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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO - UFRJ INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS - IFCS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA E ANTROPOLOGIA - PPGSA Marcelo Adriano Martins DUAS TRAJETÓRIAS, UM MODERNISMO MUSICAL? Mário de Andrade e Renato Almeida Rio de Janeiro Julho de 2009 2 DUAS TRAJETÓRIAS, UM MODERNISMO MUSICAL? Mário de Andrade e Renato Almeida Marcelo Adriano Martins Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Sociologia e Antropologia, do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Sociologia (com concentração em Antropologia). Orientador: Prof. Dr. André Pereira Botelho Rio de Janeiro Julho de 2009 3 DUAS TRAJETÓRIAS, UM MODERNISMO MUSICAL? Mário de Andrade e Renato Almeida Marcelo Adriano Martins Orientador: Prof. Dr. André Pereira Botelho Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Sociologia (com concentração em Antropologia). Aprovada por: _______________________________ Presidente, Prof. Dr. André Pereira Botelho (PPGSA/IFCS/UFRJ) _______________________________ Profª Drª Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti (PPGSA/IFCS/UFRJ) _______________________________ Profª Drª Sabrina Marques Parracho Sant‟Anna (UFRRJ) Rio de Janeiro Julho de 2009 4 Martins, Marcelo Adriano Duas trajetórias, um modernismo musical? Mário de Andrade e Renato Almeida/Marcelo Adriano Martins. – Rio de Janeiro: UFRJ / IFCS / PPGSA, 2009. x, 120 f; 29,7 cm Orientador: André Pereira Botelho Dissertação (mestrado): UFRJ / IFCS / Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia, 2009. Referências Bibliográficas: f. 125-131. 1. Modernismo Musical. 2. Música Erudita Brasileira. 3. Nacionalismo Estético. 4. Mário de Andrade. 5. Renato Almeida. I. André Pereira Botelho. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia. III. Duas Trajetórias, um modernismo musical? Mário de Andrade e Renato Almeida. 5 Aos meus pais 6 AGRADECIMENTOS Muitas são as pessoas e instituições que contribuíram para a realização desta pesquisa de mestrado. Em primeiro lugar, gostaria de agradecer à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES pela concessão da bolsa de pesquisa, sem a qual este trabalho não teria se realizado da maneira como se realizou. Aos professores da Graduação em Ciências Sociais da FCLAr-UNESP, em especial ao Profº Milton Lahuerta e suas inesquecíveis aulas sobre “Política e Cultura”, as quais despertaram em mim o interesse em estudar Mário de Andrade. Ao grande José Adriano Fenerick, pelas valiosas conversas sobre música popular e História da música. Ao professor José Luis Vieira de Almeida, pela recepção em São Paulo nos momentos em que precisei fazer a pesquisa no Instituto de Estudos Brasileiros - IEB-USP. Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia do IFCS- UFRJ, bem como às secretárias do PPGSA, Cláudia e Denise, pela forma atenciosa com que sempre atenderam minhas inúmeras solicitações. Aos funcionários do IEB-USP, do Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, da Biblioteca Amadeu Amaral, localizada no Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular, no Rio de Janeiro, pelos fundamentais serviços prestados. Às professoras que compuseram a minha banca examinadora de qualificação e de defesa, Elide Rugai Bastos, Maria Laura Cavalcanti e Sabrina Parracho Sant‟Anna, pelas valiosas sugestões. 7 Ao meu orientador, professor André Botelho, pela forma séria e cuidadosa como acompanhou o desenvolvimento deste trabalho, contribuindo com idéias, críticas e sugestões, durante todas as etapas de minha pesquisa. Aos amigos de diversos momentos que, de alguma forma, acompanharam-me nesta pesquisa: Ederson Segantini, Edson da Silva, Tony Ortin, Leonardo Borges, Rodrigo Alves de Souza, Diego Araoz Alves, Ana Paula Perrota, Tatiana Prado, Fidel Flores, Ismael Pimentel, e, em especial, aos amigos de todas as horas, Arnaldo Lanzara e Wendel Cintra, pelas já quase uma década de troca de camaradagens e intermináveis conversas que se prolongaram até o Rio de Janeiro. À Cida, pela generosidade com que sempre me acolheu em Araraquara. Aos meus pais, Célio e Lúcia, que sempre apoiaram e acreditaram na concretização deste trabalho. Agradeço também aos meus irmãos, Alessandro e Cristiano, por apostarem nas minhas escolhas acadêmicas. Não poderia deixar de mencionar, ainda, a alegria que foi, durante o curso de mestrado, a chegada ao mundo do meu primeiro sobrinho, Daniel. Por fim, à minha namorada Carina, pela cumplicidade e pela forma tão carinhosa de sempre me consolar nas minhas preocupações. Só você sabe o quanto eu te devo este trabalho. 8 RESUMO DUAS TRAJETÓRIAS, UM MODERNISMO MUSICAL? Mário de Andrade e Renato Almeida Marcelo Adriano Martins Orientador: Prof. Dr. André Pereira Botelho Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Sociologia (com concentração em Antropologia). A dissertação tem como objetivo reconstituir o debate empreendido entre os modernistas Mário de Andrade (1893-1945) e Renato Almeida (1895-1981) sobre a formação da música brasileira. Para tanto, analisamos as duas edições de História da música brasileira (1926 e 1942), de Renato Almeida, o Ensaio sobre a música brasileira (1928) e a Pequena história da música (1929), de Mário de Andrade, bem como artigos em periódicos e a vasta correspondência trocada entre os autores durante os anos de 1922-1944. Procuramos mostrar como, num primeiro momento, durante os anos 1920, Mário de Andrade e Renato Almeida formularam propostas não apenas diferentes em termos estéticos e metodológicos, mas propriamente concorrentes de nacionalização musical no interior do movimento modernista; num segundo momento, que se consolida na década de 1940, essas diferenças tendem a diminuir a favor do programa defendido por Mário de Andrade, fundado na pesquisa do folclore brasileiro como meio de renovação da música erudita brasileira. Os debates travados pelos autores na correspondência e nas revistas, bem como as duas edições da História da música brasileira, de Renato Almeida, mostram, assim, a influência crescente de Mário de Andrade na definição do sentido de renovação do modernismo musical brasileiro. Palavras-chave: Modernismo Musical. Música erudita brasileira. Nacionalismo estético. Mário de Andrade. Renato Almeida. Rio de Janeiro Julho de 2009 9 ABSTRACT TWO TRAJECTORIES, ONE MUSICAL MODERNISM? Mário de Andrade and Renato Almeida Marcelo Adriano Martins Orientador: Prof. Dr. André Pereira Botelho Abstract da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia, Institutode Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Sociologia (com concentração em Antropologia). This study has as objective to reconstitute to the debate undertaken between the Mário de Andrade (1893-1945) and Renato Almeida (1895-1981) on the formation of Brazilian music. For this, we analyze two editions of História da música brasileira (1926 and 1942), of Renato Almeida, the Ensaio sobre a música brasileira (1928) and the Pequena história da música (1929), of Mário de Andrade, as well as periodic articles in and the vast changed correspondence enters the authors during the years of 1922-1944. We show as, at a first moment, during years 1920, Mário de Andrade and Renato Almeida they had formulated different and competing proposals in terms aesthetic and methodological of musical nationalization in the interior of the modernist movement; at as a moment, that if consolidates in the decade of 1940, these differences tend to diminish in favor of the program defended for Mário de Andrade, established in the research of the Brazilian folklore as half of renewal of Brazilian erudite music. The debates stopped for the authors in the correspondence and the magazines, as well as two editions of the História da música brasileira, of Renato Almeida, show, thus, the increasing influence of Mário de Andrade in the definition of the direction of renewal of the Brazilian musical modernism. Key-words: Musical Modernism. Brazilian Erudite Music. Aesthetic Nationalism. Mário de Andrade. Renato Almeida. Rio de Janeiro Julho de 2009 10 SUMÁRIO INTRODUÇÃO......................................................................................................p.11 CAPÍTULO 1. ANOS DE APRENDIZADO NO MODERNISMO MUSICAL...............................................................................................................p.21 1.1. Renato Almeida e Mário de Andrade................................................p.21 1.2. A nacionalização da música................................................................p.36 CAPÍTULO 2. O DEBATE EPISTOLAR ENTRE MÁRIO DE ANDRADE E RENATO ALMEIDA............................................................................................p.50 2.1. O início da trajetória epistolar...........................................................p.50 2.2. Distanciamentos e reaproximações....................................................p.65 CAPÍTULO 3. A FORMALIZAÇÃO DA HISTÓRIA DA MÚSICA BRASILEIRA........................................................................................................p.84 3.1. História da música brasileira - 1ª edição............................................p.84 3.2. Os livros de Mário de Andrade.........................................................p.97 3.3. História da música brasileira - 2ª edição............................................p.108 CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................p.116 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...............................................................p.125 11 INTRODUÇÃO Digamos então que é certo que a inserção múltipla e muito espalhada do intelectual reflete no seu plano uma certa superação prática das arenas locais e nacionais. Nem por isso ele passa a habitar simplesmente o planeta, ilusão de bolsistas potenciais como nós, ilusão cujo preço cultural é a irrelevância. A moda, como vocês sabem, é da aldeia global, por oposição às aldeias locais (...) A grande aceitação dessa tese no Brasil talvez não deva apenas ao seu acerto, relativo, mas também à decisão medíocre e muito compreensível de não se dar por achado, de não se dar por implicado na iniqüidade das relações sociais locais, o que permitiria entrar para o primeiro mundo sem mais perda de tempo. Roberto Schwarz, Seqüências brasileiras, 1999 Este trabalho é resultado da nossa pesquisa de mestrado realizada no Programa de Pós- Graduação em Sociologia e Antropologia do IFCS-UFRJ. O interesse por esta pesquisa surge durante a nossa graduação em Ciências Sociais, cursada no período de 2001 a 2005, na UNESP-Araraquara. Durante esse período, buscamos realizar um projeto de iniciação científica que conciliasse o estudo da chamada música popular brasileira com o campo das Ciências Sociais. Inicialmente, fizemos algumas leituras sobre a temática musical, mas sem que se chegasse a uma delimitação de um objeto de estudo. A partir da disciplina “Política e Cultura” 1 , que cursamos nessa universidade, passamos a vislumbrar a possibilidade de realizar uma discussão das concepções de Mário de Andrade (1893-1945) acerca da música brasileira a partir de um enfoque sociológico; o que procuramos realizar, ainda que preliminarmente, em nossa monografia de conclusão de graduação na referida instituição. Para realizar o processo seletivo do curso de mestrado em 2007, apresentamos ao PPGSA-UFRJ um plano de estudos que visava desenvolver com mais propriedade as idéias contidas na monografia de graduação, ou seja, discutir sistematicamente as proposições sobre música de Mário de Andrade, como esse intelectual entendia a música brasileira, qual era o projeto presente em sua literatura musicológica etc. Com as leituras realizadas ao longo das disciplinas do mestrado e com as reuniões e discussões com o nosso orientador, professor 1 Disciplina cursada no primeiro semestre de 2004. 12 André Botelho, passamos gradativamente a rever a idéia inicial para a dissertação de mestrado, com o intuito de realizar uma pesquisa que trouxesse, de certa forma, alguma contribuição nova, não somente no recorte do objeto, como também na utilização de novos materiais ainda não mobilizados em pesquisas anteriores. Com isso, realizamos um levantamento bibliográfico no banco de teses da CAPES para saber o que já tinha sido escrito sobre música e Mário de Andrade e quais eram os enfoques dados nos trabalhos. Pelos resumos encontrados, constatamos que eram poucos os trabalhos que buscavam dar uma abordagem sociológica para esta temática do modernismo musical. Feito isso, procuramos entrar em contato com os principais livros, teses e dissertações que tratam do tema, para que, a partir disso, tendo em vista o que foi produzido, pudéssemos realizar uma pesquisa pertinente. Decidimos, então, realizar uma pesquisa em perspectiva comparada, uma vez que pensávamos, naquela ocasião, que através da comparação entre dois autores teríamos maior rigor analítico para construir o objeto de pesquisa. Tendo a perspectiva comparativa em vista, procuramos escolher outro intelectual que, assim como Mário de Andrade, também tivesse se preocupado com a música brasileira na mesma época, o período do modernismo brasileiro. O primeiro nome pensado foi o do compositor Heitor Villa-Lobos. Fomos ao Museu Villa- Lobos em busca de materiais que tornassem viável a pesquisa; no entanto, constatamos que havia pouco material, no Museu, que pudesse subsidiar uma discussão comparativa da maneira como estávamos pensando em realizar. Ao perceber que seria inviável, naquele momento, realizar uma pesquisa com o compositor carioca, devido aos motivos citados anteriormente, pensamos em intelectuais brasileiros pouco conhecidos, que de alguma forma estivessem relacionados com a temática da música. Foi assim que, buscando na literatura especializada alguns outros nomes, chegamos ao modernista Renato Almeida (1895-1981). Nascido em Santo Antônio de Jesus, 13 no interior do Estado da Bahia, Almeida muda-se para o Rio de Janeiro, em 1907, onde adquire a sua formação intelectual. Publicou, em 1926, a História da música brasileira, primeira obra que deu voz ao debatemodernista sobre os caminhos da música no Brasil. Por esse motivo e também por ser um intelectual pouco lembrado no meio acadêmico contemporâneo, consideramos que ele poderia ser o ponto de comparação que estávamos buscando. Com a escolha desse outro autor, fomos em busca de materiais sobre a possível relação entre ele e Mário de Andrade. Durante o período de férias letivas de 2007-2008, estivemos no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP, em São Paulo, visando encontrar algum tipo de material que apontasse caminhos para a pesquisa, visto que nesse instituto se encontram a biblioteca e todo o arquivo de Mário de Andrade, que contém correspondências, recortes de jornais e revistas, manuscritos, fotos etc. Lá entramos em contato com muitas fontes primárias que o autor paulista tinha sobre Renato Almeida, também encontramos uma dissertação de mestrado em Teoria Literária e Literatura Comparada da USP, de 2003, cujo título é “Edição anotada da correspondência Mário de Andrade e Renato de Almeida”, na qual constam 188 cartas (organizadas cronologicamente pela autora) trocadas entre os dois intelectuais modernistas; bem como a revista Ariel – revista de cultura musical, que circulou de 1923 a 1924, na qual constam vários artigos de ambos os autores. A partir da leitura da correspondência que localizamos no IEB/USP 2 e dos artigos em revistas e jornais, nosso horizonte de pesquisa se ampliou significativamente, pois entramos em contato com, por assim dizer, “os bastidores” da literatura musicológica de Mário de Andrade e de Renato Almeida, com os elementos que motivaram esses autores a escreverem sobre música naquele contexto, seus projetos, camaradagens e divergências manifestas 2 Essa correspondência foi organizada por Maria Guadalupe Pessoa Nogueira e está presente em sua dissertação de mestrado “Edição anotada da Correspondência Mário de Andrade e Renato de Almeida”, apresentada ao Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, em 2003. 14 privadamente na correspondência trocada entre eles. Assim, com um caminho delineado para a pesquisa e com a possibilidade de fazer uma análise em perspectiva comparada, decidimos estudar a obra historiográfica musical dos dois modernistas. Isto posto, nesta dissertação de mestrado, procuramos reconstruir os diálogos e os debates intelectuais entre Mário de Andrade e Renato Almeida sobre a formação da música brasileira. A leitura e o cotejo da primeira e da segunda edição de História da música brasileira, de Renato Almeida, mostraram ter havido alterações substantivas quanto às concepções e aos métodos sobre a formação da música no Brasil da primeira edição, de 1926, para a segunda, de 1942; mudanças que assinalam, em grande medida, a influência de Mário de Andrade sobre o amigo e, assim, em certo sentido, uma relativa diluiç14ão da diversidade de projetos presentes originariamente no contexto do modernismo musical dos anos 1920, quando ambos os autores iniciam de modo mais sistemático sua intervenção pública, com a publicação de artigos e de livros sobe o tema. Entre 1926 e 1942, então, as posições de Renato Almeida, antes concorrentes às de Mário de Andrade, vão se tornando convergentes ao do modernista paulista, que, como o amigo, também havia formalizado suas idéias sobre música originalmente na década de 1920, em livros como o Ensaio sobre a música brasileira, de 1928, e a Pequena história da música, de 1929, por exemplo. Podemos dizer, em suma, para enunciarmos o campo problemático que apresentamos nesta dissertação, que nas obras publicadas durante a década de 1920, ou seja, a primeira edição de História da música, de Almeida, e as duas obras de Andrade, os autores apresentam interpretações divergentes fundamentalmente acerca do modo como se deveria nacionalizar a música erudita feita no país, divergências que podem ser tomadas como expressões do caráter propriamente concorrente das posições que inicialmente esposavam. Porém, com as modificações ocorridas no próprio movimento modernista, bem como no contexto social e político em que Almeida e Andrade estavam inseridos, as divergências interpretativas sobre a 15 formação da música brasileira serão atenuadas, culminando com a publicação da segunda edição, em 1942, da História da música brasileira, de Almeida. Embora a leitura das obras aponte para essa mudança de posição de Renato Almeida, é por meio da vasta correspondência trocada entre os autores durante o período de 1922 a 1944, bem como da publicação de artigos em revistas especializadas em temas musicais que poderemos acompanhar o caminho como ela se processa. Pretendemos, com isso, contribuir para uma nova inteligibilidade sociológica sobre os livros e o debate que eles encerram, evidenciando e qualificando os conflitos interpretativos sobre música erudita brasileira no contexto do modernismo. Existem muitas abordagens do movimento modernista da década de 1920, assim como, ainda que em escala bastante reduzida, especificamente do modernismo musical brasileiro 3 . A leitura das diferentes interpretações sugere, no entanto, que não é possível pensar em uma idéia unívoca de modernismo, em geral ou o musical, sendo necessário entendê-los mais como um campo de disputas de significados. Ainda assim, alguns aspectos comuns perpassam diferentes vertentes do modernismo brasileiro, inclusive marcando sua diferença em relação aos seus congêneres europeus. Entre eles, destacamos dois aspectos cruciais. O primeiro deles é a relação da produção modernista com a tradição cultural. Se, no caso dos modernismos europeus, a ruptura com o passado parece ter constituído o objetivo convergente de diferentes manifestações que em diferentes contextos nacionais, e mesmo com sentidos distintos, se reivindicaram como “modernistas” (FABRIS, 1994); no Brasil, malgrado as distintas respostas oferecidas, a relação com o passado foi mais complexa, quando não ambígua. O que no caso dos modernismos musicais, expressava-se, de um lado, na crítica contundente ao gosto consolidado entre as elites e grupos médios que freqüentavam concertos ou executavam música em saraus domésticos, principalmente ao romantismo 3 Para um balanço das abordagens do modernismo de 1920, ver Botelho (2005). Sobre o modernismo musical, ver Travassos (2000); Naves (1998); Wisnik (1977) e Contier (1988). 16 musical (como o parnasianismo fora criticado na poesia); de outro, a busca de elementos que permitissem identificar a formação de uma música propriamente brasileira implicava, necessariamente, numa visão não inteiramente disjuntiva entre passado e presente ou tradição e modernidade. Assim, também as formulações de Mário de Andrade e de Renato Almeida no campo da música tornam-se emblemáticas do problema modernista da relação entre passado, presente e futuro, pois surgem associadas ao projeto de revisão do passado musical e de busca em seu acervo de elementos que permitissem a constituição de uma música brasileira, o que parece ser contraditório se considerarmos o paradigma europeu de modernismo, voltado em geral para o rompimento com a tradição. E na revisão crítica da produção musical do passado brasileiro que empreendem cada um ao seu modo, um outro aspecto comum avulta nas propostas de Mário de Andrade e de Renato Almeida: o resgate das tradições populares como base para a construção de uma cultura musical ao mesmo tempo moderna e brasileira. Também essa segunda orientação modernista geral de resgate e utilização de material folclórico pelos compositores brasileiros pouco ou nada tinha a ver com as novas tendências estéticas contemporâneas surgidas na Europa, como o dodecafonismo, o serialismo e o futurismo.Em contraste, por exemplo, com o que Schoenberg realizava com o dodecafonismo, propondo a atonalidade que refutava a tonalidade presa à escala harmônica, no Brasil, o projeto modernista mantinha a tonalidade clássica e também as estruturas melódicas e rítmicas inspiradas em temas folclóricos. O modernismo que ocorre no Brasil não promoveu uma ruptura absoluta com a concepção de arte culta, como teria ocorrido na Europa, naquele mesmo contexto. Especialmente com relação à música, tal ruptura não acontece como nas outras manifestações artísticas do período. Nessa direção, Naves (1998) sugere que o modernismo musical apresentava um viés construtivo, que propunha uma continuidade com o processo civilizador 17 que teve início no Brasil, no século XIX. Para a autora, existem dois ideais de modernização, os quais se contrastam: o dos ideólogos da modernização via civilização e o dos modernistas brasileiros que tinham uma via alternativa ao universalismo. Os primeiros queriam manter o ideal da ordem, separando os “elevados” dos “baixos”; os segundos, de outra forma, buscavam o embaralhamento do tradicional com elementos “inferiores”, tendo como objetivo a formação de uma cultura original Porém, os modernistas brasileiros “rompem com a perspectiva excludente do processo civilizador” (NAVES, 1998). Integrantes do movimento modernista, Mário de Andrade e Renato Almeida compartilham o ideário de renovação cultural nos anos 1920 se apresentando como defensores da estética nacional-modernista no campo da música. Além disso, tornam-se artífices de uma, por assim dizer, tradição musicológica nacionalista no Brasil que teve desdobramentos importantes no desenvolvimento tanto da música erudita quanto da popular no país. Esses aspectos têm estimulado freqüentemente as visões segundo as quais Andrade e Almeida compartilhariam uma mesma ideologia musical e os mesmos referenciais teórico- metodológicos como musicólogos ou historiadores da música (PEREIRA, 2007; MARIZ, 1983; CONTIER, 1988;). Apesar das inegáveis convergências que guardam entre si, as obras e as trajetórias de Mário de Andrade e Renato Almeida apresentam também divergências fundamentais e muito significativas, no plano cognitivo, especialmente quanto ao método de concepção do próprio processo de nacionalização da música erudita feita no país; divergências que, apesar de terem sido atenuadas com o tempo, como aparece nas duas edições da História da música de Renato Almeida, não podem ser menosprezadas, mas antes qualificadas. Esperamos, ademais, que a perspectiva comparativa empregada na pesquisa tenha contribuído ainda para identificar e qualificar sob novos ângulos tanto questões pouco contempladas quanto outras que praticamente se tornaram lugares-comuns na literatura especializada. 18 Há também diferentes formas de analisar a obra de um ou mais autores. Partindo em linhas gerais de uma perspectiva teórico-metodológica da interação entre indivíduo e sociedade, na nossa dissertação procuramos apreender, através dos temas, motivos e imposturas narrativas de Mário de Andrade e Renato Almeida, suas experiências e suas concepções gerais e particulares. Feito isso, retomamos suas reflexões sobre a música brasileira num quadro político-cultural mais amplo, característico não apenas do momento histórico da sua criação, mas também dos próprios rumos tomados pela produção artística e intelectual no Brasil. A dissertação, portanto, procura realizar uma análise sociológica da literatura musicológica de Mário de Andrade e Renato Almeida, dos seus artigos em jornais e revistas e da vasta correspondência trocada entre os dois autores, bem como da própria trajetória dos autores. Assim, embora a ênfase analítica seja dada às obras destacadas, isso não significa (1) limitar o corpo dos materiais da pesquisa a elas, incorporando-se também outros materiais primários cuja análise permite tanto contingenciar as idéias formalizadas nos livros, quanto fazer emergir novas informações e outros temas correlatos fundamentais para a construção da sua inteligibilidade; e (2) compartilhar uma visão disjuntiva entre trajetória intelectual e obra como se qualquer uma dessas dimensões pudesse ser ignorada ou reduzida uma a outra no estudo sociológico da produção cultural. Afinal, se ambas as dimensões, a da “trajetória” e a da “obra”, compõem a experiência biográfica pessoal de um autor, elas também possuem um fundamento social cuja complexidade ultrapassa a experiência ou mesmo o domínio conceitual de “indivíduo” (BOTELHO, 2005). O desafio metodológico que se coloca é o de uma compreensão da “obra” dos autores não apenas em termos restritos da sua produção escrita, mas também em termos da sua própria atuação cultural. Para se atingir esse fim, seguindo a sugestão metodológica de Botelho (2005), pensamos ser analiticamente estratégica a categoria de “contexto intelectual” de Quentin Skinner. Skinner entende a análise das idéias “não como o estudo de supostos textos canônicos, mas sim como uma investigação 19 mais abrangente das linguagens [...] em transformação nas quais as sociedades dialogam com elas mesmas” (SKINNER, 1999, p. 85-86). Nesse sentido, concentrando-se nas idéias de um autor ou mais autores como “matriz mais ampla, social e intelectual” da qual nascem os seus textos, prossegue Skinner, podemos começar assim a ver não apenas que argumentos eles apresentavam, mas também as questões que formulavam e tentavam responder, e em que medida aceitavam e endossavam, ou contestavam e repeliam, ou às vezes até ignoravam (de forma polêmica), as idéias e convenções então predominantes no debate. (SKINNER, 1999, p.13). E, adverte o autor: “Não podemos esperar atingir esse nível de compreensão estudando tão-somente os próprios textos”; mas também que quando “tentamos situar desse modo um texto em seu contexto adequado, não nos limitamos a fornecer um „quadro‟ histórico para nossa interpretação: ingressamos já no próprio ato de interpretar” (SKINNER, 1999, p.13). É nesse sentido que destacamos como objeto de análise as duas edições de História da música brasileira, de Renato Almeida, e o Ensaio sobre a música brasileira e a Pequena história da música, de Mário de Andrade; mas também, além dessas obras mais representativas, alguns dos seus principais artigos publicados em revistas e jornais da época, além da vasta correspondência trocada entre eles durante o período de 1922 a 1944, que localizamos na biblioteca do IEB-USP 4 . Cabe, por fim, acrescentar uma breve observação metodológica sobre o “estatuto” dos materiais de pesquisa da dissertação. De certa forma esta dissertação pode ser lida como um esforço de tornar mais contingente a relação de pesquisa com os livros de Mário de Andrade e de Renato Almeida, em certo sentido os objetos mais “canônicos” da própria área de pesquisa. Isso porque não apenas lidamos com diferentes edições da História da música brasileira, de Almeida, mas porque procuramos qualificar o debate entre este e Mário de Andrade travado entre as edições de 1926 e de 1942, justamente ao recuperamos outros materiais primários, como os artigos de jornais e revistas que nos dão 4 Ver: Nogueira (2003). 20 uma visão sobre o debate público e, sobretudo, a vasta correspondência trocada entre eles, que nos dá uma visão do debate mais privado que também empreenderam no contexto do modernismo musical brasileiro e seus primeiros desdobramentos. O caráter mais “acabado” ou “articulado” das formulações corporificadas em seus livros ganha, assim, uma perspectiva, uma dimensão de processo, de movimento que procuramos recuperar. Assim, em vez de menos “reais” ou “representativos” de uma trajetória intelectual, os materiais menos “canônicos” permitem tanto contingenciar as idéias formalizadas nos livros, quanto fazer emergirnovas informações para a construção da sua inteligibilidade. A dissertação está dividida em três capítulos. No primeiro, tendo em vista os traços fundamentais das trajetórias intelectuais de Renato Almeida e Mário de Andrade, após apresentarmos os principais temas comuns enfrentados pelos autores no contexto intelectual do modernismo musical, circunscrevemos a formação de cada um deles com o objetivo de esclarecer suas respectivas visões especialmente sobre o desafio central daquele momento, o de nacionalização da música produzida no Brasil. No segundo capítulo, debruçamo-nos sobre a correspondência trocada entre os autores durante os anos de 1922 e 1944, com o intuito de surpreender o debate travado entre eles. No terceiro capítulo, analisamos como o debate interpretativo sobre a formação da música brasileira se refletiu nas obras dos autores; inicialmente, na edição de 1926 de História da música brasileira, de Renato Almeida e nas duas obras de Mário de Andrade, o Ensaio sobre a música brasileira (1928) e a Pequena história da música (1929); e, posteriormente, em 1942, na segunda edição da obra de Almeida. Por fim, apresentamos algumas considerações finais. 21 CAPÍTULO 1 ANOS DE APRENDIZADO NO MODERNISMO MUSICAL Neste capítulo apresentamos, em traços gerais, os modernistas Mário de Andrade e Renato Almeida, especialmente alguns elementos decisivos das suas diferentes formações intelectuais, as quais se mostram cruciais para a compreensão das diferentes visões que os autores possuíam inicialmente sobre estética e história musical. Apresentamos ainda o papel intelectual de Ariel: revista de cultura musical naquele contexto, em cujas páginas o diálogo público entre Mário de Andrade e Renato Almeida acerca da música brasileira se incrementa. Através dessa discussão, e dos materiais primários recolhidos, procuramos situar nossos autores no contexto mais geral do modernismo musical brasileiro dos anos 1920 e especialmente em relação ao desafio crucial daquele movimento: o de nacionalizar a música produzida no Brasil. 1.1. Renato Almeida e Mário de Andrade Nascido em 1895, na cidade de Santo Antônio de Jesus, no Estado da Bahia, Renato Almeida muda-se para o Rio de Janeiro em 1907, onde, em 1910, inicia o curso de Direito na Faculdade Livre de Ciências Jurídicas e Sociais, datando desse período o início da sua amizade com Ronald de Carvalho (1893-1935), em que passam a compartilhar interesses sobre literatura, filosofia, pensamento e artes. Dessa amizade surge a identificação intelectual, sobretudo quando, em 1914, Ronald de Carvalho volta da Europa após o início da Primeira Guerra Mundial. Tendo passado uma longa temporada em Lisboa e Paris, Ronald de Carvalho entra em contato com as vanguardas artísticas européias, como o movimento modernista português, e freqüenta, em Paris, os famosos cursos de Henri Bergson, no Collège de France. 