novas culturas, paisagens, pessoas, ou, simplesmente, buscar uma luz diferente. Delacroix estava cansado dos temas eruditos da Academia de Belas Artes quando viajou para o norte da África em 1832. Estava fascinado com as amostras de cores do mundo árabe que viu em Paris. GAUGUIN, P. Cristo Amarelo. 1889. Óleo sobre tela. 92 x 73 cm. Albright-Knox Art Gallery, Buffalo. W ik im ed ia C om m on s GAUGUIN, P. Arearea (Brincadeiras). 1892. Óleo sobre tela, 75 x 94 cm. Museu d’Orsay, Paris. W ik im ed ia C om m on s A palavra primitivismo não é uma palavra simples, mesmo sendo usada há muito tempo pela histó- ria da arte. Ela pode sugerir involução. No caso específico da arte, sugere um objeto rudimentar ou sem aperfeiçoamento. Não é o caso, porém, do diálogo que o modernismo manteve com esses artistas, como Rousseau. Saiba mais 90 Estética e história da arte DELACROIX, E. Cavalaria árabe fazendo uma investida. 1832. Óleo sobre tela, 60 x 73 cm. Museu Fabre, Montpellier. Para Gombrich (2013, p. 387), Delacroix rejeitou os ensinamentos da academia. Sobre o quadro Cavalaria árabe fazendo uma investida, escreveu: “Não há traços nítidos, nem modelagem dos nus em tons cui- dadosamente graduados de luz e sombra; não há pose nem contenção na composição, nem mesmo uma temática patriótica ou edificante”. Parece que o artista participa da cena, de um momento estimulante e movimentado. Delacroix e Gauguin tinham os mesmos motivos quan- do decidiram viajar: desenvolver um tipo de arte menos contida e com mais luz. Klee também citou a luz. Essa luz pode ser entendida também de forma metafórica, como uma tentativa de “iluminar” a si mesmo. Para Argan (1992, p. 131), Gauguin está situado mais no plano da ima- ginação. Assim, ele se afasta dos impressionistas, mais preocupados com a percepção, como demonstram as pesquisas de Monet sobre a luz refletida nas pedras da Catedral de Rouen. A necessidade de se afastar da vida moderna sugere que não há mais espaço para a imaginação, que, entretanto, pode ainda ser encontrada na cultura popular. Esse fato explica um pouco o sucesso de Rousseau entre os jovens modernistas. Foi esse artista popular, diz Argan (1992), que transformou as técnicas tradicionais de representação, como a perspectiva e as relações entre as cores, W ik im ed ia C om m on s O conceito de manifestação cultural 91 que renegou o exotismo de Gauguin e o culto à bela pintura dos impressionistas. A palavra exotismo deriva do que é estrangeiro ou do que está distanciado do centro. Pode ter sido esse o olhar de Gauguin sobre a população do Taiti, um olhar sobre um povo estrangeiro, mas pode ter sido um legítimo sentimento de alteridade, palavra utilizada para caracterizar a compreensão daquilo que é distinto de nós. É o reconhecimento de que há pessoas ou grupos diferentes. Nunca saberemos as razões que impulsionaram Gauguin a realizar viagens tão longas e a deixar o conforto de Paris, mas é possível perceber uma insatisfação com a arte de seu tempo e, talvez, com sua própria vida. Para Gombrich (2013), do descontentamento de Cézanne, Van Gogh e Gauguin, surgiram movimentos como o cubismo, o expressionismo e o primitivismo, ainda que a palavra primitivismo pareça desconfortável para nós. ROUSSEAU, H. A Guerra. 1894. Óleo sobre tela, 113 x 193 cm. Museu d’Orsay, Paris. Segundo Argan (1992, p. 136), Picasso sempre reconheceu Rousseau como um dos grandes mestres com quem aprendeu seu ofício. É dele que se lembra ao pintar Guernica, em 1937: “a profecia sobre o fim da civilização, que le Douanier entrevia em sua ‘ingenuidade’, havia se traduzido em pavorosa realidade”. W ik im ed ia C om m on s 92 Estética e história da arte Rousseau é um artista popular que está na origem da arte naïf. Ele chamou atenção de artistas que tiveram formações artísticas e utiliza- ram a cultura popular em suas poéticas, como Gauguin e Picasso. Mos- trou aos artistas modernistas que é possível superar a distinção entre cultura culta e cultura popular. Com base no uso das imagens, cada vez mais sem restrições, como na pop art, no grafite, na arte de rua, na videoarte e na arte computa- cional, aconteceram mudanças na percepção estética. Assim, pode-se dizer que o valor estético é uma construção social, com uma dinâmica de transformação cada vez mais veloz. A delimitação desta discussão, do ponto de vista estético, libera os pontos de vista para múltiplas fa- cetas e não restringe os argumentos apenas em questões de produção e distribuição da obra de arte, seja ela de qual tipo for. O diálogo entre as várias áreas de pesquisa é cada vez mais comum. O uso dos conhe- cimentos antropológicos pelo pesquisador permite que o trabalho não se resuma apenas à classificação e datação da obra de arte. Um bom começo é perceber que toda arte é popular, no sentido de possibilitar uma experiência estética particular, sim, mas com uma forma univer- sal de se relacionar com um número cada vez maior de espectadores. Assim, para a estética, a experiência com uma imagem religiosa de um autor anônimo pode também ser intensa. A experiência, então, é a natureza de toda atividade estética. Essa é a principal lição para se compreender e superar a divisão entre arte “culta” e “popular”, entre arte “erudita” e “naïf”. Os artistas modernistas do começo do século XX perceberam que aprenderiam muito se superassem essa divisão. E fizeram uma revolução. CONSIDERAÇÕES FINAIS Foi um longo caminho até o artista associar, sem nenhuma crítica, a aprendizagem artesanal (popular) à racionalidade dos cânones artísticos vi- gentes (as regras das escolas de arte). É possível que, enfim, essa separação tenha sido ultrapassada. Basta pensar em Rousseau, artista que influenciou Picasso, mas não era considerado um verdadeiro artista. O próprio termo naïf, que significa inocente, tende a manter a separação entre arte culta e arte popular. Uma possível solução é esquecer a atividade classificatória que a história da arte utilizou com objetivos didáticos, e estimular a expe- riência estética, livre de ideias exageradamente planejadas. Ou seja, evitar a visita a uma exposição “sabendo” o que será visto. É melhor, portanto, No vídeo Porque Picasso pintou “Guernica”, publi- cado pelo canal da Radio France Internationale Brasil, você poderá se situar no contexto histórico e conhecer mais detalhes sobre a obra de Picasso que se tornou um símbolo global. Disponível em: https://www.you- tube.com/watch?v=RaqV4zGP7Po. Acesso em: 13 mar. 2020. Vídeo about:blank about:blank O conceito de manifestação cultural 93 esperar, esquecer os “ismos” temporariamente, e viver a experiência esté- tica da maneira mais singular possível. As lições de Warburg, que utilizava diversos documentos e imagens para estudar uma obra, é um exemplo das várias possibilidades que existem. A foto de Paul Klee, na qual está vestido com o uniforme cinza de soldado, transformou-se em um importante docu- mento, que revela que o estudioso tem agora outras fontes de pesquisa. A frase “eu sou artista”, escrita por Klee em seu diário, também é reveladora. Mostra o percurso que precisou trilhar até se sentir reconfortado. Os arqui- vos revelam e ajudam a dar sentido. Não é pouco. ATIVIDADES 1. Defina o significado de manifestação cultural. 2. Os pesquisadores valorizam os documentos produzidos pelos artistas. Por que arquivar esses documentos? 3. Defina o que é cultura popular. REFERÊNCIAS ALBERTI, L. B. Da Pintura. Trad. de Antonio da Silveira Mendonça. Campinas: Editora da Unicamp, 2009. ARGAN, G. C. Arte Moderna. Trad. de Denise Bottmann e Federico Carotti. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. ARGAN, G. C. Preâmbulo ao estudo da história da arte. In: Giulio Carlo Argan e Maurizio Fagiolo (orgs.). Guia de História da arte. Trad. de M. F. Gonçalves de Azevedo. 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Trad. de Lenin B. Bárbara. