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Literatura e ensino Comitê Editorial Ana Guedes (Unicamp) Carla Lynn Reichmann (UFPB) Clécio Buzen (UFPE) Dora Riestra (Universidad Nacional de Rio Negro) Florencia Miranda (Universidade Nacional do Rosário) Francine Cicurel (Sorbonne Nouvelle Paris 3) Ecaterine Bulea-Bronckart (Université de Genève) Eulália Leurquin (UFC) Jean-Paul Bronckart (Université de Genève) Jean-Remi Lapaire (Université Bordeaux Montaigne) Joaquim Dolz (Université de Genève) Juliana Alves Assis (PUC/Minas) Luzia Bueno (Universidade de São Francisco) Maria Ângela Paulino Teixeira Lopes (PUC/Minas) Maria Antónia Coutinho (Universidade Nova de Lisboa) Pierre-Yves Testenoire (Université Sorbonne) Roxane Gagnon (Université de Genève) eulália Leurquin Fernanda Coutinho (0rganizadoras) Literatura e ensino Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) ISBN 978-85-7591-560-8 Índices para catálogo sistemático: capa e gerência editorial: Vande Rotta Gomide preparação dos originais: Editora Mercado de Letras revisão final: dos autores DIREITOS RESERVADOS PARA A LÍNGUA PORTUGUESA: © MERCADO DE LETRAS® VR GOMIDE ME Rua João da Cruz e Souza, 53 Telefax: (19) 3241-7514 – CEP 13070-116 Campinas SP Brasil www.mercado-de-letras.com.br livros@mercado-de-letras.com.br 1a edição 2019 IMPRESSÃO DIGITAL IMPRESSO NO BRASIL Esta obra está protegida pela Lei 9610/98. É proibida sua reprodução parcial ou total sem a autorização prévia do Editor. O infrator estará sujeito às penalidades previstas na Lei. suMÁrio APRESENTAçÃO Capítulo 1 DA LITERATURA COMO TRAVESSIA: É POSSÍVEL ENSINAR LITERATURA? Claudicélio Rodrigues da Silva Capítulo 2 FIGURAS DO OUTRO. LITERATURA COMPARADA E INTERCULTURALIDADE Graciela Cariello Capítulo 3 APONTAMENTOS PARA UMA RELEITURA DE O GUARANI: A MATRIZ FOLHETINESCA E AS TRADUçÕES FRANCESAS NO SÉCULO XIX Ilana Heineberg Capítulo 4 APONTAMENTOS COGNITIVOS PARA UMA DIDÁTICA DA LITERATURA José Leite de Oliveira Júnior Capítulo 5 HERÓIS E HEROÍNAS EM TERRAS DESCONHECIDAS: AS TRADIçÕES AFRICANAS EM NARRATIVAS INFANTIS E JUVENIS Maria Carolina Godoy Capítulo 6 A CRÔNICA. GÊNERO AMBÍGUO... MAS GENUINAMENTE LITERÁRIO Maria Emilia Vico Capítulo 7 O GÊNERO POÉTICO NO ENSINO DE LITERATURA Márcia Cabral da Silva 7 aPresentaÇÃo A presença da conjunção aditiva “e”, na constitui- ção do par Literatura e Ensino, pode parecer, a princípio, que a adição, por ela expressa, reúna, de fato, instâncias que guardam tal nível de semelhança entre si, que se tor- naria impertinente qualquer indagação sobre o fato de as palavras estarem juntas. Na realidade, impertinente seria aceitar como pací- fica essa convivência, uma vez que uma das questões que se colocam com relação à Literatura e às artes em geral possui um nítido contorno epistemológico: As expres- sões do mundo sensível são passíveis de serem transmiti- das? Ou, dito de outra forma: Será que não haveria bar- reiras quase intransponíveis entre o eu e o outro, quando estamos diante de conteúdos não matematizáveis? Assim, um ponto de inflexão face ao problema seria a própria abertura das artes, e da Literatura em par- ticular. Em outras palavras, a recepção é da ordem da transitividade, dependendo da circunstância de fruição do leitor, de suas vivências no universo da leitura, e até da memória do já-lido como material potencialmente acio- nável nos registros que se empilham ao longo da experi- ência de viver-ler. Portanto, o “e” não lembra (nem deve lembrar!) aos professores de Literatura uma condição de 8 conforto, como se não houvesse mais perguntas a serem respondidas e/ou formuladas. É nessa perspectiva que se entende a provocação de mais um livro sobre Literatura e Ensino, o qual busca refletir sobre esse ambiente de aprendizagem na univer- sidade e, principalmente, sobre sua potência de reper- cussão nas aulas de Literatura do Ensino Médio. Como afastar os futuros professores do papel de agenciadores de respostas prontas, indubitáveis, quando se sabe que a complexidade da Literatura tem um efeito de atração -repulsão que nos aproxima mais das perguntas, distan- ciando-nos, consequentemente, das formulações de teor eminentemente conclusivo. Os oito artigos que formam esta coletânea vêm ratificar a amplitude do binômio Li- teratura e Ensino, na medida em que encontram formas singulares de pensar a Literatura como matéria de diálogo e ainda de colocá-lo em movimento, por intermédio das atividades propostas na sequência de cada trabalho. Em Da literatura como travessia: é possível ensinar Lite- ratura?, Claudicélio Rodrigues parte do texto poético de Manoel de Barros – um “menino perguntador” sobre o mundo das palavras –, para mostrar que há necessidade de uma didática da invenção, que ressalte a beleza e a tensão do texto literário. Apontando as vivências próprias ao ofício de en- sinar, o articulista chama a atenção para questões como a opção por uma aposta conteudista, tendo por meta uni- camente uma educação de resultados. Sua proposta, em contrapartida, parte do princípio de que: Literatura se vive. E qualquer saber, não apenas o literário, deve partir da experiência, vivida ou imaginada, que se deve narrar/ler a fim de que de fato exista no campo artístico. Cada ato hu- mano é a literatura em potência, como flor bruta prestes a romper, como chuva prestes a desabar que, ou promove o caos ou fecunda o solo. 9 Suas reflexões são atravessadas pela de pensado- res da linguagem, da educação, e da leitura, a exemplo de Mikhail Bakthin, Paulo Freire, Jacques Rancière, Rubem Alves e Vincent Jouve, cujas palavras desenham não um diagrama com as de Fernando Pessoa – Alberto Caeiro – e Guimarães Rosa, uma vez que a complexidade que envolve a discussão demanda, mais que uma estrutura plana, uma tridimensional, pois em seu espaço ainda de- vem caber as “inconclusões”. Em Figuras do outro. Literatura Comparada e Intercul- turalidade, Graciela Cariello insere no debate a discussão sobre a formação de professores de língua estrangeira. Em um texto bastante assertivo, a pesquisadora relata uma experiência concreta, havida no curso de formação de Professores de Português da Universidade Nacional de Rosário, Argentina. Tomando como base, a tensão que reveste a convivência entre as noções de identidade e outridade, são apontadas as incompreensões existen- tes durante muito tempo face à linguagem literária e sua inclinação para o desvio, entendido erroneamente como menosprezo à normatividade gramatical. Em sua argu- mentação, Cariello prefere se encaminhar para a compre- ensão de que: A literatura nos faz inventores de mundos. Ela prova que as palavras têm uma potencialidade criativa só limitada pelas regras que a própria li- teratura gera, e que aprender uma outra língua é adquirir mais uma porção dessa potencialidade. A literatura oferece à nossa imaginação a mul- tiplicidade de vidas que uma língua descortina para os leitores. Todas as formas de uma língua, aquelas que vamos aprendendo e até mesmo as que alguma vez descobriremos falando sem sa- ber que sabíamos, estão potencialmente na lite- ratura dessa língua. Se estudarmos a literatura de 10 uma língua estrangeira, estaremos construindo um espaço de diálogo fecundo, que permitirá ver como e por que cada um de nós é os outros. Ilana Heidelbeg, por sua vez, parte da noção de recepção para colocar em relevo o processo de cristali- zação, que cerca determinadas obras literárias, trazendo- lhes uma pecha negativa e o consequente afastamento do público. Segundo ela, Peri e Ceci são personagens caros ao imaginário popular, mesmo tendo sido gerados nos tempos de nosso Romantismo. O carisma do par, no en- tanto, não retira do discurso sobre O Guarani a reprovação quanto ao “artificialismo, a emotividade e o nacionalismo ingênuo.” A autora acolhe a afirmação de Maria Cecília Boechat de que esta narrativa alencariana seria “herdeira de suaprimeira recepção crítica”. Fica então a indagação: os leitores de nossa contemporaneidade poderiam extrair prazer desse gênero de leitura? Uma forma de aborda- gem, que renderia novos trajetos de leitura seria adentrar as páginas de O Guarani por meio de sua “inserção na matriz folhetinesca e sua recepção em âmbito interna- cional através das traduções francesas que foram feitas deste texto ainda no século XIX”. Os leitores da atua- lidade precisariam, então, mergulhar na face trepidante do romance-folhetim, sua vocação para o emaranhado de aventuras, e, buscando, particularmente como o folhetim à brasileira foi delineado. Em suplemento, Heineberg in- forma que “ao estudar as traduções de O guarani para a língua francesa ainda no século XIX, percebe-se que o romance de Alencar suscitou interesse fora das frontei- ras nacionais, afinal possui três publicações em francês”. Essa afirmação vale como um convite ao leitor para se- guir essa trilha e verificar como os romances, para além da ficção, também têm uma história, podendo ela ser vir a ser empolgante para quem se debruça sobre a Literatura com a curiosidade e o apetite de um aficionado leitor de romances-folhetim. 11 Assumindo um tom bastante didático, o texto Apontamentos cognitivos para uma Didática da Literatura, de autoria do professor José Leite de Oliveira Júnior, tem uma proposta de defender a ideia de se ter uma didáti- ca de ensino da literatura que focalize o aspecto cogniti- vo do leitor. Segundo o autor, os estudos desenvolvidos nesse campo apresentam um foco maior na didática e na pedagogia, deixando de lado outra parte igualmente importante: o aluno. Faz uma crítica ao tipo de aula de literatura e, defende a ideia de que seria mais eficaz uma aula centrada na experimentação do próprio aluno e con- centrada na complexidade do texto literário. Em direção a uma descrição da aula de literatura, ele apresenta o pla- no de aula, explicando o papel de cada uma das etapas. Ancora-se em Bloom (1976) para tratar das categorias do domínio cognitivo e em seu percurso apoia-se em clássi- cos da literatura brasileira exemplificando cada categoria (conhecimento, compreensão, aplicação, análise, síntese e avaliação. O capítulo intitulado de Heróis e heroínas em terras desconhecidas: as tradições africanas em narrativas infantis e juve- nis, de autoria de Maria Carolina Godoy, traz em evidência a literatura afro-brasileira, em particular, para o público infantojuvenil. A autora convida o leitor a uma discus- são em torno desse tema e questiona por que a pouca publicação de obras literárias afro-brasileiras e também a pouca representatividade nos textos. No desenvolvimen- to de seus argumentos, ela aponta razões para o fato de as crianças e jovens terem pouco acesso a esse tipo de leitu- ra. Godoy faz uma revisão da literatura e apresenta, desde os precursores da literatura afro-brasileira até os autores atuais. Faz uma forte crítica ao fato de as narrativas des- tinadas ao Ensino Fundamental se remeterem, muitas vezes, à religiosidade de matriz africana ou retomarem a contos de diferentes países africanos. Outro ponto de destaque neste capítulo é a reflexão desenvolvida pela au- 12 tora sobre as inovações no campo da leitura digital. Ela ressalta como ponto positivo para a formação de leitores os recursos utilizados. O capítulo seguinte tem a autoria de Maria Emilia Vico e é A crônica. Gênero ambíguo... Mas genuinamente li- terário. O texto está dividido em duas artes bem marcadas. A primeira parte apresenta um conjunto de perguntas que diretamente provoca no leitor um envolvimento par- ticular de coparticipação. A autora chama a sua atenção, convidando-o a pensar sobre o contexto de produção da crônica. De forma direta elenca um conjunto de pergun- tas (qual é o seu público? Quais os possíveis temas? Tem a crônica uma estrutura específica? Qual é a sua origem? E o veículo ou veículos? Quais são os objetivos da inte- ração? Quais são os gêneros que se lhe parecem? Quais as características que fazem com que possamos dizer que um determinado texto é uma crônica? A crônica é um gênero literário?). O momento seguinte desta etapa é marcado pela discussão sobre o o conceito de crônica, momento em que nos apresenta alguns estudiosos e seus textos. Na sequência da teorização, Vico põe em discus- são se esse texto literário é ou não um gênero literário. A segunda parte do capítulo é marcada pela analisa de uma crônica de Carlos Drummond de Andrade e culmina em uma proposta de atividade. Trata-se de um texto cheio de provocações que convida o leitor à reflexão e não à dar informações apenas. O último capitulo é de autoria de Márcia Cabral da Silva intitulado de O gênero poético no ensino de literatura. Teria um espaço para o gênero poético em sala de aula? Durante o artigo, a autora mostra que sim e o faz apre- sentando uma possibilidade de análise. Ela se posiciona de forma a valorizar o movimento dos elementos linguís- tico a favor a compreensão de um texto poético. Essa postura é muito particular e positiva para o ensino de lín- gua, para a formação de leitores, para a compreensão da 13 funcionalidade da língua na interação poeta e leitor. Nes- se sentido, ela trata da constituição da poesia e também apresenta uma análise com base nos elementos linguísti- cos que ela considera importantes. Inicia mostrando que para a construção de uma poesia é importante a seleção das palavras e que ela também dão ritmos à poesia. Nes- se sentido apresenta algumas poesias e as analisa. Nes- se exercício dinâmico, chama a atenção para o papel da metalinguagem, em outras as figuras de linguagem como recurso estilístico. Os exemplos dados mesclam da poesia ao cordel, de Patativa a Drummond de Andrade. O conjunto dos textos e a proposta desenhada pe- los autores, com base nos próprios objetivos da coleção, desafia os leitores, em particular os professores e forma- dores de professores a pensar o espaço da literatura na sala de aula. 15 Capítulo Da Literatura CoMo traVessia: É PossÍVeL ensinar Literatura? Claudicélio Rodrigues da Silva VI Descobri aos 13 anos que o que me dava prazer nas leituras não era a beleza das frases, mas a doença delas. Comuniquei ao Padre Ezequiel, um meu Preceptor, esse gosto esquisito. (...) O Padre falou ainda: Manoel, isso não é doença, pode muito que você carregue para o resto da vida um certo gosto por nadas... E se riu. (...) Manoel de Barros, O livro das ignorãças. Que é um conteúdo? Proponho uma reflexão que parta do nada e ao nada chegue, como o poema de Manoel de Barros. Sugiro uma conversa que mergulhe nas “ignorãças” e faça com 1 16 que elas evoquem em nós diversas questões que não ca- recem nem querem ser respondidas nesse momento: por que quisemos ser professores? O que nos induziu a essa empreitada (derrocada)? Por que o desejo por fomentar saberes e a aflição por encontrar um sentido para as coi- sas e para o mundo? Essas questões me abraçam como educador. E me alimento do nada que elas me oferecem. Mas há outras ainda. O que significa ensinar hoje, quando nossos alunos são mergulhados em uma infindável trama de informa- ções midiáticas, onde o apelo visual e sonoro do mundo virtual chama mais a atenção do que uma aula expositiva? Como promover um ensino que faça realmente sentido ao aluno, colocando-o no centro e não à margem do co- nhecimento? Como fomentar o desejo de autonomia na sala de aula sem perder o foco do projeto pedagógico? Fruto de uma “sociedade da excitação” (Türcke 2012), que conteúdo realmente faz sentido a esse aluno? Essas são apenas algumas demandas que per- meiam a cabeça dos graduandos e futuros professores da educação básica. Fora isso, o medo de não se conseguir o completo domínio da sala, o receio de serem incompre- endidos pelos alunos adolescentes e de rapidamente se decepcionarem com o processo de ensino-aprendizagem. Inúmeras questões para as quais não há respostas prontase acabadas. Se educação é processo, meio, e não fim, esta- remos sempre no caminho da dúvida, seja ela grande ou pequena. Pautar-se nos questionamentos evidencia um compromisso não com as respostas, mas com o anseio a que a educação faça sentido. As certezas podem nos trair. Ao longo do curso de graduação,1 além das disci- plinas de formação específicas, como língua e literatura, os graduandos têm acesso a cursos de formação didático -pedagógica a fim de perceberem a história da educação 1. Refiro-me, é claro, aos cursos de licenciatura plena. 17 no Brasil, seus entraves e avanços e as principais tendên- cias e correntes que fomentam os saberes. Às disciplinas didáticas específicas ao ensino de língua e literatura se vinculam as de estágio, que por sua vez se desdobram em observação, simulação e regência, respectivamente nes- sa ordem. Essas disciplinas são oferecidas no último ano da formação do aluno, após ter sido percorrido o longo trajeto pelas teorias do conhecimento. Assim, muitos alu- nos chegam a essa etapa cansados da rotina de estudos. Quando deveriam estar mais seguros, surgem exaustos e sem perspectiva, temendo assumir a regência e fracassar na profissão que escolheram. Nesse sentido, as disciplinas de observação e está- gio, bem como outras de feição didática, devem cumprir um papel de expor os entraves da educação que temos e discutir a educação que queremos. É imprescindível que os futuros educadores saibam que, se lhes falta a experi- ência pedagógica, sobra-lhes o dinamismo da juventude e a vontade de ousar. Mais que professores conteudis- tas, que se colocam no centro da sala, como se tivessem todo o conhecimento do mundo, a escola necessita de mediadores do saber, afinal, nunca fomos enciclopédias ambulantes. Com o avanço das tecnologias da informa- ção e comunicação, torna-se fácil descobrir o conheci- mento fora da sala. A vastidão do ambiente virtual atiça o curioso e é para lá que nossos olhos de educadores devem estar voltados. Somos arremessados na enxurrada de informações. Mas o que fazer com elas? Quais as que realmente importam? Como filtrá-las e como organizá -las em nosso próprio benefício? Essas questões devem permear o plano didático dos novos professores. Além disso, é importante perceber que as concepções de ensi- no mudam conforme o momento, o espaço e o público. Não há uma receita pronta para isso. Conteúdo é precisamente aquilo que está contido em algo. Um saber herdado. Uma cultura do fazer e do 18 pensar. Mas também é conteúdo uma atitude e o proces- so de tomada de consciência das sensações, das emoções, dos desejos. Pode-se, nesse sentido, pensar o conteúdo com uma tripla demanda: conceitual, procedimental e ati- tudinal. Saber o que é uma coisa não é tudo. O que fazer com ela? O que ela desperta em mim? O que sou depois de tê-la? O problema do conteúdo, para Mikhail Bakhtin (2002), pressupõe a conjunção entre conhecimento, ética e arte. Toda concepção de mundo exigiria do humano um domínio do saber fronteiriço, ou seja, nenhum conheci- mento está no interior, mas nas bordas, nas margens, nas ramificações e entrecruzamentos. É preciso saber-se su- jeito em potência, nunca concluso. Sobre a inconclusão se assenta a educação. E é assim que ela deve ser pensa- da: em processo. Deve-se partir de saberes empíricos e afetivos para chegar aos saberes das demandas culturais, sistemáticos. Um saber pautado na experiência não pode ser apagado por um saber formal. Para essa lição, basta compreender o que nos diz o mestre Alberto Caeiro: O meu olhar é nítido como um girassol. Tenho o costume de andar pelas estradas Olhando para a direita e para a esquerda, E de vez em quando olhando para trás... E o que vejo a cada momento É aquilo que nunca antes eu tinha visto, E eu sei dar por isso muito bem... Sei ter o pasmo comigo Que tem uma criança se, ao nascer, Reparasse que nascera deveras... Sinto-me nascido a cada momento Para a eterna novidade do mundo (...) (Pessoa 2005, p. 19) 19 Mais do que um poder de sintetizar, o que a educa- ção cobra de nós é o desejo de análise,2 o desnudamento das coisas, o espanto de ver aquilo que sempre víramos, mas agora sob nova perspectiva. Nascer “para a eterna novidade do mundo” com esse nítido olhar de girassol é estar atento às mudanças necessárias no percurso.3 Se- remos educadores quando, mais do que apresentarmos um conteúdo acabado, soubermos questioná-lo; mais do que defini-lo, soubermos problematizá-lo; mais do que apreendê-lo como verdade, soubermos descartá-lo quan- do ele não mais nos parecer importante. Será um sinal de que avançamos e, ainda, a constatação de que saber algum é imutável. Por uma pedagogia da autonomia do leitor Educar para a transformação plena do sujeito, no desejo de que ele abandone a passividade e assuma seu protagonismo, é o grande desafio. No Brasil, é Paulo Freire quem elabora um percurso pedagógico que tem 2. Percebo como a institucionalização do saber gerou e gera pro- fessores repetidores, sem um mínimo de consciência crítica. Repassam o conteúdo já pulverizado, sem se importar em produzir seu próprio material a partir de sua experiência de mundo. O Ensino Médio, particularmente, é um celeiro de síntese. É ela quem domina esse espaço. A criticidade passa longe daí, quando o que interessa é sistematizar um conheci- mento com base na utilidade: “Isso vai cair na prova”, “O ves- tibular – o ENEM – cobra tais habilidades e competências”, “Os concursos públicos abordam isso sob tal perspectiva”. E, longe da formação do sujeito, o ensino se torna refém de sínteses, como se a vida só tivesse sentido em função de uma profissão. 3. Refiro-me a uma pedagogia da sensação, onde o corpo em sua totalidade aprende enquanto apreende o mundo. Diante disso, ler equivale a sentir e não somente reter conteúdos. 20 como cerne a constituição de uma pedagogia que levanta do chão os excluídos e os faz partir de suas próprias ex- periências, mas não se limitando a elas. Num mundo que vê o sujeito como consumidor e mercadoria é necessário que o ensino busque outra ótica e ética. Diante de um sis- tema excludente, é preciso que os professores coloquem como suporte de sua prática o valor da ética, conforme afirma Paulo Freire: A ética de que falo é a que se sabe traída e ne- gada nos comportamentos grosseiramente imo- rais como na perversão hipócrita da pureza em puritanismo. A ética de que falo é a que se sabe afrontada na manifestação discriminatória de raça, de gênero, de classe. É por esta ética inse- parável da prática educativa, não importa se tra- balhamos com crianças, jovens ou com adultos, que devemos lutar. (2011, p. 18) No caso específico do professor de língua e lite- ratura, deve-se ter clareza que os discursos da literatura jamais são ingênuos. Sob hipótese alguma ela é neutra. Fruto do seu tempo de produção, uma obra está sempre em processo, diacrônica e sincronicamente, e requer lei- tura aberta. A literatura não faz concessões, não se rende à dissimulação dos espaços sociais e políticos, tampouco tolera seu uso em benefício de um fundamentalismo (seja de ordem religiosa, moral ou política). Ela promove uma emulação dos espaços de poder, assumindo também uma postura, sem se impor arrogantemente. Sempre funcio- nou assim, mesmo em tempos em que se tentou censurar as liberdades de expressão. Embora funcione como aparelho ideológico do Estado (Althusser 1985),4 a escola não deveria cercear a 4. Louis Althusser não apenas sinalizou que a escola era mais um 21 voz literária. Mas, infelizmente, é isso o que ocorre. Em nome de um ensino que prega valores, quando deveria as- sumir o debate frente às questões formativas do sujeito, a escola contenta-se em oferecer pobremente um currículo que se pauta em leituras do cânone. E qualquer desvio por parte dos professores, qualquer rota de fuga que leve a discussões polêmicas sobre o ser e o estar no mundo, provocam abalos.Parece que, quando deveria propor uma pedagogia da libertação, a escola prefere oferecer uma pedagogia que canta o coro da tradição, a fim de não correr riscos. Atualmente, em nome de uma pedagogia do “po- liticamente correto”, deixamos de lado diversas questões. Preferimos mais do mesmo, ao invés de buscarmos o outro. Rezamos a cartilha do contentamento. Conten- tamo-nos com um currículo que não rompe com uma tradição; contentamo-nos com um ensino que privilegia, não o questionamento, mas as respostas; contentamo- nos, enfim, com um ensino que diz o que o aluno deve fazer e como deve fazer, mas não o orientamos a produ- zir conhecimento. Para usar a metáfora de Rubem Alves (2012), oferecemos a “caixa de ferramentas” e exigimos que o aluno as utilize, quando poderíamos propor que, além disso, ele produzisse seus próprios instrumentos. Mais do que isso, esquecemos de valorizar a “caixa de brinquedos”, que promoveria a noção de mundo sob a perspectiva do prazer, não da obrigação. dos mecanismos do jogo do poder capitalista, como também prenunciou a mercantilização do saber. Nesse sentido, uma educação bancária dialogaria com os objetivos propostos por uma elite dominante. Assim, a literatura seria capaz de des- construir as noções imaginárias que a ideologia constrói no sujeito, fazendo-o perceber as amarras que o aprisionam. A educação popular, pensada para as massas e ao proletariado, encontrou em Paulo Freire um forte defensor da história do sujeito, que ele seja seu próprio narrador de sua história, e não se deixe levar pelos interesses burgueses. 22 Diante disso, como seria o papel ético do profes- sor? De que modo os professores de literatura devemos pautar nossas escolhas pedagógicas sob o compromisso de um ethos? Paulo Freire responde: Na maneira como lidamos com os conteúdos que ensinamos, no modo como citamos auto- res de cuja obra discordamos ou com cuja obra concordamos. Não podemos basear nossa críti- ca a um autor na leitura feita por cima de uma ou outra de suas obras. (2011, p. 18) Compreendendo uma visão de mundo, a literatura oferece, pela lente do escritor, as questões humanas, seus conflitos de ordem social e existencial. Cabe ao leitor (e nesse caso, penso no professor de literatura como um mediador na descoberta do poder do texto literário) in- vestigar por que as vidas com seus enredos nos interes- sam; por que os sentimentos, as perdas e as conquistas nos prendem. O que tudo isso evoca? Mais do que ensinar lite- ratura pelo viés historiográfico ou estético, é importan- te ensiná-la pelo viés ético. Nesse caso, o ensino ético pressupõe deixar que a literatura seja, sem remendos e sem ocultações de questões caras à formação humana. A literatura já foi acusada de transgressora inúmeras vezes,5 assim como foi cerceada, combatida, queimada em praça pública, encerrada nos espaços privados. 5. As Flores do Mal de Baudelaire passaram pelo crivo da censura, assim como Madame Bovary de Flaubert. No caso do Brasil, a prosa de ficção romântica, escrita por brasileiros ou por es- trangeiros, era considerada, tanto pela igreja quanto pela fa- mília, de má influência para o modelo patriarcal que erigia a mulher como submissa aos pais, ao marido e à pátria. 