22 Botelho (2005) mostra que as idéias de Bergson constituem uma das mais notáveis influências intelectuais de Ronald de Carvalho, especialmente pela conotação negativa da premissa iluminista da história como processo interdependente da razão, e a conseqüente crítica à organização democrática e racional da sociedade a ela associada, também presentes em seus ensaios (BOTELHO, 2005, p. 87). É no contexto do retorno de Ronald de Carvalho da Europa e do início da Primeira Guerra Mundial que Renato Almeida afirmará que em “1914, a guerra que nos sacudiu, modificou os meus ideais e um mundo novo e diferente surgiu. Com ele cessaria a liberdade, pelo menos a liberdade do nosso individualismo, em que cada qual se determinava, vivia a seu modo e sempre certo” (ALMEIDA apud MARIZ, 1983, p.94). Outro ponto importante que corrobora a ligação intelectual entre Renato Almeida e Ronald de Carvalho é o texto- conferência do primeiro, publicado em 1915, cujo título é O simbolismo e os simbolistas, no qual tece elogios ao movimento simbolista, considerando-o como revolucionário, dentre outras coisas, por libertar os versos dos rigores formais e por aproximar a literatura a um “sentido espiritualista, manejando instrumentais que buscavam comover, „tocar‟ o público, como na música de Debussy, em que „ouvir é sentir‟” (GOMES, 1999, p. 38-39); além de relacionar nomes como Cruz e Souza, Mário Pederneiras e Ronald de Carvalho, como membros desse movimento 5 . Dessa forma, notamos que Ronald de Carvalho compartilhou as suas experiências intelectuais adquiridas na Europa com o amigo Renato Almeida, de tal modo que ultrapassou as fronteiras do campo pessoal. Se estivermos corretos em nossa interpretação, podemos dizer que o seu primeiro livro, Em Relevo, publicado em 1917 e dedicado a Ronald de Carvalho, tenha sido elaborado principalmente sob a influência da 5 De acordo com Gomes, “(...) o simbolismo teve – entre vias lácteas, mulheres alvas, sedução pela morte, humor e sátira política explícita –, como os lírios, uma breve floração. Ele ambientou-se, no dizer de Lúcia Miguel Pereira, em um mundo art nouveau de linhas retorcidas de delicadas, onde os objetos eram mais ornatos que utilidades. Ele foi boêmio, espiritualista e antiacadêmico, atraindo alguns grandes nomes da literatura carioca de então, como Afrânio Peixoto (Rosa Mística), Coelho Neto (Esfinge) e Graça Aranha (Canaã). (GOMES, 1999, p.39). 23 filosofia begsoniana, trazida pelo amigo da Europa. Em linhas gerais, nessa obra, Almeida faz um estudo crítico literário de autores como Antero de Quental, Eugênio de Castro, Antonio Nobre, Ronald de Carvalho, dentre outros, analisando, a partir de um olhar marcadamente simbolista, as características de pessimismo, de resignação etc, presentes nas obras desses autores (MARIZ, 1983, p.107). Nessa direção, é importante destacar que, na década de 1910, o Rio de Janeiro, devido à efervescência cultural, torna-se um pólo fundamental que tem no simbolismo uma das principais matrizes culturais. Dessa tradição simbolista surgem intelectuais, como Graça Aranha, que terão papéis importantes por darem base teórica às distintas correntes que se formam em torno do movimento modernista. Nas palavras de Gomes: Essa tradição, mística e espiritualista, contudo, não pode ser mecanicamente associada ao boom de militância católica que então começa a se desenvolver. Entretanto, seria impossível não assinalar a convergência, bem como os laços que passam a unir as trajetórias de alguns intelectuais simbolistas e de algumas das mais importantes lideranças leigas da militância católica de então. São tais conexões que nos permitem transitar do simbolismo ao modernismo; dos inícios do século aos anos 20 e 30; e de outros estados do Brasil à capital federal. Para a efetivação e inteligibilidade desses contatos, existem sempre certos elos fundamentais. Certas figuras que funcionam como estímulo e bases de apoio e orientação. (GOMES, 1999, p.39). Com o desenrolar da Primeira Guerra Mundial e o fortalecimento do “espírito nacionalista” entre os países, inclusive o Brasil, surge uma forte militância nacionalista que aponta novos rumos à intelectualidade brasileira, especialmente depois de 1920. No entanto, a produção literária de Renato Almeida seguia aquela orientação simbolista, como ele mesmo afirma: Eu comecei a minha vida com grandes preocupações literárias dentro do movimento simbolista, naquele grupo da “Fon-Fon”, com Ronald de Carvalho, Álvaro Moreyra, Felipe de Oliveira, essa gente toda. Esse era no momento o meu grande interesse, o interesse pelos estudos filosóficos, daí eu ter escrito o Fausto. (ALMEIDA apud MARIZ, 1983, p.96). 24 Publicado em 1922, Fausto: ensaio sobre o problema do ser, obra de cunho filosófico na qual o autor busca fazer uma interpretação da personagem de Goethe, aponta que a remissão do homem deve vir pelafé. Ronald de Carvalho, no prefácio do livro, afirma que Almeida soube fazer uma leitura original do clássico de Goethe ao dar maior importância à questão do amor. Para Carvalho, A solução que o Sr. Renato Almeida propõe para o problema do ser, redimindo Fausto pelo amor, além de consoladora, parece-me a mais verdadeira, a mais acorde com o pensamento de Goethe e com as irremediáveis contingências do mundo. A razão não é uma luz seca, disse Bacon, é mister que a lágrima das coisas a fecunde para que o demônio da dúvida não nos tente com a suas promessas (CARVALHO apud MARIZ, 1983, p.107-108, grifos nossos). É a partir dessa obra que nasce o diálogo epistolar entre Mário de Andrade e Renato Almeida (que acompanharemos no próximo capítulo), quando, em resposta à carta enviada pelo intelectual paulista, Renato Almeida agradece os elogios e as sugestões dadas por Mário de Andrade em relação à referida obra, considerando-o como “a um irmão, irmão da mesma fé, nas mesmas tendências do pensamento, na mesma finalidade da inteligência” (ALMEIDA apud NOGUEIRA, 2003, p.2). Contudo, antes da publicação de Fausto, em 1922, e do início da troca de correspondência com Mário de Andrade, vale ressaltar dois fatos que são de suma importância para se compreender a formação intelectual de Renato Almeida: a chegada de Graça Aranha da Europa, em 1921, e o acontecimento da Semana de Arte Moderna de 1922, em São Paulo. Principal referência intelectual de Renato Almeida, Graça Aranha (1868-1931) já era um escritor de grande destaque antes de participar do movimento modernista, com publicações como Canaã, de 1902. Retorna da Europa em 1921 e publica o livro A estética da vida, que influenciará fortemente os escritos de Almeida, a partir de então. De modo geral, esta obra busca fazer uma releitura esteticista da filosofia monista. Considerado como o último discípulo da chamada Escola do Recife, e seguidor de Tobias Barreto, Graça Aranha 25 questiona os limites da ciência e do pensamento analítico e defende “uma visão sintética do universo” (MORAES, 1978, p.22). Em outras palavras, em A estética da vida, Graça Aranha afirma que a ciência não nos possibilita a apreensão do universo, do todo infinito, mas, ao contrário, ela somente apresenta um universo fragmentado em partes. Nessa direção, para o autor, por meio da ciência só podemos conhecer os fenômenos, as partes da realidade, nunca a totalidade do real. Segundo Moraes (1978), É a esta realidade essencial, situada além dos limites da apreensão da ciência, que a estética proposta por Graça Aranha nos deve conduzir. Trata- se, portanto, de ir além dos limites impostos ao discurso científico, na busca de uma visão sintética do mundo, pela qual este seja apreendido em sua realidade essencial. (MORAES, 1978, p.23). Para Graça Aranha, a “realidade essencial” somente poderia ser apreendida através do “sentimento da Unidade infinita do Universo”, sentimento esse que não está na realidade objetiva, mas que reside na consciência. Nesses termos, o autor entende que o “Todo infinito” só pode ser compreendido pela sua realidade subjetiva, realidade esta que se adquire pela intuição (ARANHA, 1921, p.4). A publicação de A estética da vida, em 1921, explicita a diretriz que Graça Aranha considera essencial para se pensar a cultura brasileira, qual seja, que o conhecimento científico é dualista por ser fragmentário e separar o sujeito do objeto. O autor entende que essa fragmentação, própria da ciência, mantém, em um outro nível, a separação entre “indivíduo” e “cosmos”, o que torna a vida humana “dolorosa, infatigável e múltipla expressão desse sentimento: a não conformidade com o cosmos” (ARANHA, 1921, p.11). Dessa inadequação entre “individuo” e “cosmos” resultaria o dualismo, ou seja, a divisão da realidade e da condição humana em dois princípios antagônicos. A partir desse entendimento, o autor propõe: “A esta triste filosofia dualista opomos a radiante filosofia monista, que só ela pode suscitar a verdadeira estética da vida” (ARANHA, 1921, p.20-21). Com isso, essa separação somente poderia ser superada com “uma estética da vida”, que integre o “eu” com o 26 “cosmos”, o que, segundo a sua interpretação, seria possível apenas por meio “de vias emocionais como a religião, a filosofia, a arte e o amor” (MORAES, 1978, p23-24). Nesse sentido, para Graça Aranha, A concepção estética do Universo, dando ao homem a luminosa compreensão da sua unidade com o Todo infinito, eliminaria o Terror da vida humana, basearia a sociabilidade na Alegria, que, segundo percebeu Spinoza, é o bem supremo. E a alegria, (que) é a perfeição do espírito humano (...) (ARANHA, 1921, p.34). Com relação a essa concepção estética, Moraes esclarece que: Tudo deve tender, portanto, a uma volta à situação de que saímos: situação de inconsciência e integração no todo que abandonamos no momento em que, movido pelo terror inicial, fizemo-nos consciência, diferente e distanciada do todo, tentando interpretar a realidade. A consciência, cujo surgimento, „magno problema da filosofia‟ se deve ao terror, mantém o espírito humano em uma situação de dualidade face ao mundo. É ela que está na origem de toda a vida reflexa, ciclo doloroso que devemos fechar através do regresso à unidade, da fusão no todo, apontada em A estética da vida. (MORAES, 1978, p.24). A arte, sendo um dos elementos responsáveis pela aproximação do indivíduo com o “Todo infinito”, recebe um tratamento especial por parte de Graça Aranha. Para ele, a arte, por ser uma exteriorização do espírito humano, tem como objetivo integrar, pelo sentimento estético que desperta, o indivíduo ao universo. Nessa interpretação, Aranha está negando a idéia de que tal integração – indivíduo-natureza – se dê por uma capacidade analítica da arte ou por uma utilidade prática da mesma. Sendo uma função inseparável e primordial do espírito humano, o sentimento estético, como o religioso, não está subordinado a uma razão de utilidade social. (...) A arte é indiferente à utilidade. A emoção originada da forma ou do som, a que nos vem da pintura, da escultura ou da música, é inteiramente extranha ao útil.(...) A idéia de utilidade não está na origem nem no fim do sentimento da arte. Se alguma coisa de útil pode resultar da sensação do Universo, é o conhecimento das suas partes, que a ciência nos comunica pela análise. A ciência decompõe o Universo, discrimina-o, estuda-o nas suas manifestações parciais. Só há ciência do que se pode fragmentar. (ARANHA, 1921, p.38, grifos nossos). Nesse sentido, Graça Aranha considera que a música é a arte que melhor consegue exprimir “os sentimentos vagos determinados pela intuição da unidade do Todo Infinito” 27 (ARANHA, 1921, p.46-47). Para o autor, a música, por ser a menos “intelectualizada” das artes, ganha uma relevância maior porque teria maior capacidade, e mais rapidamente, de despertar a intuição emotiva, sentimental, que pudesse superar o distanciamento do “eu” com o “cosmos”, acabando, com isso, com a dualidade existente. Ao considerar a música como a arte que tem as condições ideais de proporcionar a integração do indivíduo com o universo, Aranha deposita grande importância nessa manifestação artística: A música é a arte que realisa melhor e mais rapidamente a fusão do nosso espírito com o Todo. Parece que por ela os seres se unem, que o espaço, tudo o que separa, desaparece, o Universo se restringe e faz um só corpo com tudo o que existe. (ARANHA, 1921, p.46-47, grifos nossos). Para Graça Aranha, o estilo artístico que traduzirá melhor a sua época é o musical. Devido a isso caberia aos intelectuais e artistas ligados à música fazer a transposição de “todos os valores da natureza e da vida” para as composições, pois a “música é o ritmo do mundo de que só o homem moderno possui todo o segredo” (ARANHA,1921, p.197). Nesse sentido, o autor maranhense está chamando a atenção para a necessidade do estudo da música, naquele contexto dos anos 1920, pois ela traduziria o “ritmo do mundo”, ou seja, as modificações proporcionadas pelo mundo moderno, que são fundamentais para a integração do indivíduo ao “todo infinito”. A sucinta exposição feita sobre a obra de Graça Aranha se faz necessária em virtude da influência que ela exerce no pensamento estético e musical de Renato Almeida. Na primeira edição de História da música brasileira, de 1926, notamos uma forte influência da filosofia monista, de Graça Aranha, o que definirá o modo como Renato Almeida conceberá a formação da história da música brasileira. Para Almeida, havia um dualismo na arte, de um modo geral, e mais especificamente na música feitas no Brasil; dualismo este que impossibilitava a integração da arte com a realidade brasileira. Essa idéia, de que a “música” estava separada da sua “natureza”, confirma, para Renato Almeida, a inexistência de uma música autenticamente brasileira até os anos 1920. Nessa dimensão, seria preciso unir a 28 “música” com a “alegria própria da terra”, por meio de um projeto cultural. Percebemos, assim, que para Almeida, como propõe Graça Aranha, é somente por meio daquilo que este chama de “consciência subjetiva”, adquirida pela arte, filosofia, religião e amor, que se pode entender o “universal”. Fora dessa consciência, o “universal” não se realiza. Assim, para o Renato Almeida da primeira edição, de 1926, não seria pelos meios científicos que se explicaria a existência de uma música nacional, mas, sim, pela consciência artística. Voltaremos a essa questão no terceiro capítulo. Se o ano de 1921 foi considerado decisivo, pelo próprio Renato Almeida, para a transformação das artes brasileiras, devido à chegada de Graça Aranha da Europa e ao encontro dos modernistas de São Paulo e Rio de Janeiro em casa de Ronald de Carvalho, podemos dizer que o ano de 1922, com o acontecimento da Semana de Arte Moderna de São Paulo, a publicação de Paulicéia Desvairada, de Mário de Andrade, e Fausto: ensaio sobre o problema do ser, de Renato Almeida, torna-se o momento chave da aproximação entre Andrade e Almeida. No artigo, “Ronald de Carvalho e o Modernismo”, Renato Almeida recorda que a Semana de Arte Moderna aconteceu por causa de um convite de Di Cavalcanti a Graça Aranha para realizar “uma grande festa de arte, com elementos modernos, em que se fizessem conferências, recitassem versos, tocassem músicas e expusessem coisas modernas” (ALMEIDA apud MARTINS, 1965 p.65). Graça Aranha teria preferido, segundo Almeida, a cidade de São Paulo para o acontecimento da Semana, pois alegava que, nessa cidade, havia um grupo maior de modernistas, poetas, pintores e escultores (NAPOLI, 1970; MARTINS, 1965). Com esse acontecimento artístico ocorre uma aproximação nas relações entre os modernistas de São Paulo e do Rio de Janeiro. 29 Em depoimento gravado no Museu da Imagem e do Som 6 , do Rio de Janeiro, Renato Almeida relembra a importância da Semana de Arte Moderna para a sua trajetória artística e para a sua escolha em estudar a música brasileira: Mas, quando houve a Semana de Arte Moderna, quando o Modernismo foi uma afirmação do Brasil, eu me convenci que não havia lugar absolutamente no Brasil para o escritor desinteressado. Nós tínhamos que olhar era o Brasil, nós tínhamos que ver a terra. Cada um de nós, note bem, todos os do grupo se dedicaram a uma atividade que tivesse uma relação íntima com o país. Essa atividade para mim foi a Música. Eu comecei a estudar a música brasileira 7 . (ALMEIDA apud MARIZ, 1983, p.96). Esta citação ilustra bem como a Semana de 1922 vem aflorar em Renato Almeida algo que já estava posto nos estudos estético de Graça Aranha, a saber, a necessária compreensão da formação da música brasileira para que o próprio país pudesse, posteriormente, se integrar ao chamado “concerto das nações”. Passemos agora a Mário de Andrade. Mário de Andrade nasceu em São Paulo, no dia 9 de outubro de 1893. De 1905 a 1909 estudou no colégio dos irmãos Maristas “Nossa Senhora do Carmo”, onde se formou em Ciências e Letras. Em 1911, inicia o curso de música no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, onde, em 1913, passa a atuar como professor substituto, ministrando aulas de História da música; sendo que, em 1920, é contratado definitivamente para lecionar esta disciplina e a de Piano (MARIZ, 1983). Seguindo a sugestão de Gilda de Mello e Souza (2005), entendemos que é na formação em música que se encontra a chave para entender os motivos que levam Mário de Andrade a extrapolar seu interesse inicial no Conservatório – que era o de se tornar pianista profissional –, tornando-se um dos principais nomes do movimento de renovação cultural da década de 1920. Foi como professor de música que Mário de Andrade produziu toda a sua vasta obra como artista e crítico cultural, exercendo o papel de principal orientador de artistas brasileiros até o ano de sua morte, em 1945. 6 O depoimento em questão é citado por Mariz (1983), mas sem referência à data em que ele foi gravado a partir da entrevista concedida por Almeida. 7 Mariz (1983), em uma breve biografia que faz de Renato Almeida, acredita que o interesse desse musicólogo pela música vem dos conhecimentos que recebeu de sua mãe, que era pianista. 30 É a partir desta formação musical que Mário de Andrade passa a estudar e a refletir não somente sobre questões ligadas à música, como também sobre um número variado de manifestações artísticas produzidas no Brasil, o que aparece espalhado em suas obras de poesia, romance, critica de arte etc. Embora tenha atuado em diversas frentes no campo cultural, é, justamente, por meio da música que, para nós, deve-se refletir a visão ideológica do autor de Ensaio sobre a música brasileira 8 . Afinal, “por deformação de ofício”, como sugere Gilda Mello e Souza, Andrade “habituou-se a pensar as várias manifestações artísticas de acordo com a ordenada sistematização musical” (MELLO E SOUZA, 2005, p. 21). O que está presente em seus textos mais programáticos sobre poesia e literatura, como no “Prefácio interessantíssimo” e em A escrava que não é Isaura, nos quais a estética musical é tomada como perspectiva para discutir a renovação poética. Isso para não falar de Macunaíma, talvez sua obra mais emblemática, em cuja elaboração, como demonstrou mais uma vez Gilda de Mello e Souza, Mário de Andrade utilizou dois processos musicais: a suíte e a variação. (MELLO E SOUZA, 2003, p.13). Mais importante ainda, em Macunaíma, como no conjunto da obra de Mário de Andrade, encontram-se os dois pontos de referências centrais da sua meditação estética sobre a música: o fenômeno musical e a criatividade do populário. Para Gilda de Mello e Souza: É da confluência dessas duas obsessões fundamentais que deriva a maioria dos seus conceitos básicos, seja sobre a arte em geral, seja sobre arte brasileira em particular; conceitos que uma vez forjados ressurgem sempre na extensa e variada produção ensaística. (MELLO E SOUZA, 2003, p.11). Nesse sentido, consideramos, na esteira de Mello e Souza (2003), que para compreender a visão ideológica de Mário de Andrade precisamos, antes de tudo, entender que 8 Jorge Coli (1990) esclarece que qualquer trabalho que pretenda estudar as preocupações de Mário de Andrade sobre a música encontrará diversos problemas, pois muitos dos escritos do autor referentes à música encontram- se espalhados em revistas e jornais que ainda precisam ser organizados analiticamente, assim como a sua vasta marginalia musical, para que, feito isso, se possa fazer pesquisas com a maior quantidade de informações possíveis do pensamento musical do autor(COLI, 1990, p.41-42). Essa colocação de Coli no artigo Mário de Andrade e a Música, que foi publicado pela primeira vez em 1972 e reeditado nos Cadernos Ensaio 4 - Mário de Andrade-Hoje, em 1990, ainda nos parece bem atual, embora a quantidade de pesquisas acadêmicas sobre os escritos de Mário de Andrade acerca da música tenha crescido nos últimos anos. 31 a sua formação múltipla, variada, permeava a sua própria idéia de renovação da arte. Para Mário de Andrade, a obra nacional deveria partir das “normas de compor do populário” presentes na formação híbrida da música popular, como, por exemplo, “no canto, na melodia, nos corais, na música instrumental, nas danças”, e que, no entanto, são também, normas universais de escrever composição erudita (MELLO E SOUZA, 2003, p.13). Para Jorge Coli (1990), Mário de Andrade nunca “se pretendeu filósofo ou criador de teoria da arte que envolvesse largo e sistemático arcabouço” (COLI, 1990, p.42). Os seus escritos sobre música foram surgindo de seus interesses no tempo, de uma reflexão do momento imediato. Entretanto, em alguns ensaios publicados, sobretudo de 1928 a 1945, Mário de Andrade buscou investigar na música (...) os seus fundamentos, discutindo a sua função social, buscando determinar a sua natureza. E não apenas como especulação teórica: mais do que em qualquer outra arte Mário prescreveu aqui, explicitamente, direções a serem seguidas por criadores e intérpretes, fazendo estética normativa. Jamais se abandonou em teorizações que não fossem necessárias, e tais escritos teóricos estão entre a chusma de trabalhos imediatos de crítica, de denúncia, de orientação mais particular; mas muito mais que em outros campos, esses trabalhos existem, e mantidas as ligações entre eles, mostrar- se-ão consistentes quanto à coerência teórica (...) A sua leitura, assiste-se a uma evolução no tempo, cada descoberta encadeando-se em outra, cada resposta fazendo surgir vários outros problemas. Noções eram formuladas, exigiam outras que se acrescentavam, ou por vezes retificavam as anteriores; o todo, com o passar do tempo, irá se revelando mais rico, mais complexo. E é claro, não aparece livre da visão de mundo de Mário. Ao contrário, essa visão interferirá grandemente sobre o papel que ele atribuirá à música (...) (COLI, 1990, p.42-43). Para qualificar essa “visão de mundo” de Mário de Andrade, mencionada por Coli (1990), utilizaremos como referência principal a obra Mário de Andrade: Ramais e Caminho (1972), de Telê Ancona Lopez, na qual são apresentadas as bases da formação intelectual do referido escritor modernista. Segundo a interpretação da autora, é importante considerar dois pontos fundamentais na trajetória literária-intelectual de Mário de Andrade, que são “o sentido de compromisso” do autor, e a sua “ligação com a produção popular” (ANCONA LOPEZ, 1972, p.11). O primeiro ponto viria do seu dever de militância intelectual e de seu 32 desejo de convivência humana com base em sua formação cristã. O segundo ponto remete à idéia de que, para Andrade, somente pela produção popular seria possível se conhecer o povo brasileiro. Mário de Andrade tem uma formação intelectual e política típica da sociedade paulista do fim do século XIX e início do XX, marcada pelo conservadorismo ético, de origem católica, e pelo liberalismo político. Seu primeiro livro Há uma gota de sangue em cada poema, de 1917, reflete esse momento em que o poeta é crítico da Primeira Guerra Mundial e se coloca como pacifista, buscando entender o mundo e a humanidade pela fé cristã e pela influência de autores unanimistas franceses 9 . Os trabalhos de 1918, como “A divina preguiça”, apresentam certo “determinismo”, quando Andrade acredita na “marcha obrigatória da humanidade para o progresso”, o que o leva a ver a Primeira Guerra Mundial como um mal necessário, mostrando que os sacrifícios da Guerra representariam outros benefícios (ANCONA LOPEZ, 1972, p.31). No artigo “O Brasil e a Guerra”, de 1918, Andrade reflete sobre “a educação política brasileira e a idealização da História em prol de valores como bravura, honestidade e, acima de tudo, honra” (ANCONA LOPEZ, 1972, p.33). Nesse artigo, Mário de Andrade faz uma análise da situação brasileira, porém, encontra-se “impregnado de idealização liberal, busca[ndo] um ângulo de análise científica que não chega a atingir (...)” (ANCONA LOPEZ, 1972, p.36). Nas palavras de Ancona Lopez (1972), com o artigo “O Brasil e a Guerra”, Mário de Andrade deixa “patente a inadequação da utopia [Revolução] à realidade daquele momento, que pode ser analisada nos jornais de então, através da apresentação que fazem de um povo absolutamente apático e de uma política provinciana” (p.36-37). Com a campanha modernista, Andrade passa a assumir uma postura crítica em relação ao nacionalismo e ao povo, segundo Ancona Lopes. O autor apresenta, a partir desse 9 Unanimismo, grosso modo, era um movimento que pretendia associar a crença em uma fraternidade universal à questão da consciência de grupo. Tal movimento tem no escritor francês Jules Romains (1885-1946) e no poeta Georges Chennevière seus principais representantes. 33 momento, uma maior preocupação com a criação artística e entra em contato com a teoria marxista que começa a ser discutida nos meios intelectuais após a Revolução Russa (1917). No artigo “Curemos Pery”, de 1921, Mário de Andrade expressa essa preocupação com a criação artística, propondo a superação do parnasianismo. Faz também “apenas uma apresentação superficial do povo brasileiro, não um balanço sociológico. Apresenta sua fórmula nacionalista: atingir o povo brasileiro através de sua própria produção artística, levada para as esferas cultas” (ANCONA LOPEZ, 1972, p.37). Ancona Lopez interpreta que, Rastreando suas leituras filosóficas e políticas quanto à cronologia encontra-se a edição daquele mesmo ano de La révolution sociale de Kautsky. A data da edição não pode valer como afirmação de que o tenha lido exatamente nesse ano, nem que ele tenha sido seu primeiro contato com o Marxismo. É apenas uma hipótese, mas a verdade é que em 1921, quando escreve “Ode ao Burguês”, já tem alguma noção do que seja Socialismo e talvez Marxismo (...) (ANCONA LOPEZ, 1972, p.37). O livro Paulicéia Desvairada, de 1922, em especial o poema “Ode ao Burguês”, é paradigmático desse momento da trajetória do intelectual paulista. Tal obra “expressa compromisso com o povo, visto como parcela dinâmica em constante aspiração a melhorias, mas não ainda como classe consciente de suas contradições” (ANCONA LOPEZ, 1972, p.39). É nesse contexto que Mário de Andrade propõe a atualização estética e de renovação da literatura brasileira, por meio da incorporação da fonte popular, porém, nesse momento, não desenvolvendo maiores estudos sobre ela, o que será feito posteriormente. Nas palavras de Ancona Lopez, Em 1922 já havia um clima de aceitação e valorização da música e da poesia popular, mas em Mário e nos modernistas de São Paulo o interesse pelo Folclore apenas se esboçava (...). O autor ainda não dispõe de meios para passar da simples incorporação à assimilação orgânica ou a um programa de pesquisa cuidadosamente planejado. (ANCONA LOPEZ, 1972, p.77). Para a referida autora, Mário de Andrade, devido à sua formação no Conservatório Dramático e Musical, “se sente capaz de domar a composição popular, fazê-la sua, atualizá-la 34 de acordo com a sua sensibilidade” (ANCONA LOPES, 1972, p.77). De 1924 a 1926, usa a criação popular como fonte para a sua criação erudita, tentando afirmar o nacionalismo estético e social. Na maioria dos poemas de Clã do Jaboti, o autor já coloca um número expressivo de informações sobre as tradições populares brasileiras, demonstrando que já realizou pesquisas etnográficas e folclóricas.Porém, nesse momento, Mário de Andrade não vê o folclore enquanto ciência ou disciplina, mas, sim, como acessório de seus estudos de música ou literatura. Segundo Ancona Lopez, data desse período a leitura de autores que dão base aos seus estudos sobre o folclore, como Sílvio Romero, Pereira da Costa, Mello Moraes e Couto de Magalhães. É a partir da leitura, em 1926, de Vom Roraima zum Orinoco, de Theodor Koch Grunberg, que Andrade entrará em contato com um conjunto de lendas folclóricas brasileiras que o permitirão pensar na formação do povo brasileiro. Tal obra ainda o apresentará ao personagem Macunaíma, “deus e herói civilizador, contraditório, irreverente, preguiçoso e sensual” (ANCONA LOPEZ, 1972, p.79). Com as viagens para as regiões Norte e Nordeste, em 1927 e 1928, Mário de Andrade começa a estudar sistematicamente o folclore e passa a reunir bastante documentação, como canções populares recolhidas diretamente dos cantadores. Porém, quando escreve seus artigos sobre folclore 10 , falta-lhe uma base antropológica que dê fundamentação ao estudo da temática em questão. Segundo Ancona Lopez (1972), é com autores como Tylor, Frazer, Lévy-Bruhl, Euclides da Cunha e Gilberto Freyre, que Mário de Andrade busca dar base antropológica e sociológica às suas obras, a partir de 1929. É com a leitura das obras desses autores que Andrade forma o seu conhecimento sobre folclore e sobre o povo brasileiro. Ainda nos termos de Ancona Lopez, Levy-Bruhl, por exemplo, entende que os fenômenos do comportamento do primitivo, os mitos e os rituais mágico- religiosos, as representações coletivas, em suma não nascem da necessidade de uma explicação racional. Surgem de uma problemática de fé, oriunda por 10 Sobre o lugar estratégico que o folclore assumiu na proposta cultural de Mário de Andrade, ver: Cavalcanti (2004). 35 sua vez de imperativos e sentimentos coletivos, tidos como viscerais numa sociedade inferior. Lá, as representações coletivas se impõem ao indivíduo, o dominam e envolvem, sem que ele precise de razões ou de interrogações de „como‟ e „por que‟. Participa do mundo, não o sistematiza. (ANCONA LOPEZ, 1972, p.94). Com base em leituras como a citada anteriormente, Mário de Andrade conceberá o povo brasileiro como primitivo, sem preocupações intelectuais, para suas práticas folclóricas. Assim, ao tentar entender e conceituar o povo, coloca-o entre o primitivo e o civilizado, “razão pela qual apresenta(m) imensa dificuldade crítica” (p.94). Dessa forma, “o contato com a civilização tira ao primitivo o fundamento, o móvel de sua ação. O sentido primeiro dos ritos se perde no tempo e o povo os repete maquinalmente” (ANCONA LOPEZ, 1972, p.94- 95). Para melhor compreender a história do povo brasileiro, Mário de Andrade busca em O Brasil na América, de Manuel Bonfim, valores éticos e sociais do índio e do português próprios ao período da colonização; ainda que considere esses valores como idealistas, incorpora-os aos seus estudos. O autor estuda o passado do Brasil tendo por referência também as obras de Euclides da Cunha, Oliveira Viana e Gilberto Freyre. Ao realizar a leitura de Populações meridionais do Brasil, de 1920, de Oliveira Viana, Mário de Andrade se apropria da contribuição sociológica da obra. Segundo Ancona Lopez, Andrade compreende a obra de Viana como tendo caráter revolucionário, haja vista que ela aponta, já em seu Prefácio, o “perigo do ufanismo otimista” (ANCONA LOPEZ, 1972, p.96). A autora nos auxilia na compreensão de que, Apesar das contradições de seu pensamento [de Mário de Andrade], é a busca de um caminho político que motiva o seu estudo do homem brasileiro nas manifestações folclóricas, pesquisadas como forma de conhecimento. Sabendo qual a tônica do pensamento popular brasileiro, poderia melhor, através da divulgação de elementos folclóricos, levar o Brasil a seu autoconhecimento, para fazê-lo chegar ao nacionalismo e mais tarde ao universalismo, nas artes cultas. (ANCONA LOPEZ, 1972, p.102). 36 Nesse período em que se dedica às pesquisas acerca do folclore brasileiro, Mário de Andrade acredita ser importante conhecer o Brasil, recolher os dados populares “antes que a tradição se esgotasse com a invasão do progresso” (ANCONA LOPEZ, 1972, p.102). Assim, o intelectual reafirma que é preciso tornar os trabalhos sobre o folclore uma prática científica, idéia essa que ganhará mais força nos seus trabalhos sobre música. Percebemos, com isso, que a formação intelectual de Mário de Andrade, e o seu conhecimento sobre o povo brasileiro, devem-se muito ao seu autodidatismo e à diversidade de leituras, assim como à relação que estabelece com seus estudos sobre estética musical em virtude da sua formação e atuação profissional em Conservatório. Dessa forma, a compreensão de que o povo brasileiro ainda se encontrava em processo de formação levava o autor a entender que a música produzida por esta mesma sociedade também estava em processo de constituição. A nossa falta de cultura nacional nos restringe ao simples regionalismo, fazendo com que imitemos a cultura internacional (...) será difícil ou pelo menos bem lerda a formação da escola musical brasileira. O lema do modernismo no Brasil foi nada de escola! (...) Coisa idiota. Como se o mal estivesse nas escolas e não nos discípulos. (ANDRADE, 1962, p.71). A música não era nacional, mas regional, porque a própria sociedade, que a produzia, ainda não era nacionalizada. É com esse diagnóstico que faz da situação do povo brasileiro e da música por ele produzida que Mário de Andrade busca fundamentar seu programa normativo para a música brasileira, com o objetivo de formar a um só tempo uma “música brasileira” e uma “cultura nacional”. 