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. Aspectos da cultura popular brasileira 95 5 Aspectos da cultura popular brasileira A cultura brasileira foi fonte de reflexão no início do século XX, quando alguns intérpretes começaram a estudá-la com mais fre- quência. Desse modo, coincidiu com marcos como o Movimento Modernista e a criação das primeiras universidades, como a Universidade de São Paulo, em 1934. A preocupação com a iden- tidade brasileira levou artistas e intelectuais a delimitarem ainda mais a noção de cultura brasileira. Assim, surgiu outra preocupa- ção: compreender a cultura popular brasileira como uma das ba- ses de nossa identidade. Neste capítulo, trataremos essa cultura popular do ponto de vis- ta estético, mas não serão negligenciados aspectos fundamentais, como o trabalho, as histórias orais, as crenças e todo universo de vivências que marcam nossa cultura. Os próprios artistas tratarão de vincular esses aspectos aos seus trabalhos. É por isso que as obras de arte são fontes privilegiadas para a compreensão das no- ções de cultura brasileira e cultura popular brasileira. O vínculo entre arte e cultura brasileira é o que trataremos a seguir. 5.1 Manifestações e origens da cultura brasileira Vídeo O escritor e antropólogo Darcy Ribeiro afirmou que a “sociedade e a cultura brasileira são conformadas como variantes da versão lusitana da tradição europeia ocidental, diferenciadas por coloridos herdados dos índios americanos e dos negros africanos” (2015, p. 17); sem contar os grandes grupos de imigrantes europeus, árabes e japoneses, que chegaram depois. Assim, para Ribeiro (2015, p. 17), surgiu um povo novo, diferenciado culturalmente de suas matrizes formadoras, “fortemente mestiçada, dinamizada por uma cultura sincrética e singularizada pela redefinição 96 Estética e história da arte de traços culturais delas oriundos”. O uso da expressão cultura sincréti- ca permite compreender melhor o ponto de vista de Ribeiro. A palavra sincretismo é utilizada em várias situações. Na religião, lembra que pode ocorrer a reunião de doutrinas diferentes; na filosofia, pode significar a síntese de visões de mundo diferentes; na antropologia, a combinação de elementos de várias culturas. Assim, surgiram modos de ser, como os dos sertanejos do Nordeste, dos caipiras do Sudeste e Centro-Oeste do país, dos caboclos da Amazônia, dos crioulos do litoral, dos gaúchos do Sul, além de ítalo- -brasileiros, teuto-brasileiros, nipo-brasileiros etc. Apesar da expressiva urbanização ocorrida nos últimos anos, uniformizando os brasileiros no plano cultural, algumas diferenças são mantidas. Essa diversidade pode ser explicada pelas teses de Darcy Ribeiro, mas é possível consi- derar extensão do país (quinto maior território do planeta) e o tama- nho de sua população (sexta maior). A unidade da língua, contudo, é um dos grandes méritos dos fun- dadores da nação, ainda que diferenças no uso de algumas palavras ocorram, mesmo quando a distância é pequena. Por exemplo, uma mes- ma fruta pode se chamar mexerica em São Paulo e mimosa em Curitiba e, no entanto, não há dificuldade de entendimento entre a população. O brasileiro, para Ribeiro (2015), nasce de três matrizes étnicas: a indígena, a portuguesa e a africana. Todavia, o fortalecimento de uma cultura tipicamente brasileira não ocorreu por acaso, foi um processo lento. A língua portuguesa, por exemplo, estabeleceu-se século após século; a arte também, passando a seguir os cânones europeus, primeiramente com o barroco, no final do século XVII e início do XVIII, início do Ciclo do Ouro em Minas Gerais, e depois com a chegada da Missão Francesa, em 1816. Também, com a criação da Academia Imperial de Belas Artes no Rio de Janeiro, as regras do classicismo se fortaleceram. Pode-se perceber que há uma questão que se revela nos detalhes desta cronologia e que, mesmo estando quase escondida, tornou-se re- levante com os modernistas do início do século XX: a definição de arte brasileira. Talvez a gênese da arte brasileira seja idêntica à gênese do povo brasileiro, da forma como explicou Darcy Ribeiro: fruto de várias matrizes. É possível, portanto, que a arte brasileira também seja sincré- tica. Para confirmar ou negar essa afirmação, iniciaremos a cronologia. O documentário O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil procura desvendar a formação do Brasil. Há depoimentos e trechos de filmes que enriquecem o livro homô- nimo de Ribeiro. Direção: Isa Grinspum Ferraz. Brasil: 2000. Filme Darcy Ribeiro faz parte de um grupo de intelectuais do século XX que tentou “entender” o Brasil. Nesse grupo, também está Gilber- to Freyre, autor de Casa-grande & senzala, de 1933. A publicação da obra foi uma tentativa de pensar o Brasil do ponto de vista cultural, e, principalmente, do ponto de vista da miscigenação. Esta era vista por Freyre como uma “vantagem” sobre outras nações, mas foi realizada com conflito e dor, segundo Ribeiro, que também a via como um processopositivo. De acordo com Freyre (2019, p. 33): “A miscigenação que largamente se praticou aqui corrigiu a distância social que de outro modo se teria conservado enorme entre a casa- -grande e a mata tropical; entre a casa-grande e a senzala”. Freyre fazia referência ao português (casa-grande), ao indígena (mata tropical) e ao negro (senzala). Saiba mais Aspectos da cultura popular brasileira 97 Na arte pré-histórica do Brasil, os objetos cria- dos pelos povos desse período não tinham pre- tensão artísticas. No entanto, assim os tratamos. Esses objetos tinham uma finalidade prática. Lem- bre-se da arte como tékhne, como atividade huma- na que transforma a natureza a fim de extrair uma obra. É ela que permite a criação de um objeto. Mesmo sendo um instrumento utilitário, há senti- do estético, há preocupação com a forma e uma sensibilidade necessária até mesmo para a esco- lha do material. Por isso, a tradução de tékhne mais utilizada é arte e não técnica. Dessa forma, não é exagero dizer que essa dimen- são estética nos acompanha desde a pré-história. Para o pesquisador, no entanto, esse objeto possui múltiplas possibilidades interpretativas: é a materia- lização do conceito de cultura, pois “é um documen- to sobre grupos humanos pré-históricos, sobre a sua organização social e os seus costumes, mitos, rituais, lutas, alimentação e vida espiritual” (PESSIS; MARTIN, 2014, p. 24). Pode-se perceber que os desenhos dos parques brasileiros realizados por povos caçadores- -coletores correspondem aos desenhos da era paleo- lítica encontrados em cavernas da Europa. O termo classicismo é utilizado pela história da arte em diversas situa- ções. Normalmente, é empregado para retratar uma obra com ideais de perfeição e harmonia, como a arte grega. A arte renascentista retoma esse modelo. Lembre-se que Joachim Johann Winckelmann achava que o modelo grego é o que melhor define os ideais de proporção. No século XVIII, esse termo também passou a ser o oposto do romantismo, que valorizava a subjetividade do artista, e, portanto, as suas paixões. Os termos clássico e romântico, contudo, passaram a ser utilizados como ofensa de um grupo contra outro. TINTORETTO, Jacopo. Casa de Maria e Marta (1580s). Óleo sobre tela, 197 cm x 129 cm. Alte Pinakothek, Minuque, Alemanha. W ik im ed ia C om m on s De olho na arte Figura 1 Pintura rupestre encontrada no Parque Nacional da Capivara, Piauí, Brasil O termo registro rupestre é usado quando se pretende tirar a dimensão estética do objeto. O pesquisador da estética utiliza“ar- te”, pois percebe a manifestação estética em todos os objetos. O termo pré-história pode sugerir que há povos sem história. Contu- do, até os povos ágrafos possuem história, as imagens que criaram são provas disso. Saiba mais m ar co sv el lo so /S hu tte rs to ck 98 Estética e história da arte O mesmo raciocínio foi utilizado por Darcy Ribeiro (1983), que define arte indígena como criações realizadas de acordo com os cânones prescri- tos pelo grupo, com objetivos utilitários, sim, mas buscando a perfeição. Essas criações, segundo o pesquisador, possuem rigor formal e beleza que se destacam de outros objetos por serem dotados de valor estético. Ribeiro (1983, p. 49, grifos nossos) utiliza categorias da tradição es- tética para explicar o valor que percebeu nas criações indígenas: “Neste caso, a expressão estética indica certo grau de satisfação dessa indefinível vontade de beleza que comove e alenta aos homens como uma neces- sidade e um gozo profundamente arraigados”. Os grifos na citação são nossos, destacando como Ribeiro utiliza noções da estética clássica. Ele complementa sua análise com um comentário sobre a utilidade da arte e da beleza