23 Ensinar literatura é, pois, estar consciente de que ela é obra humana e, como tal, aborda os impasses mo- rais, sexuais, psicológicos, religiosos, políticos etc. Tudo isso culmina numa apreensão de eticidade do texto lite- rário por parte do educador. Não se deve fugir dos pro- blemas, nem escondê-los, senão promover um discurso aberto sobre isso, uma leitura que não descambe para a reprovação de um autor com base nas concepções reli- giosas e morais do leitor.6 Aliás, todo conhecimento só tem sentido se for colocado em defesa da liberdade, que, não suportando fundamentalismo e hipocrisia, coopera para que o aluno elabore sua aprendizagem pelo viés da criticidade, conforme indica Paulo Freire: “(...) quanto mais criticamente se exerça a capacidade de aprender, tanto mais se constrói e desenvolve o que venho cha- mando ‘curiosidade epistemológica’, sem a qual não al- cançamos o conhecimento cabal do objeto” (2011, p. 26). O texto literário assume, por assim dizer, uma fun- ção profética, sem querer resvalar para questões doutri- nárias aqui. Tal profecia acontece no momento em que a obra se reveste de denúncia e anúncio. O que denuncia a literatura? As incongruências do passado e do presente, os impasses, os discursos anacrônicos e vazios, as rela- ções de poder, o jogo entre as moralidades e a natureza humanas, os limites do humano, a psicologia do abismo etc. Denuncia, porque todo texto traz consigo uma marca de passado que, atualizada no agora da leitura, promove uma ruptura e anuncia uma novidade à medida que apon- ta outros percursos. Se o texto literário evoca uma dupla visão de mun- do (particular, por ser recorte de vivências e construção do imaginário do autor; coletiva, porque o autor se insere num tempo-espaço demarcado pela herança cultural), sua 6. Configurando-se como insubmissa, a literatura não suporta isenção e tampouco aceita ser usada por fundamentalistas. 24 leitura também implica um saber de mundo, um olhar duplo, para fora de si, onde estão os fatos narráveis, e para dentro si, onde estão as sensações que detêm o mun- do. Cabe ao professor não persistir na concepção de que ensinar é transferir o que sabe, mas conduzir (isso é o que significa a palavra pedagogo) o aprendiz no caminho das descobertas. Muitos professores são apenas repetidores. Leem muito - quando leem - e depois apresentam o lido sem problematizá-lo, sem questioná-lo, como isso fosse verdade absoluta. É o tipo de educador que “fala bonito de dialética, mas pensa mecanicistamente” (Freire 2011, p. 29). Pensada como um ambiente desgarrado do con- creto, nesse caso, a escola supõe que a realidade lá fora é pesada demais para adentrar ao paraíso fictício do saber, templo do conhecimento. Mas não existe um “lá fora” desmembrado de um “aqui dentro”. O mundo é o mes- mo, nós é que criamos as barreiras. O ensino da literatura, então, deve pautar-se na consciência de uma “reflexão so- bre o mundo inserida no mundo” ou melhor “(...) nem a teoria é transcendental em relação às situações em que se produz e se usa, nem o teórico é geralmente um pensador isolado e misantropo” (Jobim 2002, p. 119). Num espaço onde se joga o jogo do politicamen- te correto, não entram as questões humanas, porque ser humano pressupõe ser complexo, repleto de problemas, sobrecarregado de dúvidas, e sonhos, e desejos. Fora dis- so, há o olhar limítrofe, preconceituoso, que prejudica nosso percurso pedagógico, porque não percebemos que a realidade é apenas uma construção particular e nunca completa, ou, segundo Bakhtin: É preciso lembrar de uma vez por todas que não se pode opor à arte nenhuma realidade em si, nenhuma realidade neutra: pelo próprio fato de que falamos dela e a opomos a algo, nós, como que a definimos e lhe damos um valor; é preciso 25 apenas sermos claros com nós mesmos e com- preender o verdadeiro sentido da nossa aprecia- ção. (2002, p. 31) O autor se alimenta exatamente da realidade, não para dar respostas, senão para provocar reflexões. Fora isso, ficamos todo o tempo discutindo o caráter mimético da obra e não nos apercebemos das várias dimensões do humano que ela aborda. Então, que é ser professor de lite- ratura? Devo dizer que fico bastante preocupado quando vejo alunos de graduação em Letras – futuros professo- res – com uma visão bastante romantizada da literatura. Como se a literatura fosse uma caixa alucinógena, buscam trabalhar apenas textos que evoquem o prazer. Esquecem que as dores, desesperanças, tristezas, decepções, precipí- cios também compreendem o mundo da literatura e, ao contrário do que se pensa, trabalhar com isso é como uma espécie de purgação, uma cura pela leitura.7 A literatura deve realizar uma panaceia,com a qual, humanos que somos, devemos tratar-nos. Mas, sin- ceramente, ela não é salvação, não é um fim em si mes- ma, não quer ser vista como o prazer descompromissado. Porque toca questões sérias à humanidade, é um saber como outro qualquer com o qual devemos nos deparar para que percebamos a complexidade que é o humano. A dimensão do ser, seus limites e fronteiras, bem como seus anseios, impregnam o texto literário com todo o seu vigor poético (e por que não dizer mitopoético?!8). 7. Aliás, é exatamente isso uma das funções do teatro grego. Na Poética de Aristóteles (2005), as apresentações do drama deve- riam infundir no espectador as tragédias possíveis ao humano que, chorando, sentindo terror ou piedade, deveria ficar livre daquilo que nem chegara a padecer. 8. Letradas ou não, todas as civilizações construíram e cons- troem mitos, e os alimentam na tentativa de entender o que são, de onde vieram, aonde vão. Ao contrário do que se pensa, 26 Talvez a lição mais importante que o professor de literatura deve ministrar é propriamente a “lição do igno- rante” (Rancière 2013), a necessidade de se criar mecanis- mos para a emancipação do educando desse sistema ex- cludente que, ao invés de trabalhar a sensibilidade, tenta a qualquer custo freá-la. Travessias do literário Tendo suspeitado da existência do Diabo em inú- meras conjecturas, Riobaldo, o velho narrador de Grande sertão: veredas (Rosa 1980), usando sua filosofia de vida jagunça, resolve concluir seu relato afirmando que não existe Diabo nenhum, mas homem humano. A narrativa começa com uma palavra-símbolo – “nonada” – e termi- na com a palavra “travessia”. Com base nisso, exponho aqui minha reflexão sobre o ato de ensinar. Todo saber parte desse “nonada” e culmina numa “travessia” porque conhecimento é percurso. Assim, para responder ao título desse artigo com base numa estética da negação, entendo que não se pode ensinar literatura; pelo menos não do jeito como a esco- la tradicional quer pensar o texto literário. Literatura se vive. E qualquer saber, não apenas o literário, deve partir da experiência, vivida ou imaginada, que se deve narrar/ ler a fim de que de fato exista no campo artístico. Cada ato humano é a literatura em potência, como flor bruta os conhecimentos filosófico e científico não ofereceram res- postas, e, com isso, não suplantaram as mitologias. Frutos de questões existenciais daqueles povos, os deuses do passado só morreram enquanto projeções de culto, mas continuam, enquanto construções imaginárias, a alimentar nossos sonhos e desejos. 27 prestes a romper, como chuva prestes a desabar que, ou promove o caos ou fecunda o solo. Antes de pensar na função da literatura, e em como e para que ensiná-la, cabe pensar por que o homem se in- teressa tanto por vidas reais ou imaginadas; por que “per- de” seu tempo com leitura daquilo que nunca ocorreu? Em que isso se tornará produtivo? Por que gosta de jogar com vidas e se surpreender com o aflorar de suas emo- ções (o terror, o humor, a alegria, a raiva etc.) ao ler um texto? Aí está a própria resposta que se quer para funda- mentar o papel da literatura na formação do aluno: ela dei- xa entrever o mundo real, assim como apresenta um mun- do possível, e nos faz refletir sobre as possiblidades das escolhas, boas ou ruins, que fizemos ou venhamos fazer. Ela suscita desejos, libera sensações tolhidas, infunde uma vontade de reparação, ou simplesmente, tira-nos do nosso eu e nos lança ao outro. Sua matéria é feita de possibilida- des. De um “se” que se projeta sobre nós, e nos cumula de alteridade. Por isso, a significação do texto literário não é fechada ou circunscrita ao tempo e espaço de produção, já que a intencionalidade do autor é substituída por camadas de leituras e teorias novas que cada época traz. É porque sempre somos obrigados a buscar um sentido para as coisas que, geralmente, vemos os conte- údos das artes como aquilo que não tem valor prático. Somos a sociedade da utilidade. Esquecemos que a inu- tilidade também é um saber. O ócio contemplativo não gera reflexão e questionamento? Um quadro abstrato não se torna uma questão a quem contemplá-lo? Uma música não evoca lembranças, que, por sua vez, permitem entre- ver o que fomos e somos? Há saberes práticos e saberes contemplativos. As artes querem que as contemplemos como se mirássemos a nós mesmos, não como diante de um espelho, que mostra nossa imagem por reflexo, e não consegue revelar o interior. Se houvesse um espelho que nos revirasse pelo avesso... 28 Se, como indica Vincent Jouve (2014, pp. 84-85), o autor não controla completamente seu texto que, assim, escapa à sobrecarga de intencionalidade, a obra literária deve ser considerada mais um sintoma do que um sinal; seu sentido é diverso, não aceitando inteiramente con- ceito. Estudar/ensinar literatura, então, é não perder de vista que a obra não vigora na superfície do sentido, não se deixa prender por categorias, nem aceita que as marcas do tempo e do espaço sejam as únicas formas de do- miná-la. Esse caráter de impermanência da obra literária não é um dos mecanismos que justamente a faz vigorar como obra? Cada tempo produzirá, portanto, objetos conceituais para dar conta da obra. O problema do ensi- no de literatura é a tentativa de esquematizá-la e esgotar, na leitura, todas as possibilidades de sentido. O conceito fugidio é essencial, portanto, para que o texto continue a despertar interesse, pois, “como o autor não domina tudo o que ele investe em seu texto, alguns conteúdos só serão identificados muito tempo depois da publicação da obra, uma vez que já terão se configurado as ferramen- tas teóricas que permitam determiná-los” (Jouve 2012, p. 87). Entram em jogo na leitura a diferença entre sentido e significação, donde se conclui que: O sentido é singular; a significação, que coloca o sentido em relação a uma situação, é variável, plural, aberta e, talvez, infinita. (...) O sentido é o objeto da interpretação do texto; a significação é o objeto da aplicação do texto ao contexto de sua recepção (primeira ou ulterior) e, portanto, de sua avaliação. (Compagnon 2010, p. 85) O diabo do Riobaldo nos assombra também quan- do nos deixamos levar pela concepção mercadológica do saber utilitário repousando o “para que serve” no sentido da obra. Queremos saber para ter ou para ser? O diabo 29 do Riobaldo murmura o tempo todo em nossos ouvidos, na ânsia de assumirmos o lado utilitário da vida. Mas, à semelhança do suposto pacto que Riobaldo fez com o coisa-ruim, na meia-noite de uma encruzilhada no sertão, devemos fazer um pacto com a palavra, que nos permite encarar o mundo com olhar de leitores atentos, em tra- vessia, como a literatura, que atravessa espaços, tempos e nos atravessa, professores e alunos. Algumas inconclusões Cabe agora voltar ao que prognosticou o precep- tor do então menino Manoel de Barros. Pode ser que, como educadores, acalentemos um “certo gosto por na- das”. Talvez isso seja considerado doença num mundo em que vence quem tem mais força, quem manipula mais e quem canta conforme a ética do mercado financeiro e a lógica do carreirismo. Estar à margem disso, numa con- tracorrente, não é fácil, mas seguramente é mais digno. Na escola que estamos gestando, há uma série de aprendizagens necessárias, elencadas nesta lista: é preciso ouvir o apelo do novo; ver o aluno com mais lucidez; não subestimar o aprendiz; ser menos mestre e sempre aprendiz; quebrar as velhas estruturas, os velhos concei- tos, as resistências, mas sem desvalorizar os experientes; ter medo dos conceitos prontos; divagar e ir devagar; ensinar inteligência emocional (sobretudo, é necessário tê-la); ter clareza do caminho, mesmo quando tudo é tur- vo e neblinado (clareza não significa certezas); a verdade singular é a maior inimiga do educador (que tal falar de verdades plurais?); falar a linguagem do aluno, que passa necessariamente pelo afeto;promover a arte do diálogo e reconhecer que nem todo grupo é uma equipe; saber que em matéria de educação menos por menos é sempre mais 30 (elimine os excessos); fazer do texto o núcleo do debate e deixá-lo de utilizar como pretexto (aliás, a educação está minada de pretextos); ser guardião da liberdade, que deve ser entoada em cada aula, em cada gesto, em cada atitude, em uníssono. Utopia? Entendam como quiser, entretanto, o “demônio da teoria” não pode condenar o texto literário ao limite da interpretação particular e acabada. Há um horizonte da história onde o texto literário se inscreve, mas ele é perpassado constantemente pela atualização desse mesmo tempo. Ainda que tentemos fugir para o passado ou para o futuro, estaremos sempre atravessados pelo tempo presente. Ao final deste artigo, há uma ativi- dade que retoma as nossas reflexões. Referências bibliográficas ALTHUSSER, Louis (1985). Aparelhos ideológicos de estado: Nota sobre os aparelhos ideológicos de estado. Rio de Ja- neiro: Graal. ALVES, Rubem (2012). Educação dos Sentidos e Mais... Campinas: Verus Editora. ARISTÓTELES (2005). “Poética”, in: A poética clássica. São Paulo: Cultrix, pp. 17-52. BAKHTIN, Mikhail (2002). “O problema do conteúdo”, in: Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. São Paulo: Annablume/Hucitec, pp. 29-44. BARROS, Manoel de (2013). “O livro das ignorãças”, in: Poesia Completa Manoel de Barros. São Paulo: LeYa, pp. 273-299. CANDIDO, Antonio (2010). “O Escritor e o Público”, in: Literatura e sociedade. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, pp. 83-98. 31 COMPAGNON, Antoine (2010). O demônio da teoria: li- teratura e senso comum. Tradução de Cleonice Paes Barreto Mourão e Consuelo Fortes Santiago. Belo Horizonte: Editora da UFMG. FREIRE, Paulo (2011). Pedagogia da autonomia: saberes ne- cessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra. JOBIM, José Luís (2002). “O trabalho teórico na história da Literatura”, in: Formas da teoria. Rio de Janeiro: Caetés, pp. 117-131. JOUVE, Vincent (2012). Por que estudar literatura? Tradu- ção de Marcos Bagno e Marcos Marcionilo. São Paulo: Parábola. PESSOA, Fernando (2005). Poesia completa de Alberto Caei- ro. São Paulo: Companhia das Letras. PUCHEU, Alberto (2013). Mais cotidiano que o cotidiano. Rio de Janeiro: Azougue Editorial. RANCIÈRE, Jacques (2013). O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. Belo Horizonte: Au- têntica Editora. ROSA, Guimarães (1980). Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: José Olympio Editora. TÜRCKE, Christoph (2010). Sociedade excitada: filosofia da sensação. Tradução de Antonio A. S. Zuin et al. Campinas: Editora da Unicamp. 3232 ATIVIDADES PROPOSTAS A leitura do poema de Alberto Pucheu deve nortear a refl exão. a) Divide-se a turma em dois grupos; b) O grupo 1 deverá fazer um elenco do que seriam a força e a fraqueza do nosso tempo. Esse grupo refl etirá sem ter lido o poema; trata-se de uma análise do mun- do contemporâneo; c) O grupo 2 receberá uma cópia do poema e deverá circunscrever sua leitura ao que se refl etiu no artigo (a função da literatura, os sentidos da obra e o papel do professor como mediador). O que seria esse “pon- to cego” da literatura? A resposta dos poemas aponta para uma defi nição ou indefi nição do ser e do mun- do? A literatura exige do leitor que tipo de abertura? Ensinar literatura privilegiando defi nições concluídas não seria um contrassenso, já que todo tempo tem seu “ponto cego”? d) Os grupos formam uma plenária para apresentar suas análises. Nesse momento é importante que o profes- sor estimule a discussão em que fi quem explicitadas a leitura de mundo (grupo 1) e a leitura do texto (gru- po 2). Sugere-se que o grupo 1 só receba o poema imediatamente após a apresentação de suas refl exões. Assim, poderá lançar-se a uma outra leitura do tempo presente mediada pelo texto. PONTO CEGO (da força e da fraqueza de nosso tempo) “Quem somos?” – perguntam aos poemas em busca de uma resposta que complete a pergunta, 3333 sobrepondo uma, sem falta nem excesso, à outra. Mas os poemas repetidamente respondem que somos aquilo em que nos perdemos ao buscarmos encontrar o que acreditamos ser. Se insistirem, portanto, em perguntar aos poemas de buscas, encontros, crenças... se insistirem, portanto, em saber a voz dos poemas, saibam que, de diferentes modos, eles só dizem o que não se busca nem se encontra, a perdição, o fi m das crenças, o que não se oferece a nenhuma frase, nem mesmo mais a nenhum verso. Há um ponto cego nos poemas, como há um ponto cego na vida, não visto por mim nem por você nem por ninguém, desde o qual eles são o que são, um ponto cego que somente os poemas – talvez – nem sei – vejam. Se insistirem, portanto, no trato com os poemas, se de fato quiserem permanecer com eles, sejam, ainda que os últimos afeitos a tal empenho, fortes, porque quase todos os outros – sinal dos tempos – os abandonaram (Pucheu 2013, p. 85) 35 Capítulo FiGuras Do outro. Literatura CoMParaDa e interCuLturaLiDaDe Graciela Cariello Eu sou os outros Provérbio africano Citado por Mia Couto, na orelha do romance O evangelho segundo a serpente, de Faíza Hayat (2006). O presente artigo propõe-se abordar o ensino da Literatura Comparada no encontro de culturas e línguas, para a formação de professores de língua estrangeira. Tem como objetivo aportar aos alunos de estágio alguma reflexão e alguns exemplos de prática possível. Para tal, apresentarei uma proposta, aplicada e provada no curso de formação de Professores de Por- tuguês da Universidade Nacional de Rosário, Argentina. Ela se fundamenta no conceito de interculturalidade, e na representação do Outro na literatura. 2 36 O outro e a identidade Para se pensar no outro é imprescindível revisar o conceito de identidade. Na raiz do termo existe o substan- tivo latino identitas, átis, que provém de idem, “o mesmo”. É verdade que hoje identidade não é pensada desse ponto de vista, mas como conjunto de características próprias, diferenciais. Mas a ideia do que é igual a si mesmo, que não varia, persiste. E mais ainda: a ideia do que é centro, em relação com o que é outro, diferente. Acompanhando a teoria de Eduardo Grüner, po- demos dizer que, como afirmou Lacan, depois de Sartre, não há Outro para o Outro. O princípio é que para se qualificar algo como alteridade tem de se pensar a si pró- prio com arrogância: como mesmo, mesmice, identidade, e a partir daí é que se definem o outro e a diferença. E afirma que quando ele no livro fala em Outro / Outros, deve-se ouvir: “el Mismo/Otro-como-parte-que-no-tie- ne-parte porque ha sido excluida de su lugar constitutivo de lo mismo para que no pueda verse que lo mismo sólo es tal porque justamente le falta una parte con la que no quiere saber nada” (Grüner 2002, p. 49). Ou, diríamos, como fala o provérbio africano citado como epígrafe des- te artigo: eu sou os outros. Não existe separação entre eu e os outros, se não é política, se não é em termos de exclusão. Por isso, quando ensinamos uma língua estran- geira, uma cultura estrangeira, é preciso prestar atenção ao sentido que damos a esses termos: identidade, outros. Não venha resultar que estejamos colocando isso que chamamos de outro no lugar da diferença porque estamos colocando algo (eu, minha realidade, ou uma realidade qualquer) no lugar do mesmo que exclui e delimita. A lite- ratura pode ajudar a nos impedir de cair nessa armadilha. Vejamos de que modo. 37 Os estudos literários na formação de professores de língua estrangeira Como sempre que pretendo descobrir algo sobre a literatura, fui perguntar aos poetas que sobre ela refleti- ram. E foi lendo um desses poetas que achei uma primei- ra resposta para a questão que irei tratar aqui: a relação entre literatura e língua estrangeira. Eliot, no seu ensaio“A função social da poesia”, afirma acerca de textos em língua estrangeira: [...] me tem sucedido, por vezes, encontrar tre- chos de poesia que eu não saberia traduzir, con- tendo numerosas palavras para mim desconhe- cidas e frases cujo sentido estava fora do meu alcance, mas que me transmitiram, de forma imediata e vívida, algo de único, diferente de tudo o que exista em inglês – algo que eu não seria capaz de articular por palavras e que no entanto senti ter compreendido. (Eliot 1997) E acrescenta que chegando a conhecer melhor essa língua pôde comprovar que a impressão era alguma coisa que estava lá. E continua dizendo: Deste modo, na poesia, é possível, de vez em quando, penetrar noutro país, por assim dizer, antes de possuir passaporte ou de ter tirado bi- lhete. (Eliot 1997) Aqui vou me deter, e fazer uma breve digressão histórica. Na história do ensino de línguas estrangeiras houve um movimento em relação ao papel da literatura que vou tentar resumir em poucas palavras. 38 Antigamente, o texto literário era o modelo do bom emprego da língua, e a referência aos autores con- sagrados era obrigatória para provar o uso das formas. Isto vale tanto para língua estrangeira quanto para língua materna. Tudo mudou, é claro, a partir das vanguardas. Os poetas modernistas e vanguardistas já não podiam ser considerados modelos, dado ser sua revolução esté- tica precisamente uma revolta contra o academismo das formas consideradas corretas e aceitas. Em português, por exemplo, Mário de Andrade, Oswald de Andrade ou Almada Negreiros não poderiam ser pensados como tais modelos. Uma teoria da literatura veio dar base para se analisarem esses textos aparentemente agramaticais ou, no mínimo, desrespeitosos das regras estabelecidas: a no- ção do desvio A língua poética não era errada, mas des- viava-se da regra da língua ordinária. Uma outra teoria, agora filosófica, aborda a questão dessa língua ordinária, que diferentes linguistas chamaram de standard, comum, prática, ou então comunicativa. Surge a pragmática, no interior da filosofia da linguagem. Paralelamente, consti- tuem-se a teoria da informação e a teoria da comunicação. Foi, para a linguística, sem dúvida, um avanço científico. Mas no ensino de línguas –materna e estrangeira – deu como consequência a expulsão do texto literário, consi- derado um desvio da norma, do palco do ensino. Pensa- va-se que a literatura não mais podia ser modelo por essa artificialidade que ela tem. A literatura foi banida dos ma- nuais de língua, e principalmente de línguas estrangeiras, que optaram pela abordagem “comunicativa”, e talvez atrelados a um dos sentidos do termo “comunicação”, os teóricos e os autores de manuais decidiram que o melhor modelo para a língua eram os textos da mídia. Um comentário à margem merece uma outra con- sequência das tendências para um ensino de línguas que visava à comunicação, mas com fins específicos -espe- cificamente comerciais. Uma língua, uma das mais ricas 39 em produção literária, chegou a transformar-se em língua franca, ou seja, uma língua muito próxima do que pode- ríamos considerar artificial: uma língua quase-morta. A aprendizagem dessa língua – o inglês – tende, ainda hoje, para virar uma elencagem de termos e construções fixas, pouco menos que um código matemático, que possa ser utilizado rapidamente em um contexto quase impessoal. Sinto uma enorme dor pensando em Borges e Pessoa, no que poderiam eles sentir ante esse empobrecimento da língua amada... Deixo isso por enquanto e volto à minha pequena história. Uma nova teoria da literatura e da língua veio questionar, mais tarde, aquela do desvio. Trata-se da teo- ria que considera o texto como produtividade, e a língua poética como possibilidade infinita. Para el escritor, el lenguaje poético se presen- ta como una infinitud potencial [...]: el conjunto infinito (del lenguaje poético) es considerado como posibilidades realizables; cada una de esas posibilidades es realizable por separado, pero no son realizables todas juntas. La semiótica por su parte podría introducir en su razonamiento la noción del lenguaje poéti- co como infinitud real imposible de representar... (Kristeva 1978, pp. 234-235) Aguiar e Silva, na sua Teoria da Literatura, expõe as coincidentes teses de Coseriu, segundo as quais “...a lín- gua poética [...] deve ser concebida [...] como a realização de todas as virtualidades da língua, como materialização da plena funcionalidade da língua...” e afirma: À luz destas teses de Coseriu, os pretensos “des- vios” da língua literária configuram-se como 40 realizações inéditas ou incomuns das potencia- lidades do sistema linguístico; em sede teórica, a língua recupera, contra a dialetização a que a condenam as teorias desviacionistas, a função que historicamente sempre tem desempenhado de agente conformador por excelência da res- pectiva língua natural; o estudo da língua literá- ria, algumas vezes denunciado como restringen- te e deformante da omnímoda funcionalidade da língua, adquire, sob o ponto de vista científi- co e didático, o estatuto de insubstituível meio de conhecimento e aquisição dessa omnímoda funcionalidade e, por conseguinte, o estatuto de privilegiado instrumento de cognição do ho- mem, da sociedade e do mundo. (Aguiar e Silva 1994, pp. 172-173) Assim, para essas teorias, a literatura é o espaço privilegiado da língua, a máxima expressão das possibili- dades – nunca realizadas – de uma língua, a manifestação da sua potencialidade artística, estética e da sua virtuali- dade expressiva e, como em alguma forma diz Aguiar e Silva, transforma-se em espaço privilegiado também para o estudo da língua. Mas não é só, e agora é que começa realmente minha reflexão. Concordo, devo esclarecer an- tes de mais nada, com as teses de Aguiar e Silva, Cose- riu, Kristeva. No entanto, acrescentarei que a literatura é mesmo aquele espaço infinito, não só pelas virtualidades linguísticas que comporta, mas também porque é o espa- ço da expressão do outro. É na literatura que o estudante de língua estrangei- ra vai descobrir um efeito de estranhamento. Quer dizer, vai situar um ponto de vista deslocado porque os objeti- vos da literatura são bem outros do que os objetivos da comunicação quotidiana. Ela provoca essa sensação de se estranhar ante a língua estrangeira que em um primeiro 41 momento todo o mundo aprende para poder falar e mais ou menos compreender o outro. A literatura é o modo complexo, surpreendente e belo de se expressar esse outro que está do outro lado cultural, com quem pretendemos ter um diálogo para além da comunicação superficial, que veicule aquela car- ga de sentimentos, de desejos, de ilusões que só o tex- to literário consegue pôr em palavras. Porque, seguindo Grüner, podemos afirmar que a literatura é o modo que as línguas têm de falar do indizível (Grüner 2002, p. 320). Voltemos a Eliot. O poeta diz: “É mais fácil pensar do que sentir em língua estrangeira” (Eliot 1997). Não di- remos então que se alguém consegue sentir, ou interpre- tar o sentimento de um poema em língua estrangeira sabe muito mais dessa língua do que qualquer um que apenas consegue compreender uma comunicação instrumental? A literatura é o espaço, ainda, das sutilezas do su- bentendido, aquilo que na língua se inscreve como não- dito, e de que depende, inúmeras vezes, a nossa com- preensão do que se diz na superfície. O subentendido é também o espaço da possibilidade de dizer o que às vezes não se pode dizer. E tem mais: a literatura é o espaço em que as lín- guas vivem. Essa produtividade que é o texto literário, que faz com que a nossa leitura seja sempre uma aventura de descobrimento, é o refúgio das línguas, ainda daquelas que já não têm falantes. Está aí o exemplo nas línguas clássicas, de que os especialistas rejeitam o termo “mortas” com que se costu- ma designá-las. Eles têm razão: elas vivem, e eternamente viverão, enquanto houverum leitor disposto a entrar nos seus textos literários e trazê-los para essa vida mágica da literatura quando é lida. E toda outra língua, também a língua franca que acima mencionei, vive e continuará vi- vendo na sua literatura. Mas para podermos captar essa 42 vida, a literatura deve fazer parte da nossa aprendizagem da língua. Hoje, muitos professores voltaram a incluir a lite- ratura entre os textos que os seus alunos frequentam. Por motivos como os que acabei de expor, e também pelo prazer, motivação que nunca deve ser descurada no en- sino, não só de línguas mas de qualquer outra disciplina. Na formação do futuro professor de língua estran- geira, a literatura tem uma dupla função. Por um lado, como construto coletivo, social, manifestação de proces- sos gerais de uma época, de uma corrente de pensamento (filosófico, estético, até político) ela é um produto cul- tural. A literatura, como construção de bens simbólicos com que uma sociedade expressa a concepção que ela tem de si própria, dará ao professor aportes para o co- nhecimento dessa sociedade. Mas por outro lado a lite- ratura será, para o professor e também para seus alunos, o espaço da liberdade: liberdade de interpretar, de fazer sua leitura crítica, de comparar, relacionar, ativar sua livre imaginação; liberdade para colocarem seus próprios pon- tos de vista, dialogarem com os textos, com suas leituras prévias, ativarem mecanismos de compreensão profunda do outro e também de expressão. A literatura nos faz inventores de mundos. Ela prova que as palavras têm uma potencialidade criativa só limitada pelas regras que a própria literatura gera, e que aprender uma outra língua é adquirir mais uma porção dessa potencialidade. A literatura oferece à nossa imagi- nação a multiplicidade de vidas que uma língua descortina para os leitores. Todas as formas de uma língua, aquelas que vamos aprendendo e até mesmo as que alguma vez descobriremos falando sem saber que sabíamos, estão potencialmente na literatura dessa língua. Se estudarmos a literatura de uma língua estrangeira, estaremos cons- truindo um espaço de diálogo fecundo, que permitirá ver como e por que cada um de nós é os outros. 