1. 2. A nacionalização da música Durante a década de 1920, além de escreverem livros importantes sobre a música brasileira, Mário de Andrade e Renato Almeida também tiveram uma atuação relevante nas revistas e periódicos com a publicação constante de artigos que tratavam da temática musical. Revistas como Klaxon, Ariel, Estética, Revista do Brasil, Terra do Sol, América Brasileira são exemplos de publicações em que ambos escreviam com certa freqüência sobre diversos 37 temas. Podemos dizer que foi nesses periódicos que os autores iniciaram um debate sobre a nacionalização das artes, tema que se tornou iminente com os acontecimentos da Semana de Arte Moderna de 1922, em São Paulo, mas que só ganhou teorização, principalmente, com o lançamento das revistas Klaxon (1922-1923) e Ariel (1923-1924). Já no primeiro número de Klaxon 11 , em maio de 1922, aparece na seção “Crônicas” o artigo de Mário de Andrade “Pianolatria”, no qual discute os problemas da educação musical em São Paulo. Na sua ótica, somente havia interesse em se estudar o piano na cidade, sendo que os outros instrumentos musicais eram deixados de lado. Outro dado apresentado era que, ao contrário do Rio de Janeiro, que contava com apresentações sinfônicas, de música de câmara etc., na capital paulista havia apenas concertos de pianos. Ainda neste artigo, Mário de Andrade faz referência a Carlos Gomes, afirmando que tal compositor estava ultrapassado esteticamente; reconhece, entretanto, que o músico teve uma importância histórica, porém que não refletia mais a realidade do momento. Mário de Andrade diz que O Brasil ainda não produziu músico mais inspirado nem mais importante que o campineiro. Mas a época de Carlos Gomes passou. Hoje sua música pouco interessa e não corresponde as exigências musicaes do dia nem á sensibilidade moderna. Representá-lo ainda seria proclamar o bocejo uma sensação estética. (ANDRADE, Klaxon, nº 1, 1976, p.8). Nos números seguintes de Klaxon, na mesma seção “Crônicas”, Mário de Andrade realiza um balanço crítico dos novos músicos, compositoresbrasileiros dos anos 1920, chegando ao seguinte diagnóstico: que, até então, o que ainda predominava no país era o romantismo musical e não uma música moderna. Devido a esse fato, Andrade dirige a sua crítica a Guiomar Novaes, Antonieta Rudge, Souza Lima, Magda Tagliaferro, Lúcia Branco, no sentido de “observar quais, entre estes, representam um „benefício eficaz‟ para a cultura 11 Klaxon: Mensário de Arte Moderna foi editada de maio de 1922 a janeiro de 1923, em São Paulo e teve 9 números. O objetivo da revista era difundir idéias modernas e novas propostas estéticas. Mário de Andrade era um dos seus principais redatores, escrevendo artigos, poemas e resenhas para a revista. Renato Almeida participou apenas do número duplo 8-9, em homenagem a Graça Aranha, que também marcou o fim da revista. 38 musical, sendo capazes de impor mesmo Debussy e Ravel”, considerados já como “passado” na Europa, mas que ainda eram desconhecidos dos músicos e do público brasileiro (WISNIK, 1983, p.103). Percebemos, com isso, que já no início dos anos 1920 Mário de Andrade assumia a responsabilidade de apontar, por meio desses artigos em Klaxon, como ele entendia a música do “passado” e como deveria ser a música moderna. A interlocução pública entre Mário de Andrade e Renato Almeida é confirmada, também, pelo artigo do segundo “A Reação Moderna – a propósito de Mário de Andrade” 12 publicado no jornal O Paiz, em 19 de março de 1923, em virtude do lançamento de Paulicéia Desvairada do primeiro. Neste artigo, Almeida considera que Mário de Andrade soube, com esta obra, “despertar essa ancia por uma expressão nova e pessoal”, fazendo uma poesia moderna, abolindo os versos metrificados e, assim, reagindo contra a estética romântica. Para Almeida, Sua poesia [de Mário de Andrade] é uma esthetica differente, que foi buscar e encontrou. Portanto, o Sr. Mário de Andrade representa entre nós, a tortura de um homem que se recusou sentar em um banquete onde muitos já tinham comido, e foi tirar de uma arvore estranha um fruto novo, de sabor acre e differente (...) Na sua intelligencia, o aspecto critico é talvez o mais impressionante. Paulicéa Desvairada é uma sátyra violenta e audaciosa contra o convencionalismo infecundo e prosaico, as affetações e os preciosismos, que atropelam as letras e os costumes. (ALMEIDA, 1923, O Paiz, s/p). Pela análise que fizemos dos artigos em jornais e periódicos de Mário de Andrade e Renato Almeida, no entanto, verificamos que foi em Ariel: revista de cultura musical que os intelectuais modernistas discutiram mais direta e enfaticamente a história e um projeto para a música brasileira. Criada em São Paulo em outubro de 1923 e com circulação, principalmente, em São Paulo e Rio de Janeiro, a revista Ariel teve treze números, sendo que o último consta da data em que completava exatamente um ano de existência, em outubro de 1924. Sob a 12 Encontramos este artigo, de 1923, no Arquivo Mário de Andrade, do IEB-USP. 39 direção de Antonio de Sá Pereira 13 (1888-1966), esta revista contou com a participação de variados intelectuais que buscavam entender criticamente a produção e o ensino de música no Brasil. Em Ariel, discutia-se, especialmente, a inserção do músico “no conjunto da cultura humanística, evidenciando sintomaticamente uma característica do modernismo, que foi justamente a de aproximar a consciência criativa operante nas várias artes” (WISNIK, 1977, p.101). Nesse cenário, a formação musical estava atrelada a uma formação intelectual mais ampla, ou seja, defendia-se em Ariel que o músico, além de aprender os conhecimentos técnicos da área musical, deveria também aprender conhecimentos como literatura, ciência e filosofia 14 . Assim, o modernismo musical passa, paulatinamente, da “polêmica jornalística” da Semana, para “o ensaio e a crítica das revistas”, assumindo “uma combatividade empenhada na promoção educativa” (WISNIK, 1977, p.102). Nos artigos publicados nessa revista de cultura musical com o intuito de discutir os caminhos da música brasileira, até então presa ao romantismo europeu do século XIX, Renato Almeida e Mário de Andrade notam que o desenvolvimento de uma música autenticamente brasileira teria de estar, obrigatoriamente, associado, antes de tudo, à resolução de alguns entraves tanto de ordem estética quanto de ordem social – e, neste último caso, tanto em termos dos condicionantes mais imediatos do modernismo musical, como dos problemas formativos mais amplos da sociedade em geral. Do ponto de vista estético, o principal obstáculo a ser superado seria o da cópia ou transplantação direta dos códigos musicais vigentes no romantismo europeu. Quanto aos condicionantes do modernismo musical, apontam as condições precárias em que a música era produzida, o ouvido acostumado com o repertório e com a interpretação romântica e a ausência de compositores e intérpretes que 13 Antonio Leal de Sá Pereira foi um importante compositor e pedagogo baiano que se tornou um dos principais nomes do cenário musical brasileiro no século XX. Além de fundador e editor da revista Ariel, foi diretor da Escola Nacional de Música da Universidade do Brasil, atual Escola de Música da UFRJ. 14 José Miguel Wisnik, em O Coro dos contrários (1983), diz que Ariel seguia o modelo da revista francesa La Revue Musicale, uma vez que “imita em certa medida na disposição gráfica, na distribuição da matéria em suas seções fixas, e na atitude ao mesmo tempo compreensiva e não partidária que procura manter ao receber a música moderna” (WISNIK, 1983, p.102). 40 pudessem impor uma música moderna nacional de forma que atingisse o público. Do ponto de vista social mais amplo, o principal desafio a ser enfrentado era o da reconstrução de uma sociedade formada a partir da experiência colonial em termos nacionais relativamente integrados ou num Estado-nação. Por isso, a revista assume um critério didático, visando educar, musicalmente, tanto os músicos como o público. Nos treze números de Ariel é possível encontrar seis artigos de Mário de Andrade - Coros Ucranianos, nº1; A vingança de Scarlatti, nº3; Tupinambá, nº5; Reação contra Wagner (Notas rápidas para uma História da música), nº8; O caso Magda Tagliaferro, nº12; O amor em Dante e Beethoven, nº13) - e dois de Renato Almeida - Música Brasileira, nº3; Alberto Nepomuceno-Excerto da História da música brasileira, nº8. Em junho de 1924, a partir do número 9, Mário de Andrade assume a direção da revista com o objetivo de evitar o seu fechamento, mas não tem sucesso e a revista encerra as atividades em outubro de 1924. Atuando como diretor de Ariel, Andrade escreve, ainda, cinco artigos, com o pseudônimo Florestan: 15 A situação musical no Brasil, nº9; O revoltoso sem voz, nº10; Companhia Nacionais, nº11; Programas, nº12; Festa de Aniversário, nº13; além de pequenas crônicas na seção “Do bemol” sobre apresentações musicais em São Paulo. Notamos nessa revista o quanto Mário de Andrade exercia um papel central na discussão referente à música produzida e difundida no Brasil daquele momento, sobretudo pelo grande número de textos de sua autoria nela publicados. Em seus primeiros artigos em Ariel, Andrade segue o que vinha desenvolvendo em Klaxon, que era fazer um balanço da música produzida no Brasil, bem como discutir a cena musical brasileira e européia daquele período. Como exemplo desse último caso, podemos citar o artigo Coros Ucranianos, publicado no número 1 da Revista Ariel, em que o autor descreve a sua impressão sobre o coral ucraniano que se apresentou na cidade de São Paulo. Para ele, os coros eslavos, de um 15 Mário de Andrade tinha o costume de escrever resenhas,artigos em revistas da época utilizando pseudônimos, dentre os quais aparecem Mário Sobral, V.L. e Florestan. 41 modo geral, fariam uma representação mais coletiva, enquanto que nos coros latinos, como é o caso do brasileiro, a representação seria mais individualista. De acordo com o autor, “Vem d‟ai uma diferença basilar pela qual nos conjuntos deles evidencia-se, nítido, um conceito mais teórico de pluralidade, ao passo que permanece em nossas orquestras e coros um exemplo mais humano de multidão” 16 (ANDRADE, 1923, p.26). Tal visão a respeito do caso brasileiro é interessante quando sabemos que é com o argumento de que não havia uma “tendência” à organização da sociedade brasileira – o que se refletia também na indisciplina da formação coral nacional –, que, anos depois, o autor proporá um projeto de nacionalização da música, o qual tentará solucionar esse problema. Voltando à questão do debate entre Mário de Andrade e Renato Almeida, em torno propriamente da música brasileira, a revista Ariel foi também um espaço de discussões sobre as divergências que surgiram com a formação de correntes distintas no interior do mesmo movimento modernista. O final do ano de 1923 e principalmente o ano de 1924 é o principal momento em que as restrições de Mário de Andrade a filosofia de Graça Aranha, explicitamente presente na perspectiva musicológica de Renato Almeida, ganharão corpo por meio das Crônicas de Malazarte, publicadas em América Brasileira. É neste contexto de acirramento de posições que é publicado o primeiro artigo de Renato Almeida, no número 3 de Ariel, em dezembro de 1923. Tal artigo, intitulado Música Brasileira, apresenta um excerto, um pouco modificado do capítulo Tendências da música brasileira, da obra História da música brasileira, publicada em 1926. Neste artigo, o autor expõe pontos importantes a respeito de como considera a formação da música brasileira. Nas suas palavras: A história da nossa música é a busca incessante de uma expressão própria. Nessa tortura o músico brasileiro sente a forma passageira de sua criação, enquanto não dominar o efêmero das adaptações, ou o rebuscado da cultura, pois a arte precisa de material eterno, para sua construção perpétua. Esse material é a alma de cada povo, é a somma das suas alegrias e de suas dores, as inclinações secretas e as ânsias violentas, os desejos insoffridos 16 Para Mário de Andrade, o conceito de “multidão”, embora venha acompanhado do adjetivo “humano”, está relacionado à idéia de dispersão do povo brasileiro. 42 e as decepções amargas, enfim a experiência humana no soffrimento da vida (...)A alma do artista está sempre presente na sua obra, tanto mais forte quanto mais pessoal e mais differente. A sensibilidade dominará a matéria, mas da fragibilidade desta depende por igual a grandeza criadora. O artista é pois o acontecimento mais subtil da natureza, realizando a união maravilhosa da alma colletiva com o imprevisto pessoal. (ALMEIDA, 1923, p. 99-100, grifos nossos). Essas considerações de Almeida serão alvos de crítica de Mário de Andrade, em Ariel. Outro ponto importante do artigo em questão e que será alvo da crítica de Andrade é aquele em que Almeida associa a ausência de uma “música nacional” à falta de uma expressão musical que possa ser caracterizada como brasileira, desconsiderando, desse modo, as manifestações populares: Não exaltamos a arte regional, fique bem claro nessa época de nacionalismos ardentes, observamos, apenas, que não temos uma expressão caracteristicamente brasileira, na música, como a allemã, a francesa, a hespanhola ou a russa, sem que isso as torne menos universaes. A música nacional é uma flor de cultura, que reflete, em geral nos symbolos, e sobretudo na factura, as sobras alheias desabrochadas em outros meios e aqui revividas pelo prestigio da intelligencia. Sentimos, todavia, no meio esplendido que nos cerca, nas energias de nosso espírito, esse gênio, que nos permittirá criar a musica brasileira, como um motivo maravilhoso, de esthetica universal. (ALMEIDA, 1923, p. 101, grifos nossos). Esses trechos do artigo de Renato Almeida publicado em Ariel ilustram como esse modernista entendia o processo de formação da música brasileira. Notamos que, na sua concepção, ainda não há uma “música brasileira” naquele contexto, mas apenas tentativas por parte de músicos eruditos do “passado” de compor música nacional, porém, sem sucesso. Esses “esforços” dos músicos brasileiros, para Almeida, devem ser valorizados na compilação histórica da música “brasileira”, por mais que ainda não fossem essencialmente “brasileiros”. Sendo assim, o que é preciso escrever é uma espécie de “pré-história” da música brasileira, da tentativa dos compositores do passado. Nessa direção, entendemos que, para esse autor, a verdadeira história da música brasileira só poderia ser narrada a partir do momento em que já houvesse a “música nacional”, ou seja, em que os compositores já tivessem apreendido, pela 43 intuição, “a alma de cada povo”. Tal momento, segundo entendia esse autor, era aquele dos anos 1920. Nessa interpretação – de que era preciso “decifrar” a essência da natureza brasileira, para que, a partir disso, os músicos pudessem compor a música brasileira –, notamos claramente a utilização, por Renato Almeida, dos preceitos de A estética da vida, de Graça Aranha, em que uma situação de dualidade – separação entre indivíduo e natureza – é o principal obstáculo para a existência de uma “música nacional”. Ao contrário da concepção de Almeida, para Mário de Andrade, não era pela via emocional, da intuição da “alma de cada povo”, do “meio esplendido que nos cerca”, isto é, da “essência” da natureza brasileira, que seria possível se fazer música nacional. Para Andrade, a chave para a nacionalização da música estava na pesquisa e no aproveitamento erudito da música popular por parte dos compositores da época, tal como já faziam Ernesto Nazareth e Marcelo Tupinambá. No artigo Tupinambá, que consta no número 5 de Ariel, de fevereiro de 1924, Mário de Andrade dirige críticas implícitas à concepção idealista do artigo de Almeida, publicado meses antes em Ariel. Andrade inicia o artigo contrariando o que havia dito Renato Almeida, ao afirmar que existia, sim, naquele momento, uma expressão musical com características brasileiras, porém o que faltava era uma elaboração erudita para transformá-la em “arte musical brasileira”: Nós podemos afirmar que existe hoje música brasileira, a qual, como tudo que é realmente nativo, nasceu, formou-se e adquiriu suas qualidades raciais no seio do povo inconsciente. A arte musical brasileira, si a tivermos um dia, de maneira a poder chamar-se escola, terá inevitavelmente de auscultar as palpitações rítmicas e ouvir os suspiros melódicos do povo para ser nacional e por conseqüência ter direito de vida independente no universo. Porque o direito de vida universal só se adquire partindo do particular para o geral, da raça para a humanidade, conservando aquelas suas características próprias, que são o contingente com que enriquece a consciência humana. O querer ser universal desraçadamente é uma utopia. A razão está com aquele que pretender contribuir para o universal com os meios que lhe são próprios e que viram tradicionalmente da evolução de seu povo atravez das causas e acidentes. Tudo o mais é perder-se e divagar informe, sem efeito. Nós temos hoje inegavelmente uma música nacional. Mas esta ainda se conserva no domínio do povo, anônima. Dois homens porém, de grande 44 valor músico, tornaram-se notáveis na construção dela: Ernesto Nazareth e Marcello Tupinambá. São com efeito os músicos brasileiros por excelência. (ANDRADE, 1924, p.176-177). A partir desta citação fica evidente que Mário de Andrade estava criticando,dentre outras coisas, o modo como Renato Almeida entendia a formação da música no Brasil. Ao enfatizar que já havia uma música que poderia ser considerada brasileira, naquele contexto, e que era aquela produzida pelo povo, Andrade, já em 1924, antecipava as restrições que faria em 1926 a obra História da música brasileira, de Almeida. O debate sobre a formação da música brasileira, bem como sobre qual tipo de historiografia musical deveria se escrever, não surge somente com os autores modernistas e tampouco nos anos 1920. Freitas e Castro (1963, p.16) destaca duas obras pioneiras nesse sentido: A música no Brasil: desde os tempos coloniais até o primeiro decênio da República (1908), de Guilherme de Mello, e a Storia della Musica nel Brasile “dai tempi coloniali sino ai nostri giorni” (1926), de Vincenzo Cernicchiaro. Com A Música no Brasil, publicada em primeira edição em 1908, o musicólogo e professor baiano Guilherme de Mello (1867-1932) busca, pela primeira vez no país, formalizar uma história da música brasileira, por meio de uma metodologia de periodização, que vai do momento colonial até a primeira década da República. Na interpretação desse autor, o primeiro período de formação da nossa evolução musical teria a influência indígena e jesuítica; já num segundo momento, “período de caracterização”, a influência seria africana, portuguesa e espanhola; o terceiro momento, “período de desenvolvimento”, seria marcado pela influência bragantina (D. João VI e D. Pedro I e D Pedro II); o quarto período, de influência dos maestros italianos, foi chamado pelo autor como o “período de degradação”; e, por fim, o “período do nativismo”, marcado pela influência republicana. Publicada em Milão, em 1926, Storia della Musica nel Brasile “dai tempi coloniali sino ai nostri giorni”, do musicólogo e violinista italiano Vincenzo Cernicchiaro (1858- 45 1928), teria como mérito a reunião de um grande número de dados sobre a vida musical brasileira, especialmente do final do século XIX. Na obra, o autor estuda a música da época colonial, os períodos de D. João VI, D. Pedro I e D. Pedro II, apontando a decadência da música sacra, o surgimento da arte lírica até chegar ao compositor Carlos Gomes. Enumera, ainda, os artistas que visitaram o Brasil, noticiando os principais movimentos musicais dos Conservatórios e das Escolas de Música. Ainda que sejam obras pioneiras no estudo da história da música brasileira e, por isso, importantes no que concerne à música como um elemento característico da cultura brasileira, tais obras se pautam em metodologias históricas não muito bem definidas para abordar a formação da música brasileira. Mello (1908) se vale da idéia de que a música brasileira se caracterizou por períodos de “influências”, indígena, portuguesa, bragantina etc, usando, assim, critérios étnicos, religiosos e histórico-políticos de forma indiscriminada, o que comprometeria a formalização de sua história da música brasileira (BISPO, 1970). No caso da obra de Cernicchiaro (1926), notamos que o foco de análise é mais descritivo, ou seja, ao denominar sua obra de Storia della musica nel Brasile, ele quer mostrar como a música erudita européia, entendida como fenômeno cultural da humanidade, é produzida em um determinado país, no caso, o Brasil. Nessa direção, a obra é mais uma reunião de documentos sobre músicos que se apresentavam no Brasil do que uma tentativa de análise histórica (BISPO, 1970; MOURA, 2008). Em outras palavras, Cernicchiaro estaria preocupado em mostrar como a arte musical, enquanto um desdobramento da cultura européia, reproduzia-se no país – por isso a quantidade de informações sobre apresentações estrangeiras no Brasil –, e não em mostrar uma musicalidade característica do Brasil. Tais considerações acerca do tipo de método de análise histórica utilizado por Mello e Cernicchiaro são importantes não somente para evidenciar como esses autores historiavam o fenômeno musical no Brasil, mas também para sugerir o tipo de historiografia que estava 46 presente no contexto brasileiro anterior ao modernismo, e em relação ao qual Renato Almeida e Mário de Andrade irão, ainda que indiretamente, propor suas versões da história da música brasileira. Os ensaios musicológicos de Renato Almeida e Mário de Andrade, como não poderiam deixar de ser, seguem o ideário modernista da década de 1920, qual seja, fazer um balanço da autonomia das artes no Brasil, percebendo se elas expressavam a nacionalidade ou se eram imitação de obras estrangeiras. Nesse sentido, esses autores buscam romper com a dependência cultural européia, ao considerarem que havia uma musicalidade sendo produzida no país, caracterizada pela música popular, embora ainda não houvesse uma música artística nacional. Assim, para os dois intelectuais modernistas, a produção musical erudita anterior ao contexto dos anos 1920 seria uma espécie de “preparação”, um estágio ainda pouco desenvolvido da música com características próprias do país; no entanto, importante na construção da história da música considerada nacional. Podemos dizer que, em ambos os autores, todo o passado musical é julgado com critérios de valor. Desse modo, suas obras sobre música formam uma historiografia que busca criar uma consciência nacional nas artes, com o objetivo de dar uma definição da “cultura brasileira”, necessária para a época. Nos seus ensaios, Renato Almeida e Mário de Andrade vêem a música mais como fenômeno social, que deveria abordar temáticas próprias da sua época, do que como acontecimentos estéticos independentes, autônomos. Para os autores, o signo musical era visto, inicialmente, como um código simbólico, polissêmico, sem nenhuma vinculação com o discurso ideológico, por isso, a nacionalização da música consistia basicamente em dar uma outra orientação à particularidade brasileira, extraindo das músicas populares folclóricas o elemento nacional, tal como novos timbres e novos instrumentos que não pertenciam à orquestra sinfônica (CONTIER, 1988). Dessa forma, tais autores vão definir a história da música brasileira segundo um critério da nacionalidade, característico do momento pós Primeira Guerra Mundial. Em outras palavras, Renato Almeida e Mário de Andrade pensam 47 que os processos de formação da música no Brasil, assim como ocorreu com outras expressões intelectuais e artísticas no âmbito do modernismo, se davam devido aos dilemas formativos da sociedade, pois o não estabelecimento de uma música nacional dever-se-ia ao fato de ainda não haver nação constituída. Na esteira de Botelho (2005), podemos dizer que esse axioma, de relacionar os processos de formação das artes ao desenvolvimento da sociedade como nação, deriva da tradição intelectual historicista, que busca fazer da história o grande princípio explicativo da conduta e de todos os elementos (artes, filosofia, religião etc) da cultura humana, possibilitando “construir grandes esquemas de desenvolvimento históricos sintéticos, totalizantes e progressistas.” (BOTELHO, 2005, p.112). Na análise que faz da trajetória de Ronald de Carvalho, Botelho argumenta que os ensaios de Ronald de Carvalho assentam-se em duas premissas: a primeira refere-se aos objetos, no caso, a literatura e as artes plásticas, que são considerados como produtos culturais resultantes da atividade humana, encarnando, portanto, as próprias projeções humanas; a segunda premissa trata-se de considerar que nessas projeções humanas existe algo de homogêneo, “o que permitiria que as histórias da literatura e das artes plásticas fossem narradas a partir de um repertório de obras e autores segundo um encadeamento cronológico, linear e cumulativo” (BOTELHO, 2005, p.112). Ao analisarmos os ensaios musicológicos de Renato Almeida e Mário de Andrade percebemos que estes autores também partem dessas mesmas premissas, uma vez que compartilham doideário do movimento modernista, que é o de reler o passado tendo em vista a formação de uma cultura nacional. É preciso salientar que essa concepção de história, também presente nos ensaios musicológicos de Renato Almeida e Mário de Andrade, diferenciava-se das posições positivistas do século XIX, ainda muito presentes no início do XX, que consideravam fatores geográficos, climáticos e raciais para explicar o processo social. Ao contrário, a concepção de 48 história dos autores modernistas pretendia ir além dos aspectos físicos e raciais da formação da sociedade brasileira, ao defender a noção de que era o meio social que determinava a produção artística do país. Renato Almeida e Mário de Andrade buscam, dessa forma, atualizar este axioma historicista da formação da música em termos nacionais nos anos 1920, e deixam evidente, em seus ensaios sobre música, que a “nacionalidade brasileira” encontrava entraves para se afirmar no Brasil devido ao tipo de colonização que aconteceu aqui. Por esse motivo, não havia música nacional naquele momento porque o processo colonial legou uma herança cultural que ainda permanecia forte na sociedade brasileira, mesmo após a independência política de 1822. Renato Almeida e Mário de Andrade compartilhavam da idéia, embora divergissem em alguns pontos, de que somente se teria uma arte nacional se a influência européia e, especificamente no caso da música, a influência italiana, diminuíssem. Somente com o declínio da dependência cultural européia seria possível trazer à tona o “acervo artístico nacional”, o que não significava que fosse, necessariamente, “arte nacional” (BOTELHO, 2005, p.122). Devido a essa importação de idéias e formas estéticas próprias de uma sociedade formada a partir da experiência colonial, Renato Almeida e Mário de Andrade apontarão em suas respectivas obras sobre música para a necessidade de se formar uma “cultura brasileira” legítima, que dê coesão à sociedade como nação. Nesse sentido, Andrade e Almeida compartilhavam da idéia de que „tradição‟ e “povo”, eram imprescindíveis para contestar a importação artístico-cultural estrangeira pelas escolas de música e pelas academias de letras do Brasil. Para ambos, tais instituições oficiais eram as responsáveis pela produção de uma arte comprometida com o passado, inadequada ao período dos anos 1920, não atendendo, dessa maneira, às necessidades próprias da sociedade brasileira. Não por acaso, em diferentes momentos de suas vidas, ambos trabalharam tanto em “escolas tradicionais”, como também se 49 lançaram em viagens de pesquisa em busca do “elemento nacional” 17 . Dessa forma, para Renato Almeida e Mário de Andrade, era preciso buscar a cultura popular autóctone, ainda não “contaminada” com influências estrangeiras, para reelaborá-la de forma erudita, com o objetivo de se construir a música artística brasileira. Eles irão divergir, contudo, ao menos inicialmente, quanto aos métodos a serem empregados nessa empreitada e ao seu próprio sentido. 17 Mário de Andrade atuou como docente durante toda a sua vida no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo. De 1935 a 1938 foi diretor do Departamento de Cultura de São Paulo, onde buscou implantar um projeto visando “levar a termo a edificação da nacionalidade”, ou seja, por meio de sua experiência na gestão pública, desenvolveu uma política cultural de socialização da cultura, criando mecanismos de coleta e preservação das manifestações populares, como foi o caso da Missão de Pesquisas Folclóricas, realizada em 1938 nas regiões Norte e Nordeste (BARBATO JR, 2004, p. 15-16). Renato Almeida, além de atuar como diretor e docente em colégios públicos, participou, em 1946, como membro fundador da comissão nacional da UNESCO no Brasil, o Instituto Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura (IBECC), permanecendo nesse Instituto até 1973. (VILHENA, 1997). 50 CAPÍTULO 2 O DEBATE EPISTOLAR ENTRE MÁRIO DE ANDRADE E RENATO ALMEIDA Neste capítulo, temos o objetivo de mostrar como as formações intelectuais distintas de Renato Almeida e Mário de Andrade, apontadas no primeiro capítulo, implicam em posicionamentos também distintos no interior do movimento modernista e, conseqüentemente, no modo peculiar de cada um deles entender a formação da música brasileira. Para a realização desta tarefa, analisaremos o debate de idéias contido na vasta correspondência trocada entre os autores durante os anos de 1922-1944 – que compreende no total 188 cartas –, destacando os momentos que julgamos cruciais para a compreensão dos conflitos interpretativos entre os autores. De um modo geral, o debate nas epístolas discute como se deveria construir uma arte moderna levando em conta a especificidade brasileira. A partir do momento em que os autores tentam definir uma idéia de “brasilidade”, por meio da publicação de livros, artigos em jornais e revistas, é que as controvérsias aparecem e vão se delineando melhor. 2.1. O início da trajetória epistolar Podemos dizer que se deve a Ronald de Carvalho o primeiro contato entre Renato Almeida e Mário de Andrade. Em outubro de 1921, por ocasião das transformações que buscavam “libertar” as letras brasileiras do chamado “passadismo”, aconteceu um encontro entre os modernistas de São Paulo, dentre os quais estavam presentes Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Armando Pamplona, e os do Rio de Janeiro, como Manuel Bandeira, Ribeiro Couto e Elísio de Carvalho, na residência de Ronald de Carvalho, no Rio de Janeiro 51 (BOTELHO, 2005, p. 90). Embora Renato Almeida não estivesse presente, tal encontro o foi descrito por Ronald de Carvalho, como afirma em carta enviada a Mário de Andrade, em 26 de janeiro de 1936, em que diz: “Lembro-me que em 1921, ele [Ronald de Carvalho] me falou pela primeira vez, entusiasmado, de uns rapazes paulistas que tinham estado em casa dele. Um deles era você e me recordo o entusiasmo que teve pelas „Enfibraturas‟ 18 (...) Mas, não assisti a esse encontro e dele soube, no dia imediato, num bonde, quando voltava para casa com o Ronald” (ALMEIDA apud NOGUEIRA, 2003, p.266). 19 Após o acontecimento da Semana de Arte Moderna, em fevereiro de 1922, e o estreitamento das relações entre os intelectuais, Mário de Andrade inicia a correspondência com Renato Almeida com o objetivo de estabelecer uma diretiva para um projeto de modernização das artes feitas no Brasil. Nesse sentido, essa correspondência em particular não foge do sentido geral da correspondência de Mário de Andrade com outros intelectuais e artistas da época, toda ela marcada por um tipo de “fecundação intelectual” em que as cartas também se tornavam recursos de persuasão para tentar convencer seus interlocutores a aderirem ao seu projeto nacionalista (MORAES, 2007). Com a iniciativa de Renato Almeida de escrever uma obra sobre a história da música brasileira, calcada nos preceitos filosóficos de A estética da vida, de Graça Aranha, inicia-se um amplo debate interpretativo entre os autores, para se pensar nos caminhos a serem seguidos para a construção da música brasileira. Já em 10 de maio de 1922, em resposta à carta de Mário de Andrade sobre o seu livro recém publicado Fausto: ensaio sobre o problema do ser, Renato Almeida considera que ambos seriam irmãos da “mesma fé” e da mesma “atitude espiritual”. Na referida carta, Almeida aponta para a base teórica que sustenta a sua recém lançada obra: 18 Trata-se de “As Enfibraturas do Ipiranga”, poema que faz parte da obra Paulicéia Desvairada, publicada pela primeira vez em 1922. 