em nossas vidas: “Não se trata de nenhuma necessidade imperativa como a fome ou a sede, bem o sabemos; mas de uma sorte de carência espiritual, sensível, onde faltam oportunidades para atendê- -la; e de presença observável, gozosa e querida, onde floresce” (RIBEIRO, 1983, p. 49). Ao aplicar essa concepção de arte, Ribeiro permite que sejam en- contradas expressões artísticas nos objetos da vida diária dos indíge- nas. Portanto, há fruição estética entre aqueles que criam e desfrutam de tais objetos, porque são “criações voltadas para a perfeição formal, cuja fatura, desempenho ou simples apreciação lhes dá gozo, orgulho e alegria” (RIBEIRO, 1983, p. 49). Há uma preocupação estética em todas as coisas realizadas pelos indígenas, que eram muitos e faziam uma arte diversa, pois se dividiam em muitos povos, dentre eles os tupis. Os indígenas da família tupi ocuparam grande parte do território brasileiro, vindos de uma região onde hoje é Rondônia, na Amazônia, por volta do ano 500 de nossa era. Para se ter ideia da influência, a língua tupi-guarani era a língua geral falada por todos, até pelos ban- deirantes paulistas. É possível aplicar as teorias estéticas europeias à arte indígena? Você deve ter percebido que Darcy Ribeiro utilizou teorias estéticas do ambiente europeu para explicar a arte indígena. O antropólogo Alfred Gell procurou entender se isso é possível. Em seu livro Arte e agência: uma teoria antropológica (2018), ele afirma que a arte dos territórios colonizados pode ser estudada por qualquer uma das teorias da arte, ou por todas elas, desde que a abordagem seja útil. Quem está preparado para compreender a arte de Picasso pode escrever sobre as máscaras africanas como arte; precisa abordá-las como arte por causa da importância da relação entre a arte da África e a arte ocidental do século XX para a história da arte — diz Gell. O autor conclui que “se as teorias (estéticas) ocidentais da arte podem ser aplicadas à ‘nossa’ arte, podem e devem ser também aplicadas à arte de todos os povos” (GELL, 2018, p. 23). Para refletir Mapa1 Migração do homem – O povoamento da América Oceano Glacial Ártico Oceano Pacífico Oceano Atlântico Oceano Índico Deserto do Saara África Europa Ásia Oceania América do Sul América do Norte Sibéria Alasca Polinésia Filipinas Terra de Sunda Nova Guiné Prováveis rotas do ser humano para a América Sem o trabalho de campo de pesquisadores como Darcy Ribeiro, não teríamos os dados sobre a cul- tura indígena que temos hoje. A pintura corporal é um exemplo, pois tem valor fundamental na for- ma como os indígenas veem o mundo e a si mesmos. Os sentidos, segundo Martins e Kok (2014), são múltiplos: ritos de passagem, proteção do clã ou do indivíduo, cerimô- nias de reclusão, de casamento, de luto ou de cura de doenças, função guerreira ou religiosa. O vermelho é extraído da planta chamada urucum, já o azul-escuro ou o preto são obtidos do jenipapo. O agluti- nante é o suco do babaçu ou de outra planta. Eles utilizam, também, o carvão ou algum tipo de calcário. Não há uma total simetria, mas é possível perceber padrões geométri- cos. Essas pinturas refletem um modo de ser dos indígenas. A arte plumária, cujos artefatos são criados com penas de aves, possui os mesmos objetivos ritualísticos ou religiosos da arte corporal. Ela pode ser criada em grandes proporções, como mantos usados pelos líderes, ou pequenos artefatos, como brincos, colares, braceletes etc. Figura 2 Indígena da tribo Pataxó durante o 2º Encontro de Povos da Floresta, em 2007 JosJ CruJJ JJr/Wikimedia Commons 99Aspectos da cultura popular brasileira 100 Estética e história da arte A arte de trançar fibras de alguma planta da região onde a tribo está instalada atingiu alto grau de so- fisticação. Sua elaboração não é tão simples, ain- da mais com o emprego de padrões geométricos que exigem habilidade e precisão. Cada grupo étnico, porém, possui uma tradi- ção. Se os Timbiras não possuem objetos de ar- gila, explicam Martins e Kok (2014), os Kadiwéu desenvolveram técnicas e padrões decorativos elaborados para a confecção de objetos em cerâ- mica. O mesmo ocorre com trabalhos em madeira, tradição de algumas aldeias do Alto Xingu.O saber indígena está presente na cultura popular brasileira, pois foi incorporado por outros grupos, tanto nas cidades quanto no interior. Martins e Kok (2014) citam a arte da cestaria, o uso da rede para dormir, o uso da fa- rinha de mandioca, os enfeites corporais, o banho etc. Tais práticas e costumes presentes na cultura indígena foram incorporados durante os séculos de colonização portuguesa. Além das matrizes europeia e indígena, segundo Darcy Ribeiro, ainda há a matriz africana na formação do povo brasileiro. Para o antropólogo, os africanos escravizados trazidos para o Brasil conseguiram “influenciar de múltiplas maneiras as áreas culturais onde mais se concentraram, que foram o nordeste açucareiro e as zonas de mineração do centro do país” (RIBEIRO, 2015, p. 87-88). Essa informação é importante para compreender a arte que se de- senvolveu posteriormente. Antes, é preciso saber o que é arte afro-brasileira. Para Munanga (2019), a questão é como descrevê-la em relação à arte brasileira em geral, não apenas como um capítulo, mas como descoberta da africani- dade nela presente. Para ele, não se pode concluir que há continuidade da arte africana no Brasil, mas se pode pensar em continuidade “par- cialmente recriada”, em função das novas condições de vida da popula- ção escravizada no novo mundo. Figura 3 Cestarias indígenas Ro bs on d e Ja st os /S hu tte rst oc k Aspectos da cultura popular brasileira 101 O artigo A Dimensão Estética na Arte Negro-Africana Tradicional, do Professor Munanga, traz um diálogo entre a estética tradicional e a arte africana e afro-brasileira. Acesso em: 27 mar 2020. http://www.macvirtual.usp.br/mac/arquivo/noticia/Kabengele/Kabengele.asp Artigo Munanga (2019) explica, contudo, que ocorreu uma mudança nas primeiras décadas do século passado, quando a arte afro-brasileira se tornou mais visível. Os artistas afro-brasileiros, antes discretos em res- peito aos espaços de culto, começaram a trabalhar dentro do conceito de arte popular, encorajados pelo movimento modernista. Era uma arte não étnica, mas vinculada a suas raízes. Munanga classifica três grupos de artistas: 1. aqueles que usam o tema de forma episódica, como Tarsila do Amaral; 2. aqueles que utilizam conscientemente a temática afro-brasileira, como Di Cavalcanti; e 3. aqueles que usam espontaneamente as soluções plásticas africanas, como o escritor e escultor Mestre Didi (Deoscóredes Maximiliano dos Santos, 1917-2013), que associava a cultura afro-brasileira, principalmente a religião, às soluções plásticas africanas. Mestre Didi, que esteve presente na 23ª Bienal Internacional de São Paulo (1996), transformava o objeto de arte ritualístico, de visi- bilidade restrita ao culto religioso, em esculturas com a mesma força simbólica e artística do original. É possível perceber em suas escul- turas uma sensibilidade capaz de fazer coexistir a linguagem da arte popular (religiosa) e a pessoal. Para Roberto Conduru (2012, p. 40), as obras de Mestre Didi se transformaram em exemplo de como tran- sitar entre os circuitos religioso e artístico “mantendo todos os atri- butos exigidos para o uso no culto, mas também revelando sentidos outros, maior amplitude e pertencimento cultural”. No livro Índios: Os Primei- ros Brasileiros, o professor João Pacheco de Oliveira, também curador da ex- posição de mesmo nome, ocorrida no Arquivo Nacional (RJ) em 2019, busca compreender a pluralidade identitária brasileira por meio de análise da trajetória histó- rica dos povos indígenas do Nordeste, do norte de Minas Gerais e do Espírito Santo. Um material didáti- co e ricamente ilustrado. OLIVEIRA, J. P. de. Rio de Janeiro: Museu Nacional / Universidade Federal do Rio de Janeiro. 