43 Literatura Comparada e interculturalidade Como se representa o outro na Literatura? A abor- dagem que, no meu entender, melhor pode dar conta disso é a Literatura Comparada. É nela que se estuda o encontro/desencontro de culturas: a interculturalidade, representada no texto literário. Ao se lerem comparati- vamente textos pertencentes a culturas diferentes, paten- teia-se tanto a proximidade quanto a distância que vai de uma à outra, e cada uma fica mais visível e compreensível. Cada texto deita luz sobre o outro, e a iluminação recí- proca faz surgir mais clara a expressão do outro na sua língua, na sua retórica, nos recursos literários e nos temas. Um comparatista francês, Daniel-Henri Pageaux, dedicado ao estudo das literaturas hispano-americanas, refutando a teoria das formações supranacionais, de Clau- dio Guillén (1985), afirmava, em finais do século passado, o princípio metodológico da visão diferencial: “¿Tendrá el comparatista, como lo admiten algunos, una visión ‘su- pranacional’? Confieso que prefiero asentar el principio metodológico de la visión ‘diferencial’”. E concluía: Preséntase la literatura comparada como una toma de conciencia por mínima que sea que procede de una puesta en relación de un ‘Yo’ frente al ‘Otro’, de un ‘aquí’ frente a un ‘allá’. Aquella confrontación estriba pues en el estudio de una distancia significativa entre dos o más se- ries de datos culturales. (Pageaux 1988) Nossa leitura de hoje, baseada em pensadores latino-americanos, confirma essa leitura da diferença, contrária à procura de regularidades mesmo que sejam “multiculturais”. No entanto, sem rejeitar o pensamento europeu e admitindo as coincidências quando elas exis- 44 tem, defendemos uma atitude crítica. Evitamos, como Grüner, cair na armadilha de considerar o outro como di- ferente excluído. Faz longo tempo estamos discutindo como con- figurar um modelo de análise para a literatura e a cultu- ra com um olhar latino-americano. Alguns livros foram exemplares, como aquele que coordenou Ana Pizarro (1985). Os textos de Zilá Bernd e outros autores brasi- leiros em Escrituras Híbridas (1998) tomavam como base, entre outras, a teoria de García Canclini (1992) sobre as culturas híbridas nas Américas. Começavam assim a ela- borar uma linha da Literatura Comparada Interamericana nestas regiões marginais que demandam seu espaço pró- prio, ultrapassando, até, a apropriação “antropofágica” das culturas impostas por um passado colonial. O meu trabalho, ainda na linha desses teóricos e críticos latino-americanos, vem-se encaminhando pela vereda que parte dos textos de García Canclini (2004) e Zulma Palermo (2005) e configura o conceito de intercul- turalidade. De diferentes lugares de algum modo marginais, nos primeiros anos do presente século, estes pensado- res têm desenhado o conceito, que considero o centro descentrado da reflexão latino-americana atual. García Canclini faz suas pesquisas no México e publica sua obra sobre a interculturalidade em uma das poucas editoras espa- nholas “de tamaño medio” que, “con sedes en Barcelona, México y Buenos Aires” publicam obras de reflexão so- cial e cultural latino-americana, como ele próprio afirma em seu livro (García Canclini 2004, p. 121). As pesquisas de Zulma Palermo, por sua vez, situam-se na margem da margem. Ella trabalha em Salta, no NOA- Nordeste argentino, margem com respeito a Buenos Aires, que é espaço central para a Argentina, porém é margem para a 45 Europa e os Estados Unidos. Ela publica o seu livro de 2005 em Córdoba. Néstor García Canclini coloca um conceito abran- gente de cultura, como “el conjunto de procesos sociales de producción, circulación y consumo de la significación en la vida social” (Canclini 2004, p. 34). Aquilo “inter- cultural” (assim, como adjetivo) é definido por ele como el conjunto de procesos a través de los cuales dos o más grupos representan e intuyen imagi- nariamente lo social, conciben y gestionan las relaciones con otros, o sea las diferencias, or- denan su dispersión y su inconmensurabilidad mediante una delimitación que fluctúa entre el orden que hace posible el funcionamiento de la sociedad, las zonas de disputa (local y global) y los actores que la abren a lo posible. (Canclini 2004, p. 40) García Canclini passou de considerar apenas as “culturas híbridas”, para refletir sobre as tensões que se criam no espaço intercultural. Uma outra hipótese acerca da interculturalidade é co- locada por Zulma Palermo, com um sentido ativista e po- lítico, como lugar de resistência, como “operación políti- ca descolonizadora” (Palermo 2005, p. 179). Zulma situa, nessa perspectiva, uma intercultura, uma interlíngua, uma interliteratura, uma leitura contrastiva, semelhantes aos que postulamos nos princípios e nos projetos do nosso Centro de Estudos Comparativos, e na disciplina “Literaturas Comparadas Argentina e Brasileira” do Curso de Português, na Faculdade de Humanidades e Artes da Universidade Nacional de Rosario, Argentina. Coincido com Zulma Palermo na proposta de lei- tura contrastiva e também com García Canclini, em par- 46 ticular na sua análise da interculturalidade como tensão e negociação. No entanto, as leituras de ambos não coinci- dem totalmente entre elas, e na interpretação que Zulma faz de García Canclini se exerce também alguma forma de tensão intercultural. É verdade, todavia, que Zulma não se refere ao livro que estou aqui considerando, e a sua crítica orienta-se ao conceito de “hibridação”, que o próprio García Canclini iria discutir. Mas do que se tra- ta finalmente, do meu ponto de vista, é de descentrar o nosso olhar, para pensar a interculturalidade como espaço de questionamento da leitura imposta desde o momento da colonização.Uma metodologia possível Nada melhor do que aprender a ensinar fazendo o que se pretende ensinar a fazer. É o princípio que norteia a metodologia da disciplina “Literaturas comparadas ar- gentina e brasileira”, na UNR. A disciplina visa, de uma parte, a repor o valor linguístico do estudo da literatura para a aprendizagem de uma língua estrangeira; da ou- tra, a abordar a literatura como portadora e produtora de cultura. O enfoque comparatista se relaciona diretamente com o intuito de considerar a literatura como espaço e diálogo de culturas, do encontro com o outro, da inter- culturalidade. O programa da disciplina tem um componente histórico, no que diz respeito à periodização das litera- turas argentina e brasileira, que se sustenta nas nossas pesquisas. Desse ponto de vista histórico, é estudado comparativamente o gênero conto em cada um dos perío- dos. A escolha do gênero obedece a dois motivos: a breve extensão dos textos, que permite a análise comparativa 47 de grande número deles, e a produtividade do gênero em ambas as literaturas em todos os períodos, que facilita a comparação contrastiva sincrônica e diacrônica. São, em alguns casos, estudados ensaios e poemas, mas o eixo central é o conto. Inclui-se ainda uma parte diferenciada do programa, que estuda a problemática teórica e his- tórica da literatura infantil, e analisa obras do gênero de ambos os países. Ao serem comparados os textos, levam-se em consideração aspectos temáticos, mas também formais, incluído o trabalho com as línguas, suas variedades, suas realizações diatópicas, diastráticas e diafásicas. Analisam- se, aliás, as estruturas narrativas, as categorias do gênero, as manifestações retóricas, procurando as diferenças e os pontos de confluência. Seguem-se as orientações das te- orias da literatura, que os alunos adquirem na disciplina “Análise do texto literário em português”. Paralelamente são discutidos textos teóricos e críticos sobre a proble- mática da Literatura Comparada e a teoria dos gêneros textuais. Assim, o estudo da Literatura Comparada consti- tui um encontro interdisciplinar entre estudos literários, estudos linguísticos e estudos das culturas, que tecem uma rede entre textos, construída por tanto como efei- to de leitura/s crítica/s. O conceito de interculturalidade, com o seu olhar sobre as figuras do Outro, rege essas leituras, e dirige-se tanto às culturas quanto às línguas e às literaturas. Aquilo que se propõe como objeto de estudo é também elaborado na prática. O objeto da Literatura Comparada existe só na leitura. Os textos estão dados, mas é a leitura contrastiva que faz deles um objeto novo, plural, intercultural. Dando continuidade às reflexões, ao final deste capítulo, há uma atividade a realizar. 48 Referências bibliográficas ANDRADE, Mário de (1963). O baile das quatro estações. São Paulo: Martins. AGUIAR E SILVA, V. (1994). Teoria da Literatura. Coim- bra: Almedina. BERND, Zilá (org.) (1998). Escrituras Híbridas – Estudos em Literatura comparada interamericana. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS. ELIOT, T. S. (1997). “A função social da poesia”, in: En- saios de doutrina crítica. Lisboa: Guimarães Editores. GARCÍA CANCLINI, N. (1992). Culturas híbridas, estrate- gias para entrar y salir de la modernidad. Buenos Aires: Editorial Sudamericana. ________. (2004). Diferentes, desiguales y desconectados – ma- pas de la interculturalidad. Barcelona: Gedisa. GRÜNER, E. (2002). El fin de las pequeñas historias. De los estudios culturales al retorno (imposible) de lo trágico. Buenos Aires: Paidós. GUILLÉN, C. (1985). Entre lo uno y lo diverso. Introducción a la literatura comparada. Barcelona: Editorial Crítica. HAYAT, Faíza (2006). O evangelho segundo a serpente. Rio de Janeiro: Língua Geral. Kristeva, J. (1978). “Para uma semiologia de los paragra- mas”, in: Semiótica 1. Madrid: Fundamentos. PAGEAUX, Daniel-Henri (1988). “Literatura comparada e Hispanoamérica.” Palinure, Rev. del CRECIF, nº 4, Paris. PALERMO, Z. (2005), Desde la otra orilla. Pensamiento crí- tico y políticas culturales en América Latina. Córdoba: Alción Editora. PIZARRO, Ana (coord.) (1985). La literatura latinoamerica- na como proceso. Buenos Aires: CEDAL. 4949 ATIVIDADES PROPOSTAS Proponho aqui alguns exemplos de trabalhos que os estu- dantes – futuros professores – realizam e que podem orien- tar algumas atividades do estágio PRINCÍPIOS TEÓRICOS: a) Compare os começos das literaturas argentina e bra- sileira, levando em consideração a língua, o período histórico, as produções literárias, que caracterizam a época. b) Escolha um período das literaturas argentina e brasilei- ra em que situações comuns sejam dadas, e desenvol- va os traços fundamentais. c) Desenvolva de forma concisa os itens abaixo: 1. A problemática da periodização em Literatura Comparada. Diferentes formulações. 2. Proposta de periodização das Literaturas Com- paradas Argentina e Brasileira: O critério ado- tado para o programa da disciplina LCAB do Curso de Português da UNR. ANÁLISE COMPARATIVA DE TEXTOS LITERÁRIOS 1. Escolha um eixo de comparação entre os seguintes (pode escolher mais de um): a) língua (como tema e como forma) b) narrador c) personagens d) espaço e) tempo f) diegese (organização da história) g) aspectos temáticos relativos à sociedade e sua apresentação formal. 5050 2. Escolha um conto de Pago Chico, de Roberto J. Payró, e um conto de Papéis Avulsos, de Machado de Assis. 2.1. Situe os autores no período. 2.2. Analise comparativamente esses contos, segun- do o/s eixo/s escolhido/s. 3. Escolha um conto de El jorobadito, de Roberto Arlt, e un conto de Os contos de Belazarte, de Mário de Andrade 3.1. Situe os autores no período. 3.2. Analise comparativamente esses contos, segun- do o/s eixo/s escolhido/s. TRABALHO FINAL (de conclusão) ROTEIRO DE TRABALHO: 1. Quadro histórico-social dos períodos e breve conside- ração sobre a problemática da interculturalidade. 2. Análise 2.1. Escolher um gênero: A) conto B) literatura infantil C) poesia lírica 2.2 Dentro do gênero, escolher dois autores de um período (um brasileiro e um argentino) e um texto de cada um, pertencente aos livros lidos durante o desenvolvimento das aulas e que constam do programa. 2.2.1 Dar os traços gerais do gênero no qua- dro do período. 2.2.2. Situar os dois autores dentro do perí- odo, dando, comparativamente, as ca- racterísticas de sua escritura. 2.2.3 Comparar os livros de ambos os autores (organização, temas). 2..2.4. Comparar os textos escolhidos, dando to- dos os seus traços, segundo o gênero, e aplicando a análise comparativa a todas as categorias. 51 Capítulo aPontaMentos Para uMa reLeitura De O GUARANI: a MatriZ FoLHetinesCa e as traDuÇÕes FranCesas no sÉCuLo XiX Ilana Heineberg Se Peri e Ceci são referências conhecidas para grande parte dos brasileiros do século XXI, confirmando a inserção de O guarani (1857) na tradição literária nacio- nal, não se pode afirmar que o romance de José de Alen- car esteja bem cotado junto ao público e à crítica atuais. O discurso sobre a obra do escritor cearense reprova o artificialismo, a emotividade e o nacionalismo ingênuo, revelando que a recepção do autor permanece “herdeira de sua primeira recepção crítica” (Boechat 2003, p. 12). Ainda é possível ler com prazer O guarani nos dias de hoje? Como ajudar o público jovem a tirar proveito dessa leitura para compreender não apenas a vertente indianista do romantismo brasileiro, mas também o contexto literá- rio e jornalístico do século XIX? Propomos aqui que O guarani seja estudado em sala de aula a partir de dois as- pectos: sua inserção na matriz folhetinesca e sua recepção em âmbito internacional através das traduções francesas que foram feitas deste texto ainda no século XIX. 3 52 O romance-folhetim e a construção do romance brasileiro O guaranifoi inicialmente publicado nas páginas do Diário do Rio de Janeiro. Foram 59 episódios que circu- laram entre 1/1/1857 e 20/4/1857. A seguir, a própria tipografia do jornal imprimiu o romance em livro sem grandes modificações. Trata-se, portanto, de um roman- ce-folhetim, ou seja, de uma narrativa publicada de ma- neira seriada no espaço chamado de folhetim ou rodapé, rubrica localizada na parte inferior da página de um pe- riódico, geralmente na capa (confira Heineberg 2004 e Meyer 1996). O objetivo dos periódicos ao distribuir essa fatia de ficção cotidiana era, num primeiro momento, atrair e manter o número de assinantes, tornando-se então interessante para os anunciantes. Ou seja, o sucesso do romance-folhetim contribuía à saúde financeira do veí- culo. A ideia de utilizar o espaço do folhetim, que até então abrigava crônicas, para a ficção coube ao empresá- rio francês Émile Girardin, proprietário de La presse, em 1836. Girardin foi imediatamente imitado por inúmeros jornais franceses e estrangeiros. A descontinuidade da narrativa, a popularização e a diversificação do público leitor, a proximidade com o texto jornalístico e a práti- ca da leitura oral e coletiva explicam que, aos poucos, o romance-folhetim forjasse uma poética própria: multipli- cam-se as peripécias e os personagens, estes geralmente polarizados por um forte maniqueísmo; o narrador faz- se presente no texto e interpela o leitor para guiá-lo na intriga. No Brasil, o romance-folhetim aclimatou-se ra- pidamente, cumprindo uma dupla função: por um lado, tornou rapidamente acessíveis os últimos sucessos roma- nescos europeus para um público emergente e, por outro, 53 serviu de trampolim aos escritores nacionais, apresentan- do-se como alternativa para publicar e circular em um mercado editorial ainda pouco estruturado (Heineberg 2008, p. 498). Assim, o Jornal do Commercio publicou a nar- rativa brasileira O aniversário de D. Miguel em 1828 em 1839, apenas três anos depois do lançamento do romance-fo- lhetim pela matriz francesa. Vale lembrar que a impres- são de livros e jornais no Brasil só foi autorizada a partir de 1808, com a transferência da família real para o Rio de Janeiro. Antes disso, os autores nacionais precisavam passar por editoras e tipografias estrangeiras, geralmente portuguesas, a fim de circular no Brasil. O atraso editorial de 300 anos em relação à América espanhola explica a de- sestruturação do mercado editorial brasileiro e, portanto, o papel essencial da imprensa na publicação de autores nacionais e estrangeiros e na própria formação do gênero romance no Brasil. Aos estudar as narrativas publicadas entre 1839 e o final da década de 1870 no Jornal do Commercio, Diário do Rio de Janeiro e Correio mercantil, principais diários flumi- nenses, pude discernir três fases do processo de forma- ção do romance-folhetim: a mimética, a de aclimatação e de transformação do gênero.1 Vou expô-las brevemente antes de deter-me na publicação de O guarani. São exemplos da fase mimética diversos textos na- cionais publicados no folhetim do Jornal do Commercio em 1839, ano particularmente profícuo para autores brasilei- ros que, na década seguinte, passam a ser preteridos em favor de estrangeiros. Entre textos importados de autores populares franceses, como Paul de Kock, Eugène Scribe e Alexandre Dumas, esse diário sisudo e conhecido por 1. Abordei a formação do romance-folhetim em minha tese de doutorado (Heineberg 2004) e retomei posteriormente os principais pontos desse trabalho num capítulo publicado no Brasil (Heineberg 2008). 54 sua linha conservadora publica narrativas assinadas por brasileiros que trabalham como tradutores, cronistas e jornalistas. O que nos permite denominar esses textos de miméticos é justamente o fato de confundirem-se com textos importados que servem de modelo para a incipien- te produção nacional. A aparência de narrativa estrangei- ra decorre do fato de a maioria deles situar sua intriga na França, em Portugal ou na Itália. O que está por trás des- sa vontade, consciente ou não, de travestir-se de roman- ces estrangeiros? Provavelmente fatores variados, como uma exigência do jornal, a preferência do público e a pró- pria falta de hábito de se publicar romances nacionais. Para Flora Sussekind, a ficção nacional, para se construir, estabelece um “diálogo (mais ou menos) estreito, porém inevitável com o jornal, o romance e os folhetins estran- geiros, que parecem compreender a atividade literária possível do país na época” (Sussekind 2000, p. 99). Além da preferência pelo cenário europeu, en- contramos nos textos miméticos narradores que muitas vezes se confundem com tradutores. A abertura de A pai- xão dos diamantes, de Justiniano José da Rocha, é um bom exemplo: Será inventada, será imitada, será original a no- vela que vos ofereço, leitor benévolo? Nem eu mesmo que a fiz vo-lo posso dizer. Uma obra existe em dois volumes, e em francês, que se ocupa com os mesmos fatos; eu a li, segui seus desenvolvimentos, tendo o cuidado de reduzi -los aos limites de apêndices, cerceando umas, ampliando outras circunstâncias, traduzindo os lugares em que me parecia dever traduzir, subs- tituindo com reflexões minhas o que me parecia dever ser substituído; uma coisa só tive em vista, agradar-vos; Deus queira que tenha consegui- do. (Jornal do Commercio, 27/3/1839, p. 1) 55 Nem tradutor, nem autor, a definição mais apro- priada para essa tarefa que descreve o narrador de Jus- tiniano José da Rocha é a de adaptador. Os narradores da fase mimética figuram de maneira insistente no tex- to e sempre de maneira segura, autoritária e onisciente diante de um leitor que concebe como ingênuo e dócil. Exemplo disso são as inúmeros explicações e informa- ções enciclopédicas disseminadas nos textos. No entan- to, é justamente a insistência constante sobre os papéis narrativos do leitor e do narrador que acaba por revelar a inexperiência e a insegurança deste último. Entre 1839 e a década de 1850, os romances-fo- lhetins publicados nos três principais jornais do Rio de Janeiro passam a acompanhar a tendência nativista do romantismo. Fincam os pés no território nacional, ora optando por um panorama geral do Brasil, como encon- tramos em A providência (1854), de Teixeira e Sousa, ora seguindo uma tendência regionalista, fixando-se no inte- rior. A dimensão histórica é outro aspecto fundamental desses folhetins que dividem-se entre o resgate do passa- do colonial e a discussão de questões contemporâneas, como a escravidão. Os romances dessa fase de aclima- tação mantêm o molde folhetinesco. Uma característica marcante é a multiplicação de vozes e dos níveis narrati- vos e, consequentemente, das peripécias. É somente nas décadas de 1860 e 1870 que a pro- dução nacional folhetinesca consolida-se e deixa de lado a simples reprodução do modelo importado, o que não significa necessariamente a negação deste. Pelo contrário, os procedimentos narrativos apontam para o folhetines- co muitas vezes pelo viés do humor e da paródia. Na medida em que o sistema literário brasileiro está em vias de estabilização, a presença constante do narrador e os seus comentários sobre a narração do texto, que serviam unicamente para tornar a intriga e a narração claras para o leitor, agora, através do exagero, tornam o folhetinesco 56 risível. O melhor exemplo disso é a maestria com a qual Machado de Assis dirige-se ao leitor em seus contos e ro- mances, não mais para guia-lo, mas para impedir qualquer atitude conformista. O guarani e a vertente folhetinesca Parece-me evidente que O guarani situa-se no mo- mento de aclimatação. A busca da cor local, própria à estética romântica de Alencar, alia-se às técnicas folheti- nescas do suspense e da multiplicação das peripécias. Ou seja, trata-se de um romance construído aos moldes do folhetim mas com uma temática e sobretudo um projeto de construção da literatura nacional, idealizado pelo pró-prio Alencar e sistematizado por ele em 1872, no prefá- cio a Sonhos d’ouro intitulado “Benção paterna” (Alencar 1872[1959, vol. I]). A relação de Alencar com a imprensa2 também pre- cisa ser levada em conta para se compreender a dimensão folhetinesca de O guarani. Ocupou o cargo de folhetinista e de cronista jurídico no Correio mercantil entre setembro de 1854 e julho de 1855. Anteriormente, fora indicado para assinar o célebre folhetim do Jornal do Commercio, mas foi preterido por Justiniano José da Rocha, jornalista mais experiente. Em 1856, assumiu a chefia de redação do Diá- rio do Rio de Janeiro e transferiu para as páginas deste os fo- lhetins Ao correr da pena. Alencar buscou rapidamente aliar o jornalismo à literatura. Entre 18/6/1856 e 15/8/1856, publicou Cartas sobre “A confederação dos Tamoios” critican- do a obra poética de Gonçalves de Magalhães financia- da pelo imperador. A seguir, ofereceu aos assinantes do 2. Sobre esse aspecto da biografia de Alencar, consultar: Broca 1960 e Freches 1974-1975. 57 Diário sua primeira novela – Cinco minutos – fatiada em sete episódios e anônima como uma espécie de brinde de Natal. O sucesso se confirmou pela publicação imediata de O guarani, também anônimo, abrindo o ano de 1857. A viuvinha foi a terceira e última narrativa de Alencar pu- blicada no Diário, embora tenha sido bruscamente inter- rompida e somente retomada três anos depois na futura edição em livro. Fica evidente, portanto, que o jornalismo constituiu uma passagem importante para a consagração de Alencar enquanto romancista. Vê-se ainda que ele co- nhecia perfeitamente a importância da imprensa para a afirmação e a publicação de um escritor no Brasil de seu tempo. Alencar utilizaria inclusive a tipografia do Diário para publicar em livro seus primeiros romances.3 Em sua autobiografia intelectual Como e porque sou romancista, Alencar descreve como a redação de O guarani foi marcada pela pressão do jornalismo: No meio das labutações do jornalismo, oberado não somente com a redação de uma folha diária, mas com a administração da empresa, desem- penhei-me da tarefa que me impusera, e cujo alcance eu não medira ao começar a publicação, apenas com os dois primeiros capítulos escritos. 