19 Em depoimento à revista Lanterna Verde, nº4, de novembro de 1936, Renato Almeida confirma que Ronald de Carvalho considerou a poesia desse grupo paulista moderna e influenciada pelas vanguardas européias,porém muito brasileira. 52 Em tua carta, meu caro Mário, há o depoimento sincero de um pensador e apontando os senões que deparaste no livro, ganhaste em minha amizade, feliz por encontrar palavras fortes e leais neste mar de hipocrisias. Nos que me falam, como tu o fizeste, eu vejo irmãos, enquanto fico indiferente a esses elogios hiperbólicos e vazios, com que se têm enchido as referências ao meu Fausto, e das quais só me fica a certeza absoluta e integral de que não fui entendido, não fui interpretado, não fui sequer pressentido. Agradeço-te por tudo, meu querido amigo. Antes de tudo, devo te esclarecer um ponto. Não sou um apegado apenas ao sentimento. A princípio, assim foi. Mas, a meditação profunda me deu a convicção, aliás expressa no meu capítulo 3º, de que o sentimento só pode vir indicado pela razão, no limite último do conhecimento, quando a fé se torna, por força de nossa própria fraqueza, o derradeiro apelo do homem. É o coração que sente Deus, mas só a razão nos leva a essa ebriez divina, quando reconhecemos nossa miséria, quando vencemos a vaidade, digamos Mefistófeles. Estou mais com Santo Agostinho do que com os Tomistas, sendo que essa filiação não corresponde a uma formação mental, senão à própria propensão do meu espírito. (ALMEIDA apud NOGUEIRA, 2003, p.3). Na passagem da carta citada acima é possível perceber o tom cordial da relação entre os autores, no entanto, podemos perceber sutis diferenças ideológicas que ganharão corpo posteriormente. Ao dizer que está “mais com Santo Agostinho do que com os Tomistas”, Renato Almeida deseja mostrar a Mário de Andrade os princípios que norteiam não somente a sua fé cristã, como também a sua própria visão de mundo. Em linhas gerais, para Santo Agostinho (354-430), é possível conciliar religião e filosofia, porém, a filosofia (conhecimento humano) deveria estar submetida à vontade de Deus, único capaz de controlar o destino do ser humano. No seu entendimento, a razão ajuda o homem a alcançar a fé e, esta, por sua vez, orienta a própria razão. Nesse sentido, para essa corrente filosófica, o conhecimento é importante na medida em que é mediado pela fé cristã. De outro modo, São Tomás de Aquino (1225-1274) faz uma síntese do cristianismo com a visão materialista aristotélica. Para ele, toda idéia se origina da “realidade sensível”, existindo, portanto, autonomia da razão e da filosofia em relação a Deus. Para esta vertente filosófica, o conhecimento humano apresenta dois momentos, o “sensível” e o “intelectual”, sendo que o segundo depende do primeiro, mas transcende-o (CHAUÍ, 1999). 53 Assim, podemos deduzir que Renato Almeida já explicita em Fausto que a sua posição ideológica, com relação ao “conhecimento”, vem da aproximação que faz da filosofia de Santo Agostinho com a filosofia idealista monista – que considera não ser possível conhecer o “Todo infinito” através do conhecimento, da ciência, mas somente pela “consciência”, neste caso, pelo “sentimento” religioso. Em outras palavras, Almeida deixa claro, na passagem em questão, que a “razão” humana, que seja proveniente da “realidade objetiva”, nos leva, no limite, à dualidade, em que “reconhecemos nossa miséria”. Para o autor, é pela consciência, no caso, pelo “sentimento” de fé, que seria possível entender a unidade infinita do universo. Mesmo apresentando diferenças a respeito da fé cristã e de visão de mundo, a relação de Mário de Andrade e Renato Almeida é bastante amistosa, nesse momento, partilhando do ideal inicial do movimento modernista, que era, basicamente, o da necessidade de renovação do pensamento e da cultura brasileiros. Isso fica claro com a publicação de uma nota sobre Fausto: um ensaio sobre o problema do ser, assinada por V.L 20 , mas provavelmente de autoria de Mário de Andrade, no segundo número da revista Klaxon, em junho de 1922, a qual transcrevemos, na íntegra, a seguir: Renato Almeida com este “Ensaio sobre o Problema do Ser”, fortalece a alta posição que lhe cabe entre os moços do Brasil Novo. Grande erudição. Linguagem nítida. Clareza de conceitos. Estuda a finalidade humana, relaciona a nossa dependência para com o Supremo Motor, prègando a redempção pela fé. Paira sobre a energia da sua demonstração, tal sopro de sentimento e de piedade, que lhe faz da obra, sobre scientífica, immensamente lírica. É preciso ler Renato Almeida. Farias Brito... Jackson de Figueiredo... Renato Almeida... Está chegando o dia em que o Brasil, em vez de celebrar centenários de fantasmas, proclamará a sua Independência. (V.L., Klaxon, nº 2, 1976, p.15). O ano de 1923 será importante por marcar uma aproximação ainda maior entre os dois autores, aproximação esta que propiciará um fecundo debate de idéias, por meio da correspondência, que terá implicações em suas futuras publicações, sobretudo as referentes à música. Com essa maior aproximação e a maior liberdade em poder manifestar pontos não 20 Ver nota 15 (página 35). 54 concordantes em relação ao trabalho de um ou de outro, começam a se delinear mais claramente as suas posições ideológicas frente às manifestações culturais defendidas pelos modernistas. Com isso, determinadas posições de se conceber a cultura brasileira, que antes pareciam congruentes para eles, começam gradativamente a se afastar. Tal fato aparece quando Renato Almeida envia um de seus artigos, no qual discute o conceito de “idealismo”, publicado na revista América Brasileira 21 , pedindo para que Mário de Andrade leia com atenção e faça observações. Nesse artigo, intitulado “A função do Idealismo” 22 , Renato Almeida discute o papel do idealismo na formação da nação brasileira em consonância com os preceitos filosóficos de A estética da vida, de Graça Aranha, afirmando que o idealismo brasileiro tem como força motriz a “audácia” e o “desassombro” que vivem em antagonismo com a “melancolia” e a “lassidão”. Em suas palavras: O idealismo é, pois, para os povos e para os indivíduos, um elemento constructor, mas as suas construcções serão precárias, ou se póde confiar na obra resultante? Os povos que reagem pela imaginativa, têm a predestinação do idealismo. Nas suas obras e conquistas, através de todas as audácias e construcções, por entre dores surdas e sacrifícios immensos, a chamma que os guiará e aquecerá, será o idealismo. (...) Assim, quando as Bandeiras, levadas pelo idealismo rude de homens cubiçosos, em busca das serras de esmeraldas rutilas, desvirginaram a terra formidável, não realizando embora o „sonho verde‟ das pedras maravilhosas, prestaram o mais inestimável serviço á nacionalidade, na conquista temerosa e colossal. (ALMEIDA, 1923, s/p, grifos do autor). Para expor seus argumentos sobre essa discussão, Renato Almeida contrapõe a concepção de idealismo no Brasil de Graça Aranha à de Oliveira Vianna. Segundo Almeida, para Oliveira Vianna, o idealismo é “um embaraço perturbador da nossa ordem e prosperidade”, pois não organiza a nação, ao contrário disso, afasta o homem “da terra”, o que compromete o desenvolvimento do país, a partir de uma organização social. Na interpretação 21 O mensário América Brasileira é fundado em dezembro de 1921 e termina a suas atividades em 1924, tendo como diretor Elísio de Carvalho. 22 Este artigo foi publicado na América Brasileira em junho de 1923. Encontramos esse material no Arquivo Mário de Andrade pertencente ao Instituto de Estudos Brasileiro (IEB), da Universidade de São Paulo (USP). 55 de Almeida, Oliveira Vianna “(...) vê, talvez com algum pessimismo, o idealismo realizando, trabalhando sobre „paradigmas forasteiros‟ os moldes da nossa constituição político-social” (ALMEIDA, 1923, s/p). Renato Almeida concorda que há, realmente, no Brasil, um “desacordo com o meio”,bem como a importação de “fórmula estrangeira” para construir as instituições; mas argumenta que o idealismo brasileiro cumpre um papel importante por levar o homem a desbravar a “natureza” desconhecida. Ao contrário da posição de Oliveira Vianna, Graça Aranha identifica no idealismo brasileiro um “Elemento criador e de perfeição”, que mobiliza o homem a imaginar e construir para além da “realidade sensível”. Nessa direção, Almeida conclui que: O esforço brasileiro não deve ser, pois, para se libertar do idealismo inseparável e vivificador, mas para evitar os erros das visões apressadas e das realizações estéreis. É preciso dominar o excesso da imaginação que nos tortura e illude e procurar enquadrar no mundo brazileiro toda a nossa construção, não para faze-la regional ou desprezar o universalismo, mas para realizar na terra e sob o seu sol radioso, a obra civilizadora da nação, que deve ser consciente. (ALMEIDA, 1923, s/p). Mário de Andrade, em carta de 19 de julho de 1923, elogia este artigo enviado por Renato Almeida, comentando que está muito bem escrito e que as idéias estão bem concatenadas. Porém, faz restrições à concepção de idealismo tanto de Oliveira Vianna quanto de Graça Aranha, dizendo que (...) fizeram do Idealismo uma pérgula sobre a qual se enrama uma trepadeira florida de problemas. Mas esses problemas apoiavam-se apenas na pérgula. Tu não. Com um artigo fizeste do Idealismo a própria trepadeira. E que os problemas sejam, se quiserem, as colunas e o madeiramento superior da pérgula... Sempre imaginei que era por causa das trepadeiras que se fizeram as pérgulas. (ANDRADE apud NOGUEIRA, 2003, p.26). Embora não tenha criticado diretamente a posição de Renato Almeida sobre o idealismo, Mário de Andrade também não diz que concorda com a concepção do destinatário; ao contrário, quando aponta as limitações da interpretação de Graça Aranha, também está questionando os fundamentos filosóficos nos quais Almeida procura sustentar os seus 56 argumentos. Isso fica ainda mais evidente quando, na seqüência da mesma carta, sugere a Almeida: “(...) eu quisera ainda que adquirisses um estilo um pouco mais, não sei como dizer... Vê lá se compreende: qualquer coisa como uma argamassa (?!) feita de vidro, luz e cimento armado” 23 (ANDRADE apud NOGUEIRA, 2003, p.26-27). Essa sugestão feita pelo missivista paulista demonstra explicitamente a sua posição de desacordo com os fundamentos filosóficos do artigo de Renato Almeida. Nesse sentido, para Mário de Andrade, em meados de 1923, não se pode definir a “brasilidade” por uma concepção idealista, como faz Renato Almeida, mas pela “realidade sensível”, ou seja, pela pesquisa empírica, pela adoção de métodos científicos de coleta de “fonte finais”. Nesse mesmo ano é publicado uma série de três artigos, cujos títulos são O preconceito individualista, A gênese do individualismo e O phenomeno Rousseau, e uma conferência intitulada A formação moderna do Brasil, todos de Renato Almeida, em que a temática do idealismo está presente 24 . Na conferência, realizada no Instituto Varnhagen, em 2 de julho de 1923, e publicada na revista América Brasileira, Almeida faz uma análise da história brasileira enfatizando o papel do idealismo para a conquista da “unidade nacional”. Para o autor, o idealismo fazia parte da nossa formação nacional, pois esteve presente nos principais acontecimentos históricos brasileiros, desde a independência do país. Devido a isso, era preciso que o movimento modernista levasse em conta essa característica da “terra” brasileira para fazer uma obra moderna. Nas suas palavras: Fizeram os nossos pais uma nação immensa e formidável, uniram todo o seu território num Estado, deram-lhe o caráter político e social, transformaram a língua dos maiores em instrumento mais doce, mais bello e de maior plasticidade, crearam o sonho do Brasil, como o paiz maior do mundo, e nos entregaram o presente maravilhoso do destino, ainda com o perfume da terra virgem. Nem tudo está feito. (ALMEIDA, 1923, s/p). 23 Sobre essa discussão, Nogueira (2003) aponta que, ao questionar o estilo de escrita do artigo, Mário de Andrade induziria Renato Almeida “a refletir sobre os fatores ideológicos que influíam para determinar a presença de elementos passadistas na sua criação” (NOGUEIRA, 2003, p. XIII-XIV). 24 Os três artigos, O preconceito individualista, A gênese do individualismo e O phenomeno Rousseau, assim como a conferência “A formação moderna do Brasil”, foram encontrados por nós no Arquivo Mário de Andrade, pertencente ao IEB-USP. 57 É também neste momento que Mário de Andrade inicia sua colaboração na revista América Brasileira, com o texto “O amor em Dante e Beethoven” 25 , no qual o autor defende que o amor é o elemento fundamental e desencadeador das principais obras desses dois artistas. Entretanto, é com as “Crônicas de Malazarte”, publicadas na América Brasileira, que o intelectual paulista tornará público as suas divergências com a filosofia idealista de Graça Aranha, a mesma que serve de base aos escritos de Renato Almeida. Ainda que não seja o nosso intuito, neste trabalho, tratar das divergências ideológicas de Mário de Andrade com Graça Aranha, por meio das “Crônicas de Malazarte”, pensamos ser importante mencionar em linhas gerais o teor das críticas que o autor de Ensaio sobre a música brasileira apontava naquele momento. Nogueira (2003) mostra que, já na primeira “Crônica de Malazarte” enviada para a América Brasileira, Mário de Andrade apresenta os personagens que irão participar das crônicas, que são: Malazarte (personagem principal) e Belazarte, Graça Aranha e o “Eu” do narrador (que formam as segundas vozes). Nessas crônicas, serão discutidas, de um modo geral, as posições conflitantes sobre arte entre Malazarte e Belazarte. Andrade, ao apresentar o personagem Malazarte como “Brincalhão e ilusionista”, como aquele que “corre mundo e conta o que não vê”, está associando-o às concepções modernistas defendidas por Graça Aranha; de outro modo, ao descrever o personagem Belazarte como “Tristonho e realista”, como aquele que “olha em torno da taba e conta o que julga ver”, está se referindo às suas próprias posições em relação ao movimento modernista. Tais posições conflitantes no que diz respeito aos caminhos das artes discutidas pelos personagens também se refletirão no diálogo epistolar, uma vez que Renato Almeida estava muito ligado intelectualmente a Graça Aranha. Na seqüência da trajetória epistolar, em setembro de 1923, Renato Almeida menciona que está terminando de escrever o seu livro História da música brasileira: 25 O artigo O amor em Dante e Beethoven também foi publicado, em 1924, no último número de Ariel: revista de cultura musical, estando ainda no VII volume das obras completas, de Mário de Andrade, denominado Música, doce música (1976, Martins). 58 Para muito breve a História da música. Só agora pronto o capítulo final, sobre as conclusões a que cheguei de nosso temperamento e possibilidade musicais. Não sei se o meu ângulo de vista está certo, mas é sincero e creio que não discordaremos, a menos em linhas gerais. (ALMEIDA apud NOGUEIRA, 2003, p.39). É possível notar, pelas cartas, que, por ambos serem os autores que tratavam da questão da música no movimento modernista, Almeida julgava estar em consonância com as propostas de Mário de Andrade, embora já soubesse, pelas próprias cartas, das divergências entre este e Graça Aranha. Em resposta à carta de Renato Almeida, Mário de Andrade, em carta de 15 de outubro de 1923, menciona estar iniciando a redação da sua História da música, descrevendo-a como “trabalho pensado, vivido e longo”, e que esperava fazer um bom livro, um obra que “dê algum lustre a[o](meu) [seu] deslustrado nome” (ANDRADE apud NOGUEIRA, 2003, p.44). Nesta mesma carta, Mário de Andrade pede autorização ao amigo, para que possa dedicá-lo a obra: “Pergunto-te se aceitarias que eu pusesse teu nome na dedicatória. Responde-me que aceitas e desde logo farei o „A Renato Almeida, amigo meu‟ na primeira página do manuscrito” 26 (ANDRADE apud NOGUEIRA, 2003, p.44). Renato Almeida autoriza a dedicatória, dizendo que fica muito agradecido por Andrade vinculá-lo ao seu trabalho sobre história da música: É com o coração agradecido e enternecido que aceito esse oferecimento, que ligará meu nome a um trabalho teu de tão alta monta. Na minha vida de escritor, se não tenho tido muitos dissabores, nem muitas alegrias alcanço. Entre essas, coloco a tua amizade, um dos melhores favores que as letras me fizeram, amizade que acaba de receber um selo tão forte. (ALMEIDA apud NOGUEIRA, 2003, p. 44). Embora os missivistas estivessem apresentando trocas de cordialidades no campo pessoal, como é o caso da dedicatória que Mário de Andrade oferece ao escritor baiano em livro que ele iniciava, é possível percebermos que a harmonia entre os autores começa a 26 E assim o faz em 1929. Tal obra de Mário da Andrade – que será analisada no terceiro capítulo dessa dissertação – é publicada em 1929 com o título de Compêndio de história da música, e com dedicação a Renato Almeida. 59 diminuir com as críticas dirigidas a Graça Aranha – principal referência intelectual de Renato Almeida –, publicadas nas Crônicas de Malazarte, na América Brasileira. Dirigindo-se a Mário de Andrade, Almeida tece o seguinte comentário às crônicas do amigo, em carta de dezembro de 1923: Foste admirável e deste à tua crítica uma sensibilidade inédita, simplesmente maravilhosa. Estou certo que o Graça vai ficar encantado pela tua compreensão e pelo modo rútilo com que o exaltas, dentro de irremediáveis divergências e antagonismos. Tenho uma grande alegria nessa fecunda comunicação de nossos espíritos, sem influências, nem tiranias, mas pela identidade emotiva, porque o milagre não vem do pensamento, mas da arte. (ALMEIDA apud NOGUEIRA, 2003, p. 48-49, grifos nossos). A citação acima nos permite refletir sobre uma questão crucial enfrentada pelo movimento modernista a partir desse momento. Os intelectuais modernistas, após passarem pelo período de contestação do passado cultural, na Semana de Arte Moderna de São Paulo, começam a buscar uma sistematização teórica para as suas manifestações artísticas nas revistas que são publicadas. É a partir disso que esses mesmos intelectuais percebem que o movimento não é uno, mas apresenta uma multiplicidade de correntes. Neste contexto, Renato Almeida aponta que o elemento enriquecedor no “espírito” moderno era, justamente, a possibilidade da existência de posições diferentes no mesmo movimento modernista, do qual ele e Mário de Andrade faziam parte, e que a busca de criar apenas uma única diretiva, para tal movimento, significaria transformá-lo em uma “tirania”. No trecho citado anteriormente, o autor explicita que o ponto de união em torno do movimento deveria vir pela arte, pela criação artística, pela estética – o que estaria de acordo com a influência recebida da A estética da vida, de Graça Aranha –, e não pelo “pensamento”, calcado em princípios racionais, de base científica, elemento que Andrade buscava estabelecer como central para o movimento modernista. O ano de 1924 é o momento em que as divergências ideológicas entre ambos os autores virão à tona, pois, além de Mário de Andrade criticar com mais veemência as bases 60 filosóficas de Graça Aranha, nas Crônicas de Malazarte, em março desse ano é publicado o Manifesto da poesia Pau-Brasil, de Oswald de Andrade, seguido de artigo resposta “Manifesto Brasil da poesia Pau”, no qual Manuel Bandeira ataca o que chamou de as “insinceridades” do movimento moderno. Tais publicações repercutirão no debate dos autores aqui estudados, como é o caso da carta de Renato Almeida endereçada a Mário de Andrade, na qual reclama das disputas internas que começam a ocorrer no movimento modernista, evidenciando a sua pluralidade de correntes ideológicas. Almeida entende que o Manifesto da poesia Pau-Brasil, de Oswald, buscava estabelecer apenas um caminho para se fazer arte moderna, na medida em que criticava as outras possibilidades estéticas que apareceram no movimento, sobretudo aquelas ligadas ao grupo de Graça Aranha. Por tais motivos, o autor questiona, em missiva de 04 de abril de 1924: Por que e para que essa „disputa em família‟? E com que argumentos tão estranhos ao caso! Essa sinceridade preconcebida será, também ela, sincera? Confesso-lhe que duvido. O manifesto do Oswald achei coisa de pouco sentido e pouca razão. A prática de estudar e raciocinar me deu uma necessidade de ordem e as coisas sem harmonia interior me desagradam. O nosso movimento é de renovação e a sua beleza está em ser livre. Para que diretrizes? Somos todos diferentes por temperamento, por contingência e por necessidade, por que haveremos de nos enquadrar? Se convergência só há no princípio de renovação, como criar divergência, sem se afastar desse princípio? Entre as coisas confusas sinto-me mal, como se me faltasse o ar. A minha alegria é que esse manifesto é pessoal e vocês não o apoiaram. Temos nos encontrado, tantas vezes, de acordo em estética, que não me espantou aliás que assim acontecesse com você, ainda nesse caso. (ALMEIDA apud NOGUEIRA, 2003, p.59, grifos nossos). Neste excerto, podemos perceber que Renato Almeida fazia uma leitura bastante pertinente dos problemas que começam a ser enfrentados pelos integrantes do movimento de renovação artística brasileiro. Como lidar com a diversidade de opiniões no interior do mesmo movimento? A trajetória epistolar nos mostrará quais serão os desdobramentos dessa problemática para o debate de idéias dos dois modernistas que têm como preocupação central a música brasileira. 61 As polêmicas envolvendo intelectuais modernistas se refletem também na revista Estética, fundada em setembro de 1924, tendo Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982) e Prudente de Moraes Neto (1904-1977) como seus fundadores. Com o progressivo distanciamento ideológico entre os integrantes do movimento modernista, ocorrem dois episódios envolvendo esse periódico que colaboram para o seu fechamento, bem como para a ruptura entre duas das principais lideranças do movimento, Mário de Andrade e Graça Aranha. O primeiro episódio se dá com a publicação da resenha, em março de 1925, em que Sérgio Buarque de Hollanda e Prudente de Moraes Neto criticam os Estudos brasileiros, de Ronald de Carvalho 27 ; e, o segundo, quando ocorre uma discussão envolvendo Graça Aranha e Oswald de Andrade, “que resultou no „boicote‟ da revista ao autor de Memórias sentimentais de João Miramar” (NOGUEIRA, 2003, p.63). Num sentido mais amplo, esses acontecimentos refletem a existência de vozes dissonantes no interior do movimento modernista. A desaprovação, por parte dos diretores da revista, do artigo de Ronald de Carvalho evidencia também uma crítica ao modo como o grupo formado por este último, Graça Aranha e Renato Almeida pensava a arte moderna; da mesma forma, a censura, proposta por Graça Aranha, à participação de Oswald de Andrade na revista, revela um grau elevado de divergências internas no movimento, chegando ao ponto de um não querer ver o seu nome vinculado ao do outro em um mesmo periódico. A leitura das cartas nos permite perceber que, ao se oporem a essa tentativa de Graça Aranha, os dois então jovens modernistas, criadores da revista, encontram sérias dificuldades para manter o periódico, que acaba se extinguindo, após o seu terceiro número, em 1925.27 Os diretores de Estética consideram que “Com esta primeira série de estudos brasileiros, o excelente poeta que é o sr. Ronald de Carvalho nos dá o mais fraco de seus livros em prosa (…) O que nos falta – um pouco de espírito crítico – falta também ao livro, que não consegue colocar homens e factos á vontade nos seus lugares. Sobre nossa nacionalidade, sobre nossas letras, sobre nossas artes, quasi nada que já não se tenha dito. E todos esses assuntos estão exigindo revisão urgente. Seria necessário estudá-los com espírito novo, ousado, irreverente, sem a menor preoccupação com o que escreveram Rocha Pombo e Silvio Roméro” (ESTÉTICA, 1974, p.216). 62 Dessa forma, a análise mais detida da correspondência permite-nos afirmar que estas últimas polêmicas, ocorridas no interior do movimento modernista, acabam por polarizá-lo, principalmente, em duas grandes frentes: uma mais “analítica”, que valoriza a pesquisa empírica e entende que é preciso “conhecer” a realidade como ela nos aparece – que seguia a orientação de Mário de Andrade –, e outra, de cunho mais “idealista”, que entendia que a realidade somente poderia ser acessada por vias emocionais, de modo intuitivo – que era liderada por Graça Aranha –, a qual Renato Almeida estava ligado. A delimitação de posições de outros grupos que pensavam diferente da diretiva defendida e orientada por Mário de Andrade faz com que este autor intensifique a sua conhecida atuação como missivista. Os planos de Mário de Andrade junto a Renato Almeida e, por conseqüência, aos artistas do Rio de Janeiro, ficam evidentes, por exemplo, pela forma como ele critica a saída do intelectual baiano da América Brasileira, devido a problemas pessoais com o diretor da revista, Elísio de Carvalho. Em carta de 01 de setembro de 1924, Andrade diz: Eu admiro o teu gesto embora não o louve. Admiro-o mesmo, com aquela invejazinha de quem vai ficando para trás e já não tem procedimento assim. Não tenho e não quero ter. Acho que fizeste mal. Procedeste como idealista e como romântico. Passadista! (...) Meu caro Renato, a franqueza, a sinceridade e toda essa vasta coleção de letras iluminadas que temos nesse velho códice de honra, já sabe, no mínimo século IX ou VIII, já estrebuchado pela traça, franqueza, sinceridade não adiantam mais nada como gestos públicos. A hipocrisia, a capacidade, fingimento, eis o que em público deve aparecer. Imagino que estás horrorizado com o que estou dizendo. Não te horrorizarias se no Brasil houvesse o costume dos poetas praticarem a filosofia que pregaram. Meu caro, poesia é outra coisa, aí continuo puríssimo de mim, e se escrevi as “Danças” não foi só para inglês ver, mas porque pensava assim. E agia assim. Estou agindo. Hoje sou mais ou menos o que publicamente se chama cabotino, hipócrita e mesmo canalha. Quando fui sincero chamavam-me cabotino (tempo de Paulicéia e logo após). Hoje que sou cabotino toda gente começa a me respeitar, pudera! Cita em alemão, fala de psicologia, de filosofia e outras merdas facílimas de citar mas que iludem este incomparavelmente besta que é o homem-comum” (ANDRADE apud NOGUEIRA, 2003, p. 75-76, grifos nossos). 63 Esta citação deixa clara a postura que o intelectual deveria ter, na concepção de Mário de Andrade, para, aos poucos, mudar a mentalidade “passadista” da crítica produzida pela imprensa da época. Para Andrade, a imprensa escrita era uma das responsáveis por se manter, no país, uma cultura colonizada, por isso, considerava necessário não somente a fundação de periódicos modernos, como também a atuação constante dos intelectuais junto aos jornais e revistas, para que as idéias modernistas encontrassem terreno para atuar e, com isso, realizar “avanços” para o Brasil. A própria trajetória desse missivista, de participação em diversas revistas (Klaxon, Revista do Brasil, Ariel, América Brasileira, Estética etc), comprova a importância dada a esse tipo de atuação. Em carta de fevereiro de 1925, Renato Almeida emite a sua opinião em relação a como concebe a estratégia de Mário de Andrade enquanto missivista: Você tem o dom de animar a discussão com uma força mais de lógica, que transfigura a frieza do argumento em imagens vivas e motivos de intensa sugestão. Você é perigoso, porque enleia o interlocutor e é preciso tomar pé, quando a gente diverge de você, se não fica logrado (...) (ALMEIDA apud NOGUEIRA, 2003, p.99). Com a desagregação do movimento modernista em grupos com visões diferentes, Renato Almeida se posiciona, em agosto de 1925, da seguinte forma: “Por isso, meu Mário, é que cada vez me escondo mais e creio que não seremos menos úteis trabalhando sem ligações. Cada macaco no seu galho” (ALMEIDA apud NOGUEIRA, 2003, p.127). A partir desse momento, a correspondência vai refletindo as mais variadas divergências conceituais entre os dois autores e seus grupos. Um caso que rende bastante discussão entre ambos diz respeito ao conceito de primitivismo. Em carta de 09 de outubro de 1925, Renato Almeida considera tal conceito de modo distinto ao empregado por Oswald de Andrade – o conceito utilizado por Oswald de Andrade é empregado por Mário de Andrade com a mesma acepção –, pois entende que não é possível utilizá-lo em arte moderna, uma vez que o artista moderno deve fazer obra de alta “cultura”, que possibilite a universalização da arte nacional. 64 Eu penso muito diferente do primitivismo, quer como expressão estética, quer como tendência renovadora de nossa arte (...) A arte deve ser sincera, sentida, vivida. Como, podemos nós, que nos fizemos dentro da cultura, sentir com ingenuidade e ver as coisas por um prisma simples? Eu lhe asseguro que não compreendo isso. Podemos, é certo, imaginar como um indivíduo simples veria certas coisas, na sua ignorância, mas isso é sempre um exercício, interessante, vivo, delicioso até, como às vezes faz o Oswald, mas não vejo onde a emoção, porque não sinto sinceridade. Como poderemos nós dizer a impressão de um caipira na cidade? Repetindo as suas exclamações e os seus disparates? Mas isso é uma arte por aproximação e não desce a essência (...) Ademais, eu creio que precisamos de fazer, como aliás temos feito todos nós, uma obra de cultura, que nos universalize, que nos dê um espírito de síntese humana. Ninguém se tem batido mais pela formação de uma arte brasileira, do que eu e, você bem sabe que toda a História da música é uma constante afirmação desse desejo e dessa ânsia. (ALMEIDA apud NOGUEIRA, 2003, p.133). Mário de Andrade, por sua vez, diz que também usa o conceito de primitivismo em suas obras, porém, com outro significado: o mesmo utilizado por Oswald de Andrade. Para Mário de Andrade, em carta de 18 de outubro de 1925: “Tem primitivismo num caboclo que descansa, tem o primitivismo do Aleijadinho, tem o primitivismo de Giotto e tem o primitivismo de Picasso (...) Quem se mete a fazer outra coisa está incontestavelmente na condição de primitivo, isto é, do indivíduo que está primeiramente fazendo”. Dessa forma, discorda de Renato Almeida, afirmando que utiliza criticamente e conscientemente o conceito, dizendo: “quando eu erro em português eu acerto em brasileiro ao passo que o caipira acerta também não tem duvida, porém sem crítica sem inteligência sem homem, por instinto” (ANDRADE apud NOGUEIRA, 2003, p.135). Por mais que as cartas trocadas pelos autores ainda apresentassem um “clima” de harmonia e de tentativa de manter laços intelectuais – como ocorre no caso da carta de 13 de novembro de 1925 que retrata o almoço em comemoração ao lançamento de sua obra História da música brasileira 28 , em que Renato Almeida cita o nome de Mário de Andrade para “não somente dar em público mais uma vez a (minha) [sua] admiração e também ligar (-te) [Mário de Andrade] a (mim) [ele] nessa hora de alegria” (ALMEIDA apud NOGUEIRA, 2003,28 Este almoço também é mencionado no artigo encontrado no Arquivo Mário de Andrade, no IEB-USP 65 p.143) –, é possível inferir que a ruptura entre os grupos aos quais os autores pertenciam já havia ocorrido, o que se torna evidente com a publicação da História da música brasileira, de Renato Almeida, seguida do artigo “Ernesto Nazaré”, em que Andrade tece duras críticas à musicologia brasileira, na qual inclui a obra de Almeida, como mostraremos mais adiante. O ano de 1926 é marcado pelo principal abalo na relação entre os missivistas, em virtude da desaprovação de Mário de Andrade do caráter idealista da obra História da música brasileira, de Renato Almeida. Como já dissemos anteriormente, a polêmica na revista Estética, que envolveu Oswald de Andrade e Graça Aranha, resulta também no rompimento de Mário de Andrade com o autor de Canaã, em “Carta aberta a Graça Aranha”, em janeiro de 1926, e em artigo intitulado “Meu despacho com Graça Aranha”, em fevereiro de 1926. Como Renato Almeida estava muito ligado intelectualmente e mesmo pessoalmente à figura do intelectual maranhense, a relação cordial, presente nas cartas até então, muda de tom, marcando, assim, o distanciamento entre Mário de Andrade e Renato Almeida. 