2018. Disponível em: http://jpoantro- pologia.com.br/pt/wp-content/ uploads/2018/06/BOOK_Primei- ros_Brasileiros_Completo_MIO- LO_Final_BAIXA.pdf. Acesso: 27 mar. 2020. Livro http://www.macvirtual.usp.br/mac/arquivo/noticia/Kabengele/Kabengele.asp http://jpoantropologia.com.br/pt/wp-content/uploads/2018/06/BOOK_Primeiros_Brasileiros_Completo_MIOLO_Final_BAIXA.pdf http://jpoantropologia.com.br/pt/wp-content/uploads/2018/06/BOOK_Primeiros_Brasileiros_Completo_MIOLO_Final_BAIXA.pdf http://jpoantropologia.com.br/pt/wp-content/uploads/2018/06/BOOK_Primeiros_Brasileiros_Completo_MIOLO_Final_BAIXA.pdf http://jpoantropologia.com.br/pt/wp-content/uploads/2018/06/BOOK_Primeiros_Brasileiros_Completo_MIOLO_Final_BAIXA.pdf http://jpoantropologia.com.br/pt/wp-content/uploads/2018/06/BOOK_Primeiros_Brasileiros_Completo_MIOLO_Final_BAIXA.pdf 102 Estética e história da arte As influências entre culturas, como ocorre no Brasil, provocam a mesma fusão na arte, resultando no emprego, pelo artista, de lingua- gens estéticas de diversas culturas. A arte é um exemplo desse diálogo, que ocorre desde o passado colonial. O artista se inspira, recria e rein- terpreta as tradições. Por isso, Munanga (2019) pensa na arte afro-bra- sileira como um sistema fluido e aberto, no qual se podem encontrar artistas que trabalham com as origens africanas da arte, como obras religiosas ou ritualísticas, e artistas que receberam influências das ar- tes africanas (temas, formas, símbolos etc.) e integraram-nas a outras influências da arte ocidental e indígena, resultando no mosaico que são arte e cultura brasileiras. A influência da ancestralidade africana é visível na cultura do Brasil, seja na linguística, na culinária, na religiosidade ou na arte. Ela se espalhou por todo o território e misturou-se com as culturas indígena e europeia. 5.2 A cultura popular brasileira Vídeo Para Darcy Ribeiro (1993, p. 127), cultura “é a herança social de uma comunidade humana”, representada por normas, regulações, valores e crenças explicadas pela criatividade artística e pela experiência dos membros dessa comunidade. Uma cultura, portanto, é transmitida na forma de tradição, que pode ser definida como tudo aquilo que se trans- mite de geração em geração, como histórias, ritos, costumes, técnicas e valores. É por meio dessa tradição que nos humanizamos e incorpora- mo-nos a um determinado grupo: aprendemos a língua, a técnica que o grupo domina e, por fim, a viver conforme os usos e costumes. Como resultado da tradição que herdamos, podemos dizer que a cul- tura popular brasileira possui elementos europeus, indígenas e africanos, tal qual o povo brasileiro. Assim, já podemos falar que há uma cultura brasileira com visão de mundo e atividade artística singulares. Cada artista cria conteúdos particulares dentro da sociedade da qual faz parte, como é o caso de Mestre Didi. Como isso é possível? Ribeiro (1993) afirma que um gesto de criatividade autêntico só terá validade se for uma contribuição às criações da civilização a que pertencemos, ou seja, se for significativa para nós e para outros povos. Ele cita dois exemplos que considera atos madu- ros da criatividade dos brasileiros e como contribuições a todos os povos: Ouro Preto, no século XVIII, e Brasília, no século XX. Ambos são expressões de ideais estéticos da civilização a que pertencem. Apesar das transforma- ções aculturativas no Brasil, segundo Mariano Carneiro da Cunha (1983), o ícone africano tem resistido e pode se comunicar com a força do idioma original, como mostram os trabalhos de Mestre Didi. É possível comprovar esse comen- tário assistindo ao filme Mestre Didi: Arte Ritual, que faz parte da série O mundo da arte. Disponível em: https://www.youtu- be.com/watch?v=AxE6kY5c1vs&- t=123s. Acesso: 27 mar. 2020. Vídeo https://www.youtube.com/watch?v=AxE6kY5c1vs&t=123s https://www.youtube.com/watch?v=AxE6kY5c1vs&t=123s https://www.youtube.com/watch?v=AxE6kY5c1vs&t=123s Aspectos da cultura popular brasileira 103 Figura 4 Ouro Preto, Minas Gerais Figura 5 Brasília, Distrito Federal O crítico de arte Mário Pedrosa, ao ver o tamanho do empreendimento que seria a construção de Brasília, escreveu que ela é “um apelo à imaginaçãocriadora de nossos artistas, nossos arquitetos, nossos urbanistas” (PEDROSA, 2015a, p. 90). Antes, o crítico havia lembrado que Ouro Preto, a capital da civilização do ouro, havia se constituído em menos de um século nas serras de Minas Gerais. Ca ci o M ur ilo /S hu tte rs to ck 06 1 Fi lm es /S hu tte rs to ck O grande objetivo de Portugal em relação à sua colônia era encon- trar ouro. Enquanto os bandeirantes, embrenhados pelos sertões, não o encontraram, aconteceram os Ciclos do Pau-Brasil e do Açúcar. Quan- do o metal valioso foi encontrado nas Minas Gerais, gerou uma corrida do ouro, a qual atraiu grande número de imigrantes. Como resultado, Vila Rica (a atual Ouro Preto) se tornou a maior cidade do continente americano em 1776. Paralelamente, aconteceu um progresso artístico. Com forte sentimento religioso, a população construiu muitas igrejas e capelas, que foram preservadas mesmo após o declínio do ouro na região. A ida dos artistas modernistas a Minas Gerais, nos anos 1920, também contribuiu para valorizar e preservar Ouro Preto. Em 1980, a cidade entrou na lista de patrimônio mundial da humanidade. Dois artistas se tornaram importantes no período. São eles: Antônio Francisco Lisboa (1738-1814), o “Aleijadinho”, e Manuel da Costa Ataíde (1762-1830), o “Mestre Ataíde”. O Barroco não ocorreu apenas em Minas Gerais, mas também na Bahia, em Pernambuco, no Rio de Janeiro e no Mato Grosso. Contudo, esses dois artistas são bons exemplos para compreender a fusão entre arte popular e cultura. Antônio Francisco Lisboa, que, segundo Pedrosa (2015a), passou à história sob o apelido carinhoso e triste de “O Aleijadinho”, é um dos artistas brasileiros mais conhecidos. Temos contato com suas obras desde o tempo de escola. A relação que acabamos tendo com ele e com Mestre Ataíde vai além da preocupação com a história da arte. Nem sempre temos certeza sobre a autoria de algumas obras ou dados biográficos acerca dos dois artistas, mas as informações sobrevivem há décadas, muitas vezes, transmitidas pela tradição oral e estudadas por tantos especialistas que nos perguntamos sobre as razões da sobrevi- vência em nossa memória coletiva. Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira explica que há raízes profundas na psicologia do povo brasileiro, em um sentido de identidade nacio- nal com esses artistas de origem afro-brasileira, que se transformaram em “representantes autênticos da originalidade de uma cultura com apenas quatro séculos de existência e moldados por parâmetros euro- peus, essencialmente portugueses em suas origens” (OLIVEIRA, 1988, p. 55). Filho de Isabel, escravizada, e do português Manuel Francisco Lisboa, a formação artística de Antônio Francisco aconteceu por meio do pai, que era arquiteto e mestre de obras. Conviveu também com outros artistas em Vila Rica (Ouro Preto). Pode-se dizer que não era um autodidata, no sentido que se dá à palavra: alguém que se instrui sem a ajuda de um mestre. Desde menino ele acompanhou os artistas da cidade e, em 1766, com apenas 28 anos fez o primeiro projeto da Igreja da Ordem Terceira de São Francisco, em Ouro Preto. Foi, portanto, reconhecido ainda jo- vem como importante artista. Esculpiu também o retábulo, a estrutura ornamental que está no altar dessa Igreja. rocharibeiro/Shutterstock Figura 6 Igreja de São Francisco de Assis (projeto de 1766) Ouro Preto, MG. Aleijadinho Os primeiros projetos de Aleijadinho são de 1766. Ele terminou de entalhar o retábulo em 1794. Portanto, passaram-se muitos anos até a igreja de São Francisco ficar pronta. Todo o conjunto da fachada, incluindo o medalhão, foi executado em pedra- -sabão, material que o artista introduziu na arquitetura e usava com precisão. A pedra-sabão é uma rocha de baixa dureza encontrada na região de Ouro Preto. OSTILL is Franck Cam hi/Shutterstock 104 Estética e história da arte Aspectos da cultura popular brasileira 105 É possível perceber que Antônio Francisco atuou como arquiteto e escultor, ora trabalhando com pedra, ora com madeira. Pensava em praticamente tudo, esculpindo até os pequenos detalhes decora- tivos. Nas palavras de Martins e Kok (2015, p. 61), Antônio Francisco conseguiu “integrar, no seu fazer e no seu pensar, as diversas solu- ções de cada meio”. A Igreja de São Francisco é um bom exemplo das soluções estéticas do artista: as duas torres arredondadas estão recuadas, e as janelas estão para os lados. Ao observar o desenho da porta e a decoração em