3. É importante notar que, no que diz respeito ao Guarani, Alen- car realiza uma edição em livro imediatamente após a publica- ção em folhetins. Uma nota preliminar assinada por “J. de Al.” é datada de “Fevereiro de 1857”, ou seja, quando o romance ainda circulava no Diário do Rio de Janeiro. Essa republicação quase concomitante justificaria inclusive, segundo o próprio Alencar, certas falhas do livro: “Este ensaio de romance na- cional é filho de uma inspiração de momento, foi escrito fo- lhetim por folhetim para o DIÁRIO. Não é pois senão um esboço ou para falar em linguagem de jornalista, uma prova tipográfica, que talvez algum dia me disponha a rever. Tem muitas incorreções de estilo, e talvez mesmo alguma inexati- dão de fatos” (Alencar 1857, p. 2) 58 Meu tempo dividia-se desta forma. Acordava por assim dizer na mesa do trabalho, e escrevia o resto do capítulo começado no dia anteceden- te para enviá-lo à tipografia. Depois do almoço entrava por novo capítulo que deixava em meio. Saía então para fazer algum exercício antes do jantar no “Hotel Europa”. A tarde, até nove ou dez horas da noite, passava no escritório da re- dação, onde escrevia o artigo editorial e mais o que era preciso. [...] Nossa casa no Largo do Rocio, n° 73 estava em reparos. Trabalhava eu num quarto do segun- do andar, ao estrépito do martelo, sobre uma banquinha de cedro que apenas chegava para o mister da escrita, e onde a minha velha casei- ra Ângela servia-me parco almoço. Não tinha comigo um livro, e socorria-me unicamente a um canhedo, em que havia em notas o fruto de meus estudos sobre a natureza e os indígenas do Brasil. (Alencar 1873[1958, pp. 147-148]) Escrito concomitantemente à publicação, o ro- mance carrega as marcas estilísticas desse ritmo simul- taneamente acelerado e descontínuo que acabaram por constituir a poética folhetinesca. Para contrabalançar a interrupção dos episódios e a possível incorporação de novos leitores no decorrer da publicação, o narrador in- cumbe-se a tarefa de guiar o público, cumprindo aquilo que Gérard Genette chama de uma “metalepse de autor” (Genette 1972, pp. 244-246), ou seja, o narrador em ter- ceira pessoa introduz-se repentinamente na ficção para guiar o leitor. Utilizando a primeira pessoa do plural, o narrador de O guarani toma o leitor pela mão, move-se com ele pelos cenários: “É necessário que tornemos ao lugar onde deixamos Loredano e seus dois companhei- ros” (Diário do Rio de Janeiro, 8/2/1857, p. 2). Esse recur- 59 so também é utilizado para retomar a narrativa de certos acontecimentos: “É tempo de continuar esta narração interrompida pela necessidade de contar alguns fatos an- teriores. Voltemos pois ao lugar em que se achava Lore- dano e seus companheiros [...]” (Diário do Rio de Janeiro, 27/1/1857, p. 1). A metalepse serve ainda para que o narrador formule questões visando a atiçar a curiosidade do público: “Que fazia aquele homem deitado que fin- gia dormir, e que tinha o punhal desembainhado na mão como se estivesse pronto a ferir? Que significa aquela pergunta da hora e aquele aviso de que todos dormiam? Que queria dizer a palha encostada à porta do escudei- ro?” (Diário do Rio de Janeiro, 16/2/1857, p. 1). Onipresen- te na narrativa, o narrador deve ainda dar a cada episódio uma certa autonomia em relação ao todo. Ou seja, precisa fornecer informações que permitam ao leitor situar-se na intriga independentemente do conhecimento dos episó- dios anteriores. Além disso, é preciso que cada folhetim se una ao subsequente, atendendo à sua vocação inicial de atrair novos assinantes para o jornal e de fidelizar os antigos. Essa é a função do suspense ao final de cada episódio que constitui o gancho para o seguinte. Para tanto, o nar- rador pode optar por fechar um capítulo com um acon- tecimento totalmente inesperado ou então surpreender o leitor, atiçando sua curiosidade pelo suspense total: “Cecília soltou um grito, e debruçou-se no parapeito da janela” (Diário do Rio de Janeiro, 29/1/1857, p. 1). Outra estratégia possível é antecipar certos fatos que serão nar- rados no episódio seguinte sempre mantendo certa dose de suspense: “Mal sabia ele [Álvaro] que nesse momento o fecho da clavina movido por um dedo seguro caía, e que a bala ia partir guiada pelo olhar certeiro do italiano” (Diário do Rio de Janeiro, 27/1/1857, p. 1). A promessa de continuidade é retomada no final ao pé da do folhetim através da inscrição “Continua”, uma adaptação do fran- 60 cês “La suíte au prochain numéro” (literalmente, a continua- ção no próximo número). A presença dessas características folhetinescas nos revela que, além de simplesmente submeter-se à pressão da escrita diária, Alencar soube realmente tirar proveito do suporte de publicação jornalístico. A principal prova disso é que cada capítulo de O guarani coincide perfei- tamente com o espaço do folhetim. Enquanto redator- chefe, vendo desfilar inúmeros romances-folhetins e, provavelmente, participando inclusive da edição desses, o escritor cearense conhece a importância do gancho para a continuidade da leitura e está consciente de que, mal fatiado pelo editor, um romance repleto de suspense e repetições não terá o mesmo efeito sobre o leitor. Afi- nal, o gancho, estrategicamente, é uma isca oferecida ao público: precisa estar colocado no final do folhetim. A repetição, por sua vez, constitui uma adaptação à prática de leitura4 folhetinesca que é, por definição, descontínua. Ou seja, só faz sentido quando se refere a fatos mencio- nados em episódios precedentes que provavelmente não estão diante dos olhos do leitor. Na leitura de um livro tradicional, pode-se facilmente voltar algumas páginas para rememorar-se dos fatosnarrados, ao passo que o suporte do jornal dificulta essa tarefa, pois não oferece o romance na sua totalidade. Ao observarmos a maioria dos folhetins estrangeiros, e mesmo brasileiros, publicada no corpus dos jornais estudados, fica evidente que eram ra- ros os romances-folhetins que ofereciam, como é o caso de O guarani, tanta adequação à leitura folhetinesca. Tra- ta-se de uma aliança perfeita entre jornalismo e literatura, 4. O uso da expressão “prática de leitura” é aqui tomado em- prestado de Roger Chartier (Chartier 1993, p. 80-81). Segundo o historiador do livro e da leitura, os suportes de impressão e a maneira como eram lidos (leitura em voz alta, silenciosa, co- letiva, individual etc.) determinam o próprio sentido do texto para cada leitor. 61 afinal não foi apenas a disposição do romancista Alencar em submeter-se à escrita diária e ao espaço do folhetim, mas também a boa vontade do editor-chefe Alencar em manter o corte do texto. Além dessas marcas textuais, a produção folheti- nesca ao “correr da pena” permite ao autor ter acesso às reações dos leitores e inclusive adaptar a intriga em função das expectativas do público. É muito conhecida a anedota, preservada pela família de Alencar, de que as primas (na versão de Araripe Júnior) ou as irmãs (na ver- são de Raquel de Queirós) o teriam obrigado a modificar o final do romance, em que todos morriam no incêndio da Casa do Paquequer. Cavalcanti Proença utiliza o de- poimento de Alencar sobre a escrita de O guarani que cita- mos acima para demonstrar que não havia tempo entre a escrita e a publicação para que “submetesse o romance a júri familiar; as irmãs e as primas liam o folhetim era mes- mo no jornal” (Proença 1958, p. 28). De qualquer forma, a publicação em folhetins impõe a todos os leitores um mesmo ritmo de leitura ditado pela imprensa diária, que promove uma pausa obrigatória entre os episódios que é propícia ao comentário, à divagação, à interrogação e às discussões com o autor. Assim, embora condenado a finalizar um episódio no final da manhã para a publicá-lo na mesma tarde, Alencar certamente tinha um retorno contínuo dos seus leitores, o que sem dúvida pesava no destino dos personagens. O depoimento de Taunay é conclusivo sobre o sucesso da edição em folhetins: [...] ainda vivamente me recordo do entusias- mo que despertou, verdadeira novidade emo- cional, desconhecida nesta cidade tão entregue às exclusivas preocupações do comércio e da bolsa, entusiasmo particularmente acentuado nos círculos femininos da sociedade fina e no seio da mocidade, então muito mais sujeita ao 62 simples influxo da literatura, com exclusão das exaltações de caráter político. Relembrando, sem grande exageração, o célebre verso : “Tout Paris pour Chimène a les yeux de Rodrigue”, o Rio de Janeiro em peso, para assim dizer, lia O guarani e seguia comovido e enleado os amores tão pu- ros e discretos de Ceci e Peri e com estremeci- da simpatia acompanhava, no meio dos perigos ardis dos bugres selvagens, a sorte vária e peri- clitante dos principais personagens do cativante romance, vazado nos moldes do indianismo de Chateaubriand e Fenimore Cooper, mas cujo estilo é tão caloroso, opulento, sempre terso, sem desfalecimento e como perfumado pelas flores exóticas das nossas virgens e luxuriantes florestas. Quando a S. Paulo chegava o correio, com muitos dias de intervalos então, reuniam-se muitos e muitos estudantes numa república, em que houvesse qualquer feliz assinante do Diário do Rio, para ouvirem, absortos e sacudidos, de vez em quando, por elétrico frêmito, a leitura feita em voz alta por alguns deles, que tivesse órgão mais forte. E o jornal era depois disputa- do com impaciência e pelas ruas se via agrupa- mentos em torno dos fumegantes lampiões da iluminação pública de outrora – ainda ouvintes a cercarem ávidos qualquer improvisado leitor. (Taunay 1923, pp. 85-86) Traduções francesas e a permanência do folhetinesco Ao estudar as traduções de O guarani para a lín- gua francesa ainda no século XIX, percebe-se que o ro- mance de Alencar suscitou interesse fora das fronteiras nacionais, afinal possui três publicações em francês. Ao 63 ser transferido para o contexto cultural francês, O guarani foi recebido como um romance folhetinesco? A cor local teria sido um atrativo? O que restou da classificação “ro- mance histórico” ou “indianista”, como a crítica nacional geralmente o aponta?5 Para responder a essas questões, convém nos focalizarmos na descrição dos suportes de publicação adotados e sobretudo no discurso que acom- panham o texto (prefácios, anúncios). O jornal Le Brésil, que publicou a primeira versão em francês de O guarani, em 1863, apesar das aparências, não era um periódico publicado francês. Semanário im- presso no Rio de Janeiro, redigido em francês, tampouco dirigia-se à comunidade francesa no Brasil. Tratava-se de um semanário transatlântico, como indica o subtítulo: “Esse jornal destinado a colocar o Brasil em relação com a Europa circula quatro vezes por mês na chegada e na saída dos paquetes transatlânticos”6 (Le Brésil, janeiro de 1863, s/d exata, p. 1). Ou seja, seu público era formado por brasileiros e europeus em deslocamento entre o Ve- lho e Novo mundo. A escolha do francês explica-se por ser a língua hegemônica do século XIX. O proprietário de Le Brésil, Flávio Farnese, assim como seus redatores, são oriundos do jornal Atualidade e defensores das ideias republicanas e liberais. Segundo o editorial publicado no primeiro número, o objetivo do novo veículo era “mos- 5. Augusto Meyer negou categoricamente essa ideia: “Eu por mim confesso humildemente que não vejo indígenas na obra de Alencar, nem personagens históricas, nem romances histó- ricos; vejo uma poderosa imaginação que transfigura tudo, a tudo atribui um sentido fabuloso e não sabe criar senão den- tro de um clima de intemperança fantasista” (Meyer 1958, p. 11). A respeito da recepção crítica da obra alencariana, con- sultar o capítulo IV “Ficção crítica”, de Paraísos artificiais (Boe- chat 2003). 6. “Ce journal destiné à mettre le Brésil en relation avec l’Europe paraît quatre fois par mois à l’arrivée et au départ des paquebots transatlantiques” (a tradução desta e de todas as citações do francês presentes nesse texto são de minha responsabilidade). 64 trar à Europa esse país tal como ele é do ponto de vista, social, político, literário, religioso, industrial e comercial”7 (id. ibid., p. 1), fazendo dele uma verdadeira “tribuna de propaganda”, conforme o anúncio publicado no Diário do Rio de Janeiro (10/1/1863, p. 1). Desse modo, a tradução anônima de O guarani no folhetim do Brésil deve ser entendida como uma forma de divulgação da produção literária nacional. É justamente desse modo que o romance será anunciado: “No próximo número, além de outros artigos sobre questões internas do Brasil, começaremos a publicação do Guarany, um dos romances brasileiros de maior mérito. Isso dará à Europa um espécime do nosso desenvolvimento literário”8 (id. ibid., p. 1). A tradução permaneceria incompleta depois do desaparecimento do veículo que teve uma circulação efêmera de poucos números. Quanto ao recorte dos epi- sódios, nota-se que cada capítulo não coincide com o es- paço de um folhetim, como era o caso da publicação no Diário do Rio de Janeiro. Muito diferente foi a tradução do romance de Alencar feita por Louis-Xavier de Ricard, um homem de letras francês que morara no Brasil na década de 1880. Acreditamos que a sugestão de publicar O guarani tenha partido do próprio tradutor, então colaborador do Droits de l’homme, diário conhecido por sua posição em favor de Dreyfus no caso que agitava a França naquele ano de 1899.9 Vejamos como o jornal anunciou o primeiro epi- sódio do romance brasileiro: 7. “montrer à l’Europe ce pays tel qu’il est sous le point de vue social, politique, littéraire, religieux, industriel et commercial”. 8. “Dansle prochain numéro, en outre d’articles concernant les affaires intérieurs du Brésil, nous commencerons la publi- cation du Guarany, l’un des romans brésiliens du plus grand mérite. Cela donnera en Europe un spécimen de notre déve- loppement littéraire.” 9. O caso Dreyfus foi um conflito social e político em torno da acusação de traição do capitão judeu Alfred Dreyfus que 65 Começamos hoje a publicação de um novo fo- lhetim: Os Aventureiros de O Guarani Esse romance de aventuras, o mais popular do mais célebre romancista em língua portuguesa José de Alencar, cativará certamente os nossos leitores e as nossas leitoras pela enérgica oposi- ção de caracteres, pela dramaticidade das peripé- cias e dos episódios inesperados e pelo pitores- co dos quadros no meio dos quais se desenvolve uma ação das mais patéticas que não deixará de interessar o leitor um só instante. O romance Os aventureiros foi traduzido espe- cialmente para Les droits de l’homme pelo nosso colaborador Xavier de Ricard. (Les droits de l’hom- me 15/01/1899, p. 1)10 dividiu a França entre 1894 e 1906. O primeiro julgamento sumário de Dreyfus em 1895 revelou o antissemitismo pre- sente nas forças armadas e em diversos setores da sociedade. A imprensa tomou parte nos debates, dividindo-se entre veí- culos defensores e acusadores de Dreyfus. O exemplo mais conhecido em defesa do capitão Dreyfus foi Émile Zola, com o célebre artigo J’accuse publicado em 1898 no jornal L’Aurore. O caso encerrou-se depois de um novo julgamento que ino- centou o capitão e com a sua reabilitação em 1906. 10. “Nous commençons aujourd’hui la publication d’un nouveau feuilleton: Les Aventuriers de Le Guarani Ce roman d’aventures, le plus populaire du plus célèbre ro- mancier en langue portugaise José de Alencar passionnera certainement nos lecteurs et nos lectrices par l’énergique opposition des caractères, le dramatique de l’imprévu des péripéties et des épisodes, et le pittoresque des tableaux au milieu desquels se déroule une action des plus pathétiques qui 66 Fica evidente que as questões do nacionalismo e do indianismo do romance em nada interessavam o ve- ículo que o publicou. Embora fosse um veículo voltado para a informação, parece-nos que o espaço do folhetim abarcava um público bastante amplo. O título do roman- ce em francês (designação da primeira parte na versão original) sintetiza perfeitamente o discurso que acompa- nha o romance: prioridade à aventura em detrimento da origem autóctone do herói. Ou seja, o interesse da pu- blicação explica-se pelas características folhetinescas do texto, sugerindo o maniqueísmo, a presença do suspense e o número elevado de peripécias que prometem man- ter o leitor fisgado e sob tensão. Em segundo lugar, a descrição da natureza contribui para a construção de um cenário pitoresco, exótico e, portanto, atrativo. No en- tanto, apesar dessas características, a origem do romance jamais é mencionada. José de Alencar torna-se, no anún- cio, “o mais célebre romancista em língua portuguesa”. Seu nome, no entanto, aparece com menos destaque do que o de seu tradutor. Em 1902, a editora popular Tallandier republi- cou a tradução de Ricard em sua coleção “Bibliothèque des grandes aventures”, voltada principalmente para o público juvenil, com ligeiras correções. As obras que integraram o mesmo selo eram muitas vezes de autores estrangeiros, embora a menção “tradução” não fosse mencionada sistematicamente. O carro-chefe da coleção era o romancista popular Louis Boussenard com sua série Le tour du monde d’um gamin de Paris. É interessante notar que a maioria dos textos de Boussenard era antes publica- da no Journal des voyages, periódico voltado para o público infanto-juvenil, contendo narrativas de viagem e aventu- ne laisse pas languir l’intérêt un seul instant. Le roman Les Aventuriers a été traduit spécialement pour les Droits de l’Homme par notre collaborateur Xavier de Ricard”, (Les droits de l’homme 15/01/1899, p. 1). 67 ra, artigos e ilustrações. Para Tallandier, a publicação pré- via em folhetins era certamente uma maneira de “testar” a narrativa junto ao público. A republicação posterior de romances-folhetins em livro era um procedimento bas- tante comum na época. A partir desses elementos, podemos inferir que Ri- card, depois da publicação em folhetins, optou por ado- tar um suporte condizente às características folhetines- cas. Uma mudança de título acompanhou a nova edição. Le fils du soleil (O filho do sol) apresenta certa familiaridade com outros títulos da coleção (como La fille des vangues ou Les faisaieurs de pluie), associando fenômenos da natureza e um ser humano que vive primitivamente, deixando entre- ver um gosto pelo exótico. Além disso, a alteração evitava a redundância entre o título da edição em folhetins, Les aventurier ou Le guarani, e o da coleção “Bibliothèques des grandes aventures”. Apenas uma discreta indicação do subtítulo entre parênteses – Les aventuriers ou Le guarani – remetia, na página de rosto, à publicação anterior. Ricard aproveitou a nova edição e o suporte do li- vro para redigir uma apresentação do romance brasileiro. O prefácio, dirigido a seu amigo Rémy Couzinet, ofere- ce algumas pistas importantes sobre a maneira como se desejava agora passar O guarani ao público francês. Num primeiro momento, o tradutor faz alusão à latinidade:11 “Já estamos por demais ameaçados de perdermos essa virtude de ponderação e equidade que constitui boa par- te do nosso gênio latino”12 (Ricard 1902, p. V). Ricard 11. O tema marcou as relações França-Brasil entre o final do sé- culo XIX e início do século XX, fazendo com que a França se visse como a “irmã mais velha das repúblicas latino-ameri- canas” (Rivas 2006, p. 243). A fraternidade latina ganha força depois da derrota da Guerra Franco-Prussiana (1870) e opõe- se às ideologias pan-eslavistas e pangermanistas. 12. “Nous ne sommes déjà que trop menacés de perdre cette vertu de pondération et d’équité qui est presque tout notre génie latin”. 68 defendera essas ideias quando dirigiu o jornal Le sud-amé- ricain,13 durante sua estada no Brasil e em artigos que saí- ram na imprensa francesa. A escolha da tradução é apre- sentada, portanto, como um passo em direção à América Latina: “devemos nos apressar em retomar a fecundidade íntima de outrora com os nossos compatriotas de raça. Essa tradução, meu caro, é uma tentativa nesse sentido”14 (id. ibid., p. V). Numa segunda parte do prefácio, Ricard trata de introduzir Alencar e O guarani. Alertando que não cederá à habitual mania dos tradutores de exagerar no mérito da obra, afirma com uma sinceridade surpreendente: “José de Alencar tem certamente o seu lugar e numa posição bastante honrosa na literatura brasileira. Mas ele não é um desses gênios indispensáveis cuja ausência faria falta na história intelectual da humanidade”15 (id. ibid., p VI). Ou seja, na interpretação de Ricard, Alencar teria um lugar de prestígio dentro da literatura brasileira, mas dispensável fora de seu sistema de origem. O tradutor não deixa de fazer referência à importância da literatura indianista de Alencar, explicando que o escritor provocou em seu país “um movimento interessante e útil rumo às origens indí- genas desse império imenso”16 (id. ibid., p VI). Com um lapso interessante, que, aliás, ele já cometera no anúncio do Les droits de l’homme, completa: “o romancista portu- guês, ao contrário [de outras nações americanas], fundava 13. Sobre a atuação de Ricard no periódico Le sud-américain, con- sultar: Batalha 2001. 14. “il faut nous hâter de reprendre nos fécondités intimes d’au- trefois avec nos compatriotes de races. Cette traduction, mon cher, ami, est une tentative vers ce retour”. 15. “José de Alencar a certainement une place marquée et à un rang fort honorable dans la littérature brésilienne. Mais il n’est pas un de ces génies indispensables dont l’absence ferait la- cune dans l’histoire intellectuellede l’humanité”. 16. “un mouvement intéressant et utile vers les origines indigènes de cet empire immense”. 69 a esperança da nascente nacionalidade brasileira na fusão da raça conquistada com a raça conquistadora”17 (id. ibid., p VI). O lapso que Ricard comete ao chamar Alencar de “romancista português” pode ser explicado pela própria posição do tradutor que, de fora, enxerga o projeto de Alencar como estando mais focado na legitimação da co- lonização do que na fundação da nacionalidade brasileira. Nas palavras do tradutor, Alencar pretende, através de sua obra: “legitimar a antiga conquista portuguesa atra- vés de uma assimilação tão íntima dos vencedores e dos vencidos que esses acabam por formar um povo novo em que não se pode mais distinguir um do outro numa posteridade que contém ambos”18 (id. ibid., p. VI). Considerações finais Levando-se em conta tanto os suportes nos quais O guarani foi publicado em francês quanto os discursos em torno do romance, parece-nos evidente que sua voca- ção folhetinesca inicial persistiu no contexto francês. No que diz respeito aos suportes, as traduções dos periódicos Le Brésil e Les droits de l’homme confirmam a adequação do romance de Alencar a esse espaço reservado ao entrete- nimento do leitor décadas depois da sua estreia no Diário do Rio de Janeiro. A peripécia, outra característica folheti- nesca, permaneceu em destaque quando o romance de Alencar passou do jornal para o livro na França, como 17. “le romancier portugais, au contraire [d’autres nations améri- caines], fondait l’espoir de la naissante nationalité brésilienne sur la fusion de la race conquise avec la race conquérante”. 18. “légitimer l’ancienne conquête portugaise par une assimila- tion, si intime des vainqueurs et des vaincus qu’ils forment un peuple nouveau où l’on ne puisse les reconnaître les uns des autres dans une postérité qui les contienne tous ensemble.” 70 prova sua inserção numa coleção de livros juvenis e de aventuras. Os anúncios que acompanharam as duas publi- cações em folhetins nas versões em francês não deixam de mencionar a cor local do romance. Le Brésil, que se pretende uma tribuna de propaganda do país na Europa, elegeu-o como um caso exemplar da literatura nacional. Já em Les droits de l’homme a cor local do cenário transfor- mou-se em algo pitoresco e exótico, sendo arrolada na lista de “qualidades” do romance-folhetim. Finalmente, o prefácio de Ricard na edição em livro revela um cer- to desprezo por Alencar. O tradutor preferiu valorizar o texto traduzido por sua latinidade e sua “ação singular- mente dramática e emocionante”19 (id. ibid., p. VIII), que faria dele um verdadeiro romance de aventuras. Originalmente escrito dia a dia à medida que era publicado no Diário do Rio de Janeiro, O guarani moldou-se perfeitamente ao modelo folhetinesco vindo da França, acrescentando a este a cor local tão necessária ao roman- tismo brasileiro. Tanto nas edições brasileiras seguintes, que nunca seriam consequentemente modificadas por Alencar, quanto nas traduções francesas constata-se, por- tanto, a permanência do aspecto folhetinesco. No entan- to, o discurso em torno dessas características amplamente presente nas traduções desaparece na maioria das edições atuais brasileiras. Por isso, a escrita folhetinesca é muitas vezes deixadas de lado quando se trabalha com O guara- ni em sala de aula. Ignora-se assim tanto a importância do romance-folhetim e da imprensa para a formação da literatura brasileira quanto o impacto da publicação em jornais sobre o próprio texto. Desse modo, ler O guarani como quem está diante de um antecessor das telenove- las talvez seja o melhor caminho para entendê-lo no seu contexto particular de publicação. Ao final deste artigo, propomos uma atividade a ser realizada pelo leitor. 19. “l’action singulièrement dramatique et émouvante.” 71 Referências bibliográficas ALENCAR, José de (1857). O guarani: romance brasileiro. Rio de Janeiro: Empresa Nacional do Diário. ________. (1872[1959]). “Benção paterna”, in: Obra com- pleta, vol. I. Rio de Janeiro: José de Aguilar, pp. 691-702. ________. 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Periódicos Diário do Rio de Janeiro (consultável a partir do site da he- meroteca: http://hemerotecadigital.bn.br) Le Brésil (Rio de Janeiro, 1863) Les droits de l’homme (Paris, 1899) 73 ATIVIDADES PROPOSTAS Para conhecer melhor os jornais e o contexto do romance-fo- lhetim, sugerimos trabalhar com os alunos a partir do site da Hemeroteca (http://hemerotecadigital.bn.br). Nele, pode-se consultar diversos jornais do século XIX e inclusive o Diário do Rio de Janeiro que publicou em seus folhetins O guarani. Utilizando a Internet, o aluno poderá realizar um trabalho transversal unindo as disciplinas da Literatura e da História. Primeira parte O professor entra no site da Hemeroteca e mostra aos alu- nos como efetuar a pesquisa cronológica. Aconselhamos que seja feita uma busca pelo título do periódico e, a seguir, por ano e número do jornal. Para encontrar rapidamente O guarani, é importante lembrar que o romance foi publicado de 1/1/1857 a 20/4/1857, geralmente na capa, raramente na segunda página. Para que diversos aspectos do romance-folhetim sejam abor- dados, sugerimos dividir a classe em grupos para que cada um deles realize uma parte da pesquisa. A seguir, propomos que cada grupo apresente aos outros os resultados obtidos e que, no fi nal, o professor promova uma discussão entre todos os grupos. Segunda parte (em grupos) Grupo 1: O jornal e o folhetim. Descreva oDiário do Rio de Janeiro. Escolha um número e procure apontar quais são as seções do jornal, o número de páginas, o lugar ocupado pelo folhetim, pelos anúncios publicitários, etc. Procure o nome de José de Alencar e aponte onde ele aparece e o destaque que tem. Compare o Diário do Rio de Janeiro com os jornais atuais que você conhece. 