2.2. Distanciamentos e reaproximações A publicação da primeira edição de História da música brasileira 29 , de Renato Almeida, ocorre, portanto, em um momento conturbado, em que as relações entre Mário de Andrade e o grupo liderado por Graça Aranha estavam bastante estremecidas. Devido a isso e também a busca de arquitetar um projeto de nacionalização da música que estivesse alinhado as suas diretivas, Mário de Andrade escreve a conferência “Ernesto Nazaré”, em que dirige duras críticas à musicologia brasileira, na qual inclui a recém lançada obra de Renato Almeida. Nesse texto, o autor paulista descreve a importância do músico Ernesto Nazareth para a música popular brasileira, mostrando as suas peculiaridades como compositor. Ao longo do texto, ao dissertar sobre música popular, mais especificamente sobre as origens do 29 Discutiremos essa obra no terceiro capítulo do presente texto. 66 maxixe e a falta de pesquisa crítica e sistemática nessa área, Andrade emite sua opinião sobre os caminhos seguidos pela musicologia brasileira, dizendo que: A musicologia brasileira inda cochila numa caducidade de críticas puramente literárias. Se excetuando as datas históricas fáceis e as anedotas de enfeite, o diazinho em que uma senhora campineira teve a honra de produzir o talento melódico de Carlos Gomes, as invejas de Marcos Portugal ante a glória nascente de José Maurício, a gente não sabe nada de verdadeiramente crítica, de científico, de básico, e principalmente de orientação, sobre a música brasileira. A História-da-Música, que nem todas as outras Histórias, está cheia desses túmulos inúteis (...) Ora vamos e venhamos: a nossa musicologia não tem feito até agora nada mais que escrever o dístico desses túmulos, ou plasmar o gesto empalamado de estátuas que a ninguém não edificam. Embora haja utilidade histórica ou estética nas obras dum Rodrigues Barbosa ou Renato Almeida, se deverá reconhecer com franqueza que essa utilidade é mínima, porque destituída de caráter prático. (ANDRADE, 1976, p.129). Ao dirigir críticas ao modo como a musicologia brasileira formulava uma história da música, Mário de Andrade aponta para a necessidade dos estudos nessa área de conhecimento serem aprofundados, lançando-se mão de pesquisas de cunho científico. Na interpretação de Andrade, somente através de um rigoroso trabalho de coleta e estudo das diversas formas de música popular seria possível se construir uma música erudita nacional. Nesse sentido, Mário de Andrade, ao censurar o tipo de história da música feita por Almeida, buscava mostrar ao missivista baiano o caráter “passadista” da primeira edição de História da música brasileira, que, para Andrade, estava mais preocupado em exaltar os “grandes” compositores eruditos do que em levantar informações sobre a música popular. No entendimento do modernista paulista, a principal função dos estudos sobre música brasileira era oferecer “material novo” para o aproveitamento dos compositores que estivessem empenhados em fazer música nacionalista. A passagem a seguir nos ajuda a explicar essa afirmação: Nossas modas, lundus, nossas toadas, nossas danças, catiras, recortadas, cocos, faxineiras, bendenguês, sambas, cururus, maxixes, e os inventores delas, enfim tudo o que possui força normativa pra organizar a musicalidade brasileira já de caráter erudito e artístico, toda essa riqueza agente e exemplar está sortida no abandono, enquanto a nossa musicologia desenfreadamente faz discursos, chora defuntos e cisca datas. Há uma precisão iminente de transformar esse estado de coisas, e principiarmos matutando com mais freqüência na importância étnica da música popular ou 67 de feição popular. Os “sujeitos importantes” devem dar a importância deles pros homens populares, mais importantes que os tais (...) Lançar em nossa Musicologia o facão duma consciência de deveras crítica, que desolhe esses estudos adolescentes de todas as pachochadas da literatice, da fantasia e do patriotismo! (ANDRADE, 1976, p.129-130). Esta citação, de trecho da conferência Ernesto Nazaré, é importante na medida em que nos permite demarcar o ponto nodal das divergências sobre música entre Mário de Andrade e Renato Almeida. A partir de agora, essas divergências ganharão proporções drásticas, levando os autores a explicitarem suas diferenças ideológicas, tanto por meio de cartas como por meio de artigos. Com a explicitação das posições dos autores no interior do movimento modernista, fica-nos claro a existência de dois modos de se compreender a história da música brasileira, bem como duas formas de nacionalizá-la. A primeira, sob a orientação de Mário de Andrade, entendia que ainda não havia música artística brasileira devido, principalmente, à não valorização da música popular, como aparece na citação colocada anteriormente. A outra, defendida por Renato Almeida, entendia e valorizava os esforços dos compositores do “passado”; porém, diferentemente de Andrade, não considerava que a pesquisa da música popular poderia converter a música artística em nacional; mas, sim, a compreensão, por parte dos compositores, de que era preciso desfazer a dualidade existente na arte produzida no Brasil, por meio da integração do indivíduo-natureza. Não nos deteremos mais aqui nessa discussão, pois ela será tratada no terceiro capítulo deste texto quando cotejarmos as edições da História da música brasileira, de Almeida. A partir desse momento, o debate entre os autores torna-se um campo aberto de divergências. Em carta de 2 de dezembro de 1926, Renato Almeida demarca sua posição para Mário de Andrade, até então não explicitada. No seu modo de ver, não seria função do ensaísta, como ele, ir a campo recolher, analisar e divulgar a documentação popular, mas tarefa de especialistas. Portanto, Almeida não concorda com as críticas de Mário de Andrade 68 no que diz respeito à falta de pesquisa do populário na História da música brasileira, pois não era esse o seu objetivo ao escrever o livro. Nas palavras de Almeida: No meu livro a minha única preocupação foi exclusivamente com a “musicalidade brasileira” e, se escrevi coisas, foi para nelas dizer o que de brasileiro fizera o defunto, ou de que modo concorrera para que se aproveitassem as nossas forças musicais. Por que eu creio na contribuição de um Glauco, “com o seu individualismo despatriado”, senão como trazendo expressões brasileiras, que se não trouxe, ao menos por ser uma sensibilidade requintada e aguda, nos comoveu. Aliás, eu reclamo para mim uma modesta parcela nesse esforço para quese organize a nossa música. Não sou eu um musicólogo, apenas um indivíduo que viu o fenômeno musical brasileiro, integrado na essência da nossa psique e gritou: “Vejam que enorme riqueza tem a nossa música, que tem sido desprezada e lembrem-se que sem ela, não só não criarão uma verdadeira arte musical, como não descobrirão nunca o verdadeiro espírito brasileiro, que guarda muito do seu mistério nos cantos do nosso povo. É necessário que os músicos nela trabalhem e, para mostrar como não se fará nada sem ela, basta ver o que foi feito até hoje.” E então mostrei rapidamente o que se fizera (...) Exatamente estimulei essa grande necessidade de trabalhar nessa matéria e a minha História não parece aquele cemitério de que você fala, mas o curso de um roteiro, que é necessário trilhar. (ALMEIDA apud NOGUEIRA, 2003, p. 160-161-162, grifos sublinhados do autor). Por meio desse trecho da carta, vemos claramente que Renato Almeida não concordava com as críticas apontadas por Andrade na conferência Ernesto Nazaré, uma vez que entendia a história da música brasileira de forma diferente da concebida pelo intelectual paulista. Enquanto para Mário de Andrade a ênfase deveria ser dada à música popular e aos seus compositores – pois compreendia que era neles que estava a “essência” do nacional –, cobrando, para isso, a necessidade do historiador da música de ir às fontes, pesquisar empiricamente as manifestações populares; para Renato Almeida, de outro modo, era imprescindível a valorização dos compositores eruditos e de suas composições, sobretudo naquilo que eles tinham de proximidade com a natureza brasileira. Vale ressaltar, ainda, que, diferentemente de Andrade, Renato Almeida compreende que não cabe ao historiador da música fazer pesquisa empírica, mas apenas apontar para a necessidade de se inspirar nas “manifestações populares” para fazer música erudita. 69 Nogueira (2003) mostra que no exemplar de 1ª edição de História da música brasileira, de 1926 – que consta na biblioteca de Mário de Andrade, no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB-USP), o que também pudemos constatar na ocasião de nossas pesquisas nesse Instituto –, encontram-se algumas anotações, na margem da obra recém lançada, em que Mário de Andrade questiona a visão de Renato Almeida, que considera não haver musicalidade em “naturezas frias”. Sobre isso, Andrade anota: “Então porque os russos e os alemães são tão musicais? Tudo isto é a literatice físico-filosófica que está afogando a realidade de certos espíritos brasileiros por especial favor de um Graça Aranha. Nós somos musicais porque simplesmente todos os povos são musicais [...]” (ANDRADE apud NOGUEIRA, 2003, p.163, nota de rodapé). A partir da carta de 8 de dezembro de 1926, Mário de Andrade explicita as suas idéias sobre a musicologia produzida no Brasil para Renato Almeida, convocando-o para, junto com ele, levar em frente o seu projeto de nacionalização da música brasileira. O ano de 1926 torna- se, então, não só o marco da cisão, mas também o da persuasão do projeto marioandradiano. Mário de Andrade tinha um projeto para a música brasileira – para o qual tentava trazer Renato Almeida –, que consistia, basicamente, em modernizar os princípios técnicos em harmonia por meio da utilização da música popular, elaborando, com isso, uma metodologia de pesquisa que colaborasse para composição da música nacional, revalorizando, desse modo, a cultura popular, e conservando-a como “nosso patrimônio histórico humano” (NOGUEIRA, 2003, p.XXXIX). Nesse sentido, o autor de Ensaio da música brasileira argumenta, ainda na carta de 8 de dezembro, que, mesmo que Almeida não seja musicólogo de formação, é possível que ele, enquanto historiador da música, busque dar “mais valor prático” aos seus estudos, por meio de pesquisa analítica. Nas palavras de Mário de Andrade: Suponhamos que você não seja propriamente um musicólogo. Aceito porque de fato no sentido largo da palavra você não é. Mas me diga uma coisa: 70 mesmo sem conhecer especializadamente música você não acha que no seu livro falta certa pesquisa pessoal, penosa reconheço, porém de mais valor prático que indicar, por exemplo, certos valores puramente estéticos, puramente psicológicos da música despatriada de Glauco Velásquez ou da germanizada de Miguez? Você não acha por exemplo que sob qualquer ponto de vista nos será muito mais útil e de validade mais geral (pois que isso de opinião estética sobre um músico é quase ou só pessoal e mesmo transitório dentro duma pessoa) se saber afinal, quando que apareceu o maxixe, donde o nome dele etc? Sem dúvida que é. Você elogia Velásquez, um indivíduo escuta Velásquez por causa do elogio e conclui gosto ou não gosto. E pronto (...) Estude, que seja literariamente mas especializadamente o caráter a função as possibilidades de desenvolvimento das nossas modinhas, ou das nossas toadas, ou dos nossos lundus, ou dos nossos maxixes, ou dos nossos cocos,ou das nossas catiras, e você terá feito ainda trabalho de literato (no bom sentido) porém valioso como caráter prático. (ANDRADE apud NOGUEIRA, 2003, p.166-167-169, grifo sublinhado do autor). Em carta resposta, de novembro de 1926, Renato Almeida diz que o seu livro “visou mais a contribuição ao estudo do fenômeno brasileiro, do que qualquer meta especializada”, e alega que não é dado “a esses labores que exigem paciência (...)” e ao “espírito de metodização” (ALMEIDA apud NOGUEIRA, 2003, p.177). Nesse sentido, o autor, percebendo a atuação de Mário de Andrade com o objetivo de convencê-lo a aderir ao seu projeto de nacionalização da música brasileira, afirma que: “(...) neste momento, nada mais belo e fecundo, nada mais prático, para a formação de nossa realidade, do que essa diversidade de pensamento em face dos problemas brasileiros”; colocando, a partir de então, o tema “linguagem brasileira” no debate epistolar, ao dizer: “Eu sou franco, ainda ontem deixei artigo no jornal em que ataco a sua tentativa, medrosamente seguida por outros, de forçar um modo de falar brasileiro” (ALMEIDA apud NOGUEIRA, 2003, p.178). Na seqüência, Almeida adverte: “Infelizmente o nosso movimento se vai corrompendo, ante a tristeza de nossos olhos leais, com uma insinceridade enervante com que se quer introduzir muita moeda falsa. Breve, teremos de quebrar o padrão...” (ALMEIDA apud NOGUEIRA, 2003, p.179). Com isso, podemos dizer que Renato Almeida estava percebendo a necessidade de ampliar “as vozes” do modernismo, indicar outras posições, mostrar que o modernismo não era uno, mas plural. É nessa direção que ele passa a criticar a linguagem utilizada por Mário de 71 Andrade, linguagem esta que será alvo de duras críticas não somente por parte de Renato Almeida, mas como de grande parte dos modernistas. Renato Almeida considera que o modo de escrita de Mário de Andrade é muito paulista, e que, inclusive, é “forçado”. Embora não seja o nosso intuito discutir como essa questão aparece no debate, por conta de delimitação do nosso objeto de pesquisa, pensamos ser importante mostrar como ela aparece na correspondência dos missivistas porque ela é indicativa do tema da nacionalização da vida social num sentido mais amplo. Ao responder às críticas que lhe foi destinada, Mário de Andrade ironiza, em carta de 20 de dezembro de 1926: Gozei como o diabo você atacar o meu modo de usar a língua agora. Na carta veio um argumento contra que reduzo já ao pó merecido por perversidade. Pode ser que você venha com ele no artigo e então leva uma catalepada de atordoar (...) Te juro que estou longe dessa ofensa injusta. O que se deu foi outra coisa, outras coisas que sei analisar muito bem e que hei de falar num ataque pesado pra desanuviar o meu despeito tempestuoso. Porém não aqui, publicamente. (ANDRADE apud NOGUEIRA, 2003, p.180-181). Interessante notarmos que, nessemesmo período em que essas discussões emergem 30 , Mário de Andrade estava escrevendo a primeira versão de Macunaíma, no qual trabalha, dentre outros problemas, justamente, nessa questão da linguagem brasileira. As divergências entre os dois autores se afloram ainda mais, chegando ao ponto de Renato Almeida afirmar que atacará a “língua confusa e incoerente” do romance Amar, verbo intransitivo, de Mário de Andrade, dizendo que a linguagem da obra não tem “futuro” e que é artificial. A respeito dessa discussão, uma passagem da carta de 18 de fevereiro de 1927, dirigida a Andrade, nos parece ser muito elucidativa, principalmente quando Almeida relativiza a contribuição dos modernistas quanto ao futuro. O fato de Mário de Andrade buscar dar “norma ao futuro” é problemático, porque Almeida considera o contexto histórico dos anos 1920 como um período 30 Essa carta foi escrita por Mário de Andrade em 20 de dezembro de 1926, em Araraquara, onde costumava passar férias na fazenda de Pio Lourenço Correa. 72 de transição e não de definição de uma diretiva a ser seguida para fazer arte nacional, posteriormente, como podemos ver nas linhas da missiva de 18 de fevereiro de 1927: Desde que começamos a discutir em cartas, que tenho procurado ventilar a questão e, até hoje, só consegui me convencer de que está errado (...) você sabe que estou cansado de dizer que esse nosso esforço, divergente mas de certo modo harmonioso, é apenas uma contribuição, de mérito discutível se lhe quisermos dar perspectivas de futuro. Eu, que sou apenas um mero estudioso, não poderia nunca para mim o que não acredito que, no momento, nem todos juntos possam fazer. Eu não viso o futuro e eternidade, sou filho de uma hora de transição e, como todos os meus companheiros, estamos unidos a um período, cujo esforço será precursor, num grau que ninguém pode determinar (...) Quem sabe se não estarei errado? Eu não sei. Está claro que acredito que seja você o errado, mas, se a razão ficar do seu lado, as minhas divergências não terão sido fecundas para dar maior relevo à justeza da sua tentativa?(...) (ALMEIDA apud NOGUEIRA, 2003, p.193-194). Em resposta ao posicionamento de Almeida, Mário de Andrade diz que se dedica à nacionalização de tudo que é nacional, e a linguagem faria parte disso. Afirma ainda que, ao “forçar” um tipo de escrita brasileira, está fazendo um esforço para que a intelectualidade passasse a escrever uma linguagem que tivesse relação com a realidade do Brasil. Uma vez que tivesse alcançado isso, ele não precisaria mais escrever “forçadamente”, tendenciosamente, mas, sim, livremente. Algo similar ele pensa com relação à nacionalização da música brasileira. Defende que os músicos componham a partir de elementos folclóricos, para que, somente depois que tais elementos estivessem assimilados, o músico pudesse criar música artística livre (NOGUEIRA, 2003, p.199). Nessa medida, Andrade, em 06 de março de 1927, afirma que quer dar apenas a sua contribuição pessoal, Se os outros fizessem o mesmo, tivessem a mesma coragem, menos preguiça pro trabalho (você também) e se lançassem em pesquisas pessoais sobre o mesmo problema, você compreende claramente que teríamos então a possibilidade de com a comparação de vinte trinta contribuições diferentes e contemporâneas tirar uma normalidade geral, gramatical d‟aí, e eficiente. Porém falta vontade de trabalhar num problema que está saltando aos olhos, salientado por um poder de gramáticos e de escritores. E sobretudo falta coragem porque ninguém quer se sacrificar. (ANDRADE apud NOGUEIRA, 2003, p.201). 73 Renato Almeida, por sua vez, pondera que valoriza a contribuição pessoal de Mário de Andrade sobre a língua nacional, mas nega o direito de ele transformá-la “num corpo definitivo” (ALMEIDA apud NOGUEIRA, 2003, p.205). Para o autor, a mudança de língua deveria começar primeiro pelas escolas, ou seja, deveria ser institucional. Em carta de 10 de abril de 1927, Andrade diz entender as observações de Renato Almeida, que pondera que o intelectual paulista foi muito rápido na tentativa de nacionalizar a língua brasileira. Diz ainda que concorda com muitas coisas, mas que não consegue mudar por causa do seu temperamento ou da sua educação, que sempre foi a de um autodidata. Por ser autodidata, diz que sempre viu coisas que outros que estudavam em escola tradicional não viam e, devido a isso, tem a “convicção da necessidade de tentativas pessoais já, tentativas precárias necessariamente, obras que morrerão de morte morrida, pra ser possível mais tarde, uma organização legítima” (ANDRADE apud NOGUEIRA, 2003, p. 209). Data desse período a viagem que Mário de Andrade faz, junto com Olívia Guedes Penteado (1872-1934) 31 , à região Norte, entre maio e agosto de 1927. Na volta, relata, brevemente, ao missivista baiano, a desigualdade social que viu nessa região do país, onde percebe o quanto a população dessa região estava distante daquela em que ele e Almeida viviam, em São Paulo e Rio de Janeiro, respectivamente. Andrade descreve. Em carta de 03 de outubro de 1927, a viagem da seguinte maneira: Enfim uma viagem sublime e bem humana. Há-de interessar mais você o que eu senti do que o que eu vi... Trago comigo mais problemas pra me aporrinhar, isso é que é. A gente na vida por um seqüestro útil vai sempre abandonando certos problemas vitais pra depois e assim não se desperdiça muito. De repente vem bater mesmo na cara de você a percepção prática desses problemas e então a volta é cruel: o problema fica dependurado no nariz de você bimbalhando e adeus viola: você tem que pensar nele. E os problemas que eu trago a mais agora são todos tristes ou por outra todos se solucionam em realidades tristes que vi, patriotismos orgulhosos, ódios sem base em nenhuma realidade, ódios de ficção nacional no Peru, entusiasmos ridículos por um Brasil que não existe, divisões nacionais injustas, despeito e animosidade pelos estados que progridem, chatezas, bolivianos de 31 Olívia Guedes Penteado pertenceu à alta aristocracia paulista produtora de café e foi uma das principais incentivadoras dos artistas modernistas. Sobre isso ver: MARIZ,V. Olívia Guedes Penteado e Villa-Lobos. In: Revista Brasiliana; número 12; setembro de 2002. 74 silêncio, despatriados dentro duma pátria subdividida entre duas influências estrangeiras, Argentina pra sudoeste e Brasil pra leste e brasileiros do Norte vivendo um longing terrível pelo Brasil de que não fazem parte senão virtualmente e numa saudade pelo passado da borracha e ilusoriamente imaginando que esse passado como Dom Sebastião não morreu, as culturas mais idiotas e idealistas que se pode imaginar destruídas, todas à beira-rio, destruídas pelas terras caídas. (ANDRADE apud NOGUEIRA, 2003, p. 211-212). Esse trecho da missiva ilustra bem como o contato que Mário de Andrade teve com os brasileiros da região Norte serviu para ele pensar outras questões, referentes aos problemas sociais do Brasil, que mudarão a perspectiva dos seus trabalhos. É a partir dessa viagem ao Norte, e também de outra viagem realizada, um pouco depois, ao Nordeste, que o autor passa a refletir sobre a questão do povo brasileiro, e percebe que este estava muito distante daquilo que ele próprio discutia em seus livros. Tal experiência possibilita um movimento na trajetória intelectual de Mário de Andrade, que o fará buscar um conceito de povo e de folclore que possa ser empregado nas suas obras. Essa busca de fundamentação teórica se dará a partir da análise de autores como Manuel Bomfim, Euclides da Cunha, Oliveira Vianna e Gilberto Freyre, como buscamos apontar no primeiro capítulo desta dissertação. Renato Almeida também emite, em 10 de outubro de 1927, a sua opinião sobre essa situaçãosocial do Brasil, ao comentar a carta em que Andrade descreve a situação que presenciou na região Norte do país: Voltou você descrente do Norte, pareceu-me que melancólico. Eu não o conheço (pois a Bahia é centro), mas creio que se lá fosse traria igual apreensão. O destino brasileiro reside nesse estado de coisas indefinível: um Norte ativo, mas estagnado; um sul dinâmico e poderoso. Aquele, mais firme no subconsciente da terra, quero dizer, mais brasileiro, mais amigo do mundo circundante, que o apavora, é certo, mas que ele admira e quer bem. Este, injetado de cosmopolitismo, sonha um Brasil econômico, internacional, livre-cambista, babélico. Como se fará essa harmonia? Far- se-á, ou a nossa unidade se dissolverá? Creio que se arranjarão as coisas, caso resolvamos alguns problemas econômicos (a siderurgia em primeiro lugar) que mantenha, melhor do que o café, o ritmo nacional.” (ALMEIDA apud NOGUEIRA, 2003, p.214). 75 A partir do ano de 1928, a correspondência esfria o tom de discussão que a cercava até então. Os autores passam a falar de assuntos mais gerais. Renato Almeida se volta mais para as suas atividades de ordem burocrática junto ao Governo Federal, sendo nomeado, com Roquette Pinto, para fazer parte da Comissão Brasileira que participa do Congresso de Arte Popular, de Praga, naquele ano. No cumprimento dessa incumbência, pede a Mário de Andrade um trabalho sobre música popular, que resultará no artigo “Influência portuguesa nas rodas infantis do Brasil”, que está reunido em Música, doce música (NOGUEIRA, 2003, p.221). É também nesse período que Mário de Andrade publica os livros Clã de Jaboti e Macunaíma, assim como as suas principais obras que tratam da temática musical, o Ensaio sobre a música brasileira e o Compêndio de história da música 32 , publicados em 1928 e em 1929, respectivamente. Nos anos que se seguem, o debate e os conflitos interpretativos praticamente se encerram e a trajetória epistolar é marcada pelo afastamento entre os autores, como aparece em carta de Renato Almeida enviada a Mário de Andrade, no ano de 1928 33 : Tenho tido uma enorme saudade tua. Não tens assunto para prosear comigo? Fala de ti, do teu próximo livro, a que nunca me referiste, mas eu já soube dele...vagamente... Por mim, tenho feito pouco. Uma vida cheia de coisa: colégio, Ministério, eles me ocupam e preocupam extremamente. Agora, tenho de fazer uma conferência sobre a expressão nova da nossa música focando o Vila, para a embaixada americana. Quase que só trabalho intelectualmente forçado. O tempo que sobra é para ler um pouco e estudar. (ALMEIDA apud NOGUEIRA, 2003, p.221) Somente em 1935, depois da morte de Graça Aranha, em 1931, e a de Ronald de Carvalho, em 1935, Renato Almeida voltará a se aproximar de Mário de Andrade, o que ocorre, principalmente a partir de 1936, quando o autor paulista já está trabalhando, na função de diretor do Departamento de Cultura de São Paulo. Com o objetivo de escrever um livro 32 Tanto o Ensaio sobre a música brasileira como o Compêndio de história da música serão analisadas no terceiro capítulo desta dissertação. 33 Na carta em questão só aparece o ano em que a mesma foi escrita. 76 sobre a trajetória de Ronald de Carvalho, Renato Almeida recorre ao missivista Mário de Andrade, na intenção de obter informações do início do movimento modernista. O intelectual baiano, em carta de 26 de janeiro de 1936, referente a esse assunto, diz: “Dou-lhe grande importância, para mostrar, de uma vez por todas que o modernismo no Brasil, não nasceu da Semana de Arte Moderna, mas essa só se verificou, porque havia um modernismo já nascido e taludo, a quem o Graça deu a mão e gritou: está aqui o bicho”(ALMEIDA apud NOGUEIRA, 2003, p.267). Nesse sentido, percebemos que Almeida considerava, em 1936, a figura de Graça Aranha central para se entender o movimento modernista, uma vez que seria pelas mãos do intelectual maranhense que o modernismo teria ganhado evidência. Na tentativa de remontar a história dos primórdios do movimento de renovação cultural, e colocar em destaque o nome do seu principal mentor intelectual, Graça Aranha, Almeida questiona Mário de Andrade, em cartas de 31 de janeiro e 12 de fevereiro de 1936, sobre as divergências estéticas que nutria com relação a Graça Aranha e a Ronald de Carvalho: O que quero te pedir, poderia verificar num longo esforço e buscando documentação exaustiva, mas tu me podes dar em poucas linhas e assim a minha certeza será plena. Quero saber quais os pontos fundamentais de divergência estética que tiveste com o Graça e Ronald. Entre os dois, conheço bem, mas relativamente à tua, desejaria alguns esclarecimentos. E podes ou me autorizar a dizer que recorri a ti, ou apenas me indicares as fontes para referir. (ALMEIDA apud NOGUEIRA, 2003, p.269-270, grifos nossos). Em resposta a essa carta, Mário de Andrade afirma inicialmente que as principais divergências com os autores referidos por Renato Almeida eram mais a respeito da “maneira de agir dentro da vida” do que diferenças “estéticas” ou “teoricamente filosóficas” (ANDRADE apud NOGUEIRA, 2003). No entanto, mais adiante, em carta de 8 de março de 1936, o autor aponta que também divergia da concepção filosófica de Graça Aranha, quando diz: Com o Graça sempre tive algumas divergências que se poderão reduzir à literatura. Na filosofia dele há a pregação de que devemos contemplar o mundo fazendo dele um gozo espetacular. Ora isso eu considero odioso e 77 toda minha vida desobedeci a esse princípio fundamental de modus vivendi do Graça e da filosofia dele. O Graça pregou muito e não fez o que pregava. Eu preguei pouco porque toda a minha pregação está nos meus livros e na minha ação. É certo que o Graça tinha um passado a defender e eu não. (ANDRADE apud NOGUEIRA, 2003, p. 271, grifos sublinhados do autor). Na visão de Mário de Andrade, a filosofia do autor de A estética da vida tinha como objetivo a contemplação e não a modificação do mundo, não sendo, portanto, uma filosofia da ação. Nesse sentido, a idéia de Graça Aranha, que afirmava somente ser possível acessar a realidade brasileira por meio de uma postura estética da vida, ou seja, por vias emocionais, intuitivas, ia na contramão da posição defendida por Mário de Andrade, que compreendia que apenas com métodos científicos, com pesquisa analítica, era admissível se conhecer a realidade nacional. O autor de Ensaio sobre a música brasileira relembra, na carta a Almeida, que percebeu divergências ideológicas, em relação à Graça Aranha, já em 1922, durante a Semana de Arte Moderna. Tais divergências diziam respeito à concepção de “liberdade absoluta” proferida por Aranha, em 1922. Mário de Andrade, como já dissemos, exigia que o projeto de renovação cultural modernista estivesse pautado em um critério normativo e em pesquisa analítica. Essa postura de Andrade entrava em conflito com a idéia de Graça Aranha, também seguida por Ronald de Carvalho, de que os artistas modernos deveriam ter total liberdade quanto às regras, para criarem suas manifestações artísticas. Nas palavras de Mário de Andrade, ainda na carta de 08 de março de 1936: No espetáculo inicial da Semana de Arte Moderna se deu uma anedota que ninguém comentou mas demonstra que desde logo o meu espírito tinha a sua organização estética bem formada e independente. O Graça fazia seu discurso inaugural e todos nós os que iríamos tomar parte do espetáculo ou éramos apenas do grupo, nos sentávamos no palco um pouco detrás dele e também à vista do público. A um dado momento o Graça pregou “liberdade absoluta” com estas mesmas palavras. Embora um bocado timidamente pelo inesperado da coisa, falei alto “não apoiado”, que ele ouviu, voltou-se para mim e sorriu. Nunca preguei liberdade absoluta que édesde logo abuso de liberdade, sou contra isso e toda a minha obra obedece as normas, a princípios, a intenções que cerceiam a liberdade, a corrigem e socializam o meu ser. (ANDRADE apud NOGUEIRA, 2003, p. 271). 78 A partir desse momento em que Mário de Andrade responde ao questionamento de Renato Almeida, este, pelo que nos mostra a correspondência que se segue na segunda metade dos anos 1930, reverá suas posições estéticas defendias nos anos 1920, levando em consideração as observações de Mário de Andrade a respeito dos pontos de divergências estético-filosóficos que estiveram presentes no interior do movimento modernista, ao qual pertenceram os dois intelectuais. Não por acaso, será a partir de 1938, como mostram as cartas desse período, que Renato Almeida passa a se interessar pela reedição da sua obra História da música brasileira, contando, para isso, com a colaboração permanente de Mário de Andrade, que esclarecia e fornecia informações, dados, materiais sobre música popular e erudita brasileiras a Almeida, como bem mostra a carta de 16 de maio de 1938, cuja passagem citamos a seguir: Meu querido Mário, recebi a sua carta e muito lhe agradeço todo o trabalho a que se deu, de responder a todos os meus pedidos. Valho-me do seu oferecimento do “use e abuse”. Sei que você é uma pessoa muito ocupada, sei da sua soma de trabalho e da maneira com que o faz, sei ainda das preocupações que devem o absorver nesta hora. Mas, que quer você? Uma pessoa providencial, como você, também não se pertence. Numa terra, em que não há centros de estudo, nem organizações especialistas (uma das primeiras é o Departamento que você está organizando) fatalmente havemos de recorrer aos que sabem, dada, sobretudo a extrema dificuldade de se obter documentos esclarecedores. Vamos, então, ao documento vivo, aliás, bem mais valioso do que o outro, porque já filtrou a observação. (ALMEIDA apud NOGUEIRA, 2003, p.289). O ano de 1938 é importante no debate dos autores porque, além de demarcar a reaproximação entre os dois missivistas em torno da música, tendo como conseqüência direta a elaboração de segunda edição de História da música brasileira, é o momento em que Mário de Andrade afasta-se do Departamento de Cultura de São Paulo, o que culminará no seu “exílio” no Rio de Janeiro, a partir de julho daquele ano 34 . Durante o período de meados de 1938 até início de 1941, os dois autores conviverão na mesma cidade, o que se reflete na menor quantidade de cartas trocadas entre ambos. Porém, até meados de 1938, momento em 34 Sobre o período em que Mário de Andrade morou no Rio de Janeiro ver: Castro (1989). 79 que Andrade ainda residia em São Paulo, podemos apontar passagens de cartas que exemplificam como se deu a gradativa mudança metodológica da obra de Almeida a partir das constantes sugestões e informações dadas pelo intelectual paulista. Tendo em Mário de Andrade um interlocutor privilegiado para esclarecer informações sobre música, Renato Almeida, na mesma carta de 16 de maio de 1938, pergunta sobre música popular, como podemos ver na seguinte passagem: (...) O Gallet diz que a modinha e o coco são canções. Mas o coco não é, por excelência, música de dança? Eu bem sei que a música de dança é em geral cantada, portanto vira canção, mas como se deve preferencialmente classificar o coco? (...) Moda é qualquer música, diz D. Oneyda, no entanto eu a conheço como espécie determinada e dela você também fala. De que se trata pois: generalização de nome, confusão ou identidade de espécie?