pedra-sabão que a envolve, percebe-se que o artista criou um conjunto inseparável entre a porta, a guirlanda de flores e o medalhão arredondado, no qual esculpiu uma cena da vida de São Francisco. Outra solução criativa foi projetar a Igreja como um octógono e não um retângulo. Martins e Kok (2015, p. 62) afirmam que foi nesse espaço “que se produziu um dos encontros mais be- los da arte brasileira”. Eles se referem ao teto da Igreja, pintado por Mestre Ataíde. ATAÍDE, Manuel da Costa. Pintura do teto da Igreja de São Francisco (1804-1807). Óleo sobre madeira. Ouro Preto, MG. T photography/Shutterstock Manuel da Costa Ataíde, o Mestre Ataíde, nas- ceu em Mariana, importante cidade produtora de ouro do século XVIII, próxima de Ouro Preto. Sua obra mais conhecida é a pintura do teto da Igreja de São Francisco. Mestre Ataíde pintou Nossa Senhora e os an- jos sobre as tábuas de madeira do teto e usou a perspectiva para provocar a ilusão de que o teto está aberto e olhamos para o céu. As quatro colunas re- forçam essa sensação. No livro Lição de Coisas, do poeta Carlos Drummond de Andrade, publicado em 1962, há um poema cha- mado Ataíde. Nele, há referências ao pai do artista, que era militar. Mestre Ataíde tentou seguir a mes- ma carreira, mas acabou tendo orientações artísticas. Isso ocorreu da forma como se fazia na época: entrou como aprendiz na oficina de um pintor mais velho. O poeta também faz referências a Antônio Francisco. Vejamos na página seguinte alguns trechos do poema de Drummond (2006, p. 478-479): 106 Estética e história da arte […] O rumo fora traçado. Pintaríeis outras tábuas de outros tetos ou mais precisamente romperíeis o forro para a conversação radiante com Deus. […] mano a mano com o mestre mais velho Antônio Francisco Lisboa e porque viveis os dois em comum o ato da imaginação […] e manifestais a arte de dois na unidade de criação, bato continência em vossa admiração. ColorMaker/Shutterstock Drummond diz que Mestre Ataíde derramou sobre nós “no azul-es- paço/ do teatro barroco do céu/ o louvor cristalino coral orquestral dos serafins/ à Senhora Nossa e dos Anjos” (2006, p. 478). Por tudo isso, Mestre Ataíde é considerado um dos grandes pintores do período colo- nial e o principal representante do barroco-rococó. O rococó é visto como um estilo desviante, porém, continuador do barroco, uma tendência artística autônoma. As características funda- mentais do rococó são um certo rebuscamento – porém, com mais de- licadeza – e um clima mais intimista que o barroco. A palavra rococó é derivada da palavra francesa rocaille, tipo de decoração de jardins, na qual se usava conchas, pedras etc. Bazin (1993) explica que a pala- vra rococó era usada por marceneiros franceses do século XVIII para qualificar formas sinuosas e ornamentais dos móveis do rei Luís XV. É possível observar o estilo rococó na arquitetura, com motivos deco- rativos ondulados e desenhos ornamentais irregulares. Mestre Ataíde utiliza ornamentos com muitas curvas, que provocam efeitos ilusórios, “eliminando” o limite do teto. De acordo com Martins e Kok (2015) e Enock Sacramento (2000), para pintar Nossa Senhora, Mestre Ataíde teve como modelo sua companheira de origem afro-brasileira Maria do Carmo. Ele também usou seus filhos e pessoas próximas para criar os anjos que a rodeiam, o que explicaria as feições afro-brasileiras das personagens do teto da Igreja São Francisco e reforça os comentários de Gombrich (2013) sobre a inclinaçãodos pintores do estilo rococó de se voltarem para pessoas comuns de seu tempo. Conta-se que Mestre Ataíde de- senhava no chão, em um papel do tamanho do tema que iria pintar. Do andaime, ele conse- guia visualizar a perspectiva, do mesmo modo que o espectador visualizaria do chão. As linhas do desenho no papel eram furadas e serviam para marcar o forro com pó de sapato, uma espécie de fuligem produzida pela queima de resinas vegetais. O artista colava esse papel no teto e soprava ou esfregava o pó nos buracos. Depois que o papel era retirado, restavam linhas pontilhadas no forro, que o auxiliariam na pintura. Esse procedimento, chamado espolvo, é antigo e ainda continua sendo utilizado (TOLEDO, 1983). Curiosidade Aspectos da cultura popular brasileira 107 O conjunto artístico criado por Antônio Francisco e Mestre Ataíde, junto ao grande número de colaboradores e ajudantes, retrata a asso- ciação de um dos grupos mais importantes de artistas do século XVIII. É uma feliz associação entre arquitetura, pintura e escultura. Não se pode esquecer o retábulo da Igreja, totalmente realizado por Antônio Francisco, e que provoca uma experiência estética cheia de surpresas, tal qual o céu de Mestre Ataíde. Roberto Conduru (2007) questiona: o que é efetivamente africano nesses artistas [como Antônio Francisco e Mestre Ataíde], considera- dos criadores dos pontos mais altos da arte no Brasil e iniciadores da arte brasileira? O autor explica que as religiões afro-brasileiras têm des- taque na constituição da arte afro-brasileira, pois formam o elo com as culturas africanas. Para ele (2007), a dimensão estética é constitutiva dessas religiões. É por causa disso que a plasticidade, presente na esté- tica das religiões afro-brasileiras, conecta-se às artes visuais e a outros aspectos da cultura e da arte brasileiras, como a música e a culinária, ainda que uma parte da cultura daquelas religiões seja acessível ape- nas para os praticantes. 5.3 A arte brasileira Vídeo A primeira arte que tivemos no Brasil, diz Pedrosa (2015a) foi a barroca, ou seja, a arte mais avançada que se fazia na Europa naquele momento. Percebe-se que o autor preferiu escrever “primeira arte” e não “primeiro gênero artístico brasileiro”. Ele se refere especificamente à arte moldada nos valores artísticos portugueses, pois sabia que já tínhamos a arte indígena, com toda sua força criativa e cromática, e a arte afro-brasileira com uma rica cultura associada. Para Mariano Carneiro da Cunha (1983, p. 1018), é “mais do que provável” que Antônio Francisco Lisboa tenha mantido contato com a arte popular de seu tempo, na qual estão presentes alguns cânones africanos, como a desproporção intencional da cabeça. Nesse senti- do, ele concorda com a análise de Mário de Andrade: na concepção plástica de Antônio Francisco, haveria um sentido deformador que se- ria constituinte de sua obra. Para Andrade (1984), Antônio Francisco manifesta a tendência de deformar as figuras, aumentando a cabeça, demonstrando intenção expressionista para tornar as imagens mais 108 Estética e história da arte assombradas. Andrade (1984, p. 40) utiliza vários adjetivos: “E vivendo no Barroco e o expressando, ele vai além das lições barrocas que pre- senciava, o seu tipo de igreja é dum sentimento renascente”; ou seja, Antônio Francisco não é apenas barroco, mas também renascentista. “E na escultura ele é toda uma história da arte”, escreve. É também bizantino, gótico, renascentista, expressionista e realista. O exagero de Mário de Andrade tinha por objetivo mostrá-lo como o primeiro gê- nio artístico brasileiro. “É a solução brasileira da colônia”, ele diz (1984, p. 41), aquele que abrasileirou o que era português. Para Mário de Andrade, Antônio Francisco se torna expressionista após os primeiros sintomas de sua doença. Ocorre, segundo ele, uma mudança na forma de o artista representar suas personagens; elas adquirem um caráter expressivo. Qual era, afinal, essa doença? Segundo Germain Bazin (1971, p. 102), Antônio Francisco ficou doente aos 39 anos. Não se tem certeza sobre o que o acometeu, somente as consequências: perdeu os dedos dos pés, e os dedos das mãos se atrofiaram. Andava de joelhos e sentia muita dor. Seus instrumentos de trabalho precisaram ser adaptados por seus ajudan- tes e é provável que fossem amarrados em suas mãos. Daí em diante, Antônio Francisco ganhou o apelido de “Aleijadinho”. De olho na arte Ri ca rd o Jn dr J Fr an tJ /ik im ed ia C om m on s LISBOA, Antônio Francisco “Aleijadinho”. O Cristo do Carregamento da Cruz (detalhe). Via Crucis do Santuário de Congonhas, MG. Os arroubos de Mário de Andrade tinham um motivo: além de pen- sar em uma estética nacional, ele também estava envolvido com as teorias do expressionismo, como aponta Tadeu Chiarelli (2007), que passou a estudar desde