73 ATIVIDADES PROPOSTAS Para conhecer melhor os jornais e o contexto do romance-fo- lhetim, sugerimos trabalhar com os alunos a partir do site da Hemeroteca (http://hemerotecadigital.bn.brhttp://hemerotecadigital.bn.br). Nele, pode-se consultar diversos jornais do século XIX e inclusive o Diário do Rio de Janeiro que publicou em seus folhetins O guarani. Utilizando a Internet, o aluno poderá realizar um trabalho transversal unindo as disciplinas da Literatura e da História. Primeira parte O professor entra no site da Hemeroteca e mostra aos alu- nos como efetuar a pesquisa cronológica. Aconselhamos que seja feita uma busca pelo título do periódico e, a seguir, por ano e número do jornal. Para encontrar rapidamente O guarani, é importante lembrar que o romance foi publicado de 1/1/1857 a 20/4/1857, geralmente na capa, raramente na segunda página. Para que diversos aspectos do romance-folhetim sejam abor- dados, sugerimos dividir a classe em grupos para que cada um deles realize uma parte da pesquisa. A seguir, propomos que cada grupo apresente aos outros os resultados obtidos e que, no fi nal, o professor promova uma discussão entre todos os grupos. Segunda parte (em grupos) Grupo 1: O jornal e o folhetim. Descreva o Diário do Rio de Janeiro. Escolha um número e procure apontar quais são as seções do jornal, o número de páginas, o lugar ocupado pelo folhetim, pelos anúncios publicitários, etc. Procure o nome de José de Alencar e aponte onde ele aparece e o destaque que tem. Compare o Diário do Rio de Janeiro com os jornais atuais que você conhece. 74 Grupo 2: O suspense e o gancho. Releia alguns episódios de O guarani e procure pelo menos três exemplos de ganchos. Compare-os: são sempre construídos da mesma maneira? Quais as estratégias utilizadas pelo narrador? A partir desses exemplos, procure construir uma defi nição de gancho. Grupo 3: As repetições. Vimos que o narrador precisa relem- brar constantemente o leitor de acontecimentos narrados em outros episódios devido à particularidade da circulação em folhetins. Procure exemplos de repetições e explique a sua função no texto. Grupo 4: Narrador interpela o leitor. O narrador folhetines- co atua muitas vezes como um guia para o leitor. Onipotente e onisciente, é capaz de imobilizar a ação dos personagens enquanto dirige-se diretamente ao leitor. Encontre exemplos dessa prática e explique qual é a sua função no texto. Grupo 5: Multiplicação das peripécias. Num romance-folhe- tim que se preze, há muitas ações, nem sempre verossímeis. Encontre exemplos em O guarani e explique qual é o efei- to dessas peripécias sobre o leitor atual e sobre o leitor da época. Terceira parte (discussão fi nal) A partir das informações apresentadas pelos grupos, o pro- fessor convida os alunos a compararem as estratégias folhe- tinescas do gancho, da interpelação do leitor, da repetição, etc. Qual a utilidade dessas práticas na publicação em jor- nal? Como elas são percebidas quando lidas em um suporte tradicional como o livro? Enfi m, qual a impressão que essas características folhetinescas causam no leitor que desconhe- ce o contexto folhetinesco de O guarani? É importante co- nhecer o contexto de publicação na imprensa para compre- ender a recepção do romance em seu tempo? 74 Grupo 2: O suspense e o gancho. Releia alguns episódios de O guarani e procure pelo menos três exemplos de ganchos. Compare-os: são sempre construídos da mesma maneira? Quais as estratégias utilizadas pelo narrador? A partir desses exemplos, procure construir uma defi nição de gancho. Grupo 3: As repetições. Vimos que o narrador precisa relem- brar constantemente o leitor de acontecimentos narrados em outros episódios devido à particularidade da circulação em folhetins. Procure exemplos de repetições e explique a sua função no texto. Grupo 4: Narrador interpela o leitor. O narrador folhetines- co atua muitas vezes como um guia para o leitor. Onipotente e onisciente, é capaz de imobilizar a ação dos personagens enquanto dirige-se diretamente ao leitor. Encontre exemplos dessa prática e explique qual é a sua função no texto. Grupo 5: Multiplicação das peripécias. Num romance-folhe- tim que se preze, há muitas ações, nem sempre verossímeis. Encontre exemplos em O guarani e explique qual é o efei- to dessas peripécias sobre o leitor atual e sobre o leitor da época. Terceira parte (discussão fi nal) A partir das informações apresentadas pelos grupos, o pro- fessor convida os alunos a compararem as estratégias folhe- tinescas do gancho, da interpelação do leitor, da repetição, etc. Qual a utilidade dessas práticas na publicação em jor- nal? Como elas são percebidas quando lidas em um suporte tradicional como o livro? Enfi m, qual a impressão que essas características folhetinescas causam no leitor que desconhe- ce o contexto folhetinesco de O guarani? É importante co- nhecer o contexto de publicação na imprensa para compre- ender a recepção do romance em seu tempo? 75 Capítulo aPontaMentos CoGnitiVos Para uMa DiDÁtiCa Da Literatura José Leite de Oliveira Junior Entendendo que toda disciplina convoca uma didática própria, espero que este texto possa suscitar elementos para a construção de uma Didática da Lite- ratura1 assentada sobre bases cognitivas que respeitem a progressão intelectual dos educandos. Ao contrário do que pode parecer, o tema é dos mais lacunosos dentre os múltiplos ramos de aplicação da Didática. Embora muito se discuta sobre a importância do texto literário na escola, pouco se produziu sobre o assunto, pelo menos sob um enfoque cognitivo. Quando falo sobre o domínio cognitivo, não me refiro somente às informações teóricas ou historiográfi- cas nas aulas de Literatura. Importa lembrar que o texto literário também instaura uma forma particular de co- nhecimento. Acreditar que o texto literário deve aparecer somente depois de serem apresentadas informações con- 1. Utilizo inicial maiúscula para designar a disciplina Literatura e minúscula para o emprego comum dessa palavra. 4 76 textuais sobre o autor e sua época é prova de desconhe- cimento de que o texto literário já é, em si, uma forma privilegiada de conhecimento. A apreciação de um poema, por exemplo, consi- derando-se a riqueza de recursos da linguagem, no plano de expressão, e a sensibilidade de representação dos sen- timentos humanos, no plano de conteúdo, constitui uma oportunidade de construção cognitiva e afetiva para os educandos. Se o poema agradou, então nada mais opor- tuno do que falar ou, ainda melhor, solicitar que os alunos busquem informações sobre quem o escreveu e em que época isso ocorreu. Para dar outro exemplo, a leitura pré- via de um capítulo do romance Vidas secas, de Graciliano Ramos, traz informações sobre o estilo individual e o de época na própria fonte. Valores (temas) e representações (figuras),2 elementos da narrativa, discurso indireto livre, figuras de linguagem, tudo isso constitui matéria de estu- do. E é justamente essa matéria que dará sentido às infor- mações que cercam essa produção literária, no que ficou conhecido como Romance de Trinta. Textos da crítica e da historiografia literárias certamente complementariam a construção das diversas etapas cognitivas, mas, sob ne- nhuma hipótese, substituiriam a leitura da própria obra. A literatura é possivelmente a mais antiga forma- lização do conhecimento humano. Não por acaso, seu estudo motivou filósofos como Platão e Aristóteles a re- fletir sobre o tema. Curiosamente, o que coloca Aristó- teles à frente dePlatão, pelo menos segundo uma visão contemporânea do fenômeno literário, foi o fato de que a Platão interessou a função da literatura na sociedade, en- quanto Aristóteles se concentrou no texto literário como objeto de estudo, ou seja, como produção particular do 2. Temas e figuras são categorias semióticas da semântica discur- siva. Recomendo uma leitura do assunto em Greimas; Cour- tés (2008), Barros (2002) e Fiorin (2005). 77 conhecimento humano. Segundo Gonçalves e Bellodi (2005, p. 40), “Platão advoga a necessidade de observar a natureza para se chegar à verdade (…) sem admitir que a Literatura também é, entre outras coisas, uma forma de conhecimento”. No entanto, para essas mesmas autoras, Aristóteles revelou muito mais sobre a natureza da obra literária, chegando a uma concepção do texto como uma unidade constituída de partes inseparáveis e articuladas entre si, ou seja, algo que se assemelha à noção de es- trutura, conceito usado desde o século dezenove até a atualidade (Gonçalves e Bellodi 2005, p. 45). Para Proença Filho (1992, p. 37), “O discurso da literatura se caracteriza por sua complexidade”. E essa complexidade precisa ser examinada em sala de aula. Como fenômeno estético, o texto literário não só trata das coisas do mundo, mas cria um mundo próprio me- diante a ficção. Não um mundo desligado da realidade, mas sim uma versão virtual que fornece lentes privilegia- das para entender as coisas do mundo. O mesmo Proença Filho chama atenção para a “multissignificação” (p. 38), para o “predomínio da conotação” (p. 40), para a “ênfase no significante” (p. 42), dentre outras características do discurso literário. A obra literária é matéria mais do que suficiente para todas as etapas cognitivas de uma experiência de en- sino-aprendizagem. E poucas matérias harmonizam tão bem a fruição ao conhecimento como a Literatura, na condição de que a prática pedagógica coloque a aborda- gem do texto literário em primeiro lugar. Ora, educar é também proporcionar oportunidade de sensibilização e de construção de um lazer produtivo. Pelas obras literárias, chega-se ao hábito da leitura, que serve ao lazer, à sensibilização e à cultura geral e, por que não, à tomada de consciência sobre a condição existen- cial e sobre o papel de protagonista na história de uma comunidade, seja esta a região, o país ou mesmo o plane- 78 ta. Afinal, por um lado, “A literatura é veículo sinfrônico que apaga as distâncias e as idades” (Castagnino 1969, p. 28), essa “emoção criadora” que tem o condão de interli- gar autores e leitores, independentemente de espaço e de tempo; mas, por outro, a literatura também é instrumento de combate, já que o escritor, segundo Sartre (2004, p. 55), não escreve para um “leitor universal”, o que seria utópico, mas a pessoas que, igualmente a quem escreve, não são verdadeiramente livres na sociedade atual. En- fim, os escritores não podem escapar à história: “Escritu- ra e leitura são as duas faces de um mesmo fato histórico, e a liberdade à qual o escritor nos incita não é uma pura consciência abstrata de ser livre” (Sartre 2004, p. 57). No tocante a uma Didática da Literatura, a maior parte dos pesquisadores aponta para dois focos: o peda- gógico e o didático. Pedagogicamente, o educando deve estar no centro das atividades de sala de aula. Didatica- mente, o texto literário deve ocupar o centro das infor- mações e experiências. Assim entendido, seria mais eficaz uma aula centrada na experimentação do próprio aluno e concentrada na complexidade do texto literário. Aulas expositivas maçantes, que usem o texto literário somente como pretexto e que forneçam apenas quadros classifica- tórios superficiais sobre autores e obras, estariam fora de cogitação na contemporaneidade. Não custa acrescentar que Literatura é patrimônio cultural que passa de geração a geração. Os mitos, os poe- mas, as letras de música, as peças de teatro, os contos e os romances constituem parte essencial da cultura. A iden- tidade de um povo, de uma nação ou de uma civilização tem relação direta com seu patrimônio literário, cabendo inapelavelmente a quem ensina Literatura proporcionar ao educando o acesso a essa herança. Numa clara visão política sobre o assunto, Antonio Candido (1995, p. 263) assim termina um de seus ensaios mais famosos, em que apresenta o acesso ao texto literário como parte dos Di- reitos Humanos: 79 Uma sociedade justa pressupõe o respeito dos direitos humanos, e a fruição da arte e da lite- ratura em todas as modalidades e em todos os níveis é um direito inalienável. Borges (1985, p. 8) faz lembrar que os muçulma- nos chamam os israelitas de “o povo do livro” e diz que cada país tem seu escritor: “A Inglaterra escolheu Shakes- peare (…). A Alemanha é representada por Goethe. (…) Na França não se escolheu um autor, mas tende-se para Victor Hugo. (…) A Espanha é representada por Miguel de Cervantes.” (p. 9) Borges não faz alusão a Portugal, mas, se o fizesse, obviamente apresentaria Camões como ícone lusitano. E não só pela grandiosidade de Os lusíadas, mas também pela sensibilidade de seus sonetos. Se tão valorosa é a arte literária como objeto de estudo, então o planejamento da aula de Literatura não pode resumir-se a um mero roteiro a ser seguido pelo educador. Isso seria reduzir seu valor político-pedagógi- co. Um plano de aula é uma redação técnica que faz parte de um conjunto maior de textos voltados para o plane- jamento curricular. O plano de aula subordina-se a um plano de unidade e este, a um plano curso. Ora, o plano de curso faz parte do currículo, por sua vez determinado pelo projeto político-pedagógico da escola. A escola tem autonomia para estabelecer seu projeto, desde que não fira a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que es- tabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Vale ressaltar que a conhecida LDB é uma lei complementar, isto é, já estava prevista no texto da Constituição Federal de 1988. Resumindo, o plano de aula é uma peça de nature- za política, tendo como ascendente mais alto nada menos do que nossa Carta Magna. Nas reuniões que antecedem o período letivo, os professores fazem o plano de curso, dividindo-o em 80 planos de unidade. Por sua vez, o plano de unidade se desdobra em planos de aula. Na terceira série do ensino médio, por exemplo, o plano de curso costuma abranger a periodização literária que vai do início do século vinte até os dias de hoje. Considerando-se esse período, é pos- sível desenvolver os seguintes planos de unidade: Impres- sionismo,3 Primeira Fase do Modernismo, Segunda Fase do Modernismo, Pós-Modernismo, Literatura Marginal, Literatura Contemporânea. Cada unidade, por sua vez, subdivide-se em planos de aula. Assim, a unidade da Pri- meira Fase do Modernismo poderia ser desenvolvida em três planos de aula: Vanguardas Modernistas, Semana de Arte Moderna, Correntes Modernistas Brasileiras. Nada impede, no entanto, que se faça um plano de curso e, em seguida, os planos de aula, dispensando-se os planos de unidade. Evidentemente, tal divisão não é novidade. Já faz parte do cotidiano dos professores de Língua Portuguesa do Fundamental e do Ensino Médio. O problema é que essa distribuição de conteúdos não traz em seu bojo o al- cance cognitivo pretendido na relação ensino-aprendiza- gem. Em outras palavras, o fato de se elencar um tópico como “Segunda Fase do Modernismo”, para alunos da terceira série do Ensino Médio, nada diz sobre se tal con- teúdo se refere ao conhecimento, à compreensão, à apli- cação, à análise, à síntese e à avaliação (crítica), ou seja, as seis etapas da Taxionomia de Bloom concernentes ao domínio cognitivo (Bloom 1976). O desdobramento dis- so é preocupante. Se não há uma consciência do nível 3. Para alguns, Pré-Modernismo, termo que particularmen- te considero equivocado, já que autores como Euclides da Cunha ou Monteiro Lobato, considerados pré-modernistas, não forampreparadores do Modernismo. Lobato, inclusive, se insurgiu contra a estética expressionista de Anita Malfatti no famoso artigo “A Propósito da Exposição Malfatti”, que saiu na edição de O Estado de S. Paulo de 20 de dezembro de 1917. 81 cognitivo pretendido numa aula de Literatura, então a aula corre o risco de cair na velha rotina de memorização de autores, estilos de época e títulos de obras literária. E mais. Uma avaliação construída sobre tal inconsciência tende a ser improdutiva e não poucas vezes injusta e de- sestimulante para os alunos. Sabendo-se que as competências e habilidades hierarquizadas na forma dos objetivos educacionais representam etapas que não admitem saltos, a falta de consciência desses pressupostos cognitivos pode levar a situações de fracasso, tanto para quem tenta aprender como para quem pretende ensinar. Por exemplo, se não há conhecimento (informação prévia) sobre metáfora, não é possível compreendê-la (perceber que a metáfora é uma analogia); se não há compreensão sobre metáfora, não se pode aplicar essa categoria a um texto; se não se aplica a metáfora na apreciação de um texto, não é pos- sível analisá-lo do ponto de vista metafórico, sabendo- se que a metáfora funciona como conector de isotopias num texto,4 ou seja, estabelece mais de uma possibilidade de leitura de uma texto; se não se faz uma análise metafó- rica de um texto, não se chega a uma síntese sobre o valor da metáfora na construção de um texto como um todo; e, finalmente, se não se chega a uma síntese sobre esse valor no texto em sua totalidade, não é possível o aluno avaliar o emprego da metáfora, por exemplo, no estilo in- dividual ou de época postos em estudo. Assim, não basta apresentar a metáfora como assunto no plano de aula, 4. Conceito de isotopia é um conceito da Semiótica de Grei- mas. Quando se emprega a metáfora, pelo menos dois planos semânticos se articulam. A permanência de cada um desses planos, ao longo do texto, é uma isotopia. Quando Camões diz “Amor é fogo que arde e não se vê”, a metáfora conecta o plano semântico do “amor” aos planos da combustão (“fogo que arde”) e da visualidade (“não se vê”). Para maior aprofun- damento, consultar: Greimas; Courtés (2008, pp. 275-278); Barros (2002, pp. 124-130); Fiorin (2005, pp. 112-118). 82 mas sim situá-la progressivamente, desde a competência da memória (conhecimento) até se chegar à competência crítica (avaliação). A redação de um plano de aula pode variar muito, dependendo da orientação didático-pedagógica adotada na escola ou da tendência pessoal do professor. Para os fins específicos deste texto, retomo um esquema que tal- vez não se afaste, pelo menos na essência, da maioria dos planos de aula. Cada tópico desse esquema será retoma- do, a bem da clareza conceitual. Esquema do plano de aula: Cabeçalho, Assunto, Conteúdo, Objetivos, Avaliação, Procedimentos e crono- grama, Meios auxiliares, Bibliografia, Observações. • Cabeçalho: Apresenta os dados da escola, da sé- rie, data, disciplina, professor, equipe de pro- fessores ou seção de ensino. • Assunto: Indicação da unidade didática e título da aula. Eis um exemplo: Unidade: Romantis- mo. Aula: O indianismo de José de Alencar. • Conteúdo: Especificação dos tópicos que serão desenvolvidos na aula. Exemplo, supondo-se que a aula trate do tema indigenista em José de Alencar: O índio idealizado. Representação do índio em Ubirajara. Índios do bem e do mal em O guarani. Apreciação de um trecho de O guarani. Caetano Veloso cita Peri, na canção “Um índio”. Leitura transversal: O índio hoje (estudo de uma reportagem). • Objetivos: Competências e habilidades espera- das após a experiência da aula. Usam-se aqui os verbos no infinitivo do domínio cognitivo da taxionomia de Bloom (ver adiante), que abrangem seis áreas, da operação mais simples à mais complexa (do conhecimento à avalia- ção). Muito importante frisar que o objetivo 83 é do aluno, e não do professor. Na redação do plano de aula, devem-se empregar verbos referentes a comportamentos observáveis do aluno. Assim, devem ser evitados verbos de sentido muito abrangente, como “entender” ou “conhecer”, ou formulações relativas ao professor, como “Fazer com que o aluno...” ou “Proporcionar aos alunos...”. Como os verbos estabelecidos nos objetivos já indicam a competência ou a habilidade a ser avaliada, eles são basicamente os mesmos utilizados em questões de prova: conceituar, identificar, clas- sificar, sublinhar, resumir, etc. Mas isso não basta. É fundamental saber em qual dos seis níveis cognitivos se situa o objetivo proposto. • Avaliação: Forma de verificação dos objetivos traçados. Vale ressaltar que a avaliação se ba- seia nos objetivos já traçados. Alguns exem- plos: Observação das respostas apresentadas pelos grupos. Aplicação de um teste. Correção dos exercícios recomendados. • Procedimentos e cronograma: Enumeração das ações do professor, colocando-se os minutos previstos para cada uma delas entre parênte- ses. Exemplo: Apresentação do assunto e dos objetivos no quadro (2 min). Exposição inicial sobre o poema a ser estudado: “Autopsico- grafia”, de Fernando Pessoa, com técnica de predição sobre o significado do título (8 min). Formação em fileiras para a leitura do poema, de início silenciosa e depois expressiva, a ser feita por um dos alunos (10 min). Formação de grupos para redação de uma paráfrase do texto (20 min). Formação em semicírculo e apresentação das paráfrases, seguida de co- mentário conclusivo do professor (10 min). 84 • Meios auxiliares: Material necessário à aula, como quadro, livros, cartazes, projetores, den- tre outros. • Bibliografia: Referências bibliográficas da aula, a exemplo do livro didático e outras fontes de consulta. • Observações: Anotações necessárias, como adaptações da aula dependendo de circunstân- cias, como o número de alunos, o horário, a disponibilidade de um aparelho, etc. Vale lembrar que se faz um plano não como um roteiro inflexível, mas sim como uma previsão que pode e deve ser adaptada à experiência real. Passo agora mais especificamente a considerações sobre a elaboração de objetivos educacionais no âmbito da Literatura, desde o conhecimento até a avaliação. Para começar, faço uma releitura das categorias do domínio cognitivo, segundo Bloom (1976). 1. Conhecimento: Trata-se do nível cognitivo mais elementar. Diz respeito a competências e habilidades da memória. O conhecimento abrange as informações necessárias a uma experiência de ensino-aprendizagem. As in- formações prévias a serem recuperadas numa sondagem ou preparatórias para um novo assunto estão no domínio do conhecimento. Bloom (1976, p. 173) aponta alguns exemplos de atividade literária referentes ao nível cog- nitivo do conhecimento: “Familiaridade com as formas e convenções dos principais tipos de obras; por exemplo, poesia, peças teatrais (…).” Eis alguns exemplos de objetivos que proponho para a aula de Literatura, no nível do conhecimento: reconhecer, dentre as for- 85 mas poéticas, qual delas é um soneto; situar o período histórico em que se desenvolveu o Ro- mantismo no Brasil; distinguir os autores ro- mânticos brasileiros numa lista de escritores de diversos períodos literários; sublinhar, no texto dado, três expressões com sentido figurado; listar três características significativas da poesia modernista; ordenar cronologicamente os pe- ríodos literários da lista dada; relacionar a co- luna dos autores à dos respectivos romances; marcar a alternativa em que aparece um exem- plo de hipérbole; associar as frases da primeira coluna às personagens do romance estudado, listadas na segunda coluna. 2. Compreensão: Este segundo nível cognitivo é entendido como a percepção consciente de conteúdos. Sabe-se que alguém compreendeu um conceito se for capaz de dizê-lo ou rees- crevê-lo com outras palavras. A tradução e a paráfrase são operações cognitivas do nível da compreensão.Bloom (1976, p. 175-176) apre- senta o seguinte exemplo como competência de compreensão: “A capacidade de compre- ender enunciações não literais (metáfora, sim- bolismo, ironia, exagero).” Deixo aqui alguns exemplos de objetivos do nível da compreen- são: reescrever a estrofe na forma de prosa; apresentar uma expressão metafórica nova, a partir do modelo dado; listar três exemplos de metonímia tirados de frases usadas colo- quialmente; distinguir um exemplo de rima rica e outro de rima pobre no poema dado; apresentar uma nova versão para cada um dos parágrafos, retirados do romance estudado; reordenar os parágrafos da crônica, conside- rando-se a progressão narrativa. 86 3. Aplicação: O terceiro nível cognitivo pode ser constatado na competência ou habilidade de empregar dados ou conteúdos já compreen- didos em situações novas. A aplicação é tanto mais eficaz quanto mais diversificados os tex- tos. Apresentações de equipe e dramatizações são formas motivadoras de levar os alunos à passagem do nível da compreensão para o da aplicação. Na Literatura, são exemplos de ob- jetivos ligados ao nível cognitivo da aplicação: apresentar um poema dadaísta com base na “Receita de poema dadaísta”, de Tristan Tza- ra; apresentar um jogral com base no poema “Operário em construção”, de Vinícius de Moraes; reescrever um capítulo de Vidas Se- cas, de Graciliano Ramos, em forma de teatro; identificar em pelo menos cinco dos capítulos do romance Dom Casmurro exemplos do em- prego da metonímia; confrontar a representa- ção da mulher nos textos dados, sendo um do Romantismo, outro no Naturalismo e um ter- ceiro da literatura atual, explicando qual das duas representações do século dezenove mais influencia a prosa contemporânea. 4. Análise: O quarto nível cognitivo pode ser entendido como uma visão estrutural ou sis- têmica de algo, ou seja, a consciência da rela- ção entre as partes e o todo. A análise de uma obra literária completa, como um romance, por exemplo, depende de uma visão estrutu- ral dos elementos da narrativa (tipologia de personagens, disposição do tempo, represen- tação do espaço, modos de narrar, etc.) e dos recursos estilísticos que conferem a literarie- dade do texto. Uma análise literária depende da compreensão e da aplicação das categorias 87 analíticas em questão (a tipologia das perso- nagens, por exemplo). Exemplos literários de objetivos cognitivos no nível da análise: classificar as personagens principais e secun- dárias de Senhora, de José de Alencar; anali- sar o enredo de “A triste partida”, de Patativa do Assaré, considerando as categorias analí- ticas da apresentação, complicação, clímax e desfecho; relacionar os estados emocionais da protagonista com o ambiente em que ela se encontra ao longo do romance apreciado pela equipe; apresentar as semelhanças ou os contrastes na descrição romântica do sertão, considerando-se os textos dados, um de José de Alencar, em O sertanejo, e outro da primeira parte de Os sertões, de Euclides da Cunha; rees- crever e ilustrar a peça de teatro estudada no formato de história em quadrinhos. 5. Síntese: O resultado lógico de uma análise bem conduzida é uma visão de conjunto so- bre o que se estuda. O resumo de um roman- ce é um exemplo de síntese. Uma compilação também é um recurso que exige uma visão de conjunto de uma obra. Um período lite- rário estudado também pode ser objeto de síntese. Na dinâmica de grupo, a síntese pode ser solicitada na forma de seminários, com a ilustração de cartolinas ou esquemas. Exem- plos de objetivos relacionados com o nível cognitivo da síntese: apresentar o enredo de A Moreninha, de Joaquim Manuel de Macedo, num parágrafo único de, no máximo, dez fra- ses; elaborar um esquema com os principais momentos da Semana de Arte Moderna; criar uma entrevista imaginária com Guimarães Rosa; redigir uma reportagem, supondo-se 88 que Bentinho, personagem de Dom Casmurro, de Machado de Assis, prestasse um depoi- mento sobre a morte do amigo Escobar. 