(...) Do tal Toré, de que você me fala, não tenho idéia, senão duma rapidíssima alusão que você faz num artigo para ingleses. Se houver qualquer referência para conhecer o bicho, mande-me. Do contrário, e se possível, conte-me como é. (ALMEIDA apud NOGUEIRA, 2003, p.290-291). Em carta de 18 de maio de 1938, Mário de Andrade responde procurando esclarecer as dúvidas do autor baiano a respeito das formas populares “coco”, “moda” e “toré”: Renato. Recebi sua carta e vou respondendo (...) O coco inicialmente e ainda essencialmente é dança cantada. Dança, pois, uma legítima ilação do samba rural baiano, isto é, mais generalizadamente brasileiro. Sucede porém que certos cantadores do litoral nordestino, rapsodos, se apropriaram da fórmula musical do coco, isto é, estrofe e refrão, sendo a estrofe na sua forma mais desenvolvida e específica uma embolada, e a cantam sem dança. (...) Ao meu ver, de preferência, se deverá classificar o coco “dança”, pois é assim que é universalmente compreendido no Nordeste. O que é possível é que historicamente esteja se dando com o coco, o que se deu com o fado e com o “lundu”, que foram inicialmente só dança e depois aos poucos viraram canção solista. (...) Também me referi algures a essa vagueza da terminologia popular que fez gente do povo chamar ainda de “moda” qualquer música pelo menos cantada, tal como se fazia em Portugal três ou quatro séculos atrás. Vi até um caipira de barranca do Mogi chamar de “modinha” a uma legítima e indiscutível “moda” caipira, surpreendendo assim ao vivo o fenômeno lingüístico que se fez passar a voz portuguesa “moda” ao diminutivo “modinha” que enfim acabou de ser substantivo independente, designando uma das manifestações de canção brasileira. Referi-me a isto tudo no prefácio das Modinhas Imperiais. “Moda” apesar dessas vaguezas de terminologia é tecnicamente uma manifestação específica e independente da canção caipira, regionalizada em especial nesta zona centro-litorânea S. Paulo-Minas-Est. Do Rio. 80 (...) O “toré” é uma manifestação coreográfica dos índios civilizados de Águas-Belas, Pernambuco. De lá vai se espalhando, pelo menos como palavra, pelo Nordeste, pelo menos Pernambuco. Já existem canções pernambucanas em discos, com título de “toré”. Não sei se exprimem qualquer verdade ameríndia. Não parece. Agora, quando minha missão voltar do Nordeste terei “torés” registrados em disco in loco. Mas só quando voltarem. (ANDRADE apud NOGUEIRA, 2003, p. 292-293-294). Essas citações ilustram o modo como se dava a troca de informações entre os autores visando à elaboração da segunda edição de História da música brasileira. As principais questões feitas por Renato Almeida a Mário de Andrade diziam respeito à música popular, que teve pouco destaque na primeira edição da obra, em 1926. Ao observarmos o conteúdo da correspondência durante o período de 1938 a 1941, percebemos que a grande preocupação de colher o máximo possível de dados, fontes, partituras e informações sobre a música popular brasileira se dava, por um lado, para mostrar aos compositores eruditos que era por meio do conhecimento dos variados estilos da música popular que deveria se fazer uma música erudita nacional, e, por outro lado, porque Almeida estava considerando, a partir de então, que a incorporação de informações sobre o folclore musical, na segunda edição da sua obra, daria a ela um rigor mais científico, um “caráter mais prático”. A partir de março de 1941, com o retorno de Mário de Andrade a São Paulo, a troca de cartas entre os autores volta a ocorrer com mais freqüência, o que se dá até 1942, ano da publicação da segunda edição de História da música brasileira, de Almeida. Em carta de 03 de fevereiro de 1942, Renato Almeida relata a Mário de Andrade que com a publicação da obra terminava uma “enorme tarefa”, na qual o autor de Macunaíma teve grande responsabilidade, por ter despertado nele o interesse em lançar uma segunda edição da obra em questão. De acordo com Almeida: (...) porque foi de uma palavra sua [Mário de Andrade] que nasceu a idéia de dar ao trabalho a orientação que tomou afinal, quando você me censurava a 1ª edição. Mas aquela tinha que ser como foi. Frutinho da época. Intoxicação impressionista, ausênciade material, certo desprezo pela pesquisa. (ALMEIDA apud NOGUEIRA, 2003, p.344-345). 81 Após ler a segunda edição da obra de Almeida, Mário de Andrade emite a sua opinião ao amigo residente no Rio de Janeiro, em carta de 02 de março de 1942, enfatizando que somente a partir dessa segunda edição o livro se torna uma obra de referência: Realmente, sem a menor condescendência de amigo urso, você fez uma obra admirável. Se sob apenas o ponto de vista da música histórica ele não é “técnico”, minha convicção é que ele não tinha que ser técnico. Se o fosse você se dispersaria numa ladeira de observações de caráter monográfico e o seu livro perderia a unidade esplendida que tem. Agora sim: seu livro ficou sendo um ponto de partida pra monografias, uma obra de consulta imprescindível. Mas não estou aqui pra dizer tudo, o direi em letra de forma.” (ANDRADE apud NOGUEIRA, 2003, p. 346). Com o lançamento da obra, Mário de Andrade escreve dois artigos 35 em que elogia bastante a segunda edição de História da música brasileira, considerando-a como obra norteadora da musicologia brasileira, até então carente de referências modernas no campo científico. Em um desses artigos, intitulado “Música Brasileira”, Andrade (1973) diz que a relevância da obra está principalmente no motivo do autor considerar que a música popular e a música erudita tinham a mesma importância histórica, fato este que coloca o livro como base para os estudos de musicologia moderna brasileira: Uma das originalidades do livro, como concepção histórica, foi Renato Almeida ter dado à nossa música popular importância igual a que deu para a música erudita. Isso não só se justifica por sermos um país novo em que a música dos compositores ainda raro nomeia figuras de primeira grandeza e nenhum fato de música erudita que tivesse projeção universal, ou por estarmos nacionalizando a nossa produção pela regra eterna de transpor eruditamente a obra anônima do povo. (...) O que desejei foi apenas celebrar o aparecimento de uma obra de muito trabalho e de muito valor, em que a musicologia brasileira pode agora se estrear, para prosseguir em estudos mais minuciosos e particulares. (ANDRADE, 1976, p. 354-358). O enaltecimento da obra recém lançada por parte de Mário de Andrade em cartas e em artigos faz com que Renato Almeida escreva uma carta na qual revela a importância intelectual de Andrade para a elaboração do livro, o que, de certo modo, reforça o nosso 35 O artigo “Música Brasileira” foi publicado no Diário de Notícias, em 22 de março de 1942, e consta também em Música, Doce Música. São Paulo, 1976. O segundo artigo foi publicado em Planalto, São Paulo, 15 de março de 1942. 82 argumento de que Almeida teria, a partir dessa segunda edição, se distanciado da concepção filosófica com base em A estética da vida, de Graça Aranha, para aderir ao projeto musical de Andrade, pautado pela valorização da pesquisa e coleta do folclore brasileiro. Isto fica claro na passagem que se segue, referente à carta de 04 de março de 1942: Eu relembro agora a carta que você me escreveu, quando da 1ª edição. Se você, por amizade, como me disse então, não atacou o livro, a mim disse o que sentira e indicou o que devia fazer. Por isso você teve nesse livro um papel enorme. Não apenas, pela contribuição de seus estudos, dos seus conselhos e das suas achegas. Mas um papel psicológico extraordinário, porque ele partiu daquela sua observação citada. E o louvor de hoje me dá a consciência de que eu o compreendi. E você me compreendeu muito bem porque começou por aferir um ponto, que me ficara sempre duvidoso, se seria deficiência ou não: a parte técnica. Está claro que me inclinei pelo seu modo de ver, pois do contrário nada teria feito. (...) Eu fiz o que eu quis – um livro que merecesse o seu aplauso. Não há nisso lisonja besta, que não cabe aqui, eu não faria e você não toleraria. Mas ninguém pode pretender, no assunto, a sua autoridade, a que ninguém se igualou, nem ninguém fez, até hoje, o que você realizou no assunto. E disso a minha História é um testemunho. Em todos os assuntos fundamentais você está presente. Ninguém abrangeu, em intensidade ou extensão, os seus estudos nesse setor. Por isso, sua palavra era pra mim fundamental e deu uma grande serenidade. (ALMEIDA apud NOGUEIRA, 2003, p. 348-349). Do ano de 1942 em diante, a troca de correspondência entre os autores praticamente termina, sobretudo devido ao agravamento do estado de saúde de Mário de Andrade, que vem a falecer em fevereiro de 1945. Um fato importante e que merece ser registrado é que, a partir de 1947, Renato Almeida se torna uma liderança em defesa do folclore, criando, neste ano, junto com Luiz Heitor Correa de Azevedo 36 (1905-1992), uma das comissões temáticas do Instituto Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura (IBECC), a Comissão Nacional de Folclore (CNFL). Essa Comissão teve como objetivo mobilizar forças para a defesa das manifestações folclóricas e para a formação de uma agência governamental que garantisse a sua pesquisa e conservação. Tal intento foi conseguido em 1958, com a chamada Campanha 36 Luiz Heitor Correia de Azevedo foi professor, musicólogo e folclorista. Escreveu vários livros sobre a temática musical, dentre eles, o de maior expressão foi 150 Anos de Música no Brasil, publicado em 1956, pela editora José Olympio (MARIZ, 1983). 83 de Defesa do Folclore Brasileiro, junto ao Ministério de Educação e Cultura, que, em 1976, foi incorporada à Funarte, como Instituto Nacional de Folclore (VILHENA, 1997). Com nossa análise da correspondência entre Mário de Andrade e Renato Almeida, circunstanciada, como vimos, pela referência de alguns artigos publicados na imprensa e nas revistas culturais da época, pretendemos mostrar, fundamentalmente, como as divergências existentes em relação ao modo de se conceber a música brasileira entre os intelectuais modernistas vão sendo gradativamente atenuadas durante os anos 1930, chegando ao ponto de Renato Almeida aderir ao programa normativo de Mário de Andrade, talvez a base a partir da qual o modernista baiano radicado no Rio de Janeiro tenha vindo a assumir, posteriormente, a liderança da Campanha Nacional do Folclore, a partir de 1947. Cabe agora demonstrarmos como essas tensões, divergências e convergências são formalizadas nos livros de Renato Almeida e de Mário de Andrade. 84 CAPÍTULO 3 A FORMALIZAÇÃO DA HISTÓRIA DA MÚSICA BRASILEIRA Neste capítulo, pretendemos mostrar como o debate e os conflitos interpretativos sobre a formação da música erudita brasileira, no contexto do modernismo, foram formalizados nas primeira e segunda edições de História da música brasileira, de Renato Almeida, e no Ensaio sobre a música brasileira (1928) e Pequena história da música (1929), de Mário de Andrade. Para isso, buscaremos apontar como eram vistos os compositores até o período modernista e qual era a importância da música popular para a formação da música brasileira na concepção dos autores referidos. Nesse sentido, tentaremos, por um lado, explicitar a existência de duas posições metodológicas que estavam disputando como “deveria” ser entendida a formação da música no Brasil e, conseqüentemente, o seu processo de nacionalização – posições estas que estavam se confrontando desde o início da década de 1920, como mostramos no primeiro capítulo desta dissertação, através da análise de aspectos da trajetória de Mário de Andrade e Renato Almeida e seu diálogo público nas páginas das revistas culturais do período, e no segundo capítulo, através da análise da correspondência trocada entre eles. 3.1. História da Música Brasileira - 1ª Edição A primeira edição de História da música brasileira, de Renato Almeida, é publicadaem 1926, sendo o primeiro trabalho de concepção modernista que registrou os principais compositores brasileiros e a discussão musical no país até a década de 1920. Nesta obra, o objetivo de Almeida, para além de realizar uma síntese da “nossa capacidade musical”, através da contribuição dos compositores eruditos durante a história, era, sobretudo, o de apontar o caminho necessário para construir uma música com características nacionais. 85 Em sua primeira edição, História da música brasileira apresenta, além da introdução “Symphonia da Terra”, os seguintes capítulos: “A música popular”; “A música brasileira no começo do século XIX”; “O romantismo na música brasileira”; “Tendências da música brasileira”; “O espírito moderno na música”; “A cultura musical no Brasil”. Esta edição do livro, como já apontamos, está fortemente marcada por A estética da vida (1921) de Graça Aranha, especialmente seu diagnostico sobre a dualidade homem/natureza, no Brasil, e seu prognóstico esteticista da arte como caminho que poderia conduzir o brasileiro a se integrar com a natureza de seu país, e, posteriormente, com a “unidade infinita do todo”. Não por acaso, talvez, a primeira edição de História da música brasileira é dedicada a Graça Aranha. Na introdução “Symphonia da Terra”, Renato Almeida apresenta o elemento que considera fundamental para se entender o país e, dessa forma, para a composição de uma música nacional: a peculiaridade da natureza brasileira. Para o autor: O mundo em torno é todo elle uma alegoria. Ao meio da luz, rebrilham e fulguram as coisas, tocadas de oiro, como num incêndio scintillante e maravilhoso. A côr cria e transfigura, nos reflexos cambiantes e subtis, entre os tons intensos e os motivos suaves, numa surpreendente harmonia. O sol esbrasêa, queima as florestas, escalda a terra e põe no mar requintes de brilhos, dando á natureza a alegria e o torpor, o deslumbramento e a melancolia. Na matta, torram as folhagens, arrebentam os troncos, donde escorrem as resinas mornas, e a terra mesma se abre, numa ânsia cruel e voluptuosa. A soalheira é uma allucinação. Não só dá cor, mas também som. Vede a symphonia prodigiosa que se levanta! Gritos vermelhos, melopéas verdes, alaridos de folhas seccas, soluços lilazes e imprecações cinzentas. São as vozes da selva que estrugem. Sons de violinos e oboés, frautas, violloncellos, tambores, fagotes e timbales, harmonizando um rythmo bárbaro e grandioso (...) em tudo há som, nesse rumor indeciso da terra virgem, que é toda inteira um canto de alegria e de êxtase. (ALMEIDA, 1926, p.11-12- 13). Ao descrever a natureza brasileira de forma alegórica, destacando a sua beleza exuberante, Almeida chama a atenção para o que considera as características próprias do Brasil, quais sejam: a “alegria” e o “deslumbramento”. Partindo dessa mesma concepção idealista da paisagem brasileira selvagem, é que o autor vai entender o surgimento de uma “sinfonia prodigiosa”, isto é, da música em sua forma natural. Em outras palavras, Almeida 86 entende que existia um estado de êxtase na natureza brasileira antes mesmo da colonização. Este modo de abordar a natureza e também a música está alinhado A estética da vida, de Graça Aranha, que havia considerado a natureza “uma prodigiosa magia. E no Brasil ela mantém nas almas um perpétuo estado de deslumbramento e de êxtase” (ARANHA, 1921, p.89). Nesse sentido, a compreensão da natureza brasileira é destacada por Almeida como elemento essencial para a integração do homem ao seu meio natural, podendo ele, a partir disso, construir a música nacional. Na sua interpretação, havia a necessidade de se entender as características presentes na natureza selvagem para que fosse possível compor uma música brasileira. Desse modo, a natureza é entendida, por um lado, no seu sentido estrito, o de mundo natural, concebendo-se que é o ritmo desse mundo natural que deve ser incorporado à composição musical, convertendo-o em manifestação artística. Por outro lado, o conceito de natureza também é entendido pelo autor não apenas como sendo o mundo natural, mas também a transformação que a atividade humana realiza da natureza; ou seja, a música precisaria incorporar não somente o ritmo natural, mas também a transformação que a natureza sofre em contato com o ser humano. Nesses termos é que Almeida defende a incorporação, em seu projeto musical, de elementos da vida moderna à música nacional. A advertência de que é preciso construir a música brasileira com os elementos próprios do Brasil é emblemática na obra, como podemos perceber no excerto a seguir: Ouçamos as vozes da terra e criaremos o ritmo de nossa arte, profunda e imortal (...) Sejamos os artistas comovidos do nosso habitat maravilhoso, onde cada espírito deve ser livre e sincero, sentindo intensamente o mistério das coisas (...) Basta(-lhe) transformar a vida, como se (lhe) apresenta, em motivos de emoção profunda, de força, ou de beleza (ALMEIDA, 1926, p. 16-17). Após delimitar a importância da natureza para a formação da música brasileira, Renato Almeida volta-se para a gênese social brasileira, com o intuito de apontar qual é o traço característico da “alma brasileira” que pode contribuir para o advento de uma música artística 87 nacional. Para isso, ele se detém a analisar as chamadas “três raças formadoras”, composta pelo português, pelo africano e pelo indígena 37 . Na concepção de Almeida, o índio, o português e o negro tinham como principal característica a melancolia, característica esta que contrastava com o cenário da natureza brasileira, que era de êxtase. Nas palavras do autor, Melancólico era o índio fugidio e indolente, que vivia a vida cheio de nostalgia, num perpétuo espanto pelas coisas que o cercavam; melancólico era o lusitano, ousado mas triste, vivendo no mar e com a saudade da patria sempre no coração; melancolico era o negro, caçado, roubado e escravizado, que soffria no cativeiro uma dôr irremediável e aniquilante. Todas essas vozes que se levantaram eram um contraste com o scenario, de magnífico fulgor. A alma do brasileiro guarda esse fundo trágico, em que o homem teme a natureza e procura vencê-la pela imaginação exaltada caindo depois em abatimento e langor. E esse primeiro encontro com o meio, esse inquieto e doloroso êxtase ante uma grandeza que maltrata, não encontraremos em symbolos mais vivos do que no canto popular (...) (ALMEIDA, 1926, p.23-24). Na visão de Renato Almeida, o português, quando chegou ao Brasil, não entendeu os “timbres da sinfonia brasileira”, que era de alegria e de êxtase, e passou a cantar “uma canção dolorosa e melancólica”, estranhando o novo mundo e sentindo saudade da sua terra natal (ALMEIDA, 1926, p.12-13-14). Esse também será o comportamento dos filhos desses colonizadores nascidos no Brasil que buscam incorporar o “deslumbramento” do país novo, embora não consigam se desvencilhar do “traço da melancolia” (ALMEIDA, 1926, p.14). Para Almeida, mesmo nesses primeiros brasileiros, o “êxtase, por vezes, cessa, para dar lugar a tristeza e ao abatimento, que se traduzem nas cordas líricas de um sentimentalismo um pouco amargo” (ALMEIDA, 1926, p.14-15). O autor entende que aquela “dor de seus pais, perdura neles, como um tributo implacável da origem diferente ao novo mundo” (p.15), concluindo que esse “é o fundo de tristeza da psique brasileira” (ALMEIDA, 1926, p.15). Ou seja, o colonizador estrangeiro e mesmo os já nascidos no Brasil não conseguiam se adaptar ao ambiente do novo mundo, por isso eram melancólicos e não conseguiam expressar na 37 Em História da música brasileira (1926), Almeida afirma que outras formações sociais, como a espanhola e a italiana, também contribuíram com a formação da música brasileira, porém, de forma menos significativa que as outras. 88música a realidade da natureza brasileira. Nesse tocante o autor considera que a modinha seria a canção que melhor expressaria essa inadequação em relação à natureza brasileira. Transportada de Portugal para o Brasil, porém sofrendo modificações no meio brasileiro, a modinha apresenta uma melodia sentimental e apaixonada, considerada como uma “voz de magoa ou nostalgia”, em que persiste a separação entre o homem e a terra (ALMEIDA, 1921, p.35). No que concerne à contribuição indígena, Almeida considera não ser possível detalhar muito bem a sua música, tampouco as especificidades da sua formação social, uma vez que existiam poucas informações sobre a população indígena no contexto dos anos 1920. O que se conhecia eram os relatos de cronistas como os de Jean de Lery, Gabriel Soares e Cardim que, de um modo geral, afirmavam que as músicas dos índios buscavam imitar o canto dos pássaros. Porém, o autor entende que a música indígena, pelo seu ritmo “seco” e “bárbaro”, expressava o medo que o nativo sentia com relação à natureza que o cercava, medo este que se transfigurava em melancolia. Assim, a música dos indígenas Nunca se recurva em melodia e é sempre de uma severidade religiosa, sentindo-se o terror das coisas, os deuses ferozes que amedrontam. (...) Sem preconceitos, sem apegos, sem fórmulas, a música do nosso indígena era a transfiguração suprema do espírito desses sêres primitivos, extasiados ou amedrontados, pelo mysterio da natureza indecifrável. (ALMEIDA, 1926, p.27-28). Das “três raças formadoras”, Almeida considera que foi a africana que deu maior contribuição para a música brasileira (p.30-31); compreendendo-a como uma música de ritmos “fortes e coloridos” (ALMEIDA, 1926, p.31) devido aos inúmeros instrumentos de percussão. Tal riqueza rítmica presente na música de origem africana é vista como imprescindível na construção de uma musicalidade moderna. De acordo com o autor, O batuque dos negros, os recursos dos timbres, os elementos fortes e differentes de sonoridade, forma de uma riqueza admirável e, modernamente, quando a musica busca a expressão na fórmas puras dos sons, são fontes de inspiração que não seria lícito desprezar (...) (ALMEIDA, 1926, p.31-32). 89 Nesse sentido, Almeida dá maior destaque às características da música negra por ela apresentar elementos rítmicos considerados modernos, assim como pelo fato de apresentar traços de “alegria” que tinham mais a ver com a natureza brasileira, embora a melancolia persistisse como característica distintiva também desse grupo social. Após apresentar as características musicais dos três grupos que deram origem à formação social brasileira, bem como o traço da melancolia que era comum aos três grupos, Almeida passa a discutir a música popular que era feita inicialmente no Brasil. O autor destaca o caso da modinha que, embora de origem portuguesa, teria se adaptado ao Brasil e ganhado, com isso, características brasileiras. A modinha feita em nosso país teria normalmente como tema os “encantos da mata, os murmúrios dos rios, os quebrantos do luar, os mysterios das estrela” (ALMEIDA, 1926, p.35), em que persiste o desequilíbrio entre o homem e a terra, pois é melancólica. A modinha também foi cultivada e executada em salões da alta sociedade do primeiro e segundo Reinados, porém, na interpretação de Almeida, é justamente nesses ambientes que ela perde sua originalidade. Para ele, a modinha deve ser feita e cantada ao ar livre, principalmente pelos mestiços, e não em um espaço cortesão. Sendo dessa maneira, Renato Almeida a considera como uma das composições populares mais características do Brasil do século XIX. Almeida comenta, sem dar maiores destaques, outros estilos de música popular, como os lundus, fandangos, sambas, tyrannas, cuicumbys, congos, aboiados, bailes pastoris, ranchos de Reis, as cheganças, os bumba-meu-boi, os benditos (cantos religiosos), sempre enfatizando que a principal característica da música popular brasileira é a permanência da melancolia. Ao falar da música de dança, ele cita a importância do compositor Ernesto Nazareth, sugerindo que as suas composições demonstram, com “uma riqueza prodigiosa de rythmos, os característicos incertos da alma popular, humilde, atrevida, voluptosa, ardente e rústica, numa 90 música cheia de brilhos e sugestões” (ALMEIDA, 1926, p.45). Considera o maxixe como a mais característica das nossas danças, tendo como peculiaridade a sensualidade e o ritmo muito “quente”, ritmo este herdado dos africanos, e que vai constituir um dos elementos centrais da música brasileira. Outro estilo de música popular que o autor destaca é o samba de carnaval do Rio de Janeiro, pois considera que é durante o carnaval que o “espírito melancólico se desforra (...) num delírio de alegria e vibração” (p.51), alcançando a “verdadeira” essência da natureza que, para ele, é a alegria. Para Renato Almeida, o samba de carnaval, por representar um movimento febril em que a alegria, o sarcasmo, encobre qualquer tipo de melancolia, seria a música brasileira popular por excelência (ALMEIDA, 1926, p.54). Durante o carnaval, Não há mais aquelle recato em que se vive recolhido o nosso espírito, mas transbordamento, excitação, delírio. Nas notas quentes dos sambas, nos seus compassos agitados e febris, movem-se desejos, ardores e vibrações, e as dansas, maneiadas com desenvoltura, acompanham o capricho do batuque, nesse ambiente pagão e desregrado. Essa música constitue-se de motivos puramente brasileiros, sentindo-se a influencia africana que predomina. (ALMEIDA, 1926, p.52-53). Notamos, assim, que o samba, para Almeida, expressaria a “alma popular”, marcada por uma “liberdade desabusada”, e, nesse sentido, representando o “fundo inconsciente da gente, com enlevo ou zombaria, mas cheio de emoções e encanto” (ALMEIDA, 1926, p.55), o que evidencia a sensibilidade nativa brasileira, tão buscada pelo autor para acabar com a dualidade entre o indivíduo e a natureza. O samba de carnaval, na concepção do autor, merece proeminência, pois conseguia, na forma popular, unir o homem ao seu meio natural, unidade essa imprescindível na construção de uma música erudita artística brasileira. Após tecer essas considerações sobre as formas musicais populares que eram produzidas no Brasil, Renato Almeida aponta para a necessidade de os compositores eruditos, do contexto dos anos 1920, apreenderem intuitivamente essa musicalidade popular, autóctone, que estava em conformidade com o estado de “êxtase” da natureza brasileira. Em acordo com 91 os preceitos de Graça Aranha, Renato Almeida enfatiza a necessidade da música se integrar à natureza brasileira, para que posteriormente possa haver a integração da arte brasileira no concerto internacional. Agora que o espírito moderno, libertando a arte brasileira da imitação e do passadismo, procura integra-la na terra, onde estão as fontes inspiradoras que a cultura universalizará, todos esses motivos ardentes do canto popular servirão para a grande construção da nossa arte. No samba, por exemplo, a força interior e expressiva está na própria rudeza e na sua liberdade desabusada. Exprime a alma popular, o fundo inconsciente da gente, com enlevo ou zombaria, mas cheio de emoção e encanto. (ALMEIDA, 1926, p.55). Se com essa colocação, Almeida sugere que a música popular poderia ser percebida intuitivamente por compositores eruditos, que estivessem comprometidos com o projeto nacional, o critério que orienta sua História da música é a intuição da natureza, presente em manifestações musicais populares como o samba. Assim, com o intuito de localizar na tradição musical brasileira os momentos em que os compositores tentaram de alguma forma compor levando em conta a intuição da natureza brasileira, Renato Almeida reconstitui o que ele chama de história da música erudita brasileira.No capítulo “A música brasileira no começo do século XIX”, Almeida inicia afirmando que a vinda de D. João VI foi uma predestinação para a história brasileira, momento em que houve o florescimento do movimento de independência, na colônia. A partir disso, as coisas do espírito passaram a ser valorizadas na colônia, abrindo-se as primeiras escolas superiores, que vão possibilitar o desenvolvimento das artes locais. Em 1815, ocorre a fundação da Escola de Belas Artes, para onde vieram Joaquim Lebreton, João Baptista Debret e outros artistas franceses, com objetivos pedagógicos (ALMEIDA, 1926, p. 60-61). Porém, nesse período, a música não teve o mesmo incentivo que houve para as artes plásticas. Antes de D. João VI, a música feita na colônia era basicamente de caráter religioso e tinha como destaque padre Manoel da Silva Rosa, sendo que, no canto popular, a principal figura do período foi a de Gregório de Mattos (ALMEIDA, 1926, p.62-63). Na concepção de Renato 92 Almeida, é com D. João VI que se inicia o primeiro período da música brasileira, sobretudo na presença do padre compositor José Maurício (1767-1830). Nascido no Rio de Janeiro, José Maurício ganha destaque por ser nativo e de origem mestiça, o que o coloca na condição da primeira “afirmação poderosa do espírito brasileiro” (ALMEIDA, 1926, p.68). Gregório de Mattos também é destacado por Almeida como um grande artista do período, sobretudo como poeta, embora “bárbaro” e “desabusado”. Contudo, pelo fato de Gregório de Mattos ter adquirido sua formação intelectual no exterior, principalmente em Portugal, assim como outros artistas do período colonial, como Mathias Ayres, Basílio da Gama, Santa Rita Durão e os Árcades, ele tem seu valor diminuído quando analisado sobre um critério de nacionalidade. Nesse sentido, José Maurício, como nunca havia saído do Brasil, será considerado como o inaugurador da música erudita no Brasil, principalmente pelo fato de ter criado “uma obra que ultrapassa de muito o seu meio. A prova é que não teve discípulo, nem continuadores (...)” (ALMEIDA, 1926, p.71), embora tivesse sofrido influências principalmente da música erudita alemã, como Bach, Mozart e Haydn. Situando historicamente os compositores eruditos que tiveram importância para a formação da música brasileira, Almeida aponta o compositor Francisco Manuel da Silva (1795-1865) como um segundo nome de relevância histórica; embora este fosse considerado menor se comparado a José Maurício. Na interpretação de Almeida, o compositor teve um papel importante por ter feito o Hino nacional brasileiro e também pelo desenvolvimento do ensino musical do Brasil. Outro compositor destacado é o imperador D. Pedro I, que compôs o hino da independência, com letra de Evaristo da Veiga. O período do romantismo musical é descrito por Renato Almeida como sendo o da revolta do indivíduo contra a sociedade, levando, dessa forma, à “hipertrofia do eu” e a um “devaneio da personalidade” (ALMEIDA, 1926, p.79). Nessa direção, o autor afirma que o romantismo iniciado no Brasil, em 1830, já convivia com um povo romântico, que acreditava 93 “ingenuamente” na natureza, e tinha a melancolia como principal traço característico. Na leitura que faz da história da música no período romântico do Brasil, Almeida diz que foi Carlos Gomes (1839-1896) o grande destaque como compositor nacional. É o compositor mais consagrado, interna e externamente. Para o autor, Carlos Gomes estava talhado para ser o criador da musica brasileira, não no sentido de uma arte regional, que é sempre menor, mas com a grandeza dos motivos nacionais, sentidos através da cultura, porque, no final, a arte é aquele depoimento do coração humano, que deve dominar o tempo e o espaço, ser perpetuo e universal (ALMEIDA, 1926, p.85). Renato Almeida compara, na esteira de Graça Aranha (ALMEIDA, 1926, p.85), o compositor Carlos Gomes com o escritor José de Alencar, considerando-os como os dois artistas que buscaram a independência musical e literária do Brasil, respectivamente. Assim, afirma que ambos buscaram os motivos de suas obras no ambiente do Brasil, e não em outros lugares. Carlos Gomes, No Guarani, pretendeu criar o indianismo na música, a guisa do Alencar e Gonçalves Dias, despertando a terra, na evocação do autóchtone, assim tornado, embora em falso, o symbolo da nossa gente (...) fazendo-o desprezar as vozes da terra, ou compril-as nos moldes da „arte‟, sacrificando a intenção á forma. (ALMEIDA, 1926, p.86-87). Na concepção do autor em questão, Carlos Gomes acabou compondo sua obra na forma italiana, o que lhe teria tirado a “graça” e o “interesse”. Em outras palavras, o sucesso alcançado por Carlos Gomes na Europa fez com que este compositor passasse a compor em “moldes italianos”, o que o levou a deixar de lado os “motivos nacionais” (ALMEIDA, 1926, p.89). Nessa mesma perspectiva, analisando os compositores a partir de um critério de nacionalidade, o músico Leopoldo Miguez (1850-1902) é visto como um imitador de Wagner, não tendo grande importância nacional; entretanto, tendo como relevância o “domínio da eloqüência” e o fato de ser “um sinfonista de mérito e brilho”. Esse tipo de avaliação feita por Almeida dos compositores brasileiros revela como os modernistas descaracterizavam os 94 compositores de uma determinada época que não aparentavam seguir os seus critérios de valor, no caso, o nacional: “Nossos artistas em geral, se deixaram escravizar nas escolas alheias, em cujas fronteiras assentam tendas, contentando-se com os horizontes que os outros rasgaram” (ALMEIDA, 1926, p.92). Outro compositor destacado na História da música