a exposição de Anita Malfatti, em 1917. É im- portante lembrar que os artistas do expressionismo “deformavam” a figura pintada para chegar a uma expressividade que consideravam próxima do real. Mário de Andrade utilizou a noção de deformação ex- pressiva para analisar a obra de Antônio Francisco. Uma das conclusões possíveis sobre as análises de Andrade é que o caminho da arte moder- na brasileira é o expressionismo, pois nele há a possibilidade de lidar com o real. Mário de Andrade e Mário Pedrosa foram importantes intérpretes da arte brasileira. Como teóricos e críticos – além de poeta e escritor, no caso de Andrade – tiveram a oportuni- dade de exercer a crítica de arte regularmente, o que contribuiu para o diálogo que tiveram com artistas e espectadores. Ambos tentaram, com suas ideias, difundir a importância do movimento modernista (Andrade) e da arte abstrata (Pedrosa). Isso não significa que procuraram propagar os princípios estéticos nos quais acreditavam, mas, ao refletirem quase diariamente sobre a arte brasileira, iluminaram aspectos formais e sociais determinantes para a produção artística de uma grande parte do século XX. Saiba mais Aspectos da cultura popular brasileira 109 Mário de Andrade ficou impressionado com um conjunto de escul- turas que está no Santuário do Bom Jesus de Matosinhos, na cidade de Congonhas, a sessenta quilômetros de Ouro Preto. Na entrada do San- tuário, estão os doze profetas esculpidos em pedra-sabão. Chamou a atenção de Andrade um conjunto de sessenta e quatro imagens que estão no interior do Santuário, esculpidas em madeira por Antônio Francisco e pintadas por Mestre Ataíde. A tradição portuguesa de deco- rar o espaço interno das igrejas com esculturas foi incorporada pela arte colonial brasileira. O exemplo mais significativo dessa tradição são os Passos da Paixão, do Santuário de Congonhas, esculpidos por Antônio Francisco e seu grupo de artistas colaboradores. Não foi por acaso que Mário de Andrade destacou as imagens de Cristo, que Antônio Francisco representou em cada momento percorrido até a Crucificação. O artista conseguiu retratar o sofrimento e a dor com talento, sensibilidade e compaixão. Não é o Cristo reflexivo dos renascentistas, é o Cristo sofri- do do barroco. Bazin (1971, p. 271) explica que o cristianismo “propunha aos artis- tas um conceito de Deus, onde as duas naturezas, a humana e a divina, se unissem essencialmente”. Antônio Francisco, doente, conseguiu rea- lizar a proeza de criar uma obra sublime, evocando as duas naturezas pedidas por aqueles que o contrataram. Ele e Mestre Ataíde criaram uma arte em que pintura e escultura se completam. Há mais de duzen- tos anos, portanto, dedicamo-nos a criar a arte brasileira. O que isso, de fato, significa? an ac otr in/ Sh utt ers toc k LISBOA, Antônio Francisco “Aleijadinho”. Cristo Ultrajado (1796-1799). Madeira policromada. Via Crucis do Santuário de Congonhas, MG. 110 Estética e história da arte Aqui está uma das questões centrais para o modernismo de Mário de Andrade: a arte que imitava movimentos estéticosda Europa. Na confe- rência batizada como O movimento modernista, ocorrida em 30 de abril de 1942, na Casa do Estudante do Brasil (RJ), o escritor reclama das cópias da arte europeia sem qualquer fundamento na cultura popular. Mário de Andrade lembra, porém, que era possível encontrar as bases humana e popular das pesquisas estéticas no Romantismo (1974, p. 250). Essas bases poderiam também ser encontradas nos movimentos modernistas, como no cubismo e no expressionismo. Andrade lembra a importância da arte africana para o cubismo de Picasso e explica que os diversos mo- vimentos (no sentido de existirem muitos: expressionismo, cubismo, da- daísmo etc.) representam o melhor do modernismo, pois permitem uma postura antiacadêmica nas pesquisas estéticas sobre seus artistas. Esta crítica ao academicismo é outra das questões centrais do mo- dernismo. Com a transferência da família real portuguesa para o Brasil em 1808, uma série de transformações ocorreu na colônia. O Rio de Janeiro foi transformado em capital do Império português e passou por transformações, incluindo a criação de uma Academia de Belas Artes. Figura 7 Pórtico central da Academia Imperial de Belas Artes O prédio da Academia foi projetado pelo arquiteto da Missão, Grandjean de Montigny, e foi demolido em 1937. Apenas seu pórtico central foi preservado e transferido para o Jardim Botânico, onde se encontra atualmente. Da rc íli a R Jo rd ão /W ik im Jd ia C om m on s Em 1816, chegou ao Brasil a Missão Francesa, com o objetivo de criar um sistema artístico, ten- do como base o ensino da arte como era praticado pela Academia de Belas Artes de Paris. Os moder- nistas criticavam este sistema, pois partia do mode- lo de arte estrangeira. Em 1826, o principal objetivo da Missão foi cumprido: a fundação da Academia Imperial de Belas Artes. O ensino da arte passou a ser formal. Lembre-se que as academias foram cria- das na Europa tendo como regra a compreensão do belo ideal. Todo sistema acadêmico passou a ser criticado pelos modernistas: o belo ideal, os te- mas considerados nobres (como temas históricos), o ensino radical do desenho (os alunos passavam os primeiros anos apenas aprendendo desenho), o privilégio da pintura a óleo e o uso do mármore e do bronze etc. E a madeira dos barrocos brasilei- ros?, perguntavam os modernistas. Aspectos da cultura popular brasileira 111 W ik im Jd ia C om m on s DEBRET, Jean-Baptiste. Desembarque da imperatriz Leopoldina (1817). Óleo sobre tela, 44,5 x 69,5 cm. Museu Nacional de Belas Artes, RJ. Debret, artista viajante, retratou o país ao registrar sua fauna, sua flora e, principalmente, seus costumes e sua população. Registrou, também, em desenhos e aquarelas, a população indígena e o cotidiano do Rio de Janeiro. O artista é pouco lembrado como pintor da corte e professor de Pintura Histórica da Academia de Belas Artes. É importante destacar que as críticas ao academicismo estão basea- das na historiografia escrita por modernistas, que precisaram, como é o caso de Mário de Andrade, polarizar a questão para a afirmar uma nova estética. Uma boa definição de academicismo é a seguinte: “um conjunto de normas para a formação e a produção artísticas, que pre- tendiam ser eternas e universais” (PEREIRA, 2008, p. 17). Portanto, o academicismo não era um estilo artístico, mas uma postura que ele- vava os valores tradicionais da arte, principalmente os valores conti- dos nas obras dos grandes mestres italianos. Durante muitos anos, o conflito entre acadêmicos e modernos foi alimentado pelos dois lados. Não há como negar a expansão dos ideais estéticos da Academia no século XIX. Na pintura, escultura e arquitetura, valorizavam-se a si- metria e a harmonia da composição. É um período em que a Academia incorpora as ideias românticas e as grandes pinturas históricas. Os ro- mânticos introduziram o indianismo, que considerava o indígena como herói da identidade brasileira. A natureza é um dos aspectos mais valo- rizados pelos românticos brasileiros e europeus. Todos estavam envol- vidos na criação de um imaginário brasileiro; a jovem nação precisava de símbolos e os temas nacionais eram os ideais. Há dois exemplos 112 Estética e história da arte fortes desse momento: Víctor Meireles (1832-1903) e Pedro Américo (1842-1905). Perceba a monumentalidade das obras. W ik im Jd ia C om m on s MEIRELES, Victor. Moema (1866). Óleo sobre tela, 129 x 190 cm. Museu de Arte de São Paulo – MASP. W ik im Jd ia C om m on s AMÉRICO, Pedro. Independência ou Morte (1888). Óleo sobre tela. 415 x 760 cm. Museu Paulista, São Paulo. A passagem do século XIX para o XX é marcada pelo rápido cresci- mento de São Paulo e de outras cidades brasileiras. O café se tornava a base econômica do país. É nesse contexto que ocorreram as demandas por novas pesquisas estéticas, conforme descreveu Mário de Andrade. Retornamos, portanto, ao seu artigo sobre o movimento modernista. Aspectos da cultura popular brasileira 113 Andrade define pesquisa estética e a considera diferente da arte. A pesquisa lida com as formas, a técnica e as representações do belo; já a arte é mais complexa, “tem uma funcionalidade social, é uma profissão e uma força interessada na vida” (ANDRADE, 