6. Avaliação: No nível cognitivo mais alto, en- tende-se que alguém seja capaz de avaliar o próprio objeto da aprendizagem. Avaliação aqui, vale a pena lembrar, não é aquela de quem ensina, mas de quem aprende, ou seja, é o mesmo que juízo crítico ou criativo so- bre algo. A percepção dos valores implícitos no que foi estudado e a relação desses valo- res com outros mais amplos da sociedade são operações esperadas para este nível. A litera- tura tem valores estéticos (literariedade), mas não só. Há toda uma representação do indi- víduo e da sociedade que merecem conside- ração e despertam calorosos debates em sala de aula. Mas é necessário apresentar critérios e regras para uma avaliação ou julgamento efi- caz, sob pena de as aulas se transformarem num rol de exposições meramente subjetivas, desfocadas do essencial posto em discussão. Alguém que não avançou nas etapas anteriores terá, quando muito, uma participação inconsis- tente e evasiva num debate. O convite não só à crítica de conteúdos apreciados, mas também à autoavaliação é sempre bem-vindo para co- roar uma etapa de estudos. Exemplos de obje- tivos situados no nível cognitivo da avaliação: apresentar à turma uma visão crítica sobre os projetos elaborados sobre o conto brasileiro contemporâneo; elaborar uma resenha crítica sobre o romance estudado pela equipe; escre- ver um pequeno artigo literário sobre o roman- ce Agosto, de Rubem Fonseca, a ser publicado na página da turma; relacionar a crítica de Eu- 89 clides da Cunha em Os sertões à invasão de comunidades populares nos dias de hoje; apre- sentar a defesa de João Romão, personagem de O cortiço, de Aluísio de Azevedo, no tribunal da turma; relacionar a forma e o conteúdo da poesia concreta com o contexto histórico em essa tendência estética se estabeleceu no Bra- sil; escrever uma carta imaginária a um autor do período literário estudado, posicionando-se sobre o valor de sua obra. Em função dessas metas cognitivas, ao lado de ou- tras, do domínio afetivo, é que se propõe o planejamento. Os verbos usados na redação dos objetivos educacionais são os mesmos da avaliação, como se pôde verificar nos exemplos dados. Afinal, o que é a avaliação senão a veri- ficação dos objetivos, mediante instrumentos adequados? Assim, desde a simples observação do comportamento dos alunos, passando por exercícios, projetos, testes e provas, tudo visa a verificar se os objetivos foram atingi- dos pelos alunos. A utilização do livro didático, de filmes, de músicas e das indispensáveis obras literárias, tudo isso depende do que se pretende que os alunos atinjam, passo a passo, etapa por etapa, desde o conhecimento até a avaliação. A propósito de filmes, computadores e outros meios ele- trônicos, é oportuno recordar a lição do pedagogo Lauro de Oliveira Lima (1976), que advertia para o fato de que só a leitura proporciona condições instrumentais para a reflexão, o que não ocorre com a instantaneidade dos meios eletrônicos, que acabam reproduzindo a pré-his- tória cultural, baseada na oralidade. A fala é instantânea, mas o texto escrito não, já que permite pausas e retornos na leitura. Evidentemente, nem tudo chega ao nível da ava- liação. Há assuntos que são necessários ao conhecimento 90 de outros conteúdos, como o estudo das figuras de lin- guagem ou da versificação. No entanto, uma obra literá- ria completa é sempre um convite ao percurso também completo da Taxionomia de Bloom. Como continuidade de nossa discussão, ao final do capítulo apresentamos uma atividade. Referências BARROS, D. L. P. de (2002). Teoria do discurso: fundamentos semióticos. São Paulo: Atual. BLOOM, Benjamin (1976). Taxionomia dos objetivos educa- cionais; domínio cognitivo. Porto Alegre: Globo. BORGES, Jorge Luis (1985). “O livro”, in: BORGES, Jorge Luis Cinco visões pessoais. Brasília: UnB. BRASIL (1996). Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacio- nal: nº 9394/96. Brasília: SenadoFederal. CANDIDO, A. (1995). Vários escritos. 3ª ed. São Paulo: Duas Cidades. FIORIN, José Luiz (2005). Elementos de análise do discurso. 13ª ed. São Paulo: Contexto. GONÇALVES, Maria Magaly Trindade e BELLODI, Zina C. (2005). Teoria da literatura “revisitada”. 2ª ed. Petrópolis: Vozes. GREIMAS, Algirdas Julien e COURTÉS, Joseph (2008). Dicionário de semiótica. São Paulo: Contexto. LIMA, Lauro de Oliveira (1976). “O livro como instru- mento civilizatório.” Revista de Cultura Vozes, vol. 2, Petrópolis, pp. 33-50. PROENÇA FILHO, D. (1992). A linguagem literária. São Paulo: Ática. SARTRE, Jean-Paul (2004). Que é literatura? 3ª ed. Tradu- ção de Carlos Felipe Moisés. São Paulo: Ática. 91 ATIVIDADES PROPOSTAS 1. Conhecimento: Que informações prévias são necessá- rias ao novo tópico literário? Que texto literário pode proporcionar uma base para essas informações pré- vias? 2. Compreensão: Como posso verifi car se as informações prévias foram compreendidas? Uma paráfrase seria adequada para esse propósito? 3. Aplicação: Que textos literários ou trechos devo usar para a aplicação dos conhecimentos já compreendi- dos? 4. Análise: Feitos os exercícios de aplicação, que texto ou textos literários completos teriam complexidade sufi ciente para uma análise? 5. Síntese: Que produções, esquemas ou resumos seriam mais interessantes para verifi car se uma visão de con- junto foi de fato construída sobre o assunto proposto? 6. Análise: Que produções, debates, seminários ou ou- tras atividades devo propor para verifi car se foi atin- gida a competência da avaliação? Seria oportuna uma autoavaliação dos alunos? 91 ATIVIDADES PROPOSTAS 1. Conhecimento: Que informações prévias são necessá- rias ao novo tópico literário? Que texto literário pode proporcionar uma base para essas informações pré- vias? 2. Compreensão: Como posso verifi car se as informações prévias foram compreendidas? Uma paráfrase seria adequada para esse propósito? 3. Aplicação: Que textos literários ou trechos devo usar para a aplicação dos conhecimentos já compreendi- dos? 4. Análise: Feitos os exercícios de aplicação, que texto ou textos literários completos teriam complexidade sufi ciente para uma análise? 5. Síntese: Que produções, esquemas ou resumos seriam mais interessantes para verifi car se uma visão de con- junto foi de fato construída sobre o assunto proposto? 6. Análise: Que produções, debates, seminários ou ou- tras atividades devo propor para verifi car se foi atin- gida a competência da avaliação? Seria oportuna uma autoavaliação dos alunos? 93 Capítulo HerÓis e HeroÍnas eM terras DesConHeCiDas: as traDiÇÕes aFriCanas eM narratiVas inFantis e JuVenis Maria Carolina de Godoy É de conhecimento dos agentes envolvidos no pro- cesso educacional a importância da Lei n º 10.639/03 não apenas como forma de exigir a inserção da temática Histó- ria e Cultura Afro-Brasileira e Africana na Educação Bási- ca, mas também como reconhecimento da necessidade de debates dentro e fora da escola sobre temas relacionados ao preconceito étnico-racial e à afirmação da identidade de grupos historicamente excluídos da educação. No campo da literatura, mais especificamente, no que se refere aos livros infantojuvenis que trazem ima- gens da cultura africana e afro-brasileira, sabe-se que nem sempre eles chegam às mãos de crianças e jovens, seja por falta de divulgação, seja por dificuldade de abordagem dos temas ali presentes. Encontrar a representação des- sas tradições na ficção infantojuvenil em narrativas que as recuperam em seus enredos e evidenciam a participa- 5 94 ção de personagens protagonistas ou narradores negros torna-se um desafio em meio à predominância de obras que silenciam essas vozes ao longo da história da litera- tura. Observam-se, na última década, novas publicações de obras infantis e juvenis com personagens negras pro- tagonistas inseridas em narrativas que apresentam traços da cultura afro-brasileira com seus temas relacionados às religiões de matrizes africanas, ancestralidade, oralidade, história do continente africano ou que retomam lendas e contos africanos. Apresentá-las aos educadores é o pri- meiro passo para que essas obras sejam reconhecidas no espaço educacional. Contemporaneamente, alguns dos textos dirigi- dos ao público infantil e juvenil, buscam uma linha de ruptura, com modelos de representação que inferiorizem, depreciem os negros e suas culturas. São obras que apresentam personagens negros em situações do cotidiano, resistindo e enfrentando, de diversas formas, o preconceito e a discriminação, resgatando sua identidade ra- cial, representando papéis e funções sociais di- ferentes, valorizando as mitologias, as religiões e a tradição oral africana. (Jovino 2006, p. 188) Em capítulo sobre as licenciaturas, inserido nas Orientações e ações para a educação das relações étnico-raciais, pu- blicação do Ministério da Educação, por meio da Secreta- ria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD) em 2006, encontram-se considerações no que tange à formação dos profissionais da educação. A abordagem das questões étnico-raciais na Educação Básica depende muito da formação inicial de profissionais da educação. Eles ainda 95 precisam avançar para além dos discursos, ou seja, se por um lado, as pesquisas acadêmicas em torno da questão racial e educação são necessá- rias, por outro lado precisam chegar à escola e sala de aula, alterando antes os espaços de for- mação docente. [...] É preciso refletir acerca do espaço de formação deste(as) professores(as), ou seja, avaliar se as IES vêm se organizando para a inclusão das temáticas relativas às rela- ções étnico-raciais, assim como o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana na Educação Básica. (Monteiro 2006, p. 126) Interessa, neste trabalho, apresentar aos educado- res e às educadoras obras que mostram personagens ne- gras e, partindo-se do estudo de três narrativas – Histórias da Preta (1998) de Heloisa Pires Lima com ilustrações de Laura Beatriz, Histórias africanas para contar e recontar (2001) de Rogério Andrade Barbosa, ilustrada por Graça Lima e Sikulume e outros contos africanos (2009) adaptação de Júlio Emílio Braz e ilustrações de Luciana Justiniani - preten- de-se analisar quais as peculiaridades dessas narrativas e de que modo são retomadas as tradições africanas. Inte- ressa, ainda, refletir sobre as possibilidades de divulgação dessas obras entre os jovens leitores com o intuito de discutir a importância de sua difusão em sala de aula e propor caminhos de abordagem dos temas tratados por esses autores na atividade pedagógica. As discussões sus- citadas a partir das análises não só instigam reflexões a respeito das peculiaridades dessas narrativas como tam- bém possibilitam ponderações sobre a circulação e divul- gação das obras entre educadores. Como o enfoque deste trabalho é a literatura afro-brasileira, serão feitas algumas considerações a respeito desse conceito. 96 Literatura afro-brasileira Iniciando as reflexões no que se refere à literatu- ra afro-brasileira, as denominações literatura “negra” ou “afro” logo de início suscitam debates, pois causam di- vergências entre teóricos e pesquisadores uma vez que distinguem um grupo no conjunto da literatura brasileira. Alguns escritores, geralmente brancos, que têm tido como motivo poético o afrodescendente são catalogados pela crítica como autores que produ- zem uma literatura afro-brasileira, no entanto, os verdadeiros autores afro-brasileiros, de acordo com o conceito elaborado por Zilá Bernd (1988), cujo eu poético é negro, continuam marginais aos olhos da academia. (Adolfo 2012, p. 218) Apesar de muitos teóricos e escritores do Brasil e dos Estados Unidos, entre outros, considerarem os termos mencionados excludentes porque não levam em conta a cultura de um modo geral, [...] outros teóricos reconhecemque a particula- rização é necessária, pois quando se adota o uso de termos abrangentes, os complexos conflitos de uma dada cultura ficam aparentemente nive- lados e acabam sendo minimizados. Nessa lógi- ca, o uso da expressão “literatura brasileira” para designar todas as formas literárias produzidas no Brasil não conseguiria responder à questão: por que grande parte dos escritores negros ou afrodescendentes não é conhecida dos leitores e os seus textos não fazem parte da rotina escolar? (Fonseca 2006, p. 12) 97 Nessa mesma perspectiva, Eduardo de Assis Du- arte (2011) em seu artigo “Literatura afro-brasileira: um conceito em construção” propõe alguns critérios para a adoção da denominação literatura afro-brasileira: temáti- ca, autoria, linguagem e público leitor. Segundo ele, deve haver interação desses elementos no texto, todos relacio- nados ao negro, e não serem tratados de forma isolada. Em vista de se tratar de produção literária e esta, por sua vez, depender de uma cultura da escrita; considerando, ainda, que a população negra chegou às escolas há pouco mais de um século, é preciso observar que essas produ- ções apresentam traços, símbolos e mitos da cultura afro -brasileira em processo de construção e reconhecimento nas representações de obras literárias. Sobre a chegada tardia da população negra às escolas após a abolição, co- menta Petrônio Domingues (2008, p. 519) em artigo inti- tulado “Um ‘tempo de luz’: frente negra brasileira (1931- 1937) e a questão da educação”. Não há consenso acerca das razões que levaram os negros a criar suas próprias escolas. Uma das hipóteses é que a disputa por um “lugar ao sol” entre os vários grupos étnicos que viviam em São Paulo se operava num clima de tensão. Assim, quando criavam suas próprias escolas, os negros expressariam seu esforço em se or- ganizar, a fim de defender-se naquela disputa (Demartini 1989, pp. 52-53). Outra explicação é que essas escolas foram uma resposta da po- pulação negra à discriminação racial que vice- java na rede de ensino. Havia escolas que difi- cultavam e outras que simplesmente vetavam a matrícula de negros (Domingues 2004, p. 350). Em 1929, o jornal Progresso noticiava que o Co- légio Sion recusou a matrícula da filha adotiva do “ilustre” ator Procópio Ferreira. Quando sua 98 esposa, a mãe da criança, argumentara que tinha condições financeiras para pagar a mensalidade, a superiora do estabelecimento de ensino teria respondido: “Não é nesse ponto, apenas, que se tornam rigorosos os nossos estatutos. Também não recebemos pessoas de cor, embora oriundas de família de sociedade” (Progresso, 24 mar. 1929, p. 2). Esse episódio demonstra como algumas escolas inscreviam nos estatutos a proibição da matrícula de “pessoas de cor”, independente- mente de sua classe social. Na mesma edição, o Progresso denunciava o caso em que o dr. José Bento de Assis não pôde matricular sua filha numa escola dirigida por freiras, o College Sa- cre Coeur, pelo “simples” fato de ela ser negra (idem, p. 5). (Domingues 2008, p. 519) Os autores e autoras afro-brasileiros, em sua maio- ria, iniciaram as publicações nos Cadernos Negros, publica- ção anual de autores afro-brasileiros que reúne prosa e po- esia desde 1978, quando surgiu em São Paulo. Além desse espaço, a coleção Literatura e afrodescendência no Brasil: an- tologia crítica (2011), organizada pelo professor Eduardo de Assis Duarte e Maria Nazareth Soares Fonseca, partici- pante do volume 4, significou o marco do reconhecimen- to de um espaço, na crítica e na historiografia literárias, dedicado às obras da literatura afro-brasileira. Dividida em quatro livros, a coleção traz informações sobre os autores afro-brasileiros distribuídos por épocas: autores nascidos antes de 1930 (precursores), entre 1930 e 1940 (consolida- ção), na segunda metade do século XX (contemporanei- dade) e o quarto volume é dedicado a ensaios críticos. Os verbetes mostram dados relativos à vida pessoal e pública dos cem escritores e escritoras, uma vez que essas infor- mações mesclam-se tanto à temática de suas obras quanto à atividade intensa acadêmica e política para o estabele- 99 cimento do espaço da voz negra na sociedade brasileira. Há textos críticos, referências bibliográficas para pesquisa, entrevistas, excertos de obras distribuídos entre romance, conto, crônica, ensaios e poesia, sendo possível identificar a escolha de mais de um gênero. As obras escolhidas para estudo, neste trabalho, fazem parte de um pequeno grupo que obteve espaço para retratar não apenas a personagem negra em enre- dos que contam lendas, costumes e representam a cultura africana em histórias criadas ou adaptadas, mas também para colocar em debate problemas relacionados ao pre- conceito e à discriminação étnica. Heróis e heroínas em terras desconhecidas Em texto crítico sobre Heloisa Pires Lima, autora de Histórias da Preta (1998) e Espelho dourado (2003), entre outras obras de temática africana, Marina Luiza Horta (2011, p. 7) aponta a pouquíssima produção de temas re- lacionados às questões étnicas: Nota-se que a produção infantil afro-brasileira ainda é muito tímida e com pouca visibilidade no mercado editorial se comparada à literatura infantil brasileira tradicional. Segundo pesquisa realizada por Eliane Debus, que mapeia a pro- dução da literatura infantil com a temática ét- nico-racial, a editora Companhia das Letrinhas, por exemplo, no ano de 2005, em seu catálogo de 332 títulos, apenas 13 traziam a presença do personagem negro. Outros dados da pesquisadora Regina Dalcastag- né (2011, p. 312) confirmam a escassez de publicações 100 que privilegiam a cultura africana e as personagens negras na literatura brasileira. Ao refletir sobre os resultados de sua pesquisa feita entre 1990 e 2004 (primeiro período analisado) e entre 1965 e 1979 (segundo período) sobre as personagens negras no romance brasileiro,1 a autora assinala que houve a publicação de [...] 80 diferentes escritores no primeiro perío- do e 165 no segundo – em sua grande maioria, homens, sendo que as mulheres não alcançaram um quarto do total. Mas a homogeneidade racial é ainda mais gritante: no segundo período, são brancos 93,9% dos autores e autoras estudados (3,6% não tiveram a cor identificada e os “não brancos”, como categoria coletiva, ficaram em meros 2,4%). Para o primeiro período, foram 93% de brancos e 7% sem cor identificada. (Dalcastagné 2011, p. 312) Sabe-se que essas narrativas destinadas ao Ensino Fundamental remetem, muitas vezes, a traços da cultura afro-brasileira ligados à religiosidade de matriz africana ou retomam contos de diferentes países africanos que exigem conhecimento prévio do tema para abordagem em sala de aula. Antes da análise detida dos textos sele- cionados para este trabalho, serão feitas algumas consi- derações gerais a respeito da seleção das obras. É im- portante observar a existência de narrativas que trazem imagens da África e são escritas por autores africanos 1. Foram analisados 258 romances brasileiros publicados entre 1990 e 2004 por três editoras, a saber, Companhia das Le- tras, Record e Rocco; a segunda base de dados, utilizada como contraponto, segundo a autora, foi composta de 130 roman- ces brasileiros publicados entre 1965 e 1979 pela Civilização Brasileira e pela José Olympio, ambas de maior importância na época. 101 como, por exemplo, O chamado de Sosu, Meshack Asare2 (2005) e a narrativa angolana Ynari: a menina das cinco tran- ças de Ondjaki3 (2010) ou derivadas de pesquisas como a obra O homem frondoso e outras histórias da África de Claude Blum4 (2011), fruto de seu trabalho sobre os países afri- canos que foram colônias francesas. A pesquisa prévia a respeito da localização dos países mencionados nessas histórias, a atenção dispensada às especificidades do vo- cabulário e dos nomes das personagens, além da busca por referências à cultura, contribuem significativamente para compreensãodessas narrativas. Dentre as publicações brasileiras, há narrativas como Ifá, o Adivinho de Reginaldo Prandi5 (2002) e Uma ideia luminosa de Rogério Andrade Barbosa6 (2007) que exigem explicações quanto à cultura, à religiosidade de matriz africana e às ilustrações. Em Minhas Contas de Luiz Antonio7 (2008) a abordagem da religiosidade é feita tanto pela história – ao tratar do tema do preconceito - quanto pelas ilustrações que apresentam cores relacio- nadas aos Orixás. O tema da capoeira aparece na obra de Luiz Antonio e no livro Adamastor, o pangaré de Mariana Massarani8 (2007) que traz ilustrações de personagens negras, mas não faz menção na história a outros temas ligados à cultura afro-brasileira ou questões étnicas como 2. O autor nasceu em Gana, África ocidental, e mora em Lon- dres, Inglaterra. Ilustrações do autor e tradução de Maria Do- lores Prades. 3. Nasceu em Luanda, capital de Angola. Ilustrações de Joana Lira. 4. Tradução de Hildegard Feist e ilustrações de Grégoire Vallan- cien. 5. Ilustrações de Pedro Rafael. 6. Ilustrações de Thais Linhares. 7. Ilustrações de Daniel Kondo. 8. Ilustrações da autora. 102 ocorre também na obra de Sonia Rosa9 (2002) O menino Nito: então, homem chora ou não? A ilustração dos personagens negros nos livros tem sido objeto de críticas de muitos estudiosos, posto que pode colaborar na difusão de estereó- tipos negativos a respeito dos negros e, como já vimos anteriormente, pode corroborar o racis- mo. A obra Bruna e a galinha d´Angola, de Gercil- da Almeida, apresenta uma proposta diferente e criativa para a ilustração da personagem negra, assim como nos livros: Que mundo maravilhoso de Julius Lester; A cor da vida, de Semíramis Pater- no; Tanto Tanto, de Trish Cooke; Chica da Silva, de Lia Vieira; Do outro lado tem segredos, de Ana Maria Machado. Merecem destaque os vários livros publicados pelo autor Rogério Barbosa, que se propõe a desvendar o universo de algu- mas culturas africanas para a literatura infanto- juvenil brasileira, tais como: A tatuagem, a cole- ção Bichos da África, Duula – A Mulher Canibal, um conto africano e Sundjata. Isso só para citar algumas obras. (Jovino 2006, p. 38) Júlio Emílio Braz, autor mineiro de nascimento e carioca por afinidade, como ele mesmo se considera, re- toma o imaginário africano em contos que narram suas lendas, revisita os contos de fadas de narrativas tradicio- nais, recontando essas histórias, escreve obras que tratam diretamente do tema do preconceito ou da escravidão sob o ponto de vista do escravizado e de seus líderes. Preocupa-se, também, em falar sobre abandono e violên- cia na infância em acervo de mais de cem títulos. 9. Ilustrações de Victor Tavares. 103 A temática racial, bem como os problemas so- ciais, está presente nas narrativas de Júlio Emí- lio Braz, que afirma ter assumido sua identida- de negra aos 20 e poucos anos, no tempo de estudante. Quando criança, achava-se moreno, crioulo, pardo, certeza que foi abalada quan- do, ao encontrar o papel pardo com o qual foi orientado pela professora a encapar seus cader- nos, descobriu que aquela não era a sua cor. Par- tiu então em direção à busca de sua identidade e hoje, muitos anos depois, proporciona aos jovens leitores brasileiros a reflexão a respeito dos dilemas étnicos que envolvem os afrodes- cendentes, no contexto da sociedade brasileira. (Lopes 2011, p. 320) A adaptação de Júlio Emílio Braz de contos afri- canos10 em Sikulume e outros contos africanos com ilustrações de Luciana Justiniani traz histórias sobre as tradições des- se povo que relatam de forma mítica a organização dos elementos da natureza como em “Por que o sol e a lua foram morar no céu” ou “A origem da morte”. A narra- tiva “A mãe canibal e seus filhos” apresenta o tema do canibalismo que, apesar de pouco difundido em enredos infantojuvenis, ao ser inserido nesse contexto de tradi- ções arcaicas, aproxima-se de personagens-monstros pre- sentes em contos de tradição ocidental. Esse tema reapa- rece no conto central “Sikulume” em que a personagem de mesmo nome é retratada como o único filho que res- tou ao pai, após ver os outros sete serem transformados em pássaros. Quando o pai, chefe de uma aldeia, soube da possibilidade de recuperar seus filhos, enviou o único 10. Os relatos são provenientes da tribo Kaffir, situada na África do Sul (exceção de “Por que o sol e a lua foram morar no céu” originário da Nigéria), segundo informações nas páginas finais da obra Sikulume (2009). 104 restante e considerado mais fraco do que os irmãos para ajudar no resgate. Em uma das pausas para descanso da comitiva, ao voltarem com os pássaros (filhos do chefe) para a aldeia, canibais encontram os guerreiros em uma caverna e acabam salvos por Sikulume que ouve a con- versa entre os famintos enquanto discutiam qual guerrei- ro devorariam primeiro, deixando por último o protago- nista por ter pés pequenos. Aquele que tinha pés pequenos atendia pelo nome de Sikulume e era o filho que o chefe tan- to desprezava. [...] – Acordem! Acordem! – gritou ele, fazendo com que as estranhas vozes se calassem e despertan- do seus companheiros. Mais do que depressa, contou-lhes o que acabara de ouvir. (Braz 2009, pp. 23-24) Salvo e distante do lugar perigoso, Sikulume lem- bra-se de ter deixado um dos pássaros na caverna e volta para salvar o irmão metamorfoseado, realizando, assim, seu percurso de herói com ajuda de objetos mágicos e auxílio de outras personagens para vencer os canibais. Novamente, a presença do canibalismo é recontextuali- zada no mundo dos contos de fadas e, ao lado de mons- tros como Inabulele – outro desafio encontrado pelo protagonista em sua trajetória – os canibais tornam-se opositores do herói em seu caminho de aprendizagem e conquistas. Ressalta-se a estilização das ilustrações em preto e branco que, com traços sutis, mostram imagens como as dos canibais sem, no entanto, causarem impacto ou estranhamento ao leitor: [...] os elementos lançados por Braz em suas narrativas atuam como um firme fundamento 105 na construção de um leitor negro, não exclusi- vo de histórias afro-brasileiras, mas que aprenda desde a infância a relacionar o conteúdo de um livro ao seu dia-a-dia. Igualmente, interfere na formação educacional das crianças ao trazer à tona modelos étnicos, contrários aos quais tran- sitam na literatura universal, que reconstroem a representação do povo descendente de africa- nos no imaginário literário. (Silva 2012, p. 2) A escritora Heloisa Pires Lima, autora de Histórias da Preta (1998) ocupa, ao lado dos escritores afro-bra- sileiros, esse raro lugar das publicações infantojuvenis com obras de sua autoria ou em coautoria como Lendas da África moderna (2010) escrita com Rosa Maria Tavares Andrade. Entende-se, neste trabalho, literatura afro-bra- sileira no sentido de uma [...] literatura empenhada, sim, mas num pro- jeto suplementar (no sentido derridiano) ao da literatura brasileira canônica: o de edificar uma escritura que seja não apenas a expressão dos afrodescendentes enquanto agentes de cultura e de arte, mas que aponte o etnocentrismo que os exclui do mundo das letras e da própria civiliza- ção. Daí seu caráter muitas vezes marginal, por- que fundado na diferença, que questiona e abala a trajetória progressiva e linear de nossa história literária. (Duarte 2011, p. 400) Nas narrativas de Histórias da Preta (1998) uma narradora-personagem, em alguns momentos, distancia- se do relato mantendo o tom didático e observador de quem se preocupa em tornar o fato narrado claro ao lei- tor “E olhe só mais essa: usava-se ethnos com um sentido quase contrário à palavra polis, que queria dizer cidade. Para o olhar grego, polis era o mundo organizado. Os de 106 fora, os outros, eram os bagunçados” (Lima 1998, p. 17). Em outros, deixa marcas de sua subjetividade no relato ao destacar as sensações que teve, por exemplo, quando tomou contato com a culturaafricana: Aprendi sobre os contadores numa tarde em que o tempo mudou de repente. Eu estava sen- tada numa cadeira de balanço, quase dormindo, quando uma batida me assustou. Era a janela grande que batia tão forte, e eu levantei depres- sa, no susto, quase sem fôlego, para evitar que o vidro quebrasse. Como a cortina, eu quase vo- ava naquela ventania, que também jogava folhi- nhas de plantas para dentro da sala, da casa, de mim... (Lima 1998, p. 23) São narrativas que transitam entre experiências vividas pela narradora-personagem ao descobrir suas tradições e as lendas africanas (re)contadas. Ao mesmo tempo, o tom didático sobre aspectos históricos da escra- vidão e do racismo aparecem em vários episódios, como os intitulados “Historietas da Preta”. Em “Histórias do Candomblé” destaca-se a religiosidade de matriz africana com a narração de histórias sobre os orixás e explicações sobre seus ritos: [...] essa preocupação de apresentar um relato fiel da realidade histórica é imprescindível para um resgate da nossa história, porém, ao fazê-lo, perde-se um pouco o teor literário da obra [...]