brasileira é Alexandre Levy (1864-1892). Segundo Almeida, esse compositor faz uma música cheia de emoção e melancolia, sendo um folclorista de grande valor musical. Influenciado por Schumam, Levy era um “romântico apaixonado” que “olhava” o mundo com melancolia. Almeida enfatiza a série Schumanniana para piano de Levy, afirmando que este “Ama as coisas silenciosamente, mas com uma tortura do infinito, que é ânsia e nostalgia...” (ALMEIDA, 1926, p.101). A geração que se firmou a partir de 1890 é exaltada por Renato Almeida, visto que este considera que é nesse momento que começa a se desenvolver uma música com características próprias do país. Nesse contexto, destaca o compositor Alberto Nepomuceno (1864-1920), músico que combateu as imitações estrangeiras e que buscou criar sua música mais próxima do ambiente da “nossa natureza”. Nas palavras de Almeida, embora não tivesse atingido a “arte nacional”, Nepomuceno “foi um precursor deixando em sua obra a gênesis desse esforço ousado e trágico, que já sentimos vingar. Apareceu em uma época de fraco brasileirismo”. Tal compositor é também elogiado pelo fato de ter lutado para que o canto fosse feito na língua portuguesa. Embora feitas as ressalvas da importância do compositor cearense, Almeida passa-o pelo seu crivo nacionalista, afirmando que Nepomuceno “procurou ser brasileiro apenas nos motivos e pela inspiração, colocando a sua emotividade nova dentro de velhos moldes, onde não raro a intenção se sacrificou” (ALMEIDA, 1926, p.119). Nessa perspectiva, o compositor Henrique Oswald é considerado o menos brasileiro dos músicos brasileiros contemporâneos a Almeida, sua importância, entretanto, estaria no fato de trazer para a música o sentido do equilíbrio e da medida. Na ótica de Almeida, a 95 música de Oswald não “se harmoniza com o cenário deslumbrante do Brasil. [A sua música] não é feita na natureza, ao ar livre, mas nas doces intimidades, nos ambientes discretos, onde a luz, coada, tamizada e diffusa, tem jogos singulares (...)” (ALMEIDA, 1926, p.124). Henrique Oswald é visto como um artista “fino”, em busca da perfeição formal, o que, na interpretação de Almeida, estaria em desarmonia com as características “desmedidas”do brasileiro. Nessa linha de interpretação, Renato Almeida narra a história da música feita no Brasil afirmando que esta ainda não se constituía como nacional, embora houvesse uma quantidade grande de compositores que buscassem fazer a integração entre o indivíduo e a natureza, ligação essencial para se chegar à música nacional, porém, sem sucesso, como Francisco Braga, Barroso Netto, Arthur Napoleão, para citar alguns. Na opinião de Almeida, somente os compositores dos anos 1920 estavam realizando, de fato, a tarefa de unir a música à natureza brasileira. Este era o caso de Heitor Villa-Lobos, considerado o primeiro compositor que soube transformar, pela emoção intuitiva, a natureza em arte. Por isso, a sua música, além de conseguir ser autenticamente brasileira, também conseguia se universalizar. Almeida é muito enfático ao apontar o feito de Villa-Lobos: Si precisássemos de uma viva e fulgurante demonstração pelo que vimos insistindo nesse ensaio, sobre a influencia do meio na obra de arte, a musica do Snr. Villa Lobos nos daria a mais absoluta. Sem ser um simples paisagista, que copiasse a natureza, nem um folk-lorista, que vivesse aproveitando os motivos populares para estilizações, sendo antes de uma personalidade exorbitante, o Snr. Villa Lobos tem a animar sua arte o espírito da terra, no fulgor da natureza, na melancolia do homem, enfim na incerta psyche brasileira, a um tempo audaciosa e tímida, violenta e retraída.” (ALMEIDA, 1926, p.169-70). Ao afirmar, nessa passagem, Heitor Villa-Lobos como o compositor que melhor representaria a música moderna no Brasil, Renato Almeida evidencia o que para ele seria fazer uma música erudita brasileira. Na sua interpretação, é preciso que o compositor moderno incorpore o “meio”, a “natureza” em que vive na obra artística, contudo, não como 96 fazem um “paisagista” ou um “folclorista”, que retratam a natureza objetivamente, em sua “aparência”. Seria preciso apreender o “espírito da terra”, ou seja, a própria “subjetividade” da natureza brasileira. Somente realizando essa tarefa, o músico estaria compondo música nacional. Com a construção historiográfica centrada na seqüência dos compositores selecionados, Renato Almeida deixa evidente o modo como compreendia a formação da música brasileira, bem como aponta para o seu projeto de nacionalização dessa mesma música. Isso fica evidente na seguinte passagem: A música não tem que contar, nem desenhar, nem modelar. Não é descritiva, nem plástica. A música é sugestão apenas e deve permitir um ambiente de interpretação, em que a alma humana, liberta e exaltada, sinta a vida, pelo mais intenso gozo estético. A essência da musica é a musica, pairando acima das coisas, dominando-as e elevando-se pelo prestigio do som, incompreensível e misterioso. É certa a palavra de Wagner – quando as outras arte dizem “isto significa”, a música diz: “isto é”, porque ella penetra a realidade e cria, pela emoção, um mundo sensível mais alto e mais integral. As demais artes, insiste Nietzsche, são as artes da apparencia, do phenomeno, do sonho. A música surpreende e traduz o noumeno. Sendo, portanto, a mais absoluta das artes, ao menos para o espírito contemporâneo, é aquella que deve ser a mais liberta, para melhor realizar o desejo de nossa inquietação que volve à intelligencia, depois de desilludida pelo instincto. (ALMEIDA, 1926, p.145-46). Nesse sentido, para Almeida, a música moderna não deve ser um “simples efeito de artifício” que somente se preocupa com a matéria e se esquece do espírito. O compositor, para ele, não deve ser um artífice, ou seja, aquele que utiliza de regras pré-estabelecidas para fazer arte, tendo, com isso, uma liberdade restrita. Ao contrário, o compositor deve ser um artista, que não entenda as coisas somente pelo seu lado objetivo, “mas tantas quantas o espírito entender, na sua emotividade livre” (ALMEIDA, 1926, p.154). Com isso, para Almeida, o músico tem que compreender que o subjetivismo é “da essência da arte”, o que não significa que ele deva ser exagerado, como aconteceu no romantismo; mas que o conhecimento da realidade somente é possível ao indivíduo a partir do momento em que ele é capaz de apreendê-la pela via emotiva, neste caso, pela intuição estética. 97 3.2. Os livros de Mário de Andrade O Ensaio sobre a música brasileira, de Mário de Andrade, é publicado em 1928, dois anos após o lançamento de História da música brasileira, de Renato Almeida. Ao observarmos o livro no contexto do debate modernista sobre a formação da música brasileira é possível afirmar que o Ensaio é escrito, muito provavelmente, levando em conta as discordâncias de Mário de Andrade em relação à proposta de Renato Almeida para a nacionalização da música. Nesse sentido, escrito na forma de um manifesto, o Ensaio visava antes de tudo indicar objetivamente, e não “filosoficamente” como pretendia a História de Renato Almeida, aos compositores quais eram as normas de compor da música popular que deveriam ser utilizadas na elaboração de uma música erudita nacional brasileira. No Ensaio sobre a música brasileira, Mário de Andrade afirma que não havia uma música erudita brasileira, pois, segundo ele, não se tinha ainda uma entidade nacional propriamente dita no Brasil. Tal afirmação nos remete à sua visão de que, embora houvesse um país com marcos territoriais, que se tornou independente em termos políticos, em 1822, ainda não havia uma sociedade plenamente constituída no Brasil em termos de nação até a segunda década do século XX, bem como não havia uma música que pudesse ser considerada nacional, em virtude da manutenção da dependência cultural em relação à Europa, herdada do período colonial. A partir dessa compreensão, Andrade entende que os elementos que formavam a música erudita durante todo o período monárquico ainda continuavam sendo estrangeiros, da mesma forma que a música popular produzida no país não formava ainda uma “unidade” que pudesse levá-la a ser considerada como brasileira. Na sua interpretação, somente com o fim do Segundo Reinado é que começam a aparecer embrionariamente os primeiros caracteres da música erudita brasileira. No entanto, no Ensaio sobre a música brasileira, considera que a obra dos artistas eruditos do período monárquico deve ser vista com valor nacional para a construção da música erudita brasileira, ainda que essa obra não 98 incorporasse os elementos folclóricos, justamente porque estes apenas assumem importância no contexto modernista. Nessa delimitação que faz dos primórdios da formação da música brasileira, Andrade dirige uma crítica ao modo como alguns modernistas, dentre eles Renato Almeida, vinham insistindo em desconsiderar tais artistas do período monárquico, avaliando-os como não “nacionais”. Para o autor paulista, esse tipo de censura aos compositores do passado estava de acordo com o olhar estrangeiro e levava a confundir “o destino dessa coisa séria que é a Música Brasileira com o prazer deles [estrangeiros], coisa diletante, individualista e sem importância nacional nenhuma” (ANDRADE, 2006, p.11). O estrangeiro, para Andrade, por não ter como preocupação a defesa do patrimônio nacional, buscava somente o exótico, “o jamais escutado em música artística, sensações fortes, vatapá, jacaré, vitória-régia” (ANDRADE, 2006, p.11). Nesse sentido, a opinião do europeu, pelo fato de contribuir para a “falsificação” da entidade brasileira, não deveria ser considerada pelos intelectuais modernistas na elaboração do projeto de renovação artística. Para Mário de Andrade, a Europa, como já se encontrava num estágio de “civilização”, estava buscando “elementos estranhos” em outras partes do mundo. Nas suas palavras: Como a gente não tem grandeza social nenhuma que nos imponha ao velho mundo, nem filosófica que nem a Ásia, nem econômica que nem a América do Norte,o que a Europa tira da gente são elementos de exposição universal: exotismo divertido. Na música, mesmo os europeus que visitam a gente persevera nessa procura do esquisito apimentado. Si escutam um batuque brabo mesmo que bem, estão gozando, porém se é modinha sem síncopa ou certas efusões líricas dos tanguinhos de Marcelo Tupinambás, Isso é música italiana! Falam de cara enjoada. E os que são sabidos se metem criticando e aconselhando, o que é perigo vasto. (ANDRADE, 2006, p.12-13). Nessa direção, o autor de Macunaíma também rechaça o caráter étnico como critério de julgamento exclusivo na elaboração de seu projeto musical. Para ele, toda música produzida no país “quer tenha quer não tenha caráter étnico” poderia ser, a princípio, 99 considerada como música brasileira (ANDRADE, 2006, p.14). Assim, partindo dos primeiros compositores do período colonial até os do contexto dos anos 1920, Mário de Andrade vai perseguindo como o elemento nacional, esse “não-sei-quê vago”, aparecia em certos compositores ao longo da história. A partir dessa interpretação evolutiva, o autor consegue, em seu projeto nacional, não apenas descrever uma história da formação da música brasileira, como ainda valoriza o período da década de 1920, concebendo-o como o estágio mais atual, daí a necessidade da nacionalização das artes. Por isso, enfatizava, no Ensaio, que o músico que fosse desse período deveria fazer necessariamente música atual, ou seja, nacionalista. Essa concepção de arte moderna fica mais clara na seguinte passagem, em que o autor diz: Estamos procurando conformar a produção humana do país com a realidade nacional. E é nessa ordem de idéias que justifica-se o conceito de Primitivismo 38 aplicado as orientações de agora. É um engano imaginar que o primitivismo brasileiro de hoje é estético. Ele é social. (ANDRADE, 2006, p.15). É a partir da concepção de que a formação da música brasileira tem uma “nacionalidade evolutiva e livre” que Mário de Andrade escreve também o seu Compêndio de história da música, dedicado a Renato Almeida. Publicado pela primeira vez em 1929, tendo ainda duas edições homônimas, mudando de título, em 1942, passando-se a se chamar Pequena história da música 39 , o Compêndio começou a ser escrito na primeira metade da década de1920 com a finalidade de proporcionar um material didático sobre história da música 40 aos alunos do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, onde Mário de Andrade lecionava. 38 Mário, nesta parte da obra, fala da polêmica de Oswald de Andrade e Graça Aranha; exatamente como aparece na correspondência entre ele e Renato Almeida. 39 Utilizamos, nesta dissertação, a versão da Pequena história da música. Belo Horizonte: Itatiaia, 2003. 40 Em carta para Manuel Bandeira, Mário descreve essa obra da seguinte forma: “Vou fazer um livreco. Pra aluno conservatorial. Tudo sínteses, História da “manifestação” musical através dos tempos até agora. Desde os primitivos (pretexto pra falar dos índios do Brasil) até Villa Lobos e Strawinski. Capitulinhos claros quanto possível e de leitura corrente. Grande número de ideografias, arvores genealógicas etc. pra fixar no aluno os períodos e as personagens representativas deles. Brasil o quanto possível” (ANDRADE, 1967, p.146). 100 Em Pequena história da música, Mário de Andrade apresenta brevemente ao leitor o que, na sua visão, constituiria a história da formação da música ocidental. O livro é composto por treze capítulos que obedecem a seguinte ordem evolutiva: “Música Elementar”, “Música da Antiguidade”, “Monodia Cristã”, “Polifonia Católica”, “Início da Música Profana”, “Melodrama”, “Polifonia Protestante”, “Música Instrumental” “Classicismo”, “Romantismo”, “Música Erudita Brasileira”, “Música Popular Brasileira” e “Atualidade”. Em termos gerais, Mário de Andrade quer mostrar que o desenvolvimento da música universal sempre seguiu o desenvolvimento social mais amplo. Nesse sentido, o autor entende que a música “primitiva” seria a menos rica em possibilidades estéticas, não “a menos importante nem a menos estimada, mas a menos livre, a menos aproveitada em suas potencialidades técnicas e artísticas”, por ser aquela que tem a função social de integrar os habitantes (ANDRADE, 2003, p.12). Com esse raciocínio evolutivo, Andrade entende que quanto mais a música se desenvolve, ao longo da história, mais ela deixa de ter uma função social, de integrar as pessoas na sociedade, para passar a ter uma preocupação somente estética - algo conseguido, como aparece na obra, no período do Classicismo do século XVIII, período em que a música “não tem outra significação mais do que ser música” (ANDRADE, 2003, p.117). Na concepção do autor, para a existência de música esteticamente livre, foi preciso que ocorresse, ao longo da história, uma organização de técnicas (ritmo, melodia, harmonia), de escalas etc, para que ela passasse a reunir valor estético. Com a compreensão do desenvolvimento social da música universal, Mário de Andrade procura mostrar na Pequena história da música a formação da música brasileira, especialmente nos capítulos “Música Erudita Brasileira” e “Música Popular Brasileira”; ainda 101 que as noções da formação da música brasileira postas nesses dois capítulos já estivessem, de certo modo, colocadas no Ensaio sobre a música brasileira, de 1928 41 . No capítulo “Música Erudita Brasileira”, Mário de Andrade inicia afirmando que “A música erudita no Brasil foi um fenômeno de transplantação”, considerando que até a primeira década do século XX ela ainda refletia “um espírito subserviente de colônia” (ANDRADE, 2003, p.163). Essa situação de subserviência mudaria, na interpretação de Andrade, a partir da Primeira Guerra Mundial, quando um “estado de espírito novo” passa a vigorar, com o surgimento da idéia de diferentes nacionalidades. Ao apontar isso, o autor volta-se para pensar no passado musical brasileiro, de forma semelhante a de Renato Almeida em sua História da música brasileira. Porém, para Andrade, ao contrário de Almeida, o que determinaria a existência, ou não, de uma noção de nacional nos compositores eruditos relacionava-se não ao indivíduo (no caso de Almeida ao indivíduo criador que conseguisse integrar a música à natureza brasileira), mas ao momento histórico. Portanto, o centro da análise de Mário de Andrade não é tanto o papel dos compositores, mas em que condições os mesmos poderiam exercer os seus ofícios. É a partir dessa compreensão, de que o autor está inserido em um contexto histórico-social, que Mário de Andrade descreve a importância dos compositores brasileiros. Isso fica claro na passagem abaixo: Nós hoje não podemos nos inspirar nas obras de Carlos Gomes. Só a vida e as intenções dele podem nos servir de exemplo. A nossa música [nacionalista] será totalmente outra, e dela os traços de Carlos Gomes têm de ser abolidos. Si os moços o desprezarem, afinal de contas está sempre certo, porque as exigências da atualidade brasileira não têm nada que ver com a música de Carlos Gomes. Mas além dessa atualidade moça, tão feroz, existe a realidade brasileira que transcende às necessidades históricas e passageiras das épocas. E nessa realidade, Carlos Gomes tem uma colocação alta e excepcional. (ANDRADE, 2003, p.179, grifos do autor). 41 Essas noções de evolução da música brasileira ganharão uma melhor elaboração no artigo “Evolução Social da Música no Brasil”, publicado em 1941. 102 No capítulo “Música Popular Brasileira”, Mário de Andrade descreve o desenvolvimento da outra corrente musical existente no Brasil, a da música popular. A respeito desta, afirma que, no contexto dos anos 1920, se conhecia muito pouco sobre a produção da música popular. Assim como Almeida, ele tambémconsidera que esta música tem como origem as cantigas dos portugueses, africanos, ameríndios e também dos espanhóis. O autor defende a idéia de que é preciso que se façam pesquisas para se conhecer essa música própria do país, pois o desconhecimento da música popular significava desconhecimento das tradições folclóricas brasileiras, como afirma no seguinte trecho: Muito mal está fazendo a falta de cultura tradicional, a preguiça em estudar, a petulância mestiça com que os brasileiros, quer filhos d‟algo, filhos de bandeirantes ou de senhores de engenhos, quer vindos proximamente de italianos, de espanhóis, de alemães, de judeus russos, se consideram logo gênios insolúveis, por qualquer habilidade de canário que a terra do Brasil lhes deu. Nos consola é ver o povo inculto criando aqui u‟a música nativa que está entre as mais belas e mais ricas. Pois colhendo elementos alheios, triturando-os na subconsciência nacional, digerindo-os, amolando-os, deformando-os, se fecundando, a música popular brasileira viveu todo o séc. XIX, bem pouco étnica ainda. Mas no último quarto do século principiam aparecendo com mais freqüência produções já dotadas de fatalidade racial. (ANDRADE, 2003, p.190-191). Ao afirmar a importância da música popular brasileira para a construção da música erudita brasileira, Mário de Andrade defende a necessidade da pesquisa do nacional através de um programa para o Brasil: Na conduta dum Stravinski, dum Schoenberg, dum Pizzetti, dum Manuel de Falla, o elemento nacional entra com fatalidade e não como programa. A pesquisa do caráter nacional só é justificável nos países novos, que nem o nosso, ainda não possuindo na tradição de séculos, de feitos, de heróis, uma constância psicológica inata. (ANDRADE, 2003, p.195, grifos nossos). O que caracterizava a fase musical do contexto dos anos 1920 era a polifonia, sobretudo anti-harmônica 42 , que teve em a Sagração da Primavera e Petruchcka, de Igor 42 Para Mário de Andrade, Debussy foi quem proporcionou a destruição da harmonia, “A harmonia se baseia na tonalidade, isto é, numa escala conforme certas exigências acordais que provocam hierarquia entre os graus. A harmonia é o reino do Dó maior” (ANDRADE, 2003, p.197). 103 Stravinski, as maiores obras primas. Tais composições buscavam incorporar sons e instrumentos diferentes daqueles usados tradicionalmente pela orquestra sinfônica até então. Nesse sentido, fazia-se necessário a introdução de elementos da música popular na composição erudita brasileira, para que esta fosse considerada atual e moderna. Entretanto, como essa música popular era desconhecida e muitas vezes negligenciada pelos compositores, historiadores e musicólogos, Mário de Andrade formaliza um projeto que visa orientar a pesquisa e coleta empírica dessa música popular brasileira, como aparece, em 1928, no Ensaio sobre a música brasileira. No referido livro, o período dos anos 1920 é entendido como fazendo parte de uma “fase socialmente primitiva”, que deveria ter uma arte que expressasse o seu momento histórico, ou seja, uma arte que estivesse em busca de elementos sociais e, portanto, nos termos do modernista paulista, uma arte “interessada”. Assim, os compositores desse período também deveriam fazer música “interessada”, nacional; os que não fizessem música de caráter nacionalista eram entendidos como não pertencentes à atualidade e, por isso, não eram considerados importantes para esse período histórico, porque faziam uma música “desinteressada”, “individualista”, que buscava somente o interesse estético. Nas palavras de Mário de Andrade: O critério atual da Música Brasileira deve ser não filosófico mas social. Deve ser um critério de combate. A força nova que voluntariamente se disperdiça por um motivo que só pode ser indecoroso (comodidade própria, covardia ou pretensão) é uma força antinacional e falsificadora. (ANDRADE, 2006, p.15). A partir dessa colocação, Mário de Andrade faz uma convocação aos compositores, musicistas, historiadores e musicólogos para pesquisarem as diferentes formas da música popular, pois somente através de pesquisa empírica e da coleta de material primário seria possível fazer arte nacional que tivesse “utilidade prática” para o Brasil. Assim, para Mário de Andrade, o critério estabelecido por Renato Almeida, para quem a música nacional poderia 104 ser construída somente por vias emocionais, pela intuição que o compositor deveria ter em contato com o estado de êxtase da natureza tropical que o circundava, seria ineficaz para a nacionalização da música feita no Brasil, uma vez que, o conhecimento do “nacional” só poderia acontecer pela pesquisa empírica do folclore e não pela intuição da natureza. Dessa forma, para Mário de Andrade, somente após a uma ampla pesquisa das composições populares em todo o Brasil, bem como da análise de seus procedimentos estéticos estruturais, seria possível escrever uma música erudita nacional. Portanto, fica evidente que na sua interpretação a música nacional seria construída após um rigoroso trabalho de pesquisa, que pudesse “encontrar” na diversidade de composições populares o elemento “nacional”. Uma questão que nos parece importante e que muitas vezes não é tratada em trabalhos acadêmicos é a questão da transitoriedade das proposições sobre música nacionalista de Mário de Andrade. No entendimento do autor de Macunaíma, esse critério de nacionalização da arte fazia sentido naquele contexto histórico do modernismo, como podemos perceber nas suas palavras: “(...) um critério assim é ineficaz pra julgar qualquer momento histórico. Porquê transcende dele. E porque as tendências históricas é que dão a forma que as idéias normativas revestem” (ANDRADE, 2006, p.16). Destarte, para Mário de Andrade, é aquela atualidade dos anos 1920-30 que estabelece o critério para a música brasileira, por isso a música do seu momento deveria ser nacionalista, porque a própria conjuntura histórica era nacionalista. Mário de Andrade adverte aqueles ligados à música no período modernista da necessidade de se pesquisar o cancioneiro popular, e cita 122 melodias dele que, segundo o autor, honrariam a nacionalidade pela sua originalidade. Assim, busca persuadir seus leitores de que a pesquisa desse acervo constituía condição para se fazer música nacional no Brasil. Mobilizando-o, o artista deveria alargar as suas idéias estéticas para não fazer algo ineficaz, o que significa não ser nem exclusivista nem unilateral; ou seja, o artista teria que trabalhar com temas brasileiros, principalmente na fase em que ele se encontra, mas não de forma excessiva 105 e exclusiva. Para evitar a unilateralidade, por exemplo, o artista brasileiro deveria evitar a visão de que a nossa música deve sair ou somente dos índios, ou somente dos africanos ou somente dos portugueses. Ao contrário disso, o artista deve entender que é justamente da mistura desses elementos de origens diferentes que se forma a musicalidade étnica brasileira. Na análise que faz sobre as formas e as técnicas da música popular no Ensaio sobre a música brasileira, Mário de Andrade considera o ritmo o elemento mais característico dessa musicalidade popular, principalmente por causa da sincopa 43 . Segundo o autor, a sincopa é uma constante da música brasileira que ocorre de forma inconsciente na música popular. Sendo um padrão rítmico rico, é de responsabilidade do artista brasileiro compreender essa realidade da música popular e a desenvolver. Em vista disso, ele cita o compositor Heitor Villa-Lobos como o exemplo que soube utilizar o sincopado e o desenvolvimento da manifestação popular. Porém, Mário de Andrade deixa claro que a música artística é o desenvolvimento do fenômeno popular, portanto não deve se restringir a utilização da sincopa, pois, se isso ocorre, amúsica artística “cai no fácil, no conhecido e excessivo característico” (ANDRADE, 2006, p.30). Outro elemento importante abordado pelo autor são os movimentos rítmicos e melódicos que são específicos da música popular. Nas suas palavras: Isso é uma riqueza com possibilidades enormes de aproveitamento. Si o compositor brasileiro pode empregar a sincopa, constância nossa, pode principalmente empregar movimentos melódicos aparentemente sincopados, porém desprovidos de acento, respeitosos da prosódia, ou musicalmente fantasistas, livres de remeleixo maxixeiro, movimentos enfim inteiramente pra fora do compasso ou do ritmo em que a peça vai. Efeitos que além de requintados podem, que nem no populário, se tornar maravilhosamente expressivos e bonitos. Mas isso depende do que o compositor tiver pra nos contar... (ANDRADE, 2006, p.29). 43 Sincopa seria o “padrão rítmico em que um som é articulado na parte fraca do tempo ou compasso, prolongando-se pela parte forte seguinte” (definição retirada do Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa). 106 Com relação à melodia da música popular, Andrade aponta que a sua utilização erudita pode ser problemática se for empregada para imitar a forma popular, o que ocasiona o empobrecimento da expressão artística. No entanto, a própria expressão musical deve ser controlada pelo compositor erudito, na medida em que ele está compromissado com a composição de uma música nacionalista. A passagem abaixo esclarece a visão do autor: Todos os tesouros de expressão musical que nos dera Lasso, Monteverdi, Carissimi, Gluck, Beethoven, Shumann, Wagner, Wolff, Mussorgski, Debussy, Strauss, Pizzetti, Honnegger etc. etc. que se confinaram mais pro lado da expressão musical psicológica, têm que ser abandonados pelo artista brasileiro pra que ele possa fazer música nacional. Ou o compositor faz música nacional e falsifica ou abandona a força expressiva que possui, ou aceita esta e abandona a característica nacional. (ANDRADE, 2006, p.31). Essa passagem do Ensaio ilustra bem o pensamento de Mário de Andrade acerca do papel da expressão artística na formulação do projeto nacionalista. Uma vez que estivesse comprometido com a música nacional, o compositor deveria controlar a sua expressividade, em grande parte calcada em cânones europeus, no sentido de poder compor a partir dos elementos brasileiros que a melodia popular lhe oferecesse. Nesse sentido, o compositor assumia uma responsabilidade no projeto nacionalista de Mário de Andrade, que era a de “ambientar” o público ouvinte a compreender a nacionalidade contida na música popular. Para ele, “(...) esta ambientação não implica liberdade individual nem muito menos ausência de caráter étnico” (ANDRADE, 2006, p.33). Mas, Mário de Andrade considera que o compositor enfrentará grandes dificuldades para realizar essa tarefa, devido à sua própria formação musical provinda de escolas de música que seguiam a tradição cultural européia. Tal formação limitaria o artista a escrever e compor obedecendo a essa tradição, o que dificultaria a sua mudança de pensamento. Desse modo, Andrade defende a idéia de que é preciso contrariar o hábito por uma convicção intelectual nova, afirmando que o “individuo que está convicto de que o Brasil pode e deve ter música própria, deve de seguir essa 107 convicção muito embora ela contrarie aquele hábito antigo pelo qual o indivíduo inventava temas e músicas via Leoncavallo-Massenet-Reger” (ANDRADE, 2006, p.34, nota 1). Outro aspecto explorado por Mário de Andrade que merece destaque é o da harmonia popular. Para ele, como a harmonização apresenta pouca importância na música popular, a música artística não poderia se restringir aos processos harmônicos populares, pois estes são muito pobres. Nesse sentido, a harmonia precisa ter um desenvolvimento erudito que coincida com a harmonização européia. Andrade afirma que se ocorresse algo contrário a isso, também seria de origem européia, pois “cair-se-ia” no atonalismo e na pluritonalidade modernos. De acordo com o autor, a harmonização européia não tem nacionalidade e seria um absurdo ter a pretensão de se criar uma harmonia tipicamente brasileira (ANDRADE, 2006). O Ensaio sobre a música brasileira traz ainda informações sobre os tipos de instrumentos usados pelos cantadores e grupos de música popular. Segundo Andrade, a maioria dos instrumentos usados é de origem estrangeira, mas isso não impede que tenham assumido características nacionais. Da mesma forma, refere-se à peculiaridade da “timbração anasalada da voz dos cantadores assim como dos instrumentos tocados no Brasil” que, em sua opinião, são tipicamente brasileiros (ANDRADE, 2006, p.44). No sentido de valorizar o tipo do canto nasalado encontrado de um modo geral no país, Mário de Andrade diz: (...) é perfeitamente ridículo a gente chamar essa peculiaridade da voz nacional, de falsa, de feia, só porquê não concorda com a claridade tradicional da timbração européia. Ser diferente não implica feiúra. Tanto mais que o desenvolvimento artístico disso pelo cultivo pode fazer maravilhas (...) São manifestações nacionais que nossos compositores devem de estudar com carinho e das quais, si a gente possuísse professores de canto com interesse pela coisa nacional, podia muito bem sair uma escola de canto não digo nova, mas apresentando peculiaridades étnicas de valor incontestável. Nacional e artístico. (ANDRADE, 2006, p.44-45). Tendo isso em vista, Mário de Andrade, diagnostica, em suma, dois motivos que dificultam a fixação e a generalização de formas nacionais para a construção da música brasileira: “a dificuldade de estudo do elemento popular e o individualismo bastante ridículo 108 do brasileiro” (ANDRADE, 1962, p.70). Tais motivos ocorrem devido à “falta de cultura nacional” no meio musical brasileiro, o que leva os compositores a se restringirem ou ao simples regionalismo ou à imitação das músicas internacionais. Para solucionar esse problema, Andrade aponta para a necessidade da criação de escolas brasileiras de música que ensinem aos compositores como trabalhar com o “populário” nacional. 