1974, p. 251-252). É preci- so pensar no momento histórico em que a conferência de Andrade foi escrita (em 1942) para compreender sua preocupação com a função da arte. Ocorria a Segunda Grande Guerra na Europa, que também en- volveu países de outros continentes, como o Brasil. Após o torpedea- mento de navios brasileiros e manifestações do povo nas ruas, o país declarou guerra à Alemanha e Itália. Também, começaram, ainda de forma sutil, os pedidos por demo- cracia no Brasil. Por isso, um pouco antes (1974), o poeta dissera que o artista brasileiro se via diante de uma “verdade social”, uma liberdade (ainda que só estética), uma independência e um direito à pesquisa que os modernistas da Semana de 1922 não tiveram. Ainda que haja exagero e propaganda sobre o movimento que encabeçou, as ideias contidas em sua conferência mostram um Mário de Andrade atento às transformações que ocorriam no Brasil e no mundo. Seria difícil para um artista esquecer as circunstâncias traumáticas daquele momento. Sendo assim, talvez, suas preocupações fossem mais sociais e menos estéticas. Andrade faz outra distinção, dessa vez entre o assunto e a inteligência estética, expressão utilizada por ele. O escritor afirma que o assunto não tem importância para a inteligência estética, que está mais preocupada com o prazer da beleza. O assunto é diferente, repre- senta uma mensagem a que não se pode renunciar. Percebe-se que a preocupação com o assunto e o uso de termos como mensagem, o transformaram em um pensador social da arte. O contraponto será Mário Pedrosa, preocupado também com aspectos sociais, mas volta- do, principalmente, para questões formais e perceptivas. Após o incêndio que destruiu quase todo o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, em 1978, foi criado um grupo para organizar sua reconstrução. Em uma reunião desse grupo, o crítico de arte Mário Pedrosa (1995) sugeriu uma nova estrutura com cinco museus inde- pendentes: o Museu do Índio, o Museu da Arte Virgem (do Inconscien- te), o Museu de Arte Moderna, o Museu do Negro e o Museu de Artes Populares. Como a arte moderna se inspirou na arte dos povos periféricos, Pedrosa explicou que o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro de- veria apresentar a arte que há em grande quantidade no Brasil. Assim, uma grande parte do Museu de Arte Moderna seria dedicada à arte brasileira. As artes indígena, afro-brasileira, dos pacientes psiquiátricos – que Pedrosa chama de arte virgem –, além das artes moderna e po- pular, seriam representadas em uma única denominação, que juntaria todas as vertentes artístico-culturais, chamada arte brasileira. A postura de Mário Pedrosa em relação ao Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro é uma introduçãoa suas ideias. Outro texto dele foi Arte, necessidade vital, que é também uma conferência e foi pronunciada em razão da exposição de pinturas dos pacientes do Centro Psiquiátrico Nacional, no Rio de Janeiro, em 1947. Estes eram atendidos pela Dra. Nise da Silveira (1905-1999), médica psiquiatra que fundou o Museu de Imagens do Inconsciente, composto por trabalhos de pintura e modela- gem de seus pacientes. No início, Pedrosa (2015b) mostra a dificuldade do mundo em saber o que é arte. Seguimos ainda os cânones codificados desde a Renascença, como a imitação da natureza e a representação da reali- dade. Esses critérios, ele explica, são utilizados até hoje. A mesma in- compreensão que há diante da arte moderna ocorre com as obras dos pacientes do Centro Psiquiátrico. A atividade artística, para Pedrosa (2015b), estende-se a todos os seres humanos, e vontade artística se manifesta em todos nós. O crítico lembra que o conceito de arte moder- na era “a redescoberta do sentimento artístico na sua pureza, tão translúcida da obra dos anô- nimos artistas primitivos” (PEDROSA, 2015b, p. 52). Por que, então, colocar barreiras nesse espaço especial que Pedrosa chama de “mundo encantado das formas”? (idem, p. 66). É um espaço sem dono, pois é comum a todos os homens, indistintamente. O filme Nise: o coração da loucura é baseado na experiência da médica Nise da Silveira, pioneira no uso da arte como forma de terapia. Glória Pires interpreta a perso- nagem principal. Mário Pedrosa é também uma das personagens do filme e aparece explicando a exposição de 1947. Direção: Roberto Berliner. Brasil: 2016. Filme Arthur Bispo do Rosário (1911-1989) não foi paciente da Dra. Nise da Silveira, pois esteve internado na Colônia Juliano Moreira, onde viveu desde 1938. Na década de 60, começou a criar obras com o que tinha à disposição: madeiras, canecas, garrafas etc. Com fios, que desfiava de sua própria roupa, fez estandartes, faixas e fardões. Estes foram expostos em sua sala na 55ª Bienal de Veneza, em 2013. Figura 8 Obra de Arthur Bispo do Rosário exposta na 55ª Bienal de Veneza SunOfErat/WikimJd ia Commons Estética e história da arte114 Aspectos da cultura popular brasileira 115 Nesse sentido, as classificações empreendidas neste livro não possuem um caráter excludente, e sim didático. Chamar uma obra de naïf pode sig- nificar alguma coisa para alguém, mas também pode significar absoluta- mente nada. Sendo assim, a arte é o que importa, não o seu nome. Afinal, todos podem sentir prazer em fazer arte, sem nenhuma preocupação, movidos apenas pelo prazer de construir algo. O ideal é que essa cons- trução seja chamada de arte, simplesmente, sem nenhum outro tipo de acompanhamento classificatório. As obras da exposição dos pacientes do Centro Psiquiátrico Nacional, interpretadas por Pedrosa, podem também ser incluídas no compartimento dedicado à arte brasileira. Naquela reunião de 1978, Pedrosa tinha o desejo de contribuir com ideias para a reconstrução de um acervo que tinha desaparecido. Ao su- gerir que o novo Museu de Arte Moderna apresentasse tudo de repre- sentativo na arte brasileira, que batizou de Museu das Origens, Pedrosa explicou o que entendia por arte brasileira. Não é difícil compreender que sua definição é ampla o suficiente para que caibam as muitas mani- festações das quais somos capazes. Isso define, ainda de modo aberto e propositadamente inconclusivo, o que é arte e o que é arte brasileira. Ao escrever, em 1949, sobre a comemoração dos cem anos de nascimento de Paul Gauguin, Mário Pedrosa (2015b) afirmou que ne- nhum pintor teve tanta influência sobre os artistas que vieram depois. Cézanne iniciou a reação antinaturalista, mas, ainda assim, utilizou o espaço renascentista com a perspectiva. Gauguin rompe completa- mente com a reprodução da realidade externa, pois estava preocupa- do com suas ideias e emoções subjetivas. Pedrosa não deixa de citar que esse movimento radical tenha partido de um artista que fugiu de Paris. Além disso, era um artista que usava arbitrariamente as cores. O crítico (2015b, p. 103) cita uma carta a Van Gogh, em que o aconselha- va a não copiar: “A arte é uma abstração”. Foi com Gauguin, segundo Pedrosa (2015b), que as culturas primitivas começaram a influenciar a arte europeia; e foi com a estética de Gauguin que os horizontes dessa cultura foram ampliados. Pode-se dizer o mesmo de Antônio Francisco e o interesse que despertou nos artistas modernistas. Em 1924, um grupo de artistas paulistas faz uma caravana às cidades históricas de Minas Gerais. Entre os viajantes estavam Mário de Andrade, Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade. Essa excursão foi relatada pelos modernistas como uma “redescoberta” do Brasil. Mário de Andrade fez três viagens a Minas: em 1917, foi visitar um amigo em Mariana; em 1924, 116 Estética e história da arte foi com a caravana modernista, quando conheceu as obras de Antônio Francisco e Mestre Ataíde; e, em 1939, fez a terceira viagem, momento no qual os estudantes da Universidade de Minas Gerais o convidaram para fazer conferências em Belo Horizonte. A “redescoberta” do país durante a viagem também influenciou a pintura de Tarsila do Amaral. Em crônica de 1939, a artista relembra que passou para suas telas as cores que encontrou em Minas: azul puríssimo, rosa violáceo, amarelo vivo e verde cantante. Passou a fazer uma pintura lim- pa, “sem medo de cânones convencionais” (AMARAL, 2008, p. 720). Quatro anos depois, viria o Manifesto An- tropofágico, escrito por Oswald de