. Será que essa é uma característica dessa nova tendência de escritores (negros ou não) ou até mesmo uma necessidade da literatura infanto- juvenil com recorte étnico-racial, visando a uma busca e/ou ao resgate da nossa identidade? (Sousa 2001, p. 209) 107 Como em outros contos aqui destacados, os tex- tos11 de Rogério Andrade Barbosa com ilustrações de Graça Lima, preocupam-se em mostrar a relação estreita entre homens e natureza, como as narrativas do livro His- tórias africanas para contar e recontar (2001) sobre o costume de animais. A ambientação africana permite o contato com a cultura e a história das regiões que servem de ce- nário para os acontecimentos por meio de descrições que promovem o retrato de seus costumes, como em “Por que o camaleão muda de cor”. Naquele tempo, o interior da África era percor- rido a pé por longas caravanas. Todos carrega- vam pacotes e cestos à cabeça, repletos de cera e de borracha, que trocavam por panos coloridos nas vendas dos comerciantes brancos nas vilas situadas junto ao mar. (Barbosa 2001, p. 19) Outro escritor a ser destacado é Joel Rufino dos Santos, intelectual afro-brasileiro, que se dedicou também à produção de obras que tratam, entre outros temas, de questões históricas reconstruindo personagens sob novas perspectivas, como Zumbi dos Palmares. Apesar de as personagens do romance brasilei- ro contemporâneo serem predominantemente brancas, como afirma Regina Dalcastagnè (2011, p. 313), já que “somam quase quatro quintos das personagens (consi- deradas as personagens ´importantes´, isto é, com algum peso no desenrolar da trama)”, a divulgação no espaço da literatura infantojuvenil das poucas narrativas que trazem 11. Inspirados, segundo o autor nas páginas finais de Histórias afri- canas para contar e recontar (2001), em seu contato com a África ao longo de dois anos onde conheceu a tradição dos contos etiológicos que explicam a origem das coisas e o comporta- mento de animais. 108 não apenas personagens negras, mas também relatos da cultura africana sob a voz de narradores pertencentes a essas tradições pode significar a consolidação, cada vez maior, dessas e de outras obras no espaço da literatura brasileira. Meios de divulgação O acesso às informações sobre os escritores e as escritoras da literatura afro-brasileira pode ser obtido via web e é possível, até mesmo, manter contatos com os au- tores e as autoras via site, blogs ou facebook. Essa abertura oferecida pelo mundo digital nada significa se não hou- ver a difusão das informações em sala de aula sobre esse material, após ser realizada a inclusão digital dos leitores que desconhecem esse meio. O reconhecimento desses autores no espaço educacional pode se tornar fundamen- tal para que essas obras sejam cada vez mais difundidas pelos meios impressos e digitais, promovendo debates e trazendo novos perfis de personagens, heróis e heroínas que reflitam de maneira mais ampla a diversidade cultural. Certas lendas e contos tradicionais omitem a tra- jetória de luta do povo negro e servem mais para constranger a criança negra perante as outras do que para promover a aceitação e o respeito à di- versidade. O contato com material pedagógico displicente com a diversidade racial colabora para estruturar em todos os/as alunos/as uma falsa ideia de superioridade racial branca e da in- ferioridade negra. (Cavalleiro 2001, pp. 153-154) As inovações no campo da leitura digital surpreen- dem quanto à capacidade de criar opções de linguagens 109 simultâneas num mesmo espaço para representar os sig- nificados engendrados pelo e no texto ficcional, quebran- do os limites espaciais da palavra escrita. Texto escrito, imagem e movimento se unem em múltiplas perspectivas no ato de leitura que procura captar, em ângulos varia- dos, essas formas de representação de sentidos. Ao se pensar em leitores em formação em meio a essas modifi- cações contínuas nas formas de apresentação do texto e na maneira de lê-los, mais especificamente, na literatura infantojuvenil, em que a ilustração sempre teve espaço de maior importância, as novas tecnologias parecem se tor- nar mais atraentes e capazes de interferir com maior rapi- dez nas escolhas de leitura das gerações que crescem em meio a jogos eletrônicos e imagens de alta definição ou 3D. No espaço da literatura infantojuvenil, as ilustrações ganham relevância e com a introdução de seus conteú- dos em novas interfaces há a possibilidade de despertar o interesse dos jovens leitores. Esse interesse, uma vez aguçado, possibilita a abertura para a compreensão dos conteúdos, ampliando a percepção dos significados, ou seja, a divulgação de uma obra e o modo como é feita pode interferir na apreciação do leitor em contato com o mundo digital. Segundo Canclini (2008, p. 30), essas alterações também provocam desafios: desafios para os quais a maioria dos cidadãos não foi treinada: como usar o software livre ou proteger a privacidade no mundo digital, o que fazer para que as brechas no acesso não agra- vem as desigualdades históricas entre nações ou etnias, campo e cidade, níveis econômicos e educacionais? Mesmo em face de tantas atrações para a leitura, ainda existem dificuldades para publicação no mercado editorial de alguns temas que demonstram ser raridade no 110 espaço da literatura infantojuvenil, como os de temática afro-brasileira. O interesse do leitor em desvendar novas culturas é o primeiro impulso para a busca de histórias, utilizando todos os meios de circulação a sua disposição, seja pelo livro impresso, seja pelo ciberespaço. O estímulo a esse olhar mais amplo pode começar pelo contato, em sala de aula, com heróis e heroínas de mundos (até agora) pouco (re)conhecidos. Esse talvez seja um dos caminhos para evitar que se agravem as desigualdades não apenas no mundo digital, como indaga Canclini, mas também no real. Ao final deste capitulo, de acordo com a proposta do livro, há uma atividade que retoma de certa forma a discussão tratada. Bibliografia ADOLFO, Sérgio Paulo (2012). “Ficção e memória em Conceição Evaristo”, in: BRANDILEONE, Ana Paula Franco Nobile e OLIVEIRA, Vanderléia da Silva. (orgs.) Instâncias de legitimação: processos de recep- ção e crítica literárias. Curitiba: Appris. ALMEIDA, Gercilga de (2009). Bruna e a Galinha D´An- gola. Ilustrações de Valéria Saraiva. Rio de Janeiro: EDC/Pallas. ANTONIO, Luiz (2008). Minhas contas. Ilustrações de Daniel Kondo. São Paulo: Cosac Naify. ASARE, Meshack (2005). O chamado de Sosu. Tradução de Maria Dolores Prades. São Paulo: SM. BARBOSA, Rogério Andrade (2001). Histórias africanas para contar e recontar. Ilustrações de Graça Lima. São Paulo, Brasil. ________. (2007). Uma ideia luminosa. 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Pesquise sobre os griots e analise outras obras da literatura infantil e juvenil mencionadas neste tra- balho. Observe de que modo são retratados os contadores e as contadoras de histórias nessas narrativas. 115 Capítulo a CrÔniCa. GÊnero aMBÍGuo... Mas GenuinaMente LiterÁrio Maria Emilia Vico Crônica é um relato? É uma conversa? É o resumo de um estado de espírito? (...) acho que vou ter uma conversa com Rubem Braga porque sozinha não consegui entender. Clarice Lispector, A descoberta do mundo, 1995. Na primeira parte deste trabalho procurar-se-á uma aproximação à definição de crônica. Para isso tenta- remos dar resposta a perguntas tais como: qual é o seu público? Quais os possíveis temas? Tem a crônica uma estrutura específica? Qual é a sua origem? E o veículo ou veículos? Quais são os objetivos da interação? Quais são os gêneros que se lhe parecem? Quais as características que fazem com que possamos dizer que um determinado texto é uma crônica? A crônica é um gênero literário? Na segunda parte do trabalho tomaremos como exemplo de análise uma crônica de Carlos Drummond de Andrade publicada na coletânea Cadeira de balanço para apontar nela as características do gênero. Finalmente, far-se-á a pro- posta de trabalho. 6 116 Tentaremos aqui listar as características do gênero com o intuito de defini-lo. Para isso, organizar-se-á em itens, sem pretensão de absoluta exaustividade, tentando responder às perguntas acima e algumas vezes indo além. Como Antonio Candido deixa transluzir no artigo A vida ao rés-do-chão, ao falarmos em crônica já partimos do preconceito de ela ser considerada social e até acade- micamente como um gênero menor. Vejamos também como Clarice Lispector, na crônica Ser cronista publicada na co- letânea A descoberta do mundo, revela como o tal preconcei- to flutua no ambiente: Um amigo que tem voz forte, convincente e carinhosa, praticamente intimou-me a não ter medo. Disse: escreva qualquer coisa que lhe passe pela cabeça, mesmo tolice, porque coisas sérias você já escreveu,1 e todos os seus leitores hão de entender que sua crônica semanal é um modo honesto de ganhar dinheiro. (Lispector 1995, p. 113) Não só podemos ler nesse trecho o preconceito de o seu amigo (amigo que pode ser ficcional... ou não) entender que a crônica é um gênero literário menor, mas também que o trabalho de cronista foge do meramente artístico e passa ao mundano. Para outros inclusive a crô- nica não é sequer literatura, é jornalismo. Talvez o preconceito e o temor perante a crônica possa surgir pelo fato de se tratar de um gênero pouco confortável (Castello, 2007) e instável por essa dualidade de ele ser literário, porém, se encontrar num veículo mais próprio de outros gêneros ligados ao jornalismo. Como 1. Faz referência aos livros de contos e romances da autora, es- clarecimento que na crônica está enunciado num parágrafo anterior. 117 diz José Castello, “a crônica confunde porque está onde não de- via estar: nos jornais, nas revistas e até na televisão” (Castello, 2007). É interessante a figura do forasteiro que o autor utiliza para comparar com a crônica, desconfia-se do forasteiro por ser um outro que não pertence ao lugar, circunstância de que a crônicapadece: os jornalistas des- confiam por considerá-la literária e os puristas literários por considerá-la jornalismo. Outro traço é a brevidade, a crônica é um gênero de breve extensão se comparado com outros gêneros li- terários como o romance. Costuma também ser breve o período de tempo de que o cronista dispõe para escrever o seu texto, pois se publicado num jornal pode ter obri- gações semanais ou até diárias. Também breve é a vida do seu veículo, o jornal. Compartilha o suporte com gêneros como notícias e re- portagens onde os fatos e o real cotidiano são a maté- ria-prima. Acaba compartilhando a efemeridade desses outros gêneros do jornalismo e do próprio suporte “jor- nal” que demora em morrer o tempo do surgimento do novo exemplar. A grande maioria dos autores consulta- dos destaca como traço a efemeridade da crônica que por se encontrar no jornal verá o seu ligeiro desaparecimento. Porém, com o avanço das tecnologias e a publicação dos jornais na internet difere o acesso às matérias publicadas. Aqui estamos refletindo sobre a distinção entre o veículo jornal em papel e o jornal digital. Enquanto o primeiro tem 24 h de vida para depois passar a ser papel descartado o segundo continua num espaço digital podendo-se acessá -lo a qualquer momento. No entanto, embora mereça a pena tal distinção, consideramos que tanto no jornal em papel quanto no jornal digital, por se tratar em última ins- tância do suporte “jornal”, que tem publicações diárias com matérias que pretendem dar conta dos fatos acon- tecidos na última hora, os leitores em sua grande maioria não leem jornais de dias passados. Apesar da distinção, a 118 vida da crônica publicada em jornal tem uma existência efêmera. O seu primeiro veículo é, como já mencionamos, na grande maioria dos casos, o jornal, no entanto, pode, num segundo momento, passar a fazer parte de uma co- letânea de crônicas selecionadas pelo próprio autor ou ser um livro póstumo ou até ser uma coletânea que integre vários cronistas, sendo então possível que ela permane- ça, fugindo da efemeridade do dia-a-dia do jornal através do suporte livro. O público será então um leitor que lê jornais com frequência, mas que não faz uma leitura apu- rada, mas ágil, não demorada. Podemos até agora parar para refletir como o suporte determina o gênero. Recapi- tulando: por ter como primeiro suporte o jornal a crônica tem uma breve extensão pelo limite do espaço para cada matéria, o cronista dispõe de um tempo já estabelecido para produzir que costuma ser de curta duração e o texto empírico tem uma vida breve, se não for recuperado pos- teriormente numa coletânea. Uma outra feição da crônica que José Castello des- taca é a radical liberdade. “Ela já não tem compromisso com mais nada: nem com a verdade dos fatos, que baliza o jornalismo, nem com o império da imaginação, que define a literatura” (Cas- tello, 2007). Embora coincidamos em parte com esta afir- mação, vale a pena comentar que essa liberdade pode ser restrita pelas políticas editoriais do jornal. A crônica registra o circunstancial, expõe Jorge de Sá. Eis a sua conexão com o “real”. Existe um ponto, um tema, uma perspectiva, mesmo que por vezes pareça estar codificada, de contato com um acontecimento do coti- diano. Com isto não queremos dizer que as personagens sejam necessariamente não ficcionais, de fato, encontra- mos personagens, tempos e lugares ficcionais, mas que nalgum ponto tecem uma ponte com uma circunstância que pode estar sendo parodiada. O cronista tem o poder de captar um fato que poderia passar despercebido, um 119 fato aparentemente irrelevante e fazer com ele uma refle- xão sobre os temas mais profundos da existência huma- na. Por isso, acontece que muitas das crônicas que surgi- ram a partir de um fato circunscrito a um tempo e espaço, pela provocação ou reflexão das suas palavras, mantêm a atualidade através dos anos. A crônica pressupõe certos vestígios de verdade. Dita presunção de verdade poderia estar justificada pelo fato de serem publicadas em jornais e por terem muitas vezes a forma de monólogos ou anedotas que os leitores podem assumir como experiências “reais” dos cronistas. Essa dualidade com a que os leitores de crônicas se de- frontam – realidade vs ficção – alimenta de certa forma essa dita difícil categorização do gênero. A respeito da estrutura e da língua é também Jorge de Sá quem destaca um traço que consideramos pertinen- te: o fato de a sintaxe deste gênero lembrar “alguma coisa desestruturada, solta, mais próxima da conversa entre dois amigos do que propriamente do texto escrito. (...) há uma proximidade maior entre as normas da língua escrita e da oralidade” (Sá 1997, p. 11). No entanto, não devemos por isso pensar que a crônica tratar-se-á de uma transcrição da língua oral, Sá esclarece que há uma recriação disso que foi ouvido e não uma simples cópia. Pode fazer uso de uma língua poética ou humorística ou sarcástica ou mais coloquial numa es- pécie de conversa... Onde as conjunções alternativas po- dem também ser aditivas e se dar o fato de encontrarmos crônicas onde todas essas particularidades têm existência. Difícil definir este ou qualquer outro gênero pelo tema, mas de qualquer maneira vamos tentar delimitar os temas ou pelo menos as particularidades que eles apre- sentam. Ensina Candido que as crônicas costumam assu- mir assuntos com “ar de coisa sem necessidade (...) ela se ajusta à sensibilidade de todo o dia (Candido 1992, p. 13). Poderí- amos então dizer, seguindo esse raciocínio, que se trata de temas do cotidiano, mas como diferenciar temas do 120 cotidiano e temas que não pertencem a ele? Difícil res- posta. De todo jeito, vamos resgatar como particularida- de que as crônicas costumam ter como assunto alguma circunstância do dia-a-dia que parece supérflua ou trivial, embora isto seja por vezes aparente. É Machado de Assis quem na crônica O nascimento da crônica diz “Há um meio certo de começar a crônica por uma trivialidade”. É dizer: Que calor! Que desenfreado calor!” (Assis 1973), ele afirma que há algo de verdade no fato de a crônica se iniciar com uma banalidade, um acontecimento corriqueiro, mas..., cuida- do! Isso não nasceu com a crônica nem é exclusivo dela, embora ela faça uso desse elemento. Machado continua: Diz-se isto, agitando as pontas do lenço, bufan- do como um touro, ou simplesmente sacudindo a sobrecasaca. Resvala-se do calor aos fenôme- nos atmosféricos, fazem-se algumas conjetu- ras acerca do sol e da lua, outras sobre a febre amarela, manda-se um suspiro a Petrópolis, e La glace est rompue; está começada a crônica. Mas, leitor amigo, esse meio é mais velho ainda do que as crônicas. (Assis 1973) Dessa forma passa do nascimento mítico da crô- nica ao nascimento (poderíamos também dizer que míti- co) do calor na alternância própria do bate-papo: o calor nasceu depois da fatal curiosidade de Eva e a crônica no primeiro papo de duas vizinhas: Quando a fatal curiosidade de Eva fez-lhes per- der o paraíso, cessou, com essa degradação, a vantagem de uma temperatura igual e agradável. Nasceu o calor e o inverno; vieram as neves, os tufões, as secas, todo o cortejo de males, distri- buídos pelos doze meses do ano. 121 Não posso dizer positivamente em que ano nas- ceu a crônica; mas há toda a probabilidade de crer que foi coetânea das primeiras duas vizi- nhas. Essas vizinhas, entre o jantar e a merenda, sentaram-se à porta, para debicar os sucessos do dia. Provavelmente começaram a lastimar-se do calor. (Assis 1973) Machado de Assis não define a crônica nesta crô- nica, melhor ainda, ele apresenta com traço firme num texto curtíssimo uma das particularidades deste gênero: a alternância desorganizada de temas e assuntos que po- dem ser tocados num mesmo texto, como o nascimento da crônica e do calor, i.e., a passagem de uma conversa para outra sem concluir nenhuma delas, próprio de um diálogo descontraído, de um bate-papo entre vizinhas.Apropriamos-nos da metáfora de Antonio Candi- do para salientar uma outra feição: a vida ao rés-do-chão, a crônica ao rés-do-chão. É um gênero despretensioso, sem propósitos pomposos de se destacar pela magia ou relu- tância das palavras. Ao rés-do-chão, de lado com o leitor, perto dele, com uma linguagem com a qual o leitor possa se reconhecer através dos comentários, ou talvez dos lu- gares comuns, das situações ou das comédias/tragédias da vida privada.2 É essa “minoridade de gênero” que faz com que aprofunde em temas sérios de forma simples. A crônica “pega o miúdo e mostra nele uma grandeza, uma beleza ou uma singularidade insuspeitadas” (Candido 1992, p. 14). Esse fato de aparência miúda pode trazer a lume muito mais, por exemplo, uma crítica social, uma reflexão ou simples- mente mostrar o fato desse fato não ser tão miúdo. Há entre cronista e leitor uma espécie de pacto de leitura que consiste numa predisposição a entender o que é 2. Fazemos aqui alusão à coletânea de Luís Fernando Veríssimo Comédias da vida privada. 122 publicado no jornal. Foi assim que explicou Clarice Lis- pector na crônica Escrever para jornal e escrever para livro: Um jornalista de Belo Horizonte disse-me que fizera uma constatação curiosa: certas pessoas achavam meus livros difíceis e no entanto acha- vam perfeitamente fácil entender-me no jornal, mesmo quando publico textos mais complica- dos. (...) Respondi ao jornalista que a compre- ensão do leitor depende muito da sua atitude na abordagem do texto, de sua predisposição, de sua isenção de ideias preconcebidas. E o leitor de jornal (...) está predisposto a entender tudo. (Lispector 1995, p. 421) Com o intuito de suavizar as afirmações que bus- cam definir o gênero diremos que embora o humor deva ser consignado como fazendo parte do leque de caracte- rísticas da crônica, devemos também lembrar que é um traço do qual algumas crônicas prescindem. A respeito da intenção discordamos de Candido quando afirma que na grande maioria dos casos é divertir. Apesar de que a crônica pareça ter uma linguagem leve e seja de leitura mais leviana que outros gêneros literários, os objetivos nas diversas crônicas variam do mero diver- timento ou distração, a refletir sobre um assunto, pôr as cartas na mesa sobre uma situação, agradecer, esclarecer, justificar-se, mostrar um absurdo, provocar e muitos ou- tros. Não negamos a função de divertir mas advertimos que os objetivos da interação podem variar de uma crôni- ca para outra ou a crônica ter mais de um objetivo. A crônica é um gênero literário, o que ela tem de jor- nalístico é o suporte onde primeiro surge. E poderíamos até dizer que se aproveita dele para despistar os leitores, pois nasce um texto literário da mão do jornal chegando 123 a um público talvez mais geral que se fosse publicada so- mente em livro. No entanto, ela se mantém como gênero literário, sua linguagem é literária, com inúmeras figuras de estilo, imagens poéticas e, além disso, a função se afasta da propriamente jornalística de comunicar objetivamente acontecimentos do cotidiano. O cronista não enumera os fatos com uma ordem lógica e objetiva como faria numa notícia nem tenta argumentar sobre a culpabilidade de um determinado político como faria numa reportagem, o cronista não descreve os fatos, ele mostra imagens do cotidiano, dialoga, ele circunda, rodeia os assuntos sérios através de fatos miúdos. Há crônicas que parecem monólogos, ensaios, ou- tras contos, algumas até cartas ou anedotas. Nesse seu aspecto leve a crônica parece trazer elementos de outros gêneros. Algumas vezes trata-se da aparição no macro gênero de um outro gênero, mas outras vezes, sem po- dermos falar teoricamente de um processo de intertex- tualização,3 somos testemunhas de como certas crônicas utilizam aspectos próprios de outros gêneros literários e não literários. Por exemplo, no caso do ensaio comparti- lha elementos como as perguntas retóricas e o discurso misto interativo-teórico. E como último item, depois deste percurso que busca caracterizar a crônica, salientamos a dificuldade de definição pela diversidade de textos empíricos conside- rados como pertencentes ao gênero, pela flexibilidade da sua estrutura, pelas suas variadas características, por se encontrar num veículo que não é próprio de gêneros li- terários e por isso ser um gênero traiçoeiro, por nascer de um fato miúdo e aparentemente cotidiano e real, mas se tecer com elementos ficcionais e linguagem poética. E voltamos aqui à crônica de Clarice Lispector que elucida com virtuosismo numa crônica brevíssima a dificuldade 3. Conceito cunhado por Florencia Miranda (2010). 124 de definir a crônica, epígrafe que abre o nosso trabalho: “Crônica é um relato? É uma conversa? É o resumo de um estado de espírito? (...) acho que vou ter uma conversa com Rubem Braga porque sozinha não consegui entender” (Lispector 1995, p. 113). Análise da crônica Perde o gato de Carlos Drummond de Andrade A crônica que será aqui comentada, Perde o gato, de Carlos Drummond de Andrade, foi primeiro publicada no jornal Correio da manhã. O cronista escreveu para esse jornal desde 1954 a 1969 três crônicas semanais. A cole- tânea organizada em livro pelo próprio autor, intitulada Cadeira de balanço, foi publicada no ano de 1966. Por isso, podemos concluir que Drummond fez uma seleção den- tre a grande quantidade de crônicas que tinha já publica- do nesse jornal entre 1954 e 1966, ano da publicação do livro, pois escrevia três crônicas semanais o que nos faz pensar que tinha um acervo de mais de mil crônicas na hora da seleção. Confessa o autor que trocou o nome de algumas delas na organização do livro em partes. Cadeira de balanço está dividido em oito secções: Historinhas que acabam antes de começar; Vida de um qualquer; Figuras que a gente encontra; Cariocas; Política mais ou menos; Os marcados; Correspondência particular e Extra. No prefácio o autor diz: Cadeira de balanço é móvel da tradição brasilei- ra que não fica mal em apartamento moderno. Favorece o repouso e estimula a contemplação serena da vida, sem abolir o prazer do movi- mento. Quem nela se instale poderá ler estas páginas mais a seu cômodo. Daí o título do livro (...) (Andrade 1984, p. 2) 125 Tradição e modernidade dizem muito sobre Drummond de Andrade quem conseguia ser moderno sem esquecer a tradição. A cadeira de balanço também diz respeito à maneira de sentar para ler, pensar, refletir num mundo moderno e veloz com escasso espaço para a contemplação. A crônica aqui escolhida pertence à secção Vida de um qualquer, um qualquer que é o próprio poeta num tom confessional, que poderia ser um outro qualquer. Passemos agora à crônica Perde o gato, um texto de apenas duas páginas. O cronista começa se justificando, quer justificar o porquê de escrever sobre um tema miú- do: perder o gato: Um jornal é lido por muita gente, em muitos lugares; o que ele diz precisa interessar, senão a todos, pelo menos a certo número de pessoas. Mas o que me brota espontaneamente da má- quina, hoje, não interessa a ninguém, salvo a mim mesmo. O leitor, portanto, faça o obséquio de mudar de coluna. Trata-se de um gato. (An- drade 1984, p. 28) Drummond diferencia o que encontramos no jor- nal, matérias que interessam, pois o jornal para ser lido deve trazer temas interessantes, das colunas que ele es- creve, das crônicas em geral que trazem fatos miúdos. Por sua vez, Drummond também nos deixa ler como a crônica é caracterizada por essa leveza quando diz “o que me brota espontaneamente da máquina”, como se não sofresse grande reflexão e fossem os pensamentos crus que são transcritos. “O leitor, portanto, faça o obséquio de mudar de coluna”, a forte presença do destinatário é outro traço das crôni- cas, neste caso o diálogo que estabelece o cronista com o 126 leitor dispensa-o de continuar a leitura. Porém, sabemos que ao sermos dispensados isso prende a nossa atençãoe pretendemos continuar a leitura para saber qual é esse fato tão miúdo que vai ser relatado. Aparece o cotidia- no, a própria vida do cronista, a ausência do seu gato Inácio. É uma espécie de confissão escrita na primeira pessoa que conta, por isso, com a pretensão de verdade. E falamos de pretensão porque sabemos que embora seja escrita na primeira pessoal com tom confessional pode ser uma personagem criada pelo cronista: um cronista e a ausência do seu gato. Esta ausência alterna-se com o ato de escrever como tema sobre o que reflete dizendo: Se se agravar a mediocridade destas crônicas, os senhores estão avisados: é falta de Inácio. Se tinham alguma coisa de aproveitável era a pre- sença de Inácio a meu lado, sua crítica muda, através dos olhos de topázio que longamente me fitavam, aprovando algum trecho feliz, ou através do sono profundo, que antecipava a rea- ção provável dos leitores. (Andrade 1984, p. 29) Inácio poderia ser o próprio Drummond, o Drum- mond criativo, o Drummond imaginativo, o Drummond com uma pitada de humor e lirismo e estar nos dizen- do que muitas vezes alguns desses Drummonds pode se encontrar ausente. O cronista justifica-se das possíveis crônicas que não sejam interessantes para o leitor. Esse paralelo da ausência do gato com a ausência da criativida- de podemos lê-la em: “É próprio do gato sair sem pedir licença, voltar sem dar satisfação” (Andrade 1984, p. 29). É uma crônica de um fato miúdo que fala de coisas sérias, reflete sobre o ato de escrever, sobre as crônicas e sua diferença com as outras matérias publicadas em jornais. Por sua vez, ao longo da leitura de Drummond nos encontramos com reflexões filosóficas que não são 127 amplamente comentadas, mas são somente lançadas, ex- postas com a leveza do fato miúdo, com uma linguagem coloquial de quem confessa um acontecimento, mas que têm a profundidade dos grandes assuntos filosóficos. Na narração através da qual conhecemos a tentativa de res- gatar o gato perdido Drummond diz: “Chamados afetuosos não o comoveram; tentativas de aproximação se frustraram. Ele fugia sempre, para voltar se nos via distante. Amava” (Andrade 1984, p. 28). Drummond traz aqui sem dizer, mas dizen- do, uma concepção do amor. Por sua vez, vemos o fato de um fato miúdo não ser tão miúdo, e a relatividade da im- portância das coisas: “Mas Inácio desapareceu – e sua falta é mais importante para mim, do que as reformas de ministério” (Andrade 1984, p. 28). Não faltam nem a crítica nem o humor nesta crô- nica de Drummond e os dois vêm dar a mão, quando o cronista dá algumas hipóteses do porquê somem os gatos na cidade do Rio de Janeiro: “Agora ouço dizer que se relacio- na com a vida cara e a escassez de alimentos. À falta de uma fatia de vitela, há indivíduos que se consolam comendo carne de gato, caça tão esquiva quanto a outra” (Andrade 1984, p. 28). Referências ANDRADE, Carlos Drummond de (1984[1966]). Cadei- ra de balanço. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora. ANTUNES GOMES, Fernanda (2007). A arte de croni- car em Ana Paula Tavares. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: UFRJ. Disponível em: http://www. letras.ufrj.br/posverna/mestrado/GomesFA.pdf. ASSIS, Machado de (1973). Obra Completa, vol. III. Rio de Janeiro: Aguillar. 128 CÂNDIDO, Antônio (1992) “A vida ao rés-do-chão”, in: CANDIDO, Antonio et al. A crônica: o gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa. CASTELLO, José (2007). “Crônica, um gênero brasilei- ro.” Digestivo Cultural. Disponível em: http://www. digestivocultural.com/ensaios/ensaio.asp?codi- go=228&titulo=Cronica,_um_genero_brasileiro. LISPECTOR, Clarice (1999). A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco. MIRANDA, Florencia (2010). Textos e gêneros em diálogo. Uma abordagem linguística da intertextualização. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. SÁ, Jorge de (1997). A crônica. São Paulo: Ática. 129 ATIVIDADES PROPOSTAS A proposta consiste em fazer um exercício de leitura e análi- se de crônicas tentando dar conta das características enume- radas no presente artigo que têm o intuito de defi nir o gêne- ro ou de se aproximar na sua delimitação. Assim, depois da leitura dos itens teóricos sobre crônica e da análise comen- tada da crônica de Drummond de Andrade convidamos os leitores a procurarem em outras crônicas os elementos que as caracterizam. Sugerimos a continuação da análise com crônicas de Carlos Drummond de Andrade, do livro Cadeira de balanço ou dos textos de Luis Fernando Veríssimo dos livros Comédias da vida privada ou As mentiras que os ho- mens contam. Porém, seria frutífero, do mesmo modo ou até ainda mais, fugir da sugestão bibliográfi ca que aqui se reali- za e pegar crônicas diversas, dos autores mais diversos, das datas mais antigas até as mais contemporâneas, dos lugares mais longínquos do Brasil e dos países de língua portuguesa e analisar e comparar se os traços se mantêm ou diferem. Convidamos os leitores para que completem a listagem de itens com traços do gênero que não se pretende numerus clausus, mas aberta e passível de discussão. 129 ATIVIDADES PROPOSTAS A proposta consiste em fazer um exercício de leitura e análi- se de crônicas tentando dar conta das características enume- radas no presente artigo que têm o intuito de defi nir o gêne- ro ou de se aproximar na sua delimitação. Assim, depois da leitura dos itens teóricos sobre crônica e da análise comen- tada da crônica de Drummond de Andrade convidamos os leitores a procurarem em outras crônicas os elementos que as caracterizam. Sugerimos a continuação da análise com crônicas de Carlos Drummond de Andrade, do livro Cadeira de balanço ou dos textos de Luis Fernando Veríssimo dos livros Comédias da vida privada ou As mentiras que os ho- mens contam. Porém, seria frutífero, do mesmo modo ou até ainda mais, fugir da sugestão bibliográfi ca que aqui se reali- za e pegar crônicas diversas, dos autores mais diversos, das datas mais antigas até as mais contemporâneas, dos lugares mais longínquos do Brasil e dos países de língua portuguesa e analisar e comparar se os traços se mantêm ou diferem. Convidamos os leitores para que completem a listagem de itens com traços do gênero que não se pretende numerus clausus, mas aberta e passível de discussão. 131 Capítulo o GÊnero PoÉtiCo no ensino De Literatura Márcia Cabral da Silva Introdução Na contemporaneidade, dada a hibridização dos gêneros, talvez conceituar o gênero poético torne-se um exercício por demais complexo. Já se conhecem bem os rompimentos formais introduzidos pelos autores mo- dernistas. Ademais, inúmeros autores contemporâne- os elaboraram textos literários nas fronteiras do que se identifica tanto como prosa quanto como poesia. Não obstante a complexidade, pode-se ainda circunscrever o conceito de poesia, com vistas aos programas didáticos relacionados ao ensino de Literatura. Pensar em poesia significa acercar-se de um gênero literário com séculos de existência e de grande importância estética para a hu- manidade. Pode-se falar de poesia, praticamente, desde a antiguidade clássica. E, por mais que tenha se modificado com o passar do tempo, seu valor humanístico permane- 7 132 ce. Do ponto de vista formal, a crítica literária costuma identificá-la a partir de elementos estilísticos verificados em jogos de palavras, na musicalidade das frases, na orga- nização das palavras em versos e em outras características formais e de conteúdo comentadas ao longo deste artigo. O conceito de poesia 1. Além da crítica canônica, os próprios poetas costumam exercitar a reflexão sobre a matéria por meio da utilização da metalinguagem. Acompanhem-se alguns desses conceitos nos fragmentos que se seguem: POEMA 1 Poética I Que é a poesia? Uma ilha Cercada de palavras por todos os lados (...).1 POEMA 2 A poesia é uma pulga A poesia é uma pulga, Coça, coça, mechateia, Entrou por dentro da meia, Saiu por fora da orelha, (...), Mexe, mexe, não se cansa, Nas palavras se balança (...)2 1. Ricardo, Cassiano [1998]. “Que é a poesia?” in: De Nicola, José Literatura brasileira: das origens aos nossos dias. São Paulo: Scipione, p. 25. 2. Orthof, Sylvia [1992]. A poesia é uma pulga. São Paulo: Atual, p. 4. 133 POEMA 3 Convite Poesia É brincar com palavras Como se brinca Com bola, papagaio, pião. Só que Bola, papagaio, pião, De tanto brincar, Se gastam. As palavras não: Quanto mais se brinca Com elas, Mais novas ficam. (...) Vamos brincar de poesia?3 POEMA 4 Procura da poesia Não faças versos sobre acontecimentos. Não há criação nem morte perante a poesia. Diante dela, a vida é um sol estático, Não aquece nem ilumina. As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam. Não façais poesia com o corpo, Esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica. (...) Nem me reveles teus sentimentos(...) O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia. (...) Chega mais perto e contempla as palavras. Cada uma Tem mil faces secretas sob a face neutra 3. Paes, José Paulo [1996]. Convite. In: Aguiar, Vera (coord.) et. al. Porto Alegre: Editora Projeto; CPL/PUCRS, p. 48. 134 E te pergunta, sem interesse pela resposta Pobre ou terrível, que lhe deres: Trouxeste a chave? (...)4 A releitura de cada trecho dos poemas permite ao leitor a reflexão sobre noções de poesia. Por vezes, jogan- do mais com o humor ou com a brincadeira, como Sylvia Orthof e José Paulo Paes - “é uma pulga, que coça”, “é brincar com palavras”. Por outra, em busca de conceitu- ações mais complexas, como Cassiano Ricardo e Carlos Drummond de Andrade – “é uma ilha cercada de pala- vras”, “o que pensas e sentes, isso ainda não é poesia” há, de um modo ou de outro, a possibilidade de reflexão acerca de sua singularidade. Acresça-se o fato de que as ideias transmitidas pe- los poetas são bastante instigantes porque trazem concei- tos que nos falam à imaginação. Repare-se, por exemplo, na noção de inquietação, sugerida na imagem da pulga, que coça; na ideia de porção de terra cercada de palavras, metáfora criada por Cassiano Ricardo, que faz lembrar lugar isolado, às vezes, inacessível. E isso pode, de fato, acontecer, se não conseguirmos estabelecer associações entre as palavras, de modo a alcançar os possíveis sentidos da poesia. Já nos alertava Drummond: as palavras têm mil faces secretas e, se não tivermos a chave, ou seja, a percepção para os dife- rentes significados que as palavras assumem no contexto da poesia, torna-se tarefa árdua compreendê-las. Além disso, é necessário observar que, em todos os poemas mencionados, há um ponto coincidente: o trabalho com a palavra, matéria-prima da poesia. Deve- se, contudo, acrescentar a esta noção a ideia de trabalho criativo, pois não se trata da palavra registrada aleatoria- mente. Conforme observado quando da primeira leitu- ra dos poemas, evidencia-se, nesse tipo de composição, 4. Andrade, Carlos Drummond [1975]. Antologia Poética. Rio de Janeiro: José Olympio, pp. 175-177. 135 grande esforço por parte do poeta na procura da palavra exata, aquela que melhor convém ao seu estado de ânimo, à tentativa de falar de seus sentimentos ou, mesmo, do sentimento dos homens na vida social e expresso por ele. De modo a ampliar a definição, Massaud Moisés, em seu Dicionário de Termos Literários (1998), fala de um eu, denominado eu do poeta ou eu lírico, que se revela ao mesmo tempo como sujeito e objeto nesse processo de criação, voltando-se para si; esse o movimento frequente no exercício de se fazer poesia, ainda mais se se considera a abordagem crítica tradicional. De tal modo, diferentemente do gênero narrativo, estruturado com base em diversos tipos de personagens e de narradores, na poesia, o leitor defronta-se frequen- temente com uma personagem - o eu lírico - que vê o mundo, as pessoas e a si próprio, em um esforço de expri- mir-se. Se se leva em conta a importância dos elementos da narrativa na construção da ficção, não é difícil com- preender o ponto de vista de Massaud Moisés. A título de ilustração, examinem-se elementos extraídos do romance Vidas Secas, de Graciliano Ramos. Em Vidas Secas, acompanha-se como os diferentes personagens ganham vida - Fabiano, Sinhá Vitória, me- nino mais velho, menino mais novo - e são fundamentais na composição da narrativa. Inclui-se o enredo na har- monia desta composição. Ali, Graciliano Ramos esmera- se a transfigurar em matéria literária as dificuldades de uma família de retirantes a fugir da seca no sertão nordes- tino, como se verifica no trecho a seguir: (...) Fabiano, uma coisa da fazenda, um traste, seria despedido quando menos esperasse. Ao ser contratado, recebera o cavalo da fábrica, per- neiras, gibão, guarda-peito e sapatões de couro cru, mas ao sair largaria tudo ao vaqueiro que o substituísse. 136 Sinhá Vitória desejava possuir uma cama igual a de Seu Tomás da bolandeira. Doidice, não dizia nada para não contrariá-la, mas sabia que era doidice, cambembes podia ter luxo? E es- tavam ali de passagem. Qualquer dia o patrão os botaria para fora, e eles ganhariam o mundo, sem rumo, nem teriam meio de conduzir os ca- carecos. Viviam de trouxa arrumada, dormiriam bem debaixo de um pau. Olhou a caatinga amarela, que o poente aver- melhava. Se a seca chegasse, não ficaria planta verde. Arrepiou-se. Chegaria, naturalmente. Sempre tinha sido assim desde que ele se en- tendera. E antes de se entender, antes de nascer, sucedera o mesmo – anos bons misturados com anos ruins. A desgraça estava a caminho, talvez andasse perto. Nem valia a pena trabalhar. Ele marchando para casa, trepando a ladeira, espa- lhando seixos com as alpercatas – ela se avizi- nhando a galope, com vontade de matá-lo.5 Para se alcançar uma ideia ampliada de uma única personagem na poesia de que fala Massaud Moisés, dife- renciando-a da narrativa, observe-se um trecho do poe- ma de Patativa do Assaré: Caboclo Roceiro Caboclo roceiro das plagas do norte, Que vives sem sorte, sem terra e sem lar, A tua desdita é tristonho que canto, Se escuto teu pranto, me ponho a chorar. (...)6 5. Ramos, Graciliano [1971]. Vidas Secas. São Paulo: Martins, p. 59. 6. Assaré, Patativa [2005]. “Caboclo Roceiro”, in: Andrade, Cláudio Henrique Sales Patativa do Assaré. São Paulo: Editora Escala. Discutindo Literatura ano I, nº 1, p. 54. 137 Do exame deste trecho do poema, pode-se perce- ber as diferenças apontadas anteriormente em relação a Vidas Secas. No romance, é perceptível o ângulo de ob- servação do narrador onisciente, cuja função consiste em contar as dificuldades enfrentadas pela família de retiran- tes, com pleno acesso ao pensamento dos personagens. O uso da linguagem por eles, “cambembes”, é frágil; mal se comunicam entre si. Portanto, cresce o papel do nar- rador a par das ações das personagens descritas por ele. No que diz respeito ao poema Caboclo Roceiro, constata-se tema semelhante. No entanto, é nítida a presença de um eu poético no lugar do narrador e das personagens, que canta a dor do caboclo e se põe a chorar. Percebe-se, por- tanto, que o relato das dificuldades do caboclo emerge em segundo plano, visto que o acento estilístico recai no sentimento do poeta diante daquele drama. Essas primeiras noções veiculadas nos poemas e nas reflexões anteriores permitem uma primeira tentativa de definição: a poesia pode corresponder de um modo geral à expressão do eu, do eu do poeta, do eu lírico. Convém, todavia, ampliar as noções, com vistas à apreensão dessa forma particular de expressão. Já se verificou, com o poeta José Paulo Paes, que uma forma interessante de definir poesia consiste no jogo, evidencia- do por meio da brincadeira com as palavras. Neste texto, serão examinadas algumas maneiras de se explorar “essas brincadeiras”, que tornam a poesia uma modalidadelite- rária com características específicas. Uma dessas possibi- lidades consiste em brincar com a voz que fala no poema. Lembre-se de que, em um romance, há várias for- mas de se apresentar um narrador, ou seja, a perspecti- va de quem conta a história. Em poesia evidencia-se da mesma forma diferentes possibilidades. A noção de eu lírico, a voz inventada pelo poeta, para expressar o que ele sente, pensa ou imagina, adotando diferentes pontos de vista, ganha forma segundo diversos recursos estilísticos. Acompanhe-se uma ilustração dessa noção de voz lírica em um poema: 138 Poema Transitório Eu que nasci na Era da Fumaça: – trenzinho Vagaroso com vagarosas Paradas Em cada estaçãozinha pobre Para comprar Pastéis Pés-de-moleque Sonhos – principalmente sonhos! Porque as moças da cidade vinham olhar o trem passar: Elas suspirando maravilhosas viagens E a gente com um desejo súbito de ali ficar morando Sempre... Nisto, O apito da locomotiva E o trem se afastando E o trem arquejando(...) É preciso partir é preciso chegar É preciso partir é preciso chegar... Ah, como esta vida é urgente! ... No entanto eu gostava era mesmo de partir... e – até hoje – quando acaso embarco para alguma parte acomodo-me no meu lugar fecho os olhos e sonho: viajar, viajar mas para parte nenhuma... viajar indefinidamente... como uma nave espacial perdida entre as estrelas.7 7. Quintana, Mário [1999]. Antologia Poética. Porto Alegre: LP&M, pp. 77-78. 139 Nessa perspectiva, convém observar a expressivi- dade contida na voz do eu lírico criada por Mario Quin- tana. De uma parte, identifica-se um eu lírico antigo, pois nasceu na era da fumaça. Alude, de outra parte, ao trem movido à fumaça, e se recorda comovido dessa forma específica de viajar. Devido à necessidade de expressar a saudade que sente, cria um movimento imaginário no tempo e no espaço, sugerindo o deslocamento de um trem sempre de partida, “para parte nenhuma”. Verifica- se por meio desse recurso - dessa voz inventada, - que o eu poético pode se deslocar no tempo e viajar indefinida- mente. Além da voz do eu lírico, a poesia também se singu- lariza por intermédio de muitos outros recursos expressi- vos: figuras de linguagem, imagens, musicalidade e ritmo, para citar alguns recursos recorrentes. Em uma palavra, sugere-se que seu veículo consiste na ambiguidade das palavras, na linguagem conotativa e no que se convencio- nou denominar função poética (Aguiar e Silva 1984). Há, segundo tal perspectiva, um trabalho criativo e intencio- nal com os signos linguísticos. Em vistas dos elementos mencionados, pode-se definir poesia, também, como gênero literário que, em geral, exprime estados e, apenas de modo secundário, aconte- cimentos, conforme se assinalou na caracterização da nar- rativa. Os trechos extraídos de Vidas Secas e Caboclo Ro- ceiro, examinados na primeira parte deste estudo, ajudam a entender possíveis distinções entre narrativa e poesia. Não obstante a distinção, um conjunto mais amplo de autores e textos que conforma a historiografia literária merece ser examinado. Rupturas e continuidades podem gerar inflexões relevantes para o ensino do gênero poéti- co. Não se pode esquecer que os conceitos aqui tratados visam muito mais a fornecer subsídios para uma proposta didática em relação ao texto literário do que à crítica lite- rária propriamente. 140 Figuras de linguagem e ritmo da poesia Quando se lê ou se ouve poemas, tem-se a sen- sação de que as palavras foram escolhidas para transmi- tirem sonoridade, melodia e ritmo, além de ideias. E, se lidas as entrevistas com poetas, a maioria deles relata um árduo trabalho com a palavra, como o emblemático poe- ma escrito por João Cabral de Mello Neto, Tecendo a Ma- nhã, escrito ao longo de alguns anos (Mello Neto 2004) A par desse esforço, merecem nota os recursos expressivos criados por Mário Quintana, que permitem caracterizar seu texto como poético. Há, ali, algumas figuras de linguagem essenciais, por meio das quais o poeta imprime expressividade ao poema. A primei- ra figura pode ser reconhecida logo no seu início: “Eu que nasci na era da fumaça – trenzinho, vagaroso com vagarosas paradas”. Percebe-se que o eu poético, por meio de uma figura de lin- guagem que já vimos no início deste texto – a metáfora – movimenta-se aos olhos do leitor como um trenzinho. Para criar esta impressão, vale-se da ideia de constantes paradas; o eu poético apresenta-se, pois, vagaroso, tal como aquele trem. Há passagens tão bem construídas que qua- se não se distingue quando se trata da voz do eu poético ou do movimento do trem, como neste trecho: Porque as moças da cidade vinham olhar o trem passar: Elas suspirando maravilhosas viagens E a gente com um desejo súbito de ali ficar morando Sempre...Nisto. O apito da locomotiva (idem, p. 77) Em uma primeira leitura, o trecho acima cria uma fusão entre duas ideias – as moças admiravam o trem ou os viajantes, incluindo o eu lírico? No entanto, uma leitura analítica é capaz de esclarecer a ambiguidade, o duplo sen- tido criado. Afinal, identifica-se a palavra suspirar, moças suspirando, chave para a compreensão, pois sugere estado de quem está enamorado de alguém e não de um objeto. 141 Além da metáfora, destaca-se uma outra figura de valor estilístico para a composição deste poema. Em face do trecho a seguir, observe o efeito de sentido provocado pelo eu lírico, que, para reiterar o deslocamento do trem, organiza os versos, repetindo a mesma construção sin- tática. Estamos diante de uma outra figura de linguagem que denominamos anáfora. O apito da locomotiva E o trem se afastando E o trem arquejando É preciso partir É preciso chegar É preciso partir é preciso chegar... Ah, como esta vida é urgente! (idem, p.78) Por último, observe-se como a composição desses recursos estilísticos de forma harmônica imprime ritmo e musicalidade ao poema e contribui para uma compreen- são mais ampla do seu significado. Considerações finais Ao se atentar para os propósitos deste estudo, merece nota as seguintes noções. A poesia, de modo geral, pode ser definida como trabalho criativo com a palavra. Na poesia, de modo mais recorrente do que na narrati- va, a ênfase costuma recair em uma personagem: o eu poético ou eu lírico. Na poesia, costumam-se exprimir estados; os acontecimentos, matéria própria da narrati- va, quando ocorrem, emergem em planos secundários. O ritmo e as figuras de linguagem, como a metáfora e a anáfora, destacados neste texto, são recursos estilísticos importantes em sua composição. Dando continuidade às discussões realizadas neste capítulo, apresenta-se uma atividade ao final. 142 Referências AGUIAR E SILVA, Vítor Manuel. Teoria da Literatura. Lisboa: Almedina, 1984. ANDRADE, Carlos Drummond. Antologia Poética. Rio de Janeiro: José Olympio, 1975. ASSARÉ, Patativa. Caboclo roceiro. In: ANDRADE, Cláudio Henrique Sales. Patativa do Assaré. São Paulo: Editora Escala. Discutindo Literatura. Ano I, nº1, 2005. MEIRELES, Cecília 2002. Ou isto ou aquilo. Rio de Janei- ro: Nova Fronteira, MELLO MELO NETO, J. C. de 2004.Cadernos de Literatura Brasileira. São Paulo: Instituto Moreira Salles. MOISÉS, M. 1998. Dicionário de Termos Literários. São Pau- lo: Cultrix. ORTHOF, Sylvia, 1992. A poesia é uma pulga. São Paulo: Atual. PAES, José Paulo. Convite. In: AGUIAR, Vera. (Coord.) et. al. 1996. Porto Alegre: Editora Projeto; CPL/ PUCRS, p. 48. QUINTANA, Mário1999. Antologia Poética. Porto Alegre: LP&M. RAMOS, Graciliano1971. Vidas Secas. São Paulo: Martins. RICARDO, Cassiano. Que é a poesia? In: DE NICOLA, José 1998. Literatura brasileira: das origens aos nos- sos dias. São Paulo: Scipione. sites http://memoriaviva.digi.com.br/drummond/poe- mas025.htm. Acesso em 22 de julho de 2010 http://www.secrel.com.br/jpoesia. Acesso em 22de ju- lho de 2010. 143 Atividades propostas Sugere-se a apreciação e a indicação dos principais instru-mentais utilizados por Cecília Meireles nos trechos do po- ema transcrito abaixo, tendo em conta conceitos e recursos estilísticos enfatizados ao longo deste capítulo. Em seguida, pode resultar em exercício interessante compará-los com os demais poemas que compõem o livro Ou Isto ou Aquilo, de Cecília Meireles. Enchente Chama o Alexandre! Chama! Olha a chuva que chega! É a enchente. Olha o chão que foge com a chuva (...) Olha a chuva que encharca a gente. Põe a chave na fechadura. Fecha a porta por causa da chuva, olha a rua como se enche.8 Outras sugestões de atividades poderão ser propostas a par- tir de um levantamento de poemas extraídos de antologias poéticas contemporâneas amplamente disseminadas no mercado editorial. 8. Meireles, Cecília [2002]. Ou isto ou aquilo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, p. 73. 143 Atividades propostas Sugere-se a apreciação e a indicação dos principais instru- mentais utilizados por Cecília Meireles nos trechos do po- ema transcrito abaixo, tendo em conta conceitos e recursos estilísticos enfatizados ao longo deste capítulo. Em seguida, pode resultar em exercício interessante compará-los com os demais poemas que compõem o livro Ou Isto ou Aquilo, de Cecília Meireles. Enchente Chama o Alexandre! Chama! Olha a chuva que chega! É a enchente. Olha o chão que foge com a chuva (...) Olha a chuva que encharca a gente. Põe a chave na fechadura. Fecha a porta por causa da chuva, olha a rua como se enche.8 Outras sugestões de atividades poderão ser propostas a par- tir de um levantamento de poemas extraídos de antologias poéticas contemporâneas amplamente disseminadas no mercado editorial. 8. Meireles, Cecília [2002]. Ou isto ou aquilo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, p. 73. 145 soBre os autores Claudicélio Rodrigues é doutor em Ciência da Literatura (Poé- tica), pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2010, com a tese Ilhas da Encantaria: o rei Sebastião na poesia oral nutrin- do imaginários. É professor da Universidade Federal do Ceará – UFC, onde desenvolve, entre outras, atividades no setor de estágio em ensino de literaturas de língua portuguesa. Graciela Cariello é doutora em Humanidades e Arte pela Uni- versidad Nacional de Rosario, com tese sobre Jorge Luis Borges y Osman Lins: Poética de la Lectura. Autora, entre outros, de: Aventuras en el río más lindo del mundo. Historias de hadas, duendes y elfos e Figuraciones del otro en la literatura contem- porânea (2017). Ilana Heineberg é doutora em Études Lusophones, pela Uni- versité de Paris III (Sorbonne-Nouvelle) (2004). Atualmente é Maître de conférences na Université Michel de Montaigne -Bordeaux 3. Sua experiência universitária compreende prin- cipalmente os seguintes temas: romance-folhetim, romance brasileiro e romance francês do século XIX, literatura brasileira (séculos XIX e XX) e literatura comparada. José Leite de Oliveira Júnior é doutor pela Universidade Federal da Paraíba (2009), com a tese O pictórico na poesia caboverdia- na: dos Claridosos a Kiki Lima. Possui pós-doutorado pela Uni- versidade de São Paulo (2016). É professor da Universidade Fe- 146 deral do Ceará – UFC, onde desenvolve, entre outras, atividades no setor de estágio em ensino de literaturas de língua portuguesa. Márcia Cabral da Silva é doutora em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas (2004) e professora da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Seus interesses de pesquisa giram em torno de: história da leitura; história do impresso; formação de leitores; literatura, memória e sociedade; literatura e infância; Ensino Fundamental e práticas de leitura e de escrita na escola e na sociedade. Maria Carolina de Godoy é doutora em Estudos Literários pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2007), com pós-doutorado pela Universidade Federal do Rio de Janei- ro (2012) e professora da Universidade Estadual de Londrina. Seus temas de estudo são preferencialmente: literatura brasi- leira, literatura afro-brasileira, literatura infanto-juvenil, difusão digital de obras literárias, gênero literário, romance, conto, nar- rador, focalização, personagem, herói e magia. María Emilia Vico é doutoranda em Humanidades e Artes. Pro- fessora da Faculdade de Humanidades e Artes da Universidade Nacional de Rosario e pesquisadora do Centro de Estudos Com- parativos (UNR), atuando, entre outras, na área da tradução. Esta obra foi impressa em papel polen 75 gs. Instrução Normativa SRF nº 71 de 24 Agosto de 2001. Na capa foi utilizado Pa- pel Supremo, 250 gs., laminação fosca. Impressão e acabamento por processo digital book on demand da METABRASIL GRÁFICA a partir de arquivos do editor.