3.3. História da Música Brasileira - 2ª Edição Com a publicação da segunda edição de História da música brasileira, em 1942, encerra-se o debate interpretativo sobre o modernismo musical entre Renato Almeida e Mário de Andrade, iniciado em 1922. Se nossa interpretação estiver correta, podemos dizer que na segunda edição da obra de Almeida formaliza-se a sua adesão ao programa normativo de Mário de Andrade, programa este que defendia a pesquisa e coleta do material musical popular para a nacionalização da música feita no Brasil. Em termos mais amplos, a conversão de Almeida ao programa normativo musical de Mário de Andrade significa o abandono de uma determinada visão do modernismo brasileiro que valorizava formas intuitivas, não analíticas, de compreender a realidade nacional, tal como ele defendia em 1926, na primeira edição de História da música brasileira. Nesse sentido, Almeida estaria renunciando aos princípios filosóficos de A estética da vida, de Graça Aranha, que davam base à sua obra, para defender o estabelecimento de instrumentos analíticos para a apreensão da nacionalidade, tal como aparece no projeto musical de Mário de Andrade. Após sua aproximação ao projeto musical marioandradiano, Renato Almeida passará a assumir um papel de destaque tanto no campo da história da música e da musicologia, quanto no dos estudos sobre folclore. Essa mudança de enfoque da obra de Renato Almeida reflete, num certo sentido, um movimento maior que se processava no próprio interior do movimento modernista, que passava a valorizar os estudos sobre o folclore e a etnografia como meios 109 privilegiados de se apreender “a unidade nacional” (MORAES, 1990). Nessadireção, Moraes esclarece que A idéia de uma unidade cultural da nação, que amadurecerá em Mário de Andrade no contato com os estudos etnográficos e folclóricos, tendia a absorver e a neutralizar a percepção de diversidade que passava a aparecer como a face superficial e menos verdadeira de uma realidade considerada mais íntima. (MORAES, 1990, p. 75). Não deve passar despercebido o fato dessa aproximação ao projeto musical marioandradiano com a segunda edição da História da música brasileira, “corrigida e aumentada”, ter sido objeto da aprovação do próprio Mário de Andrade. Em artigo publicado ainda em 1942, Mário de Andrade exalta o livro de Renato Almeida, dizendo que: A música brasileira acaba de se esclarecer em sua história com um volume notabilíssimo em muitos sentidos, a segunda edição, totalmente remodelada e acrescentada, da “História da Música Brasileira”, de Renato Almeida. Embora já vários escritores tenham tentado a sistematização histórica dos nossos fatos musicais e da evolução da arte da música entre nós, ninguém conseguiu realmente uma reordenação clara dos acontecimentos e muito menos uma visão equilibrada e lógica. Renato Almeida o conseguiu agora, com muito critério e segurança de concepção. Esta segunda edição de sua “História da Música Brasileira” se tornou enfim, como já disse noutro lugar, o livro de base que nos faltava, ponto indispensável de partida para os estudos e ensaios de caráter monográfico, que agora tem onde se estribar. (ANDRADE, 1976, p. 354). Mariz (1983) considera que Renato Almeida deixou como principal legado para a musicologia brasileira a sua segunda edição de História da música brasileira e a organização da Campanha de Defesa do Folclore, que ocorreram justamente após a sua aproximação às diretrizes do modernista paulista. Nas palavras de Mariz, Renato Almeida Chegou à música e ao folclore pela mão do amigo [Mário de Andrade] e teve a sorte de construir dois pilares da musicologia brasileira: a 2ª edição de sua monumental História da Música Brasileira, obra básica até hoje para o estudo do folclore e da produção de nossos músicos eruditos, e a organização da „Campanha de Defesa do Folclore‟, a qual, pelas múltiplas atividades que realizou, chegou à criação e ao eficiente funcionamento do Instituto Nacional do Folclore. (MARIZ, 1983, p.93). 110 Essa passagem dos preceitos filosóficos pautados na A estética da vida, de Graça Aranha, que dão sustentação à edição de 1926 de História da música brasileira, ao projeto marioandradiano fica evidente no modo como Renato Almeida estrutura o texto da segunda edição. Se na primeira edição, o critério central para a avaliação da formação da música brasileira era a apreensão da natureza brasileira pela intuição e subjetividade individual do compositor, na segunda edição, esse critério é alargado e redirecionado para a pesquisa do cancioneiro popular e do folclore. Em depoimento ao Museu da Imagem e do Som 44 , do Rio de Janeiro, Almeida deixa explícita essa mudança de orientação e interesse: A filosofia e a crítica pelos seus valores em si, não tinham mais cabimento, era preciso uma diretiva no plano nacional...Resolvi estudar o fato musical brasileiro e, por seu intermédio, cheguei à folcmúsica e depois ao folclore, que terminou por me absorver, não apenas no seu estudo, mas na ação nacional em defesa da cultura do nosso povo. E assim me fui pouco a pouco desviando dos caminhos que escolhera na juventude, para seguir outros que me haviam sido traçados. Segui-os com entusiasmo e dedicação. (ALMEIDA apud MARIZ, 1983, p.94-95). A postura “desinteressada” de se historiar a música, ou seja, comprometida apenas com os estudos de estética, tal como defendido na primeira edição de História da música brasileira, vai sendo abandonada por Renato Almeida para assumir uma postura “interessada”, de “ação” e “utilidade prática”, como proposta por Mário de Andrade em seu Ensaio sobre a música brasileira. Essa reorientação de conduta transparece ainda mais uma vez no depoimento ao Museu da Imagem e do Som, quando Almeida recorda as preocupações filosóficas que abandonou para se dedicar às pesquisas do material folclórico que foram sendo impostas com o passar dos anos pelo ideário modernista: Sou coerente com meu pensamento goetheano, quando afirma que no começo era a ação, mas – vai agora a confissão – não é sem melancolia que olho as estradas por onde não continuei a andar e ouço as vozes de Laforgue, Rimbaud e Verlaine como que me acusando de uma traição. Deixei por dever a abstração e me entreguei aos estudos objetivos, no campo da musicologia e da antropologia cultural. Não sei se consegui ser útil, como desejei, mas tenho certeza de que sacrifiquei os sonhos mais ardentes da minha juventude, quando só a sabedoria e a beleza me 44 Ver nota 6 (página 24). 111 norteavam. (...) Fiz até um livro um pouco impressionista, que é a primeira edição da História da Música, mas notei uma coisa, que não podíamos conhecer a música se não conhecêssemos as suas origens, a música no sentido nacional, a música brasileira que começava a surgir (...) E, na segunda edição da História da Música, eu consagrei a metade do livro ao estudo da música folclórica. E, começando a estudar a música folclórica, aí é que veio a busilis, o folclore me atraiu. Eu senti que estava no conhecimento do povo, no estudo da sua vida, no estudo das suas raízes e nas suas projeções, o meio de nós conhecermos o homem e a gente. (ALMEIDA apud MARIZ, 1983, p. 95-96, grifos nossos). No prefácio à segunda edição de História da música brasileira, Renato Almeida já antecipa o teor da obra afirmando que esta edição é “na realidade, um livro novo”, pois “a construção, as dimensões, a matéria nele contida, as pesquisas feitas e o material colhido, compilado e verificado – tudo isso é inteiramente inédito” (ALMEIDA, 1942, p. XI). Com isso, entendemos que, ao incorporar material novo em sua obra sobre música, modificando, assim, a própria estrutura do texto, Almeida assumia uma nova metodologia para se conceber a formação da música brasileira, bem como o processo da sua nacionalização. Nesse sentido, o autor quer mostrar que é no populário brasileiro que deveria ser buscado os elementos necessários à nacionalização da música, enfatizando que “os temas (foram) [devem ser] colhidos diretamente da boca de cantadores por pessoas de reconhecida autoridade (...)” (ALMEIDA, 1942, p. XI-XII). Ainda neste prefácio, Almeida agradece às pessoas que contribuíram para a reedição de História da música brasileira, destacando as figuras de Mário de Andrade e Luís da Câmara Cascudo, que contribuíram por diversas vezes na pesquisa para a elaboração da obra, “como ainda (me) apoiaram com o estímulo e a autoridade de profundos conhecedores do folclore musical e de abalisados musicólogos” (ALMEIDA, 1942, p. XI-XII- XIII). Cotejando as duas edições de História da música brasileira, verificamos já no sumário a existência de profundas alterações na estrutura e conteúdo da obra. Enquanto a primeira edição (1926) apresenta seis capítulos, dentre os quais apenas o primeiro refere-se ao estudo da música popular; a edição de 1942 apresenta, no total, dezesseis capítulos, sendo que os seis 112 primeiros, que formam a primeira parte, tratam exclusivamente da música popular brasileira. A segunda parte, intitulada “História da música brasileira”, é dedicada aos compositores eruditos brasileiros e aos seus esforços em busca da nacionalização da música produzida no país. As alterações são perceptíveis também ao atentarmos para a bibliografia dos autores citados ou consultados 45 , que expressa o processo de aprofundamento teórico que Almeida teve não apenas no tocante à música popular, mas também na própria concepção de folcloree de povo brasileiro, dedicando-se à leitura de autores muito variados ausentes da primeira edição. Na edição de 1942 há uma maior preocupação em balizar a argumentação sobre música popular dando informações muito mais detalhadas sobre a contribuição da música indígena, portuguesa e africana, exemplificando com fotos, partituras, tabelas de instrumentos utilizados pelos respectivos grupos sociais, diferentes formas de danças etc, sempre com o objetivo de fornecer maior conhecimento sobre a música popular aos compositores eruditos. Nessa dimensão, Renato Almeida passa a considerar, diferentemente do proposto em 1926, que havia a necessidade de fazer pesquisas científicas, com o intuito de colher tais documentos da música popular, para que estes não viessem a desaparecer com o tempo. A citação abaixo nos ajuda a exemplificar o que estamos sugerindo: Por isso mesmo é tempo de coletar e registrar em discos e em filmes, com seguro critério científico, a música que se canta e a coreografia com que se dansa no Brasil, afim de fazer, ao menos de agora para diante, o que não recebemos do passado. Nas dimensões do nosso país, na variedade de suas terras e gentes, a tarefa terá de ser longa e sistemática, em esforços numerosos e conjugados. De dia para dia ela se torna mais difícil, sobretudo porque as fontes se toldam a cada momento, com as invasões pelo ar da música das cidades, que vai insensivelmente influindo e deformando as expressões populares. (ALMEIDA, 1942, p.60). 45 Dentre os quais aparecem dezesseis textos de Mário de Andrade, como, por exemplo, o Ensaio sobre a música brasileira (1928) e o Compêndio de história da música (1929). 113 Ao considerar a pesquisa pautada em conhecimentos científicos como chave para a nacionalização da música brasileira, Renato Almeida estava claramente assumindo uma posição que, em 1926, negava veementemente. Naquela época, a valorização da intuição da natureza brasileira era colocada em primeiro plano na construção da música nacional. Almeida, em 1926, partindo das concepções filosóficas de A estética da vida, de Graça Aranha, considerava que a ciência não permitiria ao homem ter acesso à “verdadeira” realidade de êxtase da natureza brasileira, que o levaria à sua integração com a sua própria terra e, posteriormente, do país com o “todo infinito”. De modo diferente, em 1942, Almeida emprega a metodologia defendida e utilizada por Mário de Andrade, já no contexto da década de 1920, para a nacionalização da música. Passagem que parece confirmada também pelo fato de após a publicação da segunda edição da sua História da música brasileira, Renato Almeida se converter numa liderança da campanha em prol do estudo e conservação do folclore brasileiro. Para concluir, tomamos como exemplo a apresentação do maxixe nas duas edições da História da música, de Renato Almeida, para sugerir a alteração de sentido nas formulações da segunda edição, após a adesão do autor ao projeto de Mário de Andrade. Na primeira edição, o maxixe é descrito da seguinte forma: O maxixe é a mais característica das nossas danças, tendo, a principio, ficado nas esferas mais baixas, como indigno de penetrar nos salões, onde, afinal, foi aceito, modificando naturalmente os seus passos, para lhe tirar o cunho obscuro. Primitivamente, era uma dança de patuléa. Com uma música, em compasso semelhante ao da polka, mas de ritmos muito quentes e estranha lubricidade, mais acentuada pelos maneios dos pares. (ALMEIDA, 1926, p.45-46). Essa passagem expressa paradigmaticamente como Renato Almeida abordava a música popular em 1926. Ao considerar o maxixe como a dança brasileira mais característica, o autor estava chamando a atenção para o fato de que essa dança, pertencente às “esferas mais baixas”, apresentava “ritmos muito quentes” e “estranha lubricidade”, características essas 114 que estavam de acordo com o estado de “êxtase” da natureza brasileira, como então pensava. Nesse sentido, pelo fato de o maxixe ser uma das manifestações populares que representa mais fielmente a “alegria” da natureza brasileira, essa dança deveria servir de inspiração aos compositores para a elaboração da “música nacional”. Observe-se, justamente, que a formulação sobre o maxixe na primeira edição da História da música não passou despercebida de Mário de Andrade que, em carta de 08 de novembro de 1926, sugeria ao seu autor que se empenhasse um pouco mais na pesquisa sobre as origens do maxixe: (...) se você que está aí no Rio depois de pesquisas penosas e pacientes me dava no seu livro: a origem histórica do maxixe é esta, seu nome veio disto etc. Todo o mundo ficava sabendo coisas novas, coisas cujo mérito de saber (e eu estou inteiramente com vocês a respeito de saber, você sabe disso) só dependeu de você. Era você o homem que fez alguma coisa pra nossa musicologia normativa histórica. É ou não é! O nome de você se ligaria a uma das fontes e um dos pontos mais importantes da musicologia nacional. (...) Antes de mais nada essas considerações que vinha fazendo eram principalmente pra convidar você a trabalhar nessas pesquisas a respeito do maxixe. Te garanto que é trabalho útil (...) (ANDRADE apud NOGUEIRA, 2003, p.167-168, grifos nossos). Ao compararmos a passagem sobre o maxixe da primeira edição à da segunda edição, percebemos sua reformulação: O maxixe foi por algum tempo expoente da nossa dansa urbana, tendo cedido lugar ao samba, devido talvez à sua coreografia complicada, difícil e exagerada. Resultou da „fusão da habanera pela rítmica e da polca pela andadura, com adaptação da sincopa africana‟. Outros o fazem uma prolação do lundu, mesclado com a toada.(...) o maxixe tirou o movimento da polca e o ritmo binário característico da habanera, que foi dansa comum no Brasil, mas lhe deu o tom, o ritmo sincopado, nele permanente.(...)Ainda não se explicou bem a origem da palavra maxixe e há uma versão de Vila Lobos, segundo a qual Maxixe era alcunha de certo indivíduo que, numa sociedade carnavalesca, teria dançado um lundu de maneira nova e original. Nesta definição do maxixe, da segunda edição de História da música brasileira, é possível notar que Almeida buscou incorporar tanto as críticas feitas por Mário de Andrade, na carta de 08 de novembro de 1926, com relação à origem do maxixe, como também deixa de abordar essa dança pelo viés da filosofia da estética da vida. A busca de uma 115 fundamentação mais analítica fica muito perceptível ao observarmos como Almeida define o maxixe, não mais como um dos principais exemplos da “alegria” da natureza, que deveria ser incorporada à “música nacional”, mas, antes, define a dança a partir do seu desenvolvimento técnico e histórico. 116 CONSIDERAÇÕES FINAIS Nesta dissertação de mestrado tivemos o objetivo de recuperar o debate interpretativo sobre a formação da música brasileira que Renato Almeida e Mário de Andrade travaram por meio das duas edições de História da música brasileira (Renato Almeida), do Ensaio sobre a música brasileira (Mário de Andrade) e da Pequena história da música (Mário de Andrade), bem como dos artigos em jornais e revistas e da correspondência que trocaram durante os anos de 1922-1944. Buscamos, a partir disso, explicitar a existência de duas propostas concorrentes de nacionalização musical no interior do movimento modernista durante os anos 1920, propostas estas que se tornaram congruentes com o decorrer dos anos. No primeiro capítulo, procuramos apresentar os distintos contextos intelectuais em que Renato Almeida e Mário de Andrade se formaram e mostrar como se estabeleceu o debate público entre eles nos periódicos dos anos 1920. Dessa forma, apontamos que as suas diferentes formações intelectuais implicaram em modos distintos de se entender o processo de formaçãoe nacionalização da música brasileira. Renato Almeida se formou em uma tradição simbolista, característica da intelectualidade da capital federal da primeira década do século XX (GOMES, 1999). Juntamente com Ronald de Carvalho e Graça Aranha, fez parte da formação de uma das correntes do movimento modernista, que tinha como fundamentação teórica os preceitos filosóficos de A estética da vida, de Graça Aranha. Tal concepção filosófica partia da idéia de que havia um dualismo, no país, que separava o indivíduo da sua natureza, dualismo este que, num plano mais geral, também mantinha o Brasil separado do “Todo universal”. Essa separação – indivíduo-natureza e Brasil-Todo Universal – era o que justificava a existência da melancolia como um dos traços característicos do brasileiro. Desse modo, a intuição estética da arte seria um dos possíveis caminhos que poderia conduzir o indivíduo a se integrar com a natureza de seu país, e, posteriormente, com a “unidade infinita 117 do todo”. Essa teoria, que era a base filosófica dos escritos de Almeida durante a década de 1920, entendia que a ciência, a pesquisa analítica, era incapaz de realizar tal tarefa – de integrar indivíduo-natureza –, pois considerava que a ciência apresentava o universo fragmentado em várias partes, impossibilitando a compreensão deste universo como “um todo infinito” (MORAES, 1978). Mário de Andrade, por sua vez, teve uma formação significativamente diferente da de Renato Almeida. Tendo estudado em Conservatório de música e se tornado professor nesta área, Andrade utilizou em sua produção literária e ensaística muito das técnicas da composição musical. Devido a essa formação musical e ao seu autodidatismo, entendia que a renovação da arte feita no Brasil deveria ocorrer a partir das “normas de compor” da música popular, visto que, em sua opinião, era na composição popular que se encontraria os elementos étnicos que formavam o povo brasileiro (MELLO E SOUZA, 2003). Essa formação intelectual de Mário de Andrade o levava a pensar que era preciso primeiro conhecer as manifestações populares para somente depois criar uma arte brasileira. Para isso, era necessário realizar pesquisas de coleta desse material popular, pois, somente após o conhecimento da manifestação cultural popular, seria possível encontrar uma definição de “brasilidade”, como procuramos demonstrar a partir da exposição que fizemos dos argumentos de Ancona Lopez na obra Mário de Andrade: Ramais e caminhos. Nessa perspectiva, pudemos perceber que as diferentes trajetórias intelectuais, bem como as diferentes formas que concebem a renovação da arte brasileira, são decisivas nas formulações que Renato Almeida e Mário de Andrade fazem sobre a formação da música brasileira. Os artigos publicados em periódicos como Klaxon e Ariel exemplificam isso. Assim, embora os autores fossem defensores da estética nacionalista no campo da música dos anos 1920, na qual assumiram a condição de teóricos responsáveis pelo estabelecimento de critérios de construção da música moderna nacional, procuramos elucidar, a partir de nossa 118 pesquisa, que existiam diferenças cruciais quanto ao método de se compreender e propor a formação da música brasileira nos anos 1920. Para Renato Almeida, a noção de “intuição estética” deveria ser a via para a nacionalização da arte feita no Brasil, sendo, aliás, a solução para o fim do dualismo entre indivíduo-natureza. Dessa maneira, este autor estava valorizando a interpretação subjetiva do músico, como livre criador, bem como entendendo que a finalidade da arte é a busca da beleza. Nessa direção, Almeida critica o artista que faz arte somente por meios objetivos, que não utiliza as questões do espírito, da emotividade, uma vez que, para ele, essa, sim, era a função essencial da arte. Por outro lado, Mário de Andrade concebia que o mais importante na arte era a matéria artística, por isso defende a pesquisa e coleta da manifestação popular, como aparece em seus primeiros escritos sobre música, como no artigo João de Souza Lima, publicado na seção “Crônicas”, no número 7, de Klaxon: Vou ao concerto para me comover. Não há dúvida. Mas para me comover na ordem artística e não na ordem natural (...) Da combinação de sons, que isto é a música (deixemo-nos de complicações metafísicas) nascem dentro de mim comoções ideais, sensações frenéticas, suaves, báquicas ou puras, gráceis ou severas que me fazem vibrar, mas desprendido do mundo (ANDRADE apud WISNIK, 1983, p.110). Assim, para o modernista paulista, a arte é diferente da natureza, não deve ser, portanto, uma imitação dela; “mas decorre da pura materialidade da obra, rejeitada em seu caráter metafísico e assumida como estrutura sonora” (WISNIK, 1983, p.110). Em outras palavras, Andrade está, já em 1922, formulando as suas idéias estéticas básicas nas quais aparece a noção de que a arte tem autonomia com relação à natureza, afirmando que a música é essencialmente estrutura sonora. Nesse sentido, o autor busca dar uma validade didática aos seus escritos sobre música, na medida em que enfatiza que as obras de arte devem ter uma interpretação objetiva e não ser uma “expressão de sentimentos passageiros” que modifica a linguagem musical original (WISNIK, 1983, p.110). O artista moderno, nessa dimensão, deveria se limitar a compor ou a interpretar seguindo normas objetivas, tendo de estar ligado ao seu meio, isto é, buscando representar o social. 119 No segundo capítulo, procuramos recuperar como o debate interpretativo sobre música brasileira entre Renato Almeida e Mário de Andrade ocorreu na esfera privada, por meio da correspondência trocada durante o período de 1922 a 1944. Analisando a vasta correspondência, pudemos constatar que os autores estiveram comprometidos com o ideal do movimento modernista, qual seja, a nacionalização das artes feitas no Brasil como forma de renovação do pensamento e da cultura brasileiros. No caso particular da música, ambos os autores admitiam a necessidade de os músicos modernos se distanciarem da interpretação romântica, entendida por eles como passadista. O diálogo epistolar nos apresenta o caminho de gestação dos ensaios musicais de Renato Almeida e Mário de Andrade, ensaios estes em que os autores irão formalizar os seus projetos de modernização da música brasileira. Ainda que estes intelectuais modernistas concordassem com a necessidade de renovação da música erudita feita no Brasil, as cartas mostram que havia divergências entre os dois autores, bem como entre os grupos dos quais faziam parte. O debate privado, através das cartas, evidencia que, com a formação de diferentes grupos ideológicos no interior do movimento modernista, começam a existir disputas internas pela hegemonia de um tipo de representação de modernismo brasileiro. Dito de outra maneira, a partir do momento em que o movimento modernista precisa fundamentar teoricamente a sua posição enquanto uma proposta de renovação das artes no Brasil, “vozes dissonantes” aparecem e exigem representação no movimento moderno. Notamos, pela análise das missivas, que o grupo de Renato Almeida, que tinha como principal liderança Graça Aranha, se opunha à proposta do grupo no qual Mário de Andrade tinha um papel de destaque. Nessa perspectiva, o diálogo marcado pela troca de cartas demonstra a tentativa desses intelectuais, naquele momento, buscarem definir a cultura brasileira como moderna, independentemente de suas posições ideológicas. O exame da correspondência foi muito emblemático nesse particular, pois nos permitiu acompanhar o que não aparecia nas obras 120 sobre música, ou seja, pudemos observar, através dela, como os autores construíam os seus argumentos e delimitavam as suas posições no interior do movimento modernista. Desse modo, com a análise do debate privado travado por meio das cartas trocadas entre osautores, durante o período de 1922 a 1944, pudemos acompanhar um movimento amplo que vai das divergências iniciais, decorrentes das formações intelectuais distintas dos autores, como tratamos no primeiro capítulo, até as suas convergências – que dão origem à segunda edição de História da música brasileira, de Renato Almeida, em 1942 –, convergências estas que ocorrem em virtude das próprias transformações políticas e culturais decorrentes do início dos anos 1930, somado ao fato das mortes de Graça Aranha, em 1931, e de Ronald de Carvalho, em 1935, principais interlocutores teóricos de Almeida. Nesse contexto histórico, a trajetória epistolar aponta que o intelectual baiano passa paulatinamente a rever a sua posição da década de 1920, para assumir a defesa da pesquisa analítica do folclore, tal como proposta por Mário de Andrade. No terceiro capítulo da dissertação, buscamos demonstrar como o debate de idéias estabelecido por Renato Almeida e Mário de Andrade, através dos artigos em periódicos e da correspondência, se materializou inicialmente nas obras musicológicas da década de 1920, e, posteriormente, na segunda edição de História da música brasileira, em 1942. Tendo evidenciado que existiam duas posições interpretativas no modernismo musical, durante a década de 1920, as quais apontavam para formas diferentes de nacionalização da música feita no Brasil, apresentamos como as divergências apareceram nas obras dos anos 1920 dos autores em questão. Na primeira edição de História da música brasileira (1926), Almeida propunha a “intuição estética” como forma de nacionalização da música feita no país, apontando que somente por essa via teríamos condições de fazer uma música que fosse, ao mesmo tempo, nacional e moderna. Tal concepção filosófica de Almeida chocou-se com aquela defendida 121 por Mário de Andrade, como mostramos no segundo capítulo deste texto; pois, para este último, era imprescindível o uso de métodos analíticos para a nacionalização da música. Verificamos, ainda, que Andrade censurou a obra de 1926, de Almeida, considerando-a sem “caráter prático”, ao alegar que seu autor se preocupava mais em descrever a história dos compositores eruditos do que em trazer informações mais detalhadas sobre o cancioneiro popular. É nesse contexto que é escrito e publicado, em 1928, o Ensaio sobre a música brasileira, e, em 1929, a Pequena história da música, de Mário de Andrade. Nessas obras, o referido autor formaliza a sua concepção teórica sobre o “passado” musical brasileiro, assim como lança as diretrizes de seu projeto de nacionalização da música. De modo geral, essas obras afirmam que, para se ter uma música moderna, era necessário, inicialmente, a superação do “passado” erudito musical – passado este entendido como sendo o romantismo –, por parte não apenas dos compositores, mas ainda dos intérpretes e do público em geral, e, posteriormente, a pesquisa analítica do folclore musical, como forma de se construir uma música autenticamente brasileira. Com a constatação de que a interpretação de Renato Almeida sobre a história e os meios pelos quais deveria ocorrer a nacionalização da música brasileira era diferente daquela proposta por Mário de Andrade, buscamos examinar a segunda edição de História da música brasileira, de Almeida, no intuito de compreender os motivos que fizeram esse autor ser vinculado à mesma interpretação realizada por Andrade, a respeito da nacionalização musical. A segunda edição de História da música brasileira, “corrigida e aumentada”, foi publicada em 1942, sendo “na realidade, um livro novo” (ALMEIDA, 1942, p.XI), como seu próprio autor afirma. A parte da obra que trata da música popular brasileira é reformulada quase que na totalidade, passando a incorporar maiores detalhamentos e informações sobre a 122 música popular, o que havia sido cobrado por Mário de Andrade, na ocasião do lançamento da primeira edição da obra, em 1926. Percebemos, portanto, que tanto para Mário de Andrade como para Renato Almeida da segunda edição de História da música havia a necessidade de se buscar no folclore uma cultura sui-generis, com o objetivo de se construir um “sentimento de pertencimento" na sociedade brasileira que, segundo o diagnóstico dos dois modernistas, não havia no país até aquele contexto. Ambos continuavam considerando, no contexto da década de 1940, que toda a produção musical feita no país até os anos 1920 ainda não era essencialmente nacional, por mais esforços que tivessem feito compositores como Carlos Gomes (1839-1896), Leopoldo Miguez (1850-1902), Alexandre Levy (1864-1892), e mesmo Alberto Nepomuceno (1864- 1920). Faltava a esses compositores maior intimidade com as manifestações populares. Tal problema ocorria devido à origem colonial do Brasil, e só poderia ser resolvido a partir do momento em que se considerasse o folclore como a base para se compor música no país, como estava fazendo Heitor Villa-Lobos. Num sentido mais amplo, para os dois autores, a nacionalização da música somente seria possível com o desenvolvimento de escolas nacionalistas de composição, uma vez que apontam que a falta de uma música nacional se deve, no limite, à falta de coesão à sociedade como nação. Ao buscarmos compreender as idéias contidas nas obras sobre música de Renato Almeida e Mário de Andrade, escritas nos anos 1920, e nos depararmos com duas orientações de nacionalização musical, as quais, com o passar dos anos e o estreitamento da relação entre os autores, passam a ser congruentes, concluímos que a vinculação do nome de Renato Almeida ao modernismo musical deve-se, portanto, mais à segunda edição de História da música brasileira, de 1942 – obra esta que contou com a colaboração e com a aprovação de Mário de Andrade –, do que à primeira edição, de 1926, que foi praticamente desconsiderada como um trabalho de caráter modernista, devido à influência de A estética da vida, de Graça 123 Aranha. Ao travar um debate interpretativo com Mário de Andrade, tanto por meio dos artigos como por meio da correspondência, Almeida reviu a validade das formulações colocadas na primeira edição da sua obra musicológica. Em outras palavras, as idéias de nacionalização da música, de Almeida, quando tentaram se rotinizar, foram impelidas pela proposta de Mário de Andrade. Nessa direção, o sentido “vencedor” da proposta de Mário de Andrade em relação àquela de Renato Almeida, de 1926, acabou significando, a longo prazo, uma visão hegemônica sobre modernismo musical nas pesquisas acadêmicas acerca da música erudita brasileira, em grande parte pelo fato de Almeida, na sua segunda edição, defender a pesquisa do folclore musical, de forma semelhante à proposta por Mário de Andrade. Embora na segunda edição de História da música brasileira tenha ocorrido uma modificação tanto de ordem estética como de ordem metodológica na obra musicológica de Renato Almeida, notamos que para ele, assim como para Mário de Andrade, o desenvolvimento de uma música brasileira continuava associado à resolução de problemas de ordem social, que ainda permaneciam na década de 1940. Dito de outro modo, Almeida e Andrade concordavam no que diz respeito às condições precárias enfrentadas pelos compositores para fazer uma música nacional, bem como com o problema da falta de estudos sobre o folclore musical, pois “Infelizmente, nem na parte folclórica nem na histórica se fizeram até hoje levantamentos seguros e definitivos”, como atesta Renato Almeida, em 1942 (ALMEIDA, 1942, p. XII). Do ponto de vista social mais amplo, para os dois autores, o maior problema a ser vencido continuava sendo o da reorganização de uma sociedade formada a partir da experiência colonial. Nesse sentido, Almeida e Andrade, ainda no contexto da década de 1940, entendiam que os obstáculos para a formação de uma música nacional se davam devido aos problemasmais gerais da própria formação da sociedade brasileira. 124 Nessa perspectiva, procuramos mostrar, com esta pesquisa, que a recuperação do debate travado entre Renato Almeida e Mário de Andrade, por meio de artigos em periódicos, pela correspondência e principalmente pelas suas obras musicológicas, possibilita ampliar, do ponto de vista sociológico, as abordagens das pesquisas na área, indicando que as idéias do modernismo musical também alcançaram terreno para atuar. Expandindo as discussões em torno das abordagens sobre modernismo musical, pudemos trazer à tona um intelectual modernista que contribuiu significativamente para o estabelecimento da musicologia nacionalista brasileira, assim como para a institucionalização dos estudos folclóricos no Brasil, mas que não vem tendo o devido reconhecimento nas pesquisas a respeito do modernismo musical, como é o caso de Renato Almeida. 125 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS FONTES PRIMÁRIAS (OBRAS DE MÁRIO DE ANDRADE) ANDRADE, M. Ensaio sobre a música brasileira. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2006. [1928,1ª edição]. _____________. Pequena história da Música. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2003. [1929, 1ª edição]. _____________. Evolução Social da Música no Brasil. In: Aspectos da música brasileira. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1975. _____________. Música, doce música. São Paulo: Martins, 1976. _____________. Modinhas Imperiais. Belo Horizonte: Itatiaia, 1980. _____________. 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