Andrade e que teve início a partir do quadro Abaporu (do tupi: “aquele que come gente”), tela que Tarsila pintou em 1928. O manifesto é um exercício de raciocínio sobre o outro, isto é, sobre aqueles que moldaram nossa cultura, nossa arte e nossa identidade. Este outro é a representação do povo brasileiro. Oswald utilizou a alegoria de que somos um país que “devora” várias culturas. Pode não parecer novo hoje em dia, mas a ideia de um povo antropófago, que “come” a cultu- ra europeia e a recria, é inventiva até hoje. É como se Oswald utilizasse a palavra globalização, que não existia, mas que poderia ter sido inventada por nós, brasileiros. Não foi à toa que o barroco-rococó de Antônio Francisco e Mestre Ataíde chamou a aten- ção do grupo de Oswald em 1924 e continua a nos impressionar até hoje. Figura 9 Manifesto Antropófago. Revista de Antropofagia, ano I, n. 1, maio de 1928 W ik im ed ia C om m on s CONSIDERAÇÕES FINAIS Há um grupo grande de intérpretes do Brasil. Apenas neste capítulo foram citados Darcy Ribeiro, Gilberto Freyre, Mário de Andrade e Mário Pedrosa, sem contar Oswald de Andrade, de quem tratamos brevemen- te. Entretanto, vale a pena falar dele um pouco mais nestas considerações finais. Em seu livro Pau-Brasil (1924) escreveu um poema chamado Falação, longo e com linguagem diferente de outros poemas do livro, que eram cur- tos e sintéticos. O título é uma ironia com ele mesmo. Oswald fala de uma nova arte brasileira, mas poderia falar também de um novo Brasil, com so- Aspectos da cultura popular brasileira 117 luções simples e inventivas. Pregava uma arte brasileira menos eloquente e sem tanta “falação”. Tarsila do Amaral buscou o mesmo objetivo: seus quadros se tornaram cada vez mais sintéticos. Mário de Andrade preferia uma arte figurativa, de cunho expressionista, que poderia retratar melhor o Brasil. Mário Pedrosa definia a arte como o exercício experimental da li- berdade, fascinado pelas pesquisas artísticas que ocorreram por meio do abstracionismo. Pedrosa apreciava as pesquisas formais, mas havia nessa apreciação um valor crucial para ele: a liberdade. Foi tentando analisar esse aspecto que Pedrosa apresentou sua definição de arte. Ele demonstra que as teorias dialogam e completam-se. Esse é o horizonte relacional e dialógi- co de todo pesquisador da arte. ATIVIDADES 1. Defina a palavra sincretismo em seus aspectos religioso,filosófico e antropológico. 2. Explique a afirmação de Darcy Ribeiro sobre o gesto de criatividade autêntico de um artista. 3. Quais são as diferenças entre a pesquisa estética e a arte, segundo Mário de Andrade? REFERÊNCIAS AMARAL, T. Pintura Pau-Brasil e Antropofagia. Publicado originalmente na RASM – Revista Anual do Salão de Maio. 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Durante o século XVIII, ocorreram transformações na Europa a partir de revoluções que alteraram os sistemas políticos e as relações sociais de diversos países. Paralelamente, ocorreram mudanças na relação entre obras de arte e o público. Naquele período, surgiu a estética como disciplina autônoma, os salões de arte e o primeiro museu, o Louvre. Se antes a obra de arte ficava restrita à contemplação de poucos contratantes dos artistas, como a aristocracia e o clero, agora a obra estava visível nos salões de arte e nos emergentes museus. 3. Você poderá responder a esta pergunta de várias formas. Ela é propositadamente aberta e será considerada a defesa que fará de sua posição. Se concorda que há critérios objetivos para nossos julgamentos, explique que os objetos são constituídos de aspectos próprios, como proporção ou simetria, que determinam nosso apreço. Se acha que o gosto é subjetivo, explique que ele é determinado apenas pela nossa sensibilidade e não por critérios objetivos, como aqueles citados acima. Se você prefere o “caminho do meio”, reflita sobre o belo normativo, aquele que está no objeto que segue padrões de harmonia e equilíbrio que nos agrada. Reflita também sobre aspectos subjetivos, como os sentidos, que definem nosso agrado e nosso desagrado. 2 Evolução histórica da estética 1. O artista criará o corpo da figura pintada ou esculpida, tendo a cabeça como medida para a altura. Esse corpo terá a medida de sete cabeças. 2. Espaço renascentista refere-se ao resultado da utilização de técnicas que permitem ao artista criar a sensação de ilusão, como a perspectiva, que possibilita criar uma imagem próxima da realidade. O quadro na parede parecia uma janela aberta, por causa da sensação de profundidade obtida através da perspectiva. 120 Estética e história da arte 3. a) finalidade de aproximar o homem de Deus; b) figuras sem corporeidade; c) bidimensionalidade; d) as figuras não sugerem movimento; e) as cores possuem finalidades simbólicas. 3 A arte nas diferentes culturas 1. A palavra cultura, conforme o dicionário, é o conjunto de padrões de comportamentos, crenças, conhecimentos, costumes etc. que distinguem um grupo social. O antropólogo Edward Tylor, em 1871, definiu pela primeira vez a palavra cultura: ela inclui conhecimentos, arte, moral, leis, costumes e hábitos que adquirimos como membros de um grupo. 2. Segundo Teixeira Coelho, os objetos utilitários podem ser vistos como documentos, pois podem comunicar algo sobre quem os produziu e qual a razão de tê-los produzido. Por isso, eles se encaixam na categoria de objetos culturais. A questão é que tais objetos podem também ser apreciados como arte quando expostos em museus. Neste caso, eles passam a não ter utilidade específica, transformando-se em objetos de contemplação destinados à fruição estética. Ou seja, transformam-se em objetos artísticos. 3. Formatividade é um modo de fazer que, enquanto se faz, inventa-se o modo de fazer. Produção e invenção ocorrem simultaneamente. Segundo o próprio Pareyson (1984, p. 32), a arte é um “fazer que, enquanto faz, inventa o por fazer e o modo do fazer”. 4 O conceito de manifestação cultural 1. As manifestações culturais revelam características da cultura de um determinado grupo. Um exemplo de manifestação cultural de um grupo é a arte. Porém, as manifestações são variadas: além da arte, há as investigações filosóficas, as crenças religiosas, as faculdades morais, a justiça etc. É útil lembrar que cultura pode ser definida como o conjunto de comportamentos, crenças, conhecimentos – entre outros aspectos – de um grupo. Portanto, a arte é uma manifestação do conjunto de comportamentos, crenças, conhecimentos, entre outros, de um grupo. 2. Além das próprias obras, os pesquisadores valorizam também outros documentos, como cartas, diários, bilhetes, fotografias, filmes, entre outros. Eles ajudam a dar sentido às obras estudadas, e a iluminar Gabarito 121 detalhes que passam despercebidos. Por isso, a organização, a classificação e a conservação desses documentos são importantes. 3. Cultura popular é a manifestação cultural de um determinado grupo, o povo, que pode ser definido como o conjunto de pessoas que vivem em uma comunidade, falam a mesma língua, têm interesses, histórias e tradições em comum. Portanto, que compartilham a mesma cultura. 5 Aspectos da cultura popular brasileira 1. A palavra sincretismo é utilizada em diversas áreas do conhecimento. Do ponto de vista religioso, ela se refere à possibilidade de reunião de doutrinas diferentes; na filosofia, remete à síntese de visões de mundo diferentes; na antropologia,refere-se à combinação de elementos de várias culturas. 2. Para Darcy Ribeiro, um gesto de criatividade autêntico só terá validade se for uma contribuição às criações da civilização a que pertencemos, ou seja, se for significativo para nós e para outros povos. Por isso, ele cita dois exemplos que considera atos maduros da criatividade dos brasileiros e contribuições para todos os povos: Ouro Preto no século XVIII e Brasília no século XX. 3. Mário de Andrade define pesquisa estética como a área do saber que trata das formas, da técnica e das representações do belo. A arte é diferente, ela tem uma funcionalidade social e uma força interessada na vida. Arte é também uma profissão. E s t é t i c a e H i s t ó r i a d a A r t e J o ã o C o v i e l l o Código Logístico 59304 Fundação Biblioteca Nacional ISBN 978-85-387-6612-4 9 7 8 8 5 3 8 7 